CONTRATO DE SEGURO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ABANDONO DO LOCAL DO ACIDENTE
AUTORIDADE POLICIAL
SEGURO AUTOMÓVEL FACULTATIVO
EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA
Sumário

Constando das condições gerais de um contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil automóvel que o contrato também não garantirá a situação em que o condutor do veículo, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade, essa exclusão de responsabilidade só ocorre se a autoridade policial já tiver sido chamada no momento do abandono.

Texto Integral






            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A..., Lda., intentou a presente ação declarativa, de condenação, sob a forma de processo comum, contra B..., S.A., ambas melhor identificadas nos autos, pedindo que, na procedência da ação, a Ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de 11.105,52€ acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 25/11/2019, data em que a Ré pôs condicionalmente à disposição da A. tal valor.

Alega, em síntese, que no dia 10 de novembro de 2019, cerca das 2h30 na Estrada Nacional n.º 350, na localidade de Santa Eufémia, Leiria, ocorreu um acidente de viação em que foi interveniente o veículo ligeiro de passageiros de matrícula PI... (PI), propriedade da A. e conduzido pelo seu sócio gerente E... .

O condutor do PI, nas referidas circunstâncias conduzia-o no sentido nascente-poente (Santa Eufémia – Leiria) e a determinado ponto do percurso adormeceu, tendo o veículo saído da estrada e ido embater num sinal de trânsito vertical e numa oliveira que se encontrava junto à berma do lado esquerdo atento o seu sentido de marcha.

O condutor, após o embate, saiu do veículo, deixando-o no local, porque o mesmo não ficou em condições de circular pelos seus próprios meios, e dirigiu-se para sua casa, que dista cerca de 500 metros do local do acidente.

Em consequência do acidente o veículo PI ficou com a frente esquerda e lateral esquerda destruídas com incidência nos faróis, guarda-lamas e capot.

A A. participou o acidente à Ré, sendo que o contrato de seguro titulado pela Apólice n.º cobria os danos próprios do veículo. A Ré mandou efetuar vistoria aos danos sofridos pelo veículo e por carta de 25/11/2019 informou a A. que colocava condicionalmente à disposição da A. a quantia de 11.105,52€ já deduzida a franquia contratual de 250,00€, mantendo a A. a posse do veículo com danos.

Posteriormente, por carta de 09/12/2019 informou que: “... após análise do processo, verificamos que não é da nossa responsabilidade a regularização do presente sinistro, em virtude do disposto na Apólice de Seguros Automóvel mais concretamente ao nível da clausula 40.º número 1, alínea c) – exclusões às coberturas facultativas das condições gerais.

Com efeito, e atento ao conteúdo do referido clausulado, encontram-se excluídos os sinistros … quando voluntariamente e por sua iniciativa, abandonou o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade.”, com o que discorda a A. pois o condutor do veículo não abandonou o local do acidente quando a autoridade policial já tinha sido chamada.

Termina dizendo que sendo a reparação inviável economicamente, deve a Ré pagar à A. o valor por ela apurado de 11.105,52€, acrescido de juros legais desde a comunicação deste valor (25/11/2019).

A Ré contestou, pugnando pela improcedência da ação.

Começa por dizer que o contrato de seguro celebrado entre as partes, titulado pela apólice nº. , para além da cobertura obrigatória por lei da responsabilidade civil, entre outras, tem a de “Choque, colisão e capotamento” com um capital de 29.800,00€ e uma franquia por conta do segurado de 250,00€.

Após a participação da A., a Ré na sua qualidade de seguradora do veículo despistado, nas averiguações efetuadas, apurou que o acidente foi caracterizado de fuga. Que, como resulta da declaração manuscrita e assinada pelo condutor do PI este assume que abandonou de imediato o local, sendo que o facto de o condutor do PI se ter ausentado voluntariamente do local antes da chegada das autoridades policiais impossibilitou que fosse sujeito ao teste de alcoolemia, ou, também, verificar se quem conduzia tinha habilitação legal para o fazer ou se o fazia sob o efeito de estupefacientes.

Face ao exposto, tendo em conta que os danos próprios de “Choque, colisão e capotamento” são uma cobertura facultativa, encontra-se excluído o pagamento dos danos sofridos pelo veículo seguro nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) “in fine” da Cláusula 40 (Exclusões) das Condições da Apólice, por ter o condutor do veículo do A. voluntariamente e por sua iniciativa abandonado o local do acidente antes da chegada das autoridades policiais, pelo que a Ré não se encontra constituída na obrigação de indemnizar a A. nos termos e para os efeitos do disposto no artº 505º do Código Civil.

Impugna, os demais factos alegados pela autora.

Foi proferido despacho a fixar o valor da presente ação, despacho saneador tabelar, e despacho a admitir prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, e finda a mesma foi proferida a sentença de fl.s 80 a 86, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Em face do exposto, julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência, condeno a ré, B... , S.A. a pagar à autora, A... , Lda., a quantia de 11.105,52€ (onze mil, cento e cinco euros e cinquenta e dois cêntimos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% desde a citação da Ré até integral pagamento, absolvendo-a do mais peticionado.

Condeno a Autora e a Ré no pagamento das custas, na proporção do respetivo decaimento.”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a ré B... , SA, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 99), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

a) Sobe a presente apelação da douta sentença de fls. , que julgou a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a R. a pagar à A.:

• a quantia de 11.105,52 € (onze mil, cento e cinco euros e cinquenta e dois cêntimos euros), a título de dano patrimonial emergente de acidente de viação, acrescida de juros, à taxa legal 4%, desde a citação da Ré até integral pagamento;

b) Porém, a ora recorrente, não se pode conformar com a mesma, daí o presente recurso que passa, no seu entendimento, pela interpretação e aplicação do direito em relação à matéria de facto, respeitante ao sinistro dos autos.

c) Realizado o julgamento, foram dados como provados os pontos 1 a 17, da douta sentença, ora em crise.

d) E, em relação à mesma matéria, dados como não provados, os factos dos pontos 1 a 3 .

e) Ficou provado que o condutor do PI e sócio-gerente da recorrida abandonou voluntariamente o local do acidente, após provocar danos em património privado e público.

f) Não chamando as autoridades policiais que elaboraram o respectivo auto de ocorrência quando se deslocaram ao local, tendo sido caracterizado o acidente como “fuga”.

g) Ora, quanto ao auto de ocorrência, pese embora defender-se que a sua força probatória só pode ser ilidida com base na sua falsidade, o certo é que o artº 170, nº.- 3, do Código da Estrada (Decreto-Lei 265- A/2001, de 28/4), o seu valor probatório só faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário.

h) Estando no âmbito da responsabilidade civil contratual, e considerando o disposto na alínea d) “in fine” da Cláusula 40º das Condições Gerais da Apólice, encontra-se excluídos os danos sofridos pelo seguro através da cobertura facultativa de “Choque,

colisão e capotamento” celebrados através do contrato de seguro do ramo automóvel ao abrigo da apólice nº.- .

i) Sendo assim, deve ser revogada a condenação da ora recorrente no pagamento da quantia de 11.105,52 €, concluindo-se pela sua absolvição, com as consequências legais.

Termos em que contando com o douto suprimento de V. Exas., se deve conceder provimento ao recurso da ora seguradora revogando a douta sentença recorrida, e concluir-se pela sua absolvição, com as consequências legais, tal como é de JUSTIÇA!

Contra-alegando, a autora A... , L.da, pugna pela improcedência do recurso, com a consequente manutenção da sentença recorrida, aderindo aos fundamentos que da mesma constam,  designadamente, que o condutor do veículo sinistrado se ausentou do local onde ocorreu o acidente, quando ainda não tinha sido chamada a autoridade policial, pelo que não se aplica a cláusula de exclusão invocada pela ré, a qual, no seu entender e como propugnado na sentença recorrida, só é convocável, quando o abandono do local do sinistro se verifica depois de a autoridade policial ter sido chamada a tomar conta da ocorrência.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.          

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se estão excluídos do contrato de seguro celebrado entre as partes os danos reclamados pela autora, em face do teor da cláusula 40.ª, n.º 1, al. c), das respectivas Cláusulas Gerais, em virtude de o condutor do veículo seguro na ré o ter deixado no local onde ocorreu o acidente e se ter dirigido para a sua residência, sem ter chamado as autoridades policiais, que o vieram a ser mais tarde, por um terceiro, in casu, o proprietário dos bens danificados em consequência do despiste da viatura segura.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1.Entre a autora, A... , Lda., e C... , S. A., através da sua marca D... , foi celebrado um contrato de seguro pela circulação da viatura com a matrícula PI... (PI), titulado pela apólice nº. , junta aos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

2.A C... , S.A. foi incorporada, na modalidade de transferência global de património, na B... , S.A.

3. Para além da cobertura obrigatória da responsabilidade civil, de entre outras, o contrato tem a cobertura de “Choque, colisão, capotamento e quebra isolada de vidros” com um capital de 29.800,00€ e uma franquia, por conta do segurado, de 250,00€.

4.No dia 10 de novembro de 2019, a hora não concretamente apurada da madrugada, na Av. D. Pereira Venâncio, localidade de S. Eufémia, Leiria, circulava o veículo ligeiro de passageiros de matrícula PI... , propriedade da A., conduzido pelo seu sócio gerente E... , no sentido nascente-poente (Santa Eufémia – Leiria).

5.A determinado ponto do percurso o condutor do PI adormeceu momentaneamente, tendo o veículo saído da estrada indo embater num sinal de trânsito vertical e numa oliveira que se encontrava junto à berma do lado esquerdo atento o sentido de marcha, frente ao nº247.

6. Não houve outros intervenientes no acidente.

7. O condutor, após o embate, saiu do veículo, deixou-o no local, porque o mesmo não ficou em condições de circular pelos seus próprios meios, e dirigiu-se para sua casa, que dista cerca de 500 metros do local do acidente.

8. O condutor acionou o pedido de assistência em viagem pelas 07:18 horas do dia 10 de novembro, junto da seguradora do veículo, tendo este sido removido do local no mesmo dia, cerca das 8 horas, pelo reboque de matrícula NM... de F... , com sede na Rua...– .....

9. O condutor, a seu pedido, obteve da GNR, a confirmação da presença desta no local, conforme email no dia 8/01/2020 com o seguinte teor:

“Assunto: Resposta ao NPAV 391/19

Informo V. Exa. que acusamos a recepção do email infra, … e em resposta informo que este Posto teve conhecimento do sinistro através do proprietário do obstáculo (oliveira), no dia 10 de novembro de 2019 cerca das 11h08. Tendo este Posto feito deslocar uma patrulha ao local onde efetuaram o registo do NPAV acima indicado”.

10. Em consequência do acidente o veículo PI ficou com a frente esquerda e lateral esquerda destruídas, com incidência nos faróis guarda-lamas e capot.

11. A A. participou o acidente à Ré.

12. A Ré mandou efetuar vistoria aos danos sofridos pelo veículo e por carta de 25/11/2019 informou a A. de que:

“No seguimento da vistoria efetuada constatámos que a viatura de V. Exa. sofreu danos cuja reparação se torna excessivamente onerosa face ao seu valor de mercado antes do acidente.

Na situação em concreto considerando o valor estimado para a reparação de €27.272,64 na oficina G... , Lda., a melhor proposta de aquisição da sua viatura com danos (5.890,00€) bem como o valor seguro à data do sinistro de €17.245,52 e embora ainda não nos seja possível assumir uma posição quanto às responsabilidades, colocamos condicionalmente à sua disposição a quantia de €11.105,52 já deduzida a franquia contratual de €250,00 mantendo V. Exas. a posse do veículo com danos, pelo que aguardamos que nos remeta fotocópias do bilhete de identidade cartão de contribuinte do proprietário e documentos da viatura.”

13. Após o envio à Ré por parte da A. da documentação pedida, aquela por carta de 09/12/2019 informou que:

“.. após análise do processo, verificamos que não é da nossa responsabilidade a regularização do presente sinistro, em virtude do disposto na Apólice de Seguros Automóvel mais concretamente ao nível da Cláusula 40.º número 1, alínea c) – exclusões às coberturas facultativas das condições gerais.

Com efeito, e atento ao conteúdo do referido clausulado, encontram-se excluídos os sinistros … quando voluntariamente e por sua iniciativa, abandonou o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade.”

14. Segundo a referida cláusula 40.ª, nº1 “Para além das exclusões previstas na cláusula 5ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…)

c) “Sinistros resultantes de demência do condutor do veículo (…) bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”.

15. Entre as coberturas facultativas previstas na cláusula 39ª consta “Choque, colisão, capotamento e Quebra isolada de vidros” (nº1, al. b))

16. Para além dos danos materiais no PI e na oliveira propriedade de H... , sita na Av. D. Pereira Venâncio, frente ao n.º 247, localidade de S. Eufémia, Leiria, foram causados danos num sinal de proibição c14a.

17. O facto de o condutor do PI se ter ausentado voluntariamente do local antes da chegada das autoridades policiais impossibilitou que fosse sujeito ao teste de alcoolemia, ou também, verificar se tinha habilitação legal para o fazer ou se conduzia sob o efeito de estupefacientes.

*

B) Nada mais se provou, designadamente que:

1. Os factos descritos em II.1 A) 4. e 5. ocorreram pelas 2:30 horas ou pelas 06:50 horas.

2. H... com o barulho resultante do embate saiu da sua residência e verificou que duas pessoas saíram de imediato do local a pé, verificando-se mais tarde serem E... , o condutor, e o irmão.

3. No dia 11/11 o condutor do PI dirigiu-se ao proprietário da oliveira referida em II. 1. A) 5. para lhe dar conhecimento que fora o veículo por ele conduzido o causador do dano na oliveira, tendo o proprietário informado o condutor que não sabia quem tinha sido o interveniente e que chamara a GNR ao local.

Se estão excluídos do contrato de seguro celebrado entre as partes os danos reclamados pela autora, em face do teor da cláusula 40.ª, n.º 1, al. c), das respectivas Cláusulas Gerais, em virtude de o condutor do veículo seguro na ré o ter deixado no local onde ocorreu o acidente e se ter dirigido para a sua residência, sem ter chamado as autoridades policiais, que o vieram a ser mais tarde, por um terceiro, in casu, o proprietário dos bens danificados em consequência do despiste da viatura segura.

No que a esta questão respeita, como decorre do relatório que antecede, alega a recorrente que em virtude de o condutor do veículo sinistrado se ter ausentado do local onde ocorreu o sinistro, sem chamar as autoridades policiais, em face do teor da cláusula ora referida, se encontra excluída a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos aqui reclamados.

Por sua vez, tal como decidido na sentença em recurso, a autora, ora recorrida, defende que tal cláusula de exclusão só se aplica quando o responsável pelo acidente se ausenta do local onde o mesmo ocorreu, já depois de terem sido chamadas as autoridades policiais, o que não se verificou in casu, pelo que se mantém válida a responsabilidade da ré decorrente do contrato de seguro em apreço e, assim, deve a mesma ser condenada a suportar os danos decorrentes do ajuizado acidente.

É sabido que em matéria de interpretação e integração de contratos rege o disposto nos artigos 236.º, 238.º e 239.º, todos do Código Civil e 10.º e 11.º do DL 446/85, de 25 de Outubro (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais).

Estas, atento o carácter especial do contrato de seguro, em regra, resultante de clausulado pré-fixado pelas seguradoras.

Assim, em matéria de contrato de seguro, importa apurar o sentido normal da declaração, o que, como refere José Vasques, in Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, a pág. 351 “se fará pela busca do sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ela”, em conformidade com o disposto no artigo 236.º, n.º 1, do CC e desde que, atento o carácter formal do contrato de seguro, nos termos do artigo 238.º, n.º 1, do mesmo Código, a declaração tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso.

Só sendo de apelar à interpretação mais favorável ao aderente prevista no artigo 11.º, n.º 2 da LCCG, no caso das cláusulas ambíguas, as quais, de acordo com o autor e ob. cit., a pág. 352, citando Rodrigues Bastos, são aquelas que, apesar de se lhes aplicarem as regras gerais de interpretação, continuam obscuras ou às quais podem ser fixados mais do que um sentido.

Idêntico entendimento expressa Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro Estudos, Coimbra Editora, 2009, a pág.s 126 e seg.s, o qual, a pág. 140, refere que mesmo nos casos em que se imponha uma interpretação complementadora por força da existência de cláusulas insuficientes, ou falta de cláusulas necessárias, tal interpretação não pode conduzir a uma ampliação do objecto negocial, limite este que, no domínio dos seguros, deve ser entendido de modo particular, dada a relevância da amplitude do risco no âmbito deste contrato, ali acrescentando que tal interpretação é de excluir quando “implique a ampliação do núcleo da prestação da seguradora, na acepção da jurisprudência alemã segundo a qual esse núcleo se reporta aquelas cláusulas que estabelecem as condições e delimitam a prestação da seguradora, sem as quais o núcleo essencial do contrato careceria de precisão.”.

Rematando, a pág.s 151 e 152 que na interpretação do contrato de seguro se exige “bom senso e uma análise serena dos interesses em presença: dos tomadores de seguro consumidores, frequentemente logrados nas suas legítimas expectativas por cláusulas ambíguas, demasiado técnicas ou escondidas nas apólices; das seguradoras que lutam contra a fraude dos segurados e para as quais a definição do risco é essencial para uma boa gestão dos seus negócios.”.

Por outro lado, como refere Pedro Romano Martinez, in Contratos Comerciais, Principia, a pág. 83, no contrato de seguro, dado que este tem na sua génese uma proposta por ela mesmo redigida, deve entender-se que o real declaratário a que se alude no n.º 1 do artigo 236.º do CC é o tomador do seguro.

Por último, como resulta do teor do artigo 10.º da LCCG, importa, ainda, ao interpretar as cláusulas de um contrato de seguro, analisar o contexto de cada contrato singular em que se incluam.

Estes critérios têm vindo a ser seguidos, de forma unânime, no nosso STJ, podendo ver-se, neste sentido, entre outros, os Acórdãos de 05 de Julho de 2012, Processo 1028/09.0TVLSB.L1.S1; de 27 de Novembro de 2018, Processo n.º 3158/16.3T8LSB.L1.S1 e de 18 de Março de 2021, Processo n.º 1542/19.0T8LRA.C1.S1 (este citado na sentença recorrida), todos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj.

Como decorre do disposto no artigo 37.º, do Decreto Lei 72/2008, de 16/4 (Lei do Contrato de Seguro), o contrato de seguro deve ser reduzido a escrito na respectiva apólice, na qual, se deve fazer constar todo o conteúdo do acordado pelas partes, em que se incluem, para além de outras coisas, a identificação dos riscos contra que se faz o seguro, bem como, com destaque, as cláusulas que estabeleçam o âmbito das coberturas, designadamente a sua exclusão ou limitação (cf. seu n.º 3, al. b).

Apólice esta que, por via de regra é precedida da proposta de seguro, a qual mais não é do que uma declaração de ciência e de vontade, cujo conteúdo se destina a determinar a completa e exacta representação do risco, e a indicação de todas as circunstâncias que possam influenciá-lo e a documentar a vontade de querer concluir o contrato de seguro – cf. Guerra da Mota, O Contrato de Seguro Terrestre, 1.º vol, pág.s 404 e seg.s, citado por Abílio Neto, Código Comercial e das Sociedades Anotados, 15.ª edição, nota 14, a pág. 277.

Como refere José Vasques, ob. cit., a pág.s 211 e 212, a declaração do risco é uma das obrigações fundamentais do tomador do seguro e constitui uma declaração unilateral do proponente, a qual é aceite pela seguradora e que se destina a avaliar o risco e a permitir o cálculo do prémio, acrescentando que “A declaração do risco não é uma declaração de vontade, mas sim uma declaração de ciência, cujo cumprimento permitirá ao segurador aceitar ou recusar essa declaração.”.

E porque a declaração do risco constitui uma obrigação prévia à celebração do contrato, não são admitidas, contrariamente ao direito comum, sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, bem assim a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, cf. artigo 253.º, n.º 2, CC, uma vez que, no contrato de seguro, a seguradora baseia toda a sua prestação nas declarações do tomador do seguro, nas quais deve (precisa, acrescentamos nós) de ter toda a confiança.

Traçado o quadro teórico em que nos devemos mover ao interpretar as cláusulas de um contrato de seguro e a importância que tem a definição dos riscos que se têm em vista ao celebrar um contrato de seguro, importa, agora, em face da factualidade dada como assente, aferir se os danos que sobrevieram para a autora em consequência do ajuizado acidente estão, ou não, cobertos pelo contrato de seguro em causa.

Não se discute que o referido contrato é válido, bem como aceitam as partes a eficácia do mesmo, abrangendo os riscos nele previstos, assim como é pacífica a ocorrência do sinistro e a existência dos relatados danos, residindo o dissídio entre as partes na forma de interpretar a cláusula 40.ª, n.º 1, al. c) das Cláusulas Gerais, conforme acima já referido.

Segundo a referida cláusula 40.ª, nº1:

“Para além das exclusões previstas na cláusula 5ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…)

c) “Sinistros resultantes de demência do condutor do veículo (…) bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 18 de Março de 2021, acima já citado (em que se analisa a mesma cláusula aqui em apreço):

“na referida cláusula é possível descortinar dois momentos relevantes para a verificação da exclusão: o do abandono do local do acidente antes da chamada das autoridades e o da chamada das autoridades policiais.

Neste contexto somos levados a considerar que a exclusão da cobertura do sinistro só tem razão de ser se o condutor do veículo, sem motivo que o justifique, abandonar o local do acidente, depois de saber que as autoridades policiais foram chamadas para tomar conta da ocorrência.

Aliás, o segmento final da referida cláusula apenas adquire alguma utilidade quando interpretado no sentido que acabamos de enunciar, ou seja o de que a seguradora apenas poderá opor a exclusão da garantia contratada ao tomador se a autoridade policial tiver sido chamada ao local pelo condutor do veículo ou por outra entidade e, não obstante, aquele, depois disso tiver voluntariamente e por sua iniciativa abandonado o local do acidente de viação antes da chegada dessa autoridade”.

Isto é, depreende-se do teor de tal cláusula que o abandono só é relevante em termos de exclusão da responsabilidade da seguradora, se a autoridade policial já tiver sido chamada. A autoridade policial tem que ser chamada e o abandono, injustificado, tem que ocorrer já depois de ter ocorrido tal chamamento, sendo este do conhecimento do condutor do veículo que se ausentou do local do acidente.

Ocorrendo o abandono sem que a autoridade policial tenha sido chamada, não se verifica a factualidade ínsita em tal cláusula e, consequentemente, não se verifica a cláusula de exclusão de que a ora recorrente se pretende fazer valer.

Efectivamente, qualquer tomador de seguro, de mediana sagacidade e prudência, não pode entender aquela expressão como abrangendo, também, o abandono do local do acidente, sem a autoridade policial ter sido chamada a tomar conta da ocorrência, disso sendo sabedor o condutor do veículo sinistrado.

Pelo que, reitera-se, em tal expressão não cabe a situação em que o condutor abandona o local do acidente, antes da as autoridades policiais terem sido chamadas.

Como acima já referido, a definição dos riscos assumidos num contrato de seguro é um dos elementos mais importantes, se não o decisivo, no clausulado de um contrato de seguro e interpretar-se aquela expressão como incluindo, também, o abandono antes do chamamento das autoridades policiais, seria restringir o núcleo da prestação da seguradora, seria minimizar/reduzir o risco previsto no contrato, o que, com o devido respeito, os comandos interpretativos acima enunciados não consentem.

A conclusão a que chegamos, afigura-se-nos como o mero resultado da interpretação das cláusulas contratadas, de acordo com os ditames legais aplicáveis e sem esquecer que foi a própria seguradora que redigiu e precisou qual o âmbito da exclusão em causa (trata-se de contrato de adesão), pelo que não pode vir, agora, pretender excluir o risco que assumiu com a celebração do contrato de seguro em causa, nos termos expostos.

Se a ré queria abranger a situação em que o abandono se verificasse independentemente da chamada das autoridades policiais, bastava eliminar da referida cláusula a menção ao “chamamento” das autoridades policiais, ficando apenas a constar que o abandono se verificou antes da chegada das autoridades policiais.

Ora, in casu como resulta da factualidade descrita nos itens 7.º a 9.º dos factos provados, o condutor do veículo acidentado abandonou o local do sinistro antes de as autoridades policiais terem sido chamadas para a ocorrência, pelo que, nos termos expostos, não se verifica a factualidade em que poderia assentar a exclusão da responsabilidade da ora ré em indemnizar a autora pelos danos sofridos em consequência do acidente; em suma, não se provou a exclusão do risco seguro, cuja prova incumbe à ré, ora recorrente, nos termos do disposto no artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, incumbindo-lhe, por isso, a obrigação de indemnizar a autora nos termos por esta requeridos, sendo, assim, de manter a decisão recorrida.

 Consequentemente, improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Coimbra, 23 de Novembro de 2021.