PROCESSO ESPECIAL PARA ACORDO DE PAGAMENTO
ENCERRAMENTO DO PROCESSO NEGOCIAL
ENCERRAMENTO DO PROCESSO ESPECIAL
DESISTÊNCIA DO DEVEDOR DAS NEGOCIAÇÕES
PARECER DO ADMINISTRADOR JUDICIAL PROVISÓRIO
CONTRADITÓRIO DO DEVEDOR
APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA POR PARTE DO DEVEDOR
Sumário

I) São realidades jurídicas distintas o encerramento do processo negocial em processo especial para acordo de pagamento, por um lado, e o encerramento do processo especial para acordo de pagamento, por outro lado.
II) O processo negocial encerra-se quando o devedor ou a maioria dos credores legalmente prevista concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo; com o decurso do prazo das negociações; com a desistência das negociações, por parte do devedor, antes do decurso de tal prazo.
III) O processo especial para acordo de pagamento considera-se encerrado após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de pagamentos ou após o cumprimento do disposto nos n.ºs 1 a 6 do artigo 222.º-G do C.I.R.E., nos casos em que não tenha sido aprovado ou homologado o plano de pagamento.
IV) O devedor só pode desistir das negociações se estiver a decorrer o respectivo prazo, não o podendo fazer depois de esgotado tal prazo.
V) A desistência tempestiva das negociações pelo devedor não implica o encerramento do processo especial para acordo de pagamento, antes implica a observância do disposto nos n.ºs 1 a 5 do artigo 222.º-G do C.I.R.E.
VI) Se o processo negocial for concluído sem a aprovação de acordo de pagamento, compete ao administrador judicial provisório, na comunicação sobre o encerramento do processo, após ouvir o devedor e os credores, emitir parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a insolvência do devedor.
VII) Na audição do devedor o administrador judicial provisório não tem que fornecer-lhe elementos sobre os quais se deve pronunciar.
VIII) O parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência só equivale à apresentação à insolvência por parte do devedor quando este não discorde da sua situação de insolvência.

Texto Integral

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A... e B... , residentes na Rua ..., ..., recorreram, sob a alegação de que se encontravam em situação económica difícil, ao processo especial para acordo de pagamento a fim de estabelecerem negociações com os respectivos credores de modo a concluir com eles acordo de pagamento.

Recebido o requerimento, o juiz nomeou administrador judicial provisório.

Em 23 de Março de 2021 foi apresentada e publicada no portal Citius a lista provisória de créditos.

A lista não foi impugnada.

O prazo das negociações foi prorrogado por um mês.

Em 5 de Julho de 2021, o administrador judicial provisório comunicou que estava ultrapassado o prazo das negociações sem que tivesse sido junto ao processo qualquer acordo de pagamento. Considerava, assim, encerrado o processo negocial sem a aprovação de acordo de pagamento.

Mais informou que havia comunicado aos devedores e aos credores, nos termos do n.º 4 do artigo 222.º-G do CIRE, que o processo negocial se havia encerrado sem a aprovação de acordo de pagamento e que os convidava a pronunciarem-se sobre se os devedores se encontravam em situação de insolvência.

Em 6-07-2010 o encerramento do processo negocial sem a aprovação de acordo de pagamento foi publicado no portal Citius em 6-07-2010.

Em 15-07-2021, a Meritíssima juíza do tribunal a quo declarou encerrado o processo especial para acordo de pagamento sem aprovação de plano /acordo de pagamento.

Nesse mesmo despacho ordenou a notificação do administrador judicial provisório para dar cumprimento ao disposto no artigo 222.º-G, n.º 4 do CIRE.

Em 21-07-2021, o administrador emitiu parecer no sentido de que os devedores se encontravam em situação de insolvência.

Em 28 de Julho de 2021, os devedores vieram informar que procederam, em 23-07-2021, às comunicações, a que alude o artigo 222.º-G, n.º 6 do CIRE, aos credores e ao administrador designado pelo tribunal.

Os devedores declararam nelas:
· Que não havia sido possível chegar a acordo com todos os credores no prazo estabelecido no artigo 222.º-D, n.º 5 do CIRE;
· O encerramento das negociações do PEAP, nos termos e com os efeitos previstos no artigo 222.º-G n.º 6 do CIRE;
· Que se encontravam a cumprir com os acordos de pagamento pré-estabelecidos;
· Que não se encontravam em situação de insolvência;
· Que estavam disponíveis para encetar negociações individualizadas com os restantes credores.

Os devedores foram notificados nos termos do artigo 222.º-G, n.º 5 do CIRE. A data da notificação, certificada pelo tribunal, foi a de 19-08-2021.

Em 1-09-2021, os devedores requereram que previamente à apresentação do plano de pagamentos fosse proferido despacho sobre o requerimento junto aos autos a 28.07.2021 no qual havia sido dado conhecimento ao tribunal do encerramento do processo ao abrigo do art.º 222.º G, n.º 6 do CIRE.

Em 8-09-2021, o tribunal a quo, interpretando o requerimento de 1-09-2021 no sentido de que os devedores pediam que fosse proferido despacho de encerramento do processo, entendeu que não havia nada a determinar sobre tal requerimento. Justificou este entendimento nos seguintes termos:
· Por decisão proferida a 15.07.2021, e da qual os devedores foram devidamente notificados, foi declarado encerrado o presente processo especial para acordo de pagamento, sem aprovação de plano/acordo de pagamento;
· Na referida decisão mais se ordenou o cumprimento pelo Sr. AJP do disposto no artigo 222.ºG, n. º4, do CIRE, o que foi feito pelo requerimento apresentado em juízo a 21.07.2021 (ref.ª7885346);
· Por notificação expedida a 19.08.2021 foram os devedores notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 222.ºG, n. º5, do CIRE, nada tendo requerido no prazo legal de 5 dias.

Nesse despacho, a Meritíssima juíza do tribunal a quo determinou a extracção de certidão do parecer do administrador e do despacho proferida e a remessa de tal expediente à distribuição como processo especial de insolvência, o qual deveria ficar afecto ao Juiz1. Mais ordenou que, de seguida, se remetesse o presente processo especial aos autos de insolvência, para apensação.

Os devedores não se conformaram com o despacho, na parte em que foi ordenada a extracção de certidão “(…) de parecer junto com o requerimento datado de 21.07.2021, refª 7885346 e do presente despacho, remetendo à distribuição como processo especial de insolvência – Requerida-, o qual deverá ficar afeto a J1.” e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo se revogasse o despacho recorrido e se determinasse que o processo especial para acordo de pagamento foi encerrado por iniciativa dos recorrentes por comunicação remetida aos credores e ao administrador provisório em 23-07-2021.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram em síntese, os seguintes:

(…)


*

Síntese da questão suscitada pelo recurso:

Saber se a decisão recorrida deve ser revogada e substituída por decisão que determine que o processo especial para acordo de pagamento foi encerrado por iniciativa dos recorrentes, mediante comunicação remetida aos credores e administrador provisório em 23-07-2021.


*

Os factos relevantes para a decisão do recurso são constituídos pelos antecedentes processuais da decisão recorrida narrados no relatório deste acórdão.

*

Os recorrentes pedem a revogação da decisão recorrida e a substituição dela por decisão que determine que o processo especial para acordo de pagamento foi encerrado por iniciativa dos recorrentes, mediante comunicação remetida aos credores e administrador provisório em 23-07-2021.

Seguindo a ordem das conclusões do recurso, o 1.º argumento de que os recorrentes lançaram mão para pedir a revogação da decisão recorrida é constituído pela alegação de que o despacho sob recurso ordenou a abertura do processo especial de insolvência deles, recorrentes, sem que estivessem em situação de insolvência.

O argumento não colhe.

Ao alegar no sentido exposto os recorrentes argumentam como se o tribunal a quo tivesse ordenado a abertura de processo de insolvência por ter considerado que eles, recorrentes, se encontravam em situação de insolvência. Não é este o sentido do despacho sob recurso. O tribunal a quo determinou que se extraísse certidão do parecer do administrador e a remessa de tal expediente à distribuição como processo especial de insolvência porque, resulta do n.º 4 do artigo 222.º-G  do CIRE que, quando o processo negocial chegar ao seu termo sem a aprovação de acordo de pagamento – como sucedeu no caso – é dever do administrador judicial provisório emitir parecer sobre se os devedores se encontram em situação de insolvência e quando o parecer for neste sentido é dever dele, administrador, requerer a insolvência do devedor. Havendo parecer no sentido indicado, há lugar à abertura do processo de insolvência. Será, no entanto, nele que irá ser proferida decisão sobre a situação de insolvência dos devedores. Decisão que, como escreve Catarina Serra, “… é sempre … o resultado de uma avaliação objectiva levada a cabo pelo juiz, que, para o efeito deve rodear-se de toda a informação disponível e não apoiar-se exclusivamente no parecer do administrador” [Lições de Direito da Insolvência, Almedina, página 430].

E decisão que, não havendo concordância dos devedores com o parecer do administrador, não será proferida sem que lhes seja dada a possibilidade de se oporem à declaração de insolvência. Na verdade, apesar de resultar do n.º 4 do artigo 222.º-G do CIRE que o requerimento de insolvência do administrador é de equiparar à apresentação à insolvência por parte do devedor, tal equiparação só é de admitir na hipótese de o devedor, ouvido pelo administrador, reconhecer que se encontra em situação de insolvência. Não havendo este reconhecimento, assiste ao devedor a faculdade de se opor ao pedido de insolvência. É o que resulta do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/2020, proferido em 5 de Maio de 2020, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 4 do artigo 222.º-G do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º do mesmo Diploma - ainda que com as necessárias adaptações, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência [DR I Série de 7-7-2020].  

É, assim, claro que a decisão de ordenar a extracção de certidão do parecer do administrador e a remessa dela à distribuição como processo especial de insolvência não tem o sentido de uma declaração de insolvência dos devedores por parte do tribunal a quo.    

O segundo argumento a que os recorrentes recorrem para pedir a revogação da decisão é constituído, em síntese, pela alegação de que o tribunal a quo não se pronunciou sobre os requerimentos apresentados poe eles em 28-07-2021 e 1-09-2021, o que configurava nulidade.

Este argumento também não colhe.

Em primeiro lugar não é exacto que o tribunal a quo não se tenha pronunciado sobre tais requerimentos. Se, num primeiro momento, assim procedeu em relação ao requerimento apresentado em 28-07-2021, posteriormente, quando os ora recorrentes pediram ao tribunal a quo, em 1-09-2021, que se pronunciasse sobre aquele requerimento, o tribunal tomou posição sobre ele, dizendo que “não havia nada a determinar quanto a tal requerimento”. 

 Ainda que se veja nesta decisão uma recusa de pronúncia, ela não é equiparável à omissão de pronúncia. Chamando aqui as palavras Alberto dos Reis a propósito da omissão de pronúncia, “… uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção” [Código de Processo Civil anotado, volume v, Coimbra, Editora, Limitada, página 143]. É isento de dúvida que o tribunal a quo justificou a sua decisão.

A verdade é que o despacho em causa, em substância, indeferiu o pedido dos ora recorrentes no sentido de o tribunal declarar que o processo especial para acordo de pagamento havia sido encerrado por iniciativa deles, mediante comunicação remetida aos credores e ao administrador judicial provisório em 23-07-2021.

Interpretando a decisão do tribunal a quo com este sentido, do que ela poderia ser acusada era de ilegalidade. Porém, se tal acusação lhe fosse desferida, estaria votada ao fracasso, pois a pretensão dos ora recorrentes no sentido de o tribunal declarar que o processo especial para acordo de pagamento foi encerrado por iniciativa deles, através de comunicação remetida aos credores e ao administrador judicial provisório em 23-07-2021, não tinha amparo nas disposições reguladoras do processo especial para acordo de pagamento

Vejamos. Há que distinguir entre o encerramento do processo negocial e o encerramento do processo especial para acordo de pagamento.  

O processo negocial encerra-se:
· Quando o devedor ou a maioria dos credores prevista no n.º 3 do artigo 222.º-F concluam antecipadamente não ser possível alcançar acordo (n.º 1 do artigo 222.º-G, do CIRE);
· Com o decurso do prazo das negociações (dois meses a contar do fim do prazo para impugnação da lista provisória de créditos ou 3 meses a contar desse mesmo prazo, na hipótese de acordo escrito entre o administrador judiciário provisório e o devedor nesse sentido (n.º 5 do artigo 222.º-D, do CIRE), quer se aprove quer não se aprove um acordo de pagamento (n.º 2 do artigo 222.º-F e n.º 1 do artigo 222.º-G, ambos do Código Civil);
· Com a desistência das negociações, por parte do devedor, antes do decurso de tal prazo (n.º 6 do artigo 222.º-G do CIRE).

O processo especial para acordo de pagamento considera-se encerrado após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de pagamentos ou após o cumprimento do disposto nos n.ºs 1 a 6 do artigo 222.º-G nos casos em que não tenha sido aprovado ou homologado o plano de pagamento (alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 222.º-J do CIRE).

Tendo presente esta distinção entre encerramento do processo negocial e encerramento do processo especial para acordo de pagamento, o mais que a desistência das negociações, por parte dos devedores, poderia ter encerrado era o processo negocial.

A verdade é que nem as negociações foram encerradas por desistência dos devedores. Quando no n.º 6 do artigo 222.º-G do CIRE se dispõe que o devedor pode pôr termo às negociações a todo o tempo, independentemente de qualquer causa, quer dizer-se que o devedor pode desistir das negociações sem esperar pelo fim do respectivo prazo. Assim sendo, a comunicação dos ora recorrentes aos credores, ao administrador e ao tribunal, em 23-07-2021, valeria como desistência das negociações se, em tal data, o prazo delas ainda estivesse em curso, hipótese que não se verificava. Com efeito, o prazo das negociações esgotara-se em 28-06-2021, sem a aprovação de plano de pagamento. Daí que o processo negocial tenha terminado nos termos previstos no n.º 1 do artigo 222.º-G do CIRE.

Contra a pretensão dos recorrentes depõe ainda o seguinte. Ainda que eles tivessem desistido das negociações com o prazo delas em curso, o processo especial para acordo de pagamento não se encerraria com a desistência.

Vejamos. Ao mandar aplicar à desistência do processo negocial com as necessárias adaptações o disposto nos números anteriores, o n.º 6 do artigo 222.º-G significa que também nas hipóteses em que o processo negocial chega ao fim por decisão do devedor há lugar ao cumprimento do disposto nos n.ºs 1 a 5 do artigo 222.º-G.

E o cumprimento do disposto nestes números implica:
1. A comunicação do encerramento do processo e a publicação de tal facto no portal Citius;
2. Que o administrador judicial provisório emita parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência, após audição do devedor e dos credores;
3. Que, na hipótese de o parecer do administrador ser no sentido de o devedor se encontrar em situação de insolvência, o devedor seja notificado para, querendo, em cinco dias apresentar plano de pagamentos, nos termos do disposto no artigos 249.º e seguintes ou requerer a exoneração do passivo restante nos termos do disposto nos artigos 235.º e seguintes;
4. A abertura do processo de insolvência (n.º 4 do artigo 222.º-G).

Só depois de cumprido estas disposições é o que o processo especial para acordo de pagamento se consideraria encerrado (alínea b) do n.º 1 do artigo 222.º-J, do CIRE). E, note-se, considerar-se-ia encerrado sem necessidade de uma declaração judicial nesse sentido, ao contrário do que acontece em relação ao encerramento do processo de insolvência (n.º 1 do artigo 230.º do CIRE).

O terceiro argumento que invocam contra o despacho recorrido é constituído em síntese, pela alegação:
1. Que eles recorrentes viram as suas armas de defesa quanto à abertura do processo gravemente prejudicadas, atendendo a que ainda antes da notificação do parecer do parecer emitido pelo administrador judicial provisório, já o Meritíssimo juiz havia proferido sentença a declarar o encerramento do processo, a cessar as funções do administrador judicial provisório;
2. Que a inconstitucionalidade surgia na sentença proferida em 15-07-2021, quando foi ordenada ao administrador judicial provisório que desse cumprimento ao disposto no artigo 222.º-G, n.º 4 do CIRE, quando já havia declarado cessadas as suas funções;
3. Que o administrador judicial provisório nunca deu aos recorrentes a possibilidade de exercerem um verdadeiro contraditório tendo apenas remetido a todos os mandatários um email com uma comunicação vaga, sem informações concretas sobre a situação financeira dos devedores, não lhes dando elementos sobre os quais se pronunciassem.

Estes argumentos não colhem.

Em primeiro lugar, não são exactas as seguintes alegações dos recorrentes:
· Que antes da notificação do parecer do administrador, a Meritíssima juíza do tribunal a quo deu por cessadas as funções do administrador;
· Que quando foi ordenado ao administrador que desse cumprimento ao disposto no n.º 4 do artigo 222.º-G do CIRE, a Meritíssima juíza do tribunal a quo já havia dado por cessadas as funções do administrador.

Em segundo lugar, não se vê – e os recorrentes também não as indicam - que “armas de defesa” é que não puderam utilizar contra a abertura do processo de insolvência.

Quando, como sucedeu nos autos, o processo negocial for concluído sem a aprovação de acordo de pagamento, compete ao administrador judicial provisório na comunicação sobre o encerramento do processo, após ouvir o devedor e os credores, emitir parecer sobre se o devedor se encontra em situação de insolvência e, em caso afirmativo, requerer a insolvência do devedor (n.º 4 do artigo 222.º-G do CIRE).

Assim, a “arma de defesa” que os devedores dispõem contra a hipótese de abertura do processo de insolvência é a possibilidade de se pronunciarem sobre a sua situação antes de o administrador emitir parecer sobre ela. E no caso foi-lhes dado tal possibilidade.

Observe-se que, contrariamente ao que alegam os recorrentes, não resulta do n.º 4 do artigo 222.º-G do CIRE que, quando o administrador ouve o devedor sobre a situação dele, tem o dever de lhe dar elementos sobre os quais se deve pronunciar. O dever que impende sobre o administrador é o de ouvir o devedor – bem como os credores - sobre a situação daquele, antes de emitir o parecer. Ao devedor cabe dizer o que se lhe oferecer sobre a sua situação, sendo certo que não se vê que haja alguém em melhor posição do que ele para se pronunciar sobre se está ou não em situação de insolvência.

Questão diferente, mas que não se suscita nos autos, é a do exercício do contraditório pelos devedores, já no domínio do processo de insolvência, em relação ao pedido de insolvência requerido pelo administrador.

E a questão coloca-se porque, por um lado, o n.º 4 do artigo 222.º-G impõe ao administrador judicial provisório o dever de requerer a insolvência do devedor quando for de parecer que ele se encontra em situação de insolvência e, por outro, manda aplicar ao requerimento do administrador o disposto no artigo 28.º, com as necessárias adaptações.    

Visto que este artigo dispõe que a apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, a aplicação ao requerimento do administrador do disposto em tal artigo significa que o requerimento é equiparado à apresentação à insolvência por parte do devedor, a qual implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência.

Este regime colide com o direito de o devedor se defender do pedido de insolvência, nos casos em que aquele não concordar com o parecer do administrador. Foi neste contexto que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 258/2020, proferido em 5 de Maio de 2020, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 4 do artigo 222.º-G do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, quando interpretada no sentido de o parecer do administrador judicial provisório que conclua pela situação de insolvência equivaler, por força do disposto no artigo 28.º do mesmo Diploma - ainda que com as necessárias adaptações, à apresentação à insolvência por parte do devedor, quando este discorde da sua situação de insolvência [DR I Série de 7-7-2020].

Sucede que, como se escreveu acima, esta questão não se coloca nos presentes autos.

Diga-se, por fim, que ainda que a decisão proferida em 15-07-2021 padecesse de alguma ilegalidade ou inconstitucionalidade, como alegam os recorrentes, não cabia a este tribunal conhecer de tais vícios no presente recurso, visto que tal decisão não faz parte do objecto dele. Por indicação expressa dos recorrentes, o objecto do presente recurso é constituído pela decisão proferida em 8 de Setembro de 2021, na parte em que foi ordenada a extracção de certidão “(…) de parecer junto com o requerimento datado de 21.07.2021, refª 7885346 e do presente despacho, remetendo à distribuição como processo especial de insolvência – Requerida-, o qual deverá ficar afeto a J1”.

Por último, os recorrentes contestam a decisão com o argumento de que o parecer do administrador judicial provisório sobre a situação dos devedores está ferido de extemporaneidade, revelando-se inútil, uma vez que os autos se devem considerar encerrados nos termos do n.º 6 do artigo 222-G, desde 23-07-2021, por iniciativa dos ora recorrentes com as consequências legais.

O argumento não procede.

Em primeiro lugar, como resulta do acima exposto, a alegada desistência dos devedores nem encerrou o processo negocial nem o processo especial para acordo de pagamento. Em casos como o dos autos, a alínea b) do n.º 1 do artigo 222.º-J só considera encerrado o processo especial para acordo de pagamento após o cumprimento do disposto nos números 1 a 6 do artigo 222.ºG do CIRE. Ora, um dos actos a praticar antes do encerramento do processo é, como resulta do acima exposto, a emissão do parecer do administrador sobre se os devedores se encontravam em situação de insolvência.

Em segundo lugar, quando emitiu o parecer, o administrador estava em funções. Com efeito, resulta da alínea b) do n.º 2 do artigo 222.º-J do CIRE que o administrador judicial provisório manter-se-á em funções, sem prejuízo da sua substituição ou remoção, até ao encerramento do processo nos termos previstos ma alínea b) do n.º anterior.

Em suma: a decisão recorrida é de manter.


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de os recorrentes terem ficado vencidos no recurso, condenam-se os mesmos nas respectivas custas.

Coimbra, 23 de Novembro de 2021