INSOLVÊNCIA
CAUSA DE PEDIR
CASO JULGADO
INDEFERIMENTO LIMINAR
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Sumário

I) A causa de pedir do processo de insolvência corresponde, por regra, ao concreto passivo e activo que exista em determinado momento temporal e à impossibilidade de o activo do devedor lhe permitir cumprir o passivo que nesse momento se encontra vencido.
II) Decretada a insolvência do devedor num determinado processo por si impulsionado, a existência de uma nova causa de pedir necessária à instauração pelo mesmo devedor de um segundo processo de insolvência exige que o devedor tivesse conseguido por alguma forma eliminar o passivo cuja impossibilidade de satisfação serviu de razão à anterior declaração de insolvência.
III) Persistindo esse passivo, a impossibilidade da sua satisfação e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia no momento da declaração de insolvência, mantém-se necessariamente a situação de insolvência anteriormente declarada, de nada importando que ela se tenha agravado com o vencimento de novas obrigações.
IV) Na situação referida em III), o caso julgado que se formou em torno da sentença que decretou a insolvência determina o indeferimento liminar da petição do novo processo de insolvência, assim como do pedido de exoneração do passivo restante que está sempre dependente da existência de um processo de insolvência, em termos válidos e no qual se declare a insolvência dos requerentes.

Texto Integral






            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A... e mulher B... ,casados sob o regime da comunhão de adquiridos, residentes na ..., em ... apresentaram-se à insolvência e requereram a exoneração do passivo restante.

Alegaram, em síntese, que foram declarados insolventes em 23-07-2013, no processo n.º 2033/13.8TBVIS que correu os seus termos no 3.º Juízo de Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, que, nessa data, o seu património resumia-se a dois imóveis, sendo um deles a sua casa de habitação, que a venda destes bens não bastou para satisfazer o valor total dos créditos que desde então não têm nenhum património por nunca mais terem logrado recuperar financeiramente e nem sequer vislumbram como o possam fazer no futuro. Acrescentaram que permanecem as dívidas remanescentes anteriores no seu passivo, que outras se foram vencendo e continuam a vencer, como é o caso das dívidas fiscais, com o acumular de juros, o que tem vindo a impedir a sua reabilitação económica e que não têm património. Alegaram ainda que a partir do encerramento do anterior processo de insolvência acalentavam a esperança de conseguir melhores condições de vida e com isso fazer face aos compromissos assumidos, o que não se verificou, que naquele processo não beneficiaram e não requereram a exoneração do passivo restante, que preenchem os pressupostos de que a lei faz depender a exoneração do passivo restante e que se dispõem a cumprir as condições legalmente exigidas.

Na sequência dos esclarecimentos prestados e da notificação efetuada para, entre outros, se pronunciarem sobre a, eventual, exceção dilatória de caso julgado em relação à situação de insolvência (cfr. ref.ª 88726958 de 25-08-2021), os requerentes alegaram que não existe “uma repetição da causa, porquanto o que o Tribunal é chamado a apreciar é se, agora, à data em que se apresentaram à insolvência (…) os requerentes se encontram ou não impossibilitados de cumprir as suas obrigações vencidas. E esta questão não foi apreciada no processo que correu os seus termos em 2013, uma vez que nessa data não houve pronúncia, nem, por absurdo, poderia haver, sobre uma questão de facto que só viria a verificar-se alguns anos depois. Naturalmente que não pode deixar de ser relevante a exoneração do passivo restante visada pelos requerentes que só poderá ser decretada nestes autos se, previamente, for declarada a sua insolvência”.

Foi determinada a junção aos autos de certidões do processo n.º 2033/13.8TBVIS.

Conclusos os autos ao M.mo Juiz, foi proferida a decisão constante de fl.s 66 a 69 (aqui recorrida), na qual, a final, se indeferiu liminarmente o pedido de declaração de insolvência, em resumo, com o fundamento na existência de caso julgado da anterior sentença de declaração de insolvência e porque a exoneração do passivo restante não seria de conceder, dada a inexistência de processo de insolvência.

 

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso, os requerentes A... e mulher B... , o qual foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 80), finalizando as suas alegações de recurso, com as seguintes conclusões:

(…)

Dispensados os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de averiguar se se verifica a excepção de caso julgado e, consequentemente, deve a petição inicial ser liminarmente indeferida, como o foi, não podendo servir o novo processo de insolvência, apenas para a dedução do pedido de exoneração do passivo restante.

É a seguinte a factualidade tida como assente na decisão recorrida:

1. Em 25 de junho de 2013 o C... , S.A. requereu no Tribunal Judicial de Viseu a insolvência dos requerentes A... e B... , tendo a respetiva ação sido autuada sob o n.º 2033/13.8TBVIS do extinto 3.º Juízo Cível.

2. Citados para contestar, os ora requerentes não deduziram oposição, acabando por ser declarados insolventes por sentença proferida em 23 de julho de 2013, transitada em julgado em 13 de agosto de 2013.

3. No processo mencionado nos artigos anteriores os ora requerentes não requereram a exoneração do passivo restante.

4. Aquele processo de insolvência foi declarado encerrado, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 230.º, por decisão proferida em 1 de dezembro de 2015, transitada em julgado em 17 de dezembro de 2015.

5. No apenso B do referido processo de insolvência, em 26 de novembro de 2013, foi proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, na qual foram reconhecidos todos os créditos da lista elaborada pelo administrador da insolvência que são os seguintes:

a. Autoridade Tributária e Aduaneira crédito no valor de €25.229,67;

b. C... , S.A. crédito no valor de €342.820,16;

c. D... , S.A. crédito no valor de €84.674,74;

d. E... , S.A. crédito no valor de €40.863,70;

e. G... , S.A. crédito no valor de €356.355,99;

f. H... – Instituição Financeira de Créditos, S.A. crédito no valor de €6.571,31;

g. F... , S.A. crédito no valor de €10.813,90;

6. Na relação a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 24.º os requerentes relacionaram os seguintes créditos:

a. Autoridade Tributária e Aduaneira, créditos no valor de €33.993,41 com vencimento nas seguintes datas: 23-10-2010, 31-12-2009, 01-11-2009, 09-09-2010, 04-04-2012, 10-09-2009 e dívidas de IMI do ano de 2013 relativas aos imóveis apreendidos e vendidos no anterior processo de insolvência;

b. I... , S.A., crédito no valor de €6.192,63 vencido em 20-08-2009;

c. E..., S.A., crédito no valor de €31.749,79 vencido em 02-06-2009;

d. F... , S.A., crédito no valor de €12.465,34 vencido em 28-03-2012

7. Os requerentes não relacionaram qualquer bem e indicaram como únicos rendimentos os seus salários no montante total de €1.087,50.

Se se verifica a excepção de caso julgado e, consequentemente, deve a petição inicial ser liminarmente indeferida, como o foi, não podendo servir o novo processo de insolvência, apenas para a dedução do pedido de exoneração do passivo restante.

Como resulta do relatório que antecede, os recorrentes insurgem-se contra a conclusão a que se chegou na decisão recorrida, no sentido de que se verifica a excepção de caso julgado, em face da anterior decisão que declarou a insolvência dos mesmos, com o argumento em que a causa de pedir e o pedido são diferente nestes autos, porquanto nos anteriores autos de insolvência se teve em conta a situação que se verificava em 2013, ao passo que nos presentes autos se terá de ter em conta “outra realidade”, a que se verifica, agora, em 2021, sendo os créditos agora a tomar em consideração inferiores aos reclamados em 2013.

A situação em apreço é semelhante àquela que foi apreciada por este mesmo Colectivo na Apelação n.º 4334/20.0T8VIS.C1, de 11 de Janeiro de 2021, que, por isso, se passa a seguir.

Como consabido, visa a “exceção de caso julgado” evitar que o órgão jurisdicional contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior; garantindo assim aos particulares o mínimo de certeza e de segurança jurídicas indispensáveis à vida de relação, razão pela qual o que essencialmente se exige, em nome do caso julgado, é que os tribunais respeitem a decisão já proferida, não julgando a questão de novo.

Garante-se, portanto, a impossibilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira diferente e a inviabilidade do tribunal decidir sobre o mesmo objeto duas vezes de maneira idêntica, uma vez que a finalidade dum processo não se esgota na definição do direito/justiça do caso concreto, tendo também em vista conferir certeza/segurança jurídicas e paz social, essenciais à vida em sociedade; certeza/segurança jurídicas e paz social que nunca aconteceriam se, proferida uma decisão, esgotada a possibilidade de interpor recurso de tal decisão, a parte vencida pudesse suscitar nova e sucessivamente a questão antes decidida.

Há, pois caso julgado quando se repete uma causa, sendo que há a “repetição da causa” quando há identidade de sujeitos, identidade do pedido e também da causa de pedir (cfr. art. 581.º/1 do NCPC).

Identidade de sujeitos que reside no facto de as partes serem as mesmas nas duas ações sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

Identidade da causa de pedir que existe quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico, identidade que tem de ser procurada não relativamente às demandas formuladas, mas na questão fundamental levantada nas duas ações; pelo que, tendo a nossa lei adotado a chamada teoria da substanciação, se exige sempre a indicação do título ou facto jurídico em que se baseia o direito do autor.

Identidade do pedido que tem de ser apreciada não só em relação ao que se pede nas duas acções mas também em relação ao que se alega a respeito da questão fundamental que comanda o pedido das ações.

E se, quanto à identidade de sujeitos, nenhumas especiais dificuldades normalmente se suscitam, não é sempre com a mesma facilidade que se percebe a identidade nos elementos objetivos (causa de pedir e pedido).

Assim, a propósito dos limites objetivos do caso julgado, não será demais referir que desde há muito que a conceção/sistema restrito do caso julgado se foi impondo quer na doutrina quer na jurisprudência, ou seja, hoje, não é sustentável dizer que qualquer fundamento fica pelo trânsito em julgado indiscutível (sistema amplo do caso julgado), devendo antes ser dito, como regra, que só a decisão tem foros de indiscutibilidade, sendo tudo o mais (todos os seus fundamentos) discutível (sistema restrito).

Porém, o que se diz como regra (só ter a sentença força de caso julgado na parte decisória e não nos motivos) é algo que não tem uma rigidez absoluta, distinguindo-se, tendo como ponto de partida tal regra (própria dum sistema restritivo puro), hipóteses em que os fundamentos têm força de caso julgado e hipóteses em que não têm[1].

Verdadeiramente, hoje, em termos de limites objetivos do caso julgado, impera a ideia pragmática do “in medio virtus[2]: o sistema restritivo adotado acaba por ser apenas “pseudo-restritivo” ou, mais exatamente, um sistema intermédio[3].

Efetivamente, de modos diversas e com mais ou menos nuances (de linguagem), diz-se repetidamente que a decisão e fundamentos constituem um todo único; que toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), pelo que o respetivo caso julgado se encontra sempre referenciado a certos fundamentos; que reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha com esse valor, por si mesma e independentemente dos respetivos fundamentos; enfim, que não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo no seu todo; que o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão[4].

 “Em regra, o caso julgado não se estende aos fundamentos de facto da decisão; mais exatamente, os fundamentos não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respetiva decisão judicial; não são vinculativos quando desligados da respetiva decisão. Mas valem (os fundamentos) enquanto fundamentos da decisão e em conjunto com esta[5]”.

Enfim, repetindo, os pressupostos da decisão (de facto e de direito[6]) estão cobertos pelo caso julgado enquanto pressupostos da decisão – caso julgado relativo – ou seja, a força de caso julgado alarga-se aos pressupostos enquanto tais[7]: o que está em causa no caso julgado é o raciocínio como um todo e não cada um dos seus elementos; e só o raciocínio como um todo faz caso julgado.

Mas mais – e relacionado com esta ideia dos fundamentos, enquanto tal (ligados ao decidido), adquirirem valor de res judicata – o caso julgado também possui um valor enunciativo, ou seja, a eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada, ficando afastado todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele efeito que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada.[8]

Mais ainda, os fundamentos podem possuir um valor próprio de caso julgado sempre que haja que respeitar e observar certas conexões entre o objeto decidido e um outro objeto; conexões que podem ser, designadamente, de prejudicialidade, o que significa, por ex., que, se numa compra e venda o comprador obtém a redução do preço atendendo aos defeitos da coisa, não pode questionar a validade do contrato em ação em que o vendedor requeira que ele lhe pague a quantia em dívida.

E ainda o que resulta do que é normalmente chamado de “efeito preclusivo”; que designa o efeito da sentença segundo o qual não se pode formular a mesma solicitação processual no futuro com base em factos não supervenientes ao momento do encerramento da discussão em 1.ª instância (art. 611.º/1 do NCPC)[9].

Podendo referir-se, neste ponto, que “o âmbito da preclusão é substancialmente distinto para o autor e para o réu. Quanto ao autor, a preclusão é definida exclusivamente pelo caso julgado: só ficam precludidos os factos que se referem ao objeto apreciado e decidido na sentença transitada. Assim, não está abrangida por essa preclusão a invocação de uma outra causa de pedir para o mesmo pedido, pelo que o autor não está impedido de obter a procedência da ação com base numa distinta causa de pedir. (…). Quanto ao âmbito da preclusão que afeta o réu, há que considerar que lhe incumbe o ónus de apresentar toda a defesa na contestação (art. 498.º/1), pelo que a preclusão que o atinge é independente do caso julgado: ficam precludidos todos os factos que podiam ter sido invocados como fundamento dessa contestação, tenham ou não qualquer relação com a defesa apresentada e, por isso, com aquela que foi apreciada pelo tribunal.[10]

O que significa – é o sentido do efeito preclusivo para um réu – que os contra-direitos que um réu possa fazer valer – e não fez – são ininvocáveis contra o caso julgado; que este abrange aquilo que foi objeto de controvérsia e ainda os assuntos que o réu tinha o ónus de trazer à colação, estando neste último caso todos os meios de defesa do réu; que a indiscutibilidade duma questão, o seu carácter de res judicata, pode resultar tanto duma investigação judicial, como do não cumprimento dum ónus que acarrete consigo por força da lei esse efeito[11].

É, na síntese clássica, a regra do “tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debetat”.

E é chegado a este ponto da compreensão dos limites objetivos do caso julgado – nos meandros das situações incompatíveis, de prejudicialidade e do chamado efeito preclusivo – que emerge a “figura” da autoridade de caso julgado e os exemplos de escola (e jurisprudenciais) da verificação da “autoridade de caso julgado”.

Como exceção dilatória, visa o caso julgado (material) prevenir, como já se referiu, a possibilidade de prolação de decisões judiciais contraditórias com o mesmo objeto (efeito impeditivo e função negativa); como autoridade de caso julgado, garante a vinculação dos órgãos jurisdicionais e o acatamento pelos particulares de uma decisão anterior (efeito vinculativo e função positiva).

Quando o objeto processual antecedente é repetido no objeto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como exceção de caso julgado no processo posterior; quando o objeto processual anterior funciona como condição para a apreciação do objeto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo instaurado em 2.º lugar[12].

Daí que a exceção do caso julgado pressuponha a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir; enquanto, naturalmente, a autoridade do caso julgado dispensa tal tríplice identidade[13].

Porém, tal dispensa não significa um não confinamento da “figura” do alcance e da autoridade do caso julgado àquelas situações em que a sentença reconhece, no todo ou em parte, um concreto direito do A., assim fazendo precludir todos os meios de defesa do R., os concretamente deduzidos e até os abstratamente dedutíveis com base em direito próprio; ou àquelas situações em que a sentença, ao reconhecer um direito, constitui um pressuposto ou condição de julgamento de um outro objeto ou prejudica/exclui a invocação de direitos contraditórios e incompatíveis[14].

No caso em apreço, os recorrentes aceitando que se verifica a identidade de sujeitos, entendem que se trata de diferentes pedidos e causas de pedir, com o fundamento, acima já mencionado, de que em cada um dos processos de insolvência se verifica uma situação distinta, que tem de ser apreciada relativamente a cada um dos “distintos momentos temporais”.

Como já se referiu, entre a causa de pedir e a pretensão processual existe um nexo de individualização caracterizado pela reciprocidade: a causa de pedir individualiza a pretensão e a pretensão delimitada a causa de pedir, estabelecendo-se entra ambas uma relação de implicação mútua [15].

Daí o dizer-se, como também já se referiu, que “é a resposta dada na sentença à pretensão do A., delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado[16]; ou, por outras palavras, que a eficácia do caso julgado apenas cobre a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do A., concretizada no pedido e limitada através da respetiva causa de pedir; ou, ainda, que o que adquire o valor de caso julgado é o silogismo/raciocínio judiciário no seu todo, que o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão.

Ora, como resulta da factualidade dada como provada – e não questionada – os créditos relacionados nestes autos venceram-se, todos, em data anterior à propositura dos presentes autos e, em parte, são os mesmos que já foram reconhecidos nos anteriores autos (cf. itens 5.º e 6.º dos factos provados).

Aliás, são os próprios requerentes (cf. artigo 16.º do requerimento inicial) que alegam que “actualmente, permanecem as dívidas remanescentes anteriores no passivo dos Requerentes, que os mesmos não lograram saldar, outras também se foram vencendo, e continuam a vencer, como é o caso das dívidas fiscais, e os próprios juros das dívidas anteriores, que se vão acumulando…”.

O facto é que, cf. item 6.º, os créditos aqui relacionados são todos anteriores a 2013.

Isto é, não se trata de qualquer dívida autónoma/nova, por reporte aos anteriores autos de insolvência, mas apenas e tão só, mercê do incumprimento dos insolventes, de os credores poderem exercer os direitos que lhe são conferidos por lei. Daí ser, no mínimo, temerário, que os recorrentes venham alegar que se trata de diferente causa de pedir, com tal fundamento. Os créditos são anteriores à sua declaração de falência, pelo que, consequentemente, não se trata de diferente causa de pedir.

Como se refere no Acórdão desta Relação de 03 de Dezembro de 2019, Processo n.º 562/19.9T8FND.C1, disponível no respectivo sítio do itij (em que figura como Relatora a ora 2.ª Adjunta) “a causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponda, por regra, ao concreto passivo e activo que exista em determinado momento temporal e à impossibilidade de o activo do devedor lhe permitir cumprir o passivo que nesse momento se encontra vencido”.

Acrescentando-se que se poderá “concluir que a pretensão de ver declarada a insolvência nos presentes autos será idêntica à pretensão já obtida na acção anterior se a realidade a que se reporta – balizada pelo activo e pelo passivo existente e pela impossibilidade de esse activo assegurar a satisfação do passivo – for a mesma, ou seja, se o passivo em questão for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento”.

Ali se acrescentando que “os efeitos jurídicos que se pretendem obter em cada uma dessas situações são substancialmente diferentes porque se reportam a realidades diferentes e ocorridas em momentos temporais distintos. Será, portanto, a causa de pedir de cada uma dessas pretensões que nos permitirá aferir se o efeito jurídico e a concreta pretensão que se pretende obter nesta acção é idêntica àquela que já foi obtida na anterior acção”.

Ou, como se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação, de 26 de Outubro de 2021, Processo n.º 3009/21.7T8CBR.C1, disponível no mesmo sítio do anterior, a causa de pedir na insolvência é “a impossibilidade de cumprimento pelo devedor das obrigações vencidas”.

E não é o facto de se indicarem dívidas novas – o que in casu, como acima já referido, não se verifica – que implica que se esteja perante diferente causa de pedir. “Para se poder falar de uma nova causa de pedir seria mister que a anterior tivesse desaparecido, ou seja que a devedora tivesse conseguido por alguma forma eliminar o passivo cuja impossibilidade de satisfação serviu de razão para a instauração do anterior processo insolvencial”.

Ora, como acima se referiu e resulta da factualidade apurada, nada se alterou, nem do lado do passivo nem do activo (excepto que este é apenas constituído pelos salários auferidos pelos requerentes ao passo que no anterior havia bens imóveis; ou seja, para pior) relativamente à situação que determinou a declaração de insolvência nos anteriores autos de insolvência. Os créditos que os recorrentes relacionam já existiam.

É certo que uma pessoa pode ser declarada insolvente mais do que uma vez, não pode é sê-lo com base nos mesmos factos, com base na mesma realidade, como acontece in casu.

Verifica-se, pois, no caso em apreço, com os fundamentos invocados na decisão recorrida, a excepção de caso julgado, o que motiva o indeferimento liminar da petição de insolvência, cf. artigo 27.º, n.º 1, alínea a), do CIRE e, consequentemente, não podem os presentes autos prosseguir apenas com vista a apreciar o pedido de exoneração do passivo restante, o qual está sempre dependente da existência de um processo de insolvência, em termos válidos e no qual se declare a insolvência dos requerentes, não sendo concebível que tal pedido seja formulado de forma autónoma, sem ser na dependência de um processo de insolvência – neste sentido o Acórdão deste Tribunal da Relação, acima citado em primeiro lugar.

De resto, mesmo nos Acórdãos dos Tribunais da Relação de Coimbra, Processo n.º 8657/16.4T8CBR.C1, de 12 de Julho de 2017;  de Évora, de 06 de Abril de 2017, Processo n.º 5416/16.8T8STB-B.E1 e do Porto, de 23 de Março de 2021, Processo n.º 7804/19.9T8VNG-B.P1, disponíveis no respectivo sítio do itij, que os recorrentes citam em abono da sua pretensão, também se refere que um qualquer devedor não pode obter uma segunda declaração de insolvência quando “a admissibilidade do pedido formulado assentam nas causas que nortearam a situação de insolvência decretada em cada uma das acções e na conduta da requerente do pedido, tendo sempre por referência a concreta declaração de insolvência, no âmbito da qual o pedido é formulado”.

Acrescentando ser de valorar a conduta do insolvente “em função das circunstâncias que nortearam a nova declaração de insolvência”, do que resultará poder ser diferente o objecto de cada um de tais processos.

E em todos estes casos, a que se reportam os ora aludidos Arestos, foi decretada uma segunda declaração de insolvência, por se considerar que as situações eram díspares/diferentes, em cada um dos processos para tal intentados e foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante. O que não se verifica no caso em apreço, pelos motivos anteriormente expendidos.

Reitera-se, in casu, nada difere, em termos fácticos, do presente para os anteriores autos, nos quais, os requerentes não formularam o pedido de exoneração do passivo restante, por razões  que só a eles podem ser imputadas, não podendo, agora, sem que se verifiquem os pressupostos para que seja liminarmente admitido o pedido de declaração de insolvência formulado, prosseguirem os autos apenas para apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, o qual, reitera-se, é indissociável da pendência de um processo de insolvência, pelo que carecem de razão os recorrentes na sua pretensão, nada havendo a censurar à decisão recorrida, a qual, por isso, é de manter.

Assim, face ao exposto, improcede o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Coimbra, 23 de Novembro de 2021.

[1] A dificuldade – como refere o Prof. Castro Mendes, in Limites Objetivos do Caso Julgado em Processo Civil, pág. 121 e ss. – está “em estabelecer a distinção em bases científicas sem empurrar a questão para uma casuísmo necessariamente arbitrário”.

[2] Efetivamente, a conceção/sistema restrito (da sentença só ter força de caso julgado na parte decisiva e não nos fundamentos) leva a conclusões duvidosas e em última análise insatisfatórias (como resulta dos inúmeros exemplos citados por Castro Mendes, obra citada, pág. 143).

[3] Como observou – há mais de 50 anos, mas com inteira atualidade – o Prof. Castro Mendes (obra citada, pág. 133), mesmo aqueles (Dias Ferreira) que diziam que “a sentença só tem força de caso julgado na parte decisiva e não nos motivos, considerandos ou enunciações”, não deixavam de acrescentar “excepto quando os considerandos estejam relacionados com a decisão por forma que com ela formem um todo indivisível”. Do mesmo modo a jurisprudência que “aceita a regra segundo a qual o caso julgado não se alarga aos fundamentos da decisão”, logo acrescentado “que o CPC admite a decisão implícita, como consequência necessária do julgamento expressamente proferido e já transitado, constituindo problema de interpretação da sentença saber se nela há um fundamento implícito”.

[4] Seguimos de perto Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 578.
[5] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 579/80.
[6] Aliás, a distinção – entre “factos” e “direito” – já encerra um modo hábil de entender tal dicotomia, uma vez que, no processo, só assume a qualidade de “facto” o quid a que o “direito” reconhece tal qualidade, ou seja, não há “factos” sem “direito”.

[7] O Prof. Antunes Varela – Manual de Processo, 1.ª ed., pág. 693 e ss. – parece ser um pouco mais restritivo, na medida em que apenas diz que “é a resposta dada na sentença à pretensão do A., delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende que seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado”; e que “a força do caso julgado não se estende, por conseguinte, aos fundamentos da sentença, que no corpo desta se situam entre o relatório e a decisão final”; porém, mais à frente não deixa de reconhecer que “reveste o maior interesse, para a delimitação do caso julgado, a fixação do sentido e, sobretudo, do alcance dessa resposta contida na decisão final”; e que “é ponto assente na doutrina que os fundamentos da sentença podem e devem ser utilizados para fixar o sentido e alcance da decisão contida na parte final da sentença, coberta pelo caso julgado

[8] Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, em que ilustra o referido com os seguintes exemplos: Se o R. é condenado, como devedor, a cumprir uma prestação ao A., aquele não pode demandar este último pedindo a restituição, com base no enriquecimento sem causa, da quantia paga; se o R. é condenado a entregar uma coisa ao A., aquele não pode instaurar uma acção pedindo a restituição da mesma coisa.

[9] A sentença condenatória corresponde à situação existente no momento do encerramento da discussão nos termos do art. 611.º/1 do CPC.
[10] Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 585/6.

[11] E a indiscutibilidade não pode ser posta em causa invocando argumentos, factos ou razões que o efeito preclusivo cobriu. - Prof. Castro Mendes, obra citada, pág. 186.

[12] A exceção do caso julgado encerra a vertente negativa, em ordem a evitar a repetição de ações; a autoridade do caso julgado traduz a vertente positiva, no sentido de imposição externa da decisão tomada.
[13] Se a exigisse não faria diferença com a exceção de caso julgado.

[14] São elucidativos os exemplos em que tal “figura” se considera normalmente como verificada:

Se uma decisão reconhece o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e condena o R. à sua restituição e à demolição da construção que na mesma efetuou, não pode o R. – por força da autoridade do caso julgado da primeira decisão – em nova ação, ainda que com fundamento em acessão industrial imobiliária, pedir o reconhecimento do direito de propriedade sobre a mesma parcela de terreno; apesar de não se verificar a exceção dilatória do caso julgado, atenta a diversidade da causa de pedir, a segurança e a certeza jurídica decorrentes do trânsito em julgado da primeira decisão obstam a que, em nova ação, se questione o direito de propriedade e as obrigações de restituição e de demolição reconhecidas na primeira ação com base numa realidade que já se verificava aquando da primeira ação e que aí poderia/deveria ter sido invocada pelo R. (quer para impedir a procedência da ação, quer para sustentar, em sede reconvencional, o direito potestativo de acessão imobiliária.

Se uma decisão condena no pagamento de uma indemnização, não pode aquele que é ali condenado vir pedir, com base no enriquecimento sem causa, a restituição da quantia paga; impedimento esse que resulta, não da exceção de caso julgado (face à diversidade das causa de pedir), mas da autoridade de caso julgado formado pela primitiva ação/decisão.

Se uma decisão condena no preço (duma compra e venda) duma coisa, não pode o condenado, em posterior ação, vir invocar vício invalidante de tal compra e venda; impedimento que também resulta da autoridade de caso julgado formado pela primitiva ação/decisão.

Se numa ação de reivindicação se reconhece a propriedade, tal vale como autoridade de caso julgado num processo posterior em que o proprietário requer a condenação da contraparte no pagamento duma indemnização pela ocupação indevida do imóvel.
[15] Miguel Teixeira de Sousa, BMJ 325, pág. 106
[16] Antunes Varela, Manual de Processo Civil, pág. 693