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DOAÇÃO
RESOLUÇÃO
REVOGAÇÃO
Sumário
I- A doação modal ou com cláusula modal, traduz-se na imposição, ao beneficiário de uma liberalidade, do dever de adoptar uma certa conduta; é imposto ao beneficiário de uma liberalidade um encargo, como restrição à liberalidade, limitação que, no entanto, não assume a natureza de uma contraprestação do donatário, ou como correspectivo da liberalidade. II- A resolução da doação, só tem lugar quando as partes no contrato de doação previram essa forma da cessação do contrato. III- A revogação da doação por ingratidão, que não opera ope legis, demanda que o donatário se torne incapaz, por indignidade, para suceder ao doador ou que se encontre nalguma das situações justificativas de deserdação.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I – B....., viúva e com domicílio no lugar de ...., ...., Arouca, instaurou acção declarativa contra os réus, C..... e mulher D....., residentes no mesmo lugar, alegando que, em escritura de 18/02/1999, declarou doar aos réus o quinhão hereditário a que tinha direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu marido, falecido no dia 16/03/1998, da qual faziam parte um terreno lavradio e uma casa de habitação.
A autora limitou-se a estar presente na leitura da escritura de doação, sem discernir minimamente aquilo que se passava à sua volta e sem ter consciência de estar a fazer uma declaração negocial, pelo que agiu com falta de consciência da declaração.
Os réus comprometeram-se, na doação, a tratarem a doadora sã enquanto sã e doente enquanto doente.
A autora é deixada sozinha, abandonada pelos réus, que apenas se acercam dela para a maltratar, agredir física e verbalmente, e ameaçar de morte, sendo que padece de doença crónica, necessitando da ajuda constante de 3ª pessoa para satisfação das suas necessidades fisiológicas.
Os réus não cumprem os serviços que se obrigaram a prestar à autora.
Na escritura de doação está incluído o direito de habitação vitalício da casa que o seu falecido marido deixou à autora em testamento, direito de habitação intransmissível, do que resulta a nulidade do acto.
Conclui a pedir a procedência da acção e, por via dela,
- seja reconhecida e declarada a anulação, por vício do consentimento, da doação que efectuou aos réus, ou
- no caso de assim não se entender, seja a doação declarada nula, revogada ou resolvida em razão da sua natureza remuneratória e incumprimento das obrigações dos donatários, ou
- se ainda assim não se entender, seja declarada a nulidade de tal doação por impossibilidade legal do acto e,
- em qualquer caso, sejam os réus condenados a abrir mão dos bens doados e a entregá-los à autora, livres de pessoas e coisas.
Os RR contestaram. Não se trata de doação remuneratória, sempre cumpriram o encargo que onera a doação, que não é nula, pois que apenas foi doado o quinhão hereditário e não o direito de habitação que foi legado à autora.
Não há fundamento para a revogação da doação por ingratidão do donatário e, a existir fundamento, a acção caducou
A autora quis efectivamente fazer a doação aos RR, carecendo de fundamento a sua pretensão.
Concluem a pedir a improcedência.
A autora respondeu pela improcedência das excepções invocadas pelos réus.
II. Proferido despacho saneador, a julgar a instância regular, seguiu-se selecção da matéria de facto com a organização da base instrutória.
A autora apresentou um articulado superveniente, em que alega, em síntese, que a partir de 01/10/2002, devido aos graves problemas de saúde, a viver só e abandonada, não tendo forças para satisfazer as suas necessidades básicas, foi internada num lar para terceira idade, a fim de poder ser tratada com respeito e dignidade, como acontece.
Oportunamente, deve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a acção inteiramente improcedente e absolveu os réus dos pedidos contra eles formulados.
III. Inconformada com a sentença, dela recorre a autora, tendo encerrado as alegações a concluir:
“Primeira: O exame médico constante dos autos, atendendo ao rigor e recolha exaustiva e completa de elementos que presidiu à sua elaboração, à sua conclusão precisa e fundamentada e à percepção por perito médico especializado de que a Autora não terá decidido com clareza a doação ajuizada é suficiente para dar como provados os quesitos 5º), 6º) e 7º) da Base Instrutória.
Segunda: Os depoimentos de duas testemunhas que levaram o tribunal a considerar abalada a conclusão do referido exame médico não são, nem de longe nem de perto, idóneos a produzir tal efeito.
Terceira: Em primeiro lugar, porque as testemunhas em causa, sendo a notária que elaborou a escritura e o Advogado que a preparou e habilitou com os documentos necessários não estariam nunca em posição de reconhecer que a autora outorgou sem consciência da declaração negocial ou indicar qualquer facto de onde tal se pudesse minimamente concluir.
Quarta: Também porque o testemunho do Advogado em causa foi efectuado em flagrante violação do segredo profissional, uma vez que este reconheceu que quando esteve no Notário estava como Advogado, a exercer funções de advogado e em patrocínio de ambas as partes, outorgantes na escritura e aqui Autora e Réus, o que implica a ilegalidade de tal prova testemunhal.
Quinta: O facto de o referido Advogado também constar na escritura como abonador da identidade de um dos outorgantes não obsta ao que se deixa dito, nem implica que o Advogado por causa disso deixou de estar presente no acto nessa qualidade, uma vez que se encontrava a acompanhar o culminar do trabalho efectuado com vista à outorga daquela escritura.
Sexta: A reapreciação da prova gravada incidentes sofre o referido testemunha do referido Advogado implica que o seu testemunho seja desconsiderado e assim confrontado com o exame médico não poderá abalar a conclusão deste.
Sétima: O mesmo ocorre com o depoimento da outra testemunha que se considerou abalar este exame médico, uma vez que, como resulta da prova gravada a testemunha não se recorda, de todo, da escritura ajuizada.
Oitava: O Tribunal para decidir as questões que lhe são postas não pode basear-se em generalidades e abstracções, como as que resultam de as testemunhas dizerem que agem sempre de uma determinada forma, se, para o caso concreto nada é dito que demonstre que se actuou naquele momento e ocasião dessa forma e que nenhuma recordação se tem do facto sob demonstração.
Nona: Toda a prova produzida se encontra nos autos, pelo que incumbe ao Tribunal da Relação alterar a decisão sobre a matéria de facto nos termos expostos.
Décima: De qualquer modo, o testemunho aqui reproduzido da referida Srª. Notária, permite abalar, esse sim, a conclusão de que ela se apercebeu do estado psicológico da autora, pois reconhece que não advinha se as pessoas entendem ou não a explicação que lhes é dada no acto da escritura.
Décima-primeira: Mesmo que assim não fosse de entender, no confronto entre estes dois tipos de prova sempre há-de prevalecer a pericial, efectuada por médicos peritos em psicologia e psiquiatria, ante a impressão de leias e naturalmente desatentas testemunhas, como a Notária e o Advogado que não se poderiam aperceber do estado psicológico da autora no acto, nem saber se esta terá ou não decidido com clareza a doação ajuizada e se padecia ou não de forte perturbação.
Décima-segunda: Não foram considerados no acervo de factos provados, e deveriam tê-lo sido os facto constantes do articulado superveniente oferecido pela autora, sendo certo que tais factos foram, por despacho transitado em julgado, considerados admitidos por acordo e a sua relevância é suficiente para a procedência da acção.
Décima-terceira: Uma vez que estão em oposição expressa com a cláusula constantes da escritura ajuizada, a qual, se for considerada válida, inclui a obrigação de os donatários tratarem da doadora sã quando sã e doente quando doente, o que não fizeram, como está largamente demonstrado nos autos.
Décima-quarta: Todos os elementos que vêm de referir-se desenham e demonstram a situação pungente de uma pessoa humana em estado de extrema precariedade que, por tudo isto, não tinha a menor noção ou consciência do alcance da doação.
Décima-quinta: À autora assiste o direito de resolução da doação, assente que se encontre nestes auto que os donatários não cumpriram os encargos que para si resultam da escritura.
Décima-sexta: Atendendo á situação de desamparo, solidão, doenças crónicas e graves e avançada idade da autora é manifesta a ingratidão dos donatários que nessa situação a deixaram, e nenhum serviço ou ajuda, por muito mínima que fosse, lhe prestaram ou prestam.
Décima- sétima: Não tratando, por qualquer forma, da doadora, os réus não lograram provar que deixaram de cumprir as suas obrigações com justa causa, o que lhes competia, uma vez que a autora deixou provados os factos do incumprimento daqueles.
Décima-oitava: Em última instância, e sem prescindir, deve ser reconhecida e declarada a nulidade parcial da doação que respeita á casa de habitação da autora, o que da norma imperativa que proíbe a doação do direito de habitação, bem como da norma que manda conhecer oficiosamente da nulidade.
Décima-nona: Da leitura atenta do articulado superveniente (veja-se os factos constantes do nº 2) e de toda a prova produzida resulta que não fora a intervenção providencial de terceiros, e outra coisa não se pode concluir que não seja o abandono, desamparo, desprezo, míngua e desespero de uma pessoa com quase 90 anos, a autora destes autos, o que aos réus nada importou ou importa.
Vigésima: Um comportamento que vê injustamente premiado por um Tribunal que admite a validade do contrato ajuizado para obrigar a autora, mas dele não tira as ilações quanto aquilo que os réus clausularam e que não cumpriram e para cujas obrigações que dele decorriam fizera tábua rasa.
Vigésima: A douta decisão em apreço violou as normas legais citadas no corpo destas alegações, designadamente: CC, art.os 236º, 246º, 247º, 280º, 286º, 941º, 966º, 969º, 970º, 1488º,
CPC, art.os 506º, 515º, 663º
EOA, artº 81, nº 5 (artigo 87º na redacção actual)”.
IV. Perante as conclusões das alegações, que delimitam o objecto do recurso (arts. 684º/3 e 690º/1 e 3 do CPC, são as seguintes as questões a decidir:
- da reapreciação da decisão da matéria de facto quanto aos pontos 5º, 6º e 7º;
- da ampliação da matéria de facto;
- se a autora, ao outorgar a escritura de doação, pela sua situação física e perturbação psicológica não teve a noção e consciência do alcance da declaração negocial correspondente à doação;
- da resolução da doação por incumprimento dos encargos que para os réus resultam da escritura;
- da revogação da doação por ingratidão dos donatários;
- da nulidade (parcial) da doação, no que tange à casa de habitação da autora.
V. Quanto à primeira questão, quer a autora que se considerem provados os factos constantes dos pontos 5, 6 e 7 da base instrutória, com base no relatório pericial, por ser ilegal o depoimento, em flagrante violação do segredo profissional, da testemunha Dr. E...... (advogado), que, no acto da escritura pública de doação, esteve no notário como advogado e em patrocínio de ambas as partes, e por o testemunho da Dra. F....., notária, não poder abalar as conclusões do exame médico.
V. 1. Antes de mais, importa analisar se o Dr. E..... era inábil para depor como testemunha aos mencionados pontos de facto, por obstrução do sigilo profissional e, por havê-lo feito, sem se escusar e sem impedimento do tribunal, deve o depoimento ser anulado, não valendo como prova em juízo.
Logo na audiência de julgamento, a parte contrária reagiu contra o depoimento do Dr. E....., requerendo que para a apreciação da prova fosse desconsiderado e ajuizado totalmente irrelevante esse depoimento.
É o seguinte o teor das questões 5, 6 e 7 da base instrutória:
(5) “Aí, e sem prever o alcance do acto praticado, a autora limitou-se a estar presente na leitura da escritura de doação ajuizada?”;
(6) “Sem discernir minimamente aquilo que se passava á sua volta, sem ideia sequer da repartição em que se encontrava e da natureza dos actos que lá se praticam?”
(7) “E não tendo consciência de estar a fazer uma declaração negocial?”
Dispunha o artigo 81.º do EOA, aprovado pelo DL 84/84, de 16/03, (na redacção da Lei nº 80/2001, de 20/07), aplicável na situação concreta, quanto ao “segredo profissional”:
1 - O advogado é obrigado a segredo profissional no que respeita:
a) A factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido revelados pelo cliente ou por sua ordem ou conhecidos no exercício da profissão;
(…)
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que directa ou indirectamente tenham qualquer intervenção no serviço.
(…);
4 - Cessa a obrigação de segredo profissional em tudo quanto seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o presidente da Ordem dos Advogados.
5 - Não podem fazer prova em juízo as declarações feitas pelo advogado com violação de segredo profissional.
(…).
Para o efeito releva especialmente o nº 1, al. b) – “factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido revelados pelo cliente ou por sua ordem ou conhecidos no exercício da sua profissão” (de advogado). Nos termos desta norma, o advogado está obrigado a segredo profissional quanto a factos por si conhecidos no exercício da sua profissão, e seja qual for a origem da fonte.
Como o Senhor Advogado que prestou depoimento não exibiu autorização (do Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados ou do Bastonário, por recurso da decisão daquele), a dispensá-lo da obrigação do sigilo profissional, a que se refere o nº 4 do preceito, vejamos se com o seu depoimento violou esse dever ou, o mesmo é dizer, se a matéria sobre que depôs, nos limites das citadas questões, estava abrangida pelo segredo profissional e, por essa razão, se é imprestável o seu depoimento para prova de tais factos ou para a resposta negativa às questões formuladas, nos termos do nº 5 do citado artigo.
De notar também o que dispõe o nº 2, uma vez que a obrigação de segredo existe mesmo que o serviço solicitado não envolva representação do cliente, remuneração do serviço ou efectiva aceitação e/ou desempenho do serviço solicitado. O advogado está vinculado ao segredo relativamente a factos conhecidos no exercício da sua profissão, mesmo que inexista procuração forense ou mandato judicial (cfr. Ac. STJ, de 15/02/2000, na CJ, 1, 89).
O advogado é, assim, inábil para depor como testemunha quanto a factos abrangidos pelo sigilo profissional (art. 618º/3 do CPC) devendo escusar-se a fazê-lo.
Na situação, como o Sr. Dr. E..... (testemunha) afirmou, quando esteve no notário, na outorga da escritura pública de doação que está em causa neste processo, esteve “como advogado, em rigor das duas partes, a exercer funções de advogado”. Por isso, a sua comparência no notário (acompanhando os outorgantes, supõe-se) aconteceu no exercício da sua profissão de advogado (e ao serviço dos outorgantes).
Nessa altura, como testemunha, abonou também a identidade (segundo refere) da aqui autora.
É certo que, embora perguntado pelo Senhor Advogado dos RR, escusou-se a esclarecer quem representava (ou se representava alguém, se bem que acabasse por referir estar ao serviço de ambas as partes), quem solicitou os seus serviços, que serviços lhe foram solicitados bem como a tudo o que respeitasse a conversas ou contactos com as partes, invocando o sigilo profissional.
Mas como decorre da fundamentação da decisão da matéria de facto, nas referidas questões 6 e 7 (e provavelmente da al. 5 em que se remeteu apenas para a al. D dos factos assentes), baseou-se essa decisão também no depoimento dessa testemunha, o que significa que o tribunal recorrido admitiu e relevou o depoimento do Dr. E....., e, de facto, depôs quanto a essas questões, o que, claramente, se pode constatar pela audição da gravação.
Em caso de violação do segredo, sem autorização para sua quebra (ou, ao menos, dispensa pelo cliente ou da pessoa cujo interesse, e em primeira linha, o sigilo protege), se o advogado não se escusar (artigo 618º/3, do CPC) a responder, dentro dos limites abrangidos pelo segredo, deve o tribunal impedir que a obrigação seja violada. Se o não fizer, pode o depoimento, por ilegal, ser anulado, não podendo servir de prova em juízo (citado artº 81º/5 do EOA).
Por segredo profissional entende-se, em geral, “reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão” (ac. STJ, de 02/10/2003, em ITIJ/net, proc. 03B2121, citando Fernando Elói, “Da inviolabilidade das correspondências e do sigilo profissional dos funcionários telégrafos-postais”, in O Direito, Ano LXXXVI, 1954, pág. 81) ou, “a proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional” (v. parecer nº 49/91, da PGR, no DR II Série, de 16/03/95). É nesta situação que se insere o segredo profissional dos advogados, onerados com o dever de sigilo quanto aos factos que lhe são revelados no exercício da sua profissão. “Tudo quanto é revelado ao advogado e aquele assume, ainda que implicitamente, carácter sigiloso, está abrangido pelo segredo profissional, porque é no exercício da profissão que os factos secretos lhe são confiados” (Alfredo Gaspar, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 49, Dez.89, pág. 868). O segredo profissional é correlativo indispensável de profissões que assentam numa relação de confiança, como sucede com o advogado. É a necessidade da confiança das pessoas e da sociedade em certos profissionais, quando exercem as respectivas funções, que contendem com a privacidade das pessoas, que justifica o sigilo profissional exigido desses profissionais. A confidencialidade do advogado tem como razão a tutela da confiança e, em alguma medida, a protecção de dados das pessoas mais ou menos sigilosos ou confidenciais que lhe são confiados.
E o sigilo profissional do advogado interessa ao confidente e ao cliente que lhe confia os factos secretos, bem como ao interesse social e geral na confidencialidade e secretismo que deve existir nas relações do advogado no exercício da sua profissão, constituindo-se, também, em dever de ordem pública. “O segredo profissional do advogado explica-se por relevantes razões de interesse público, pois é um instrumento indispensável ao clima de confiança que deve envolver aquela, assim como outras profissões, cuja actividade se desenvolve na área de privacidade das pessoas e empresas” (ac. do STJ, de 15/04/2004, em ITIJ/net, proc. 04B795). Daí a razão do dever de reserva, não divulgando os factos adquiridos na confidencialidade da profissão e pela confiança do cliente no profissional quanto à reserva dos factos confiados.
Daí que, sem verificação das situações previstas no artº 81º/4 do EOA, ao advogado não é admitida a quebra do segredo profissional e o que resultar da violação do dever de reserva é irrelevante para prova em juízo.
No caso, embora o Dr. E..... não tenha deposto sobre factos relacionados com a escritura pública de doação, não decorre que sobre todos os demais factos presenciados e conhecidos aquando do exercício da função e por virtude do desempenho da profissão lhe seja legítimo depor, sem o aperto do dever de sigilo. Mesmo que os actos cometidos e praticados não sejam exclusivos de advogado, a sua prática por advogado não deixa de se inserir na esfera normal do exercício da sua profissão, prevalecendo essa actuação como advogado.
É de notar que ao dever de reserva não basta que o advogado esteja, nessa veste, em determinado acto, para ficar impedido de relatar sobre determinada situação que aí se passou, para ficar adstrito ao dever de segredo sobre todas e quaisquer circunstâncias mesmo que nada tenham a ver com os serviços que lhe foram solicitados ou com eles relacionados. Não é pelo facto de presenciar concretas situações (como qualquer outra pessoa) e, por essa razão, tomar conhecimento de alguns factos, ainda que a sua presença se deva ao exercício das funções, que o advogado fica adstrito a segredo profissional em relação a tudo quanto presenciou. Torna-se necessário que os factos respeitem ao exercício da profissão, que lhe foram confiados ou deles tomou conhecimento por essa razão, que exista uma conexão entre a aquisição dos factos e o exercício da advocacia.
Segundo o relato do Dr. E....., ao identificar-se, é o mesmo sobrinho de ambas as partes, que, por essa razão, as conhece.
Esse conhecimento podia ser bastante para se pronunciar, no geral, sobre o estado de saúde físico ou mental de qualquer das partes, sobre a situação de fragilidade ou dependência psicológica ou física, se verificada, das mesmas, sobre a existência ou não de dificuldades de autodeterminação e compreensão dos seus actos, ou capacidade para se determinarem livremente.
Mas, a testemunha, idónea porque presencia os factos, pronuncia-se sobre uma situação concreta que decorre no acto da escritura e por sua causa, que não tem necessariamente a ver com o conhecimento pessoal, como qualquer pessoa, e no caso, familiar, da situação física e psicológica da recorrente, mas da concreta e exacta situação no momento da declaração, com a relevância que a liberdade, a capacidade de compreensão, uma vontade livre e esclarecida têm na eficácia e validade da declaração de vontade.
Os factos respeitam a uma situação concreta, e podem ser determinantes da sorte da acção, quanto à validade ou invalidade da doação e, para sua inteira apreensão e compreensão, é notória a importância da presença no acto da escritura. A testemunha não atesta sobre as capacidades da autora, em geral, para compreender a vida, se governar, formar a sua vontade e manifestá-la, mas sobre uma situação concreta que a sua presença no notário, como advogado das partes, possibilita.
Respeitam os factos á situação da autora, no momento em que se encontrava no notário, na ocasião da outorga e para outorgar a escritura de doação e, para aferir da sua capacidade de discernimento e livre determinação na emissão da declaração de doação, é esse o momento relevante. Ora, o conhecimento da concreta situação que rodeia a autora, nesse momento, advém à testemunha (Dr. E.....) do exercício e por causa do exercício da profissão de advogado, qualidade em que se encontrava no notário, como afirmou.
Na configuração da lide, podem ser determinantes da resolução do litígio as questões perguntadas nas questões 5, 6 e 7 da base instrutória. E os respectivos factos, se conhecidos do advogado/testemunha, foram-no no exercício da profissão (e por causa desse exercício, caso contrário nem os tinha presenciado). O que a testemunha podia manifestar, pela positiva, é que a autora, nesse momento encontrava-se capaz de entender, compreender o acto, saber e compreender o sentido da declaração de doar e que livremente quis emitir essa declaração, que não notou qualquer constrangimento da autora, nenhuma anomalia dos intervenientes, nem constrangimento (como foi referindo), que a notária (a Dra. F......) explicou a escritura que foi lida e explicada á autora (e demais outorgantes), o que, embora de forma não totalmente espontânea, acabou por transmitir.
O conhecimento dessa situação, como nos parece manifesto, advém do exercício e no exercício da advocacia. Estando no cartório, como afirmou, “como advogado (em rigor das duas partes) a exercer funções de advogado” é no exercício dessas funções que toma conhecimento dos factos que aí se passam e relacionados com os seus clientes (pois actua como advogado das duas partes). Significa que tais factos caiem no âmbito do segredo profissional e, a ser assim, como entendemos que é, o depoimento é ilegal, pelo que fica sem efeito, não servindo como prova quanto aos referidos pontos (5, 6 e 7) da base instrutória.
V. 2. Quanto ao ponto 5) da base instrutória, em que se pergunta “Aí (no cartório), e sem prever o alcance do acto praticado, a autora limitou-se a estar presente na leitura da escritura de doação ajuizada?” o tribunal julgou provado apenas o que consta da al. D) dos factos assentes, ou seja, que “por escritura lavrada a 18 de Fevereiro de 1999, no Cartório Notarial de Arouca, a autora declarou doar aos réus: o quinhão hereditário a que tem direito na herança ilíquida e indivisa …”. O que significa uma resposta “não provado” à questão formulada, tal como foi respondido “não provado” às questões 6 e 7 (“Sem discernir minimamente aquilo que se passava á sua volta, sem ideia sequer da repartição em que se encontrava e da natureza dos actos que lá se praticam?” e “E não tendo consciência de estar a fazer uma declaração negocial?”) e, quanto a estas, como consta do despacho em que se julgou a matéria de facto, motivou-se a resposta negativa a estas duas questões também com base nos depoimentos das testemunhas Dr. E..... e Dra. F..... (notária).
Por quebra do segredo profissional, desconsidera-se o depoimento do Sr. Dr. E..... como prova.
Porém, essa desconsideração não implica que tais “factos” devam ser julgados provados. E é essa a pretensão manifestada pela recorrente.
O facto de se desconsiderar o depoimento de concreta testemunha, prestado em quebra de sigilo profissional, e que serviu para motivar a decisão de facto, não implica necessariamente a anulação da decisão, isto é, da resposta às concretas questões a que a testemunha depôs, se outra prova existe, nomeadamente a considerada na decisão recorrida, que justifique a manutenção da decisão (neste sentido, Acs. do STJ, 31/01/89, 26/05/93 e 29/03/2000, na ITIJ/net, rpcos. 076661 e 99S366; em sentido diferente, ver o citado ac. do STJ, de 15/04/2004). Caso tenham sido produzidas outras provas, além do depoimento de testemunha inábil, que bastem para motivar a resposta, não sendo de afastar também a distribuição do encargo da prova, a decisão ou a resposta do tribunal recorrido às questões questionadas podem manter-se.
A desconsideração do depoimento da testemunha inábil não pode, sem mais, servir para alterar, em sentido contrário, a decisão da matéria de facto, como quer a recorrente. A ter essa implicação necessária, a consequência seria a anulação da decisão e a repetição do julgamento par ampliação da matéria de facto (nomeadamente quanto à matéria a que depôs a testemunha inábil).
De qualquer modo, a considerar-se indispensável o depoimento anulado para determinada decisão, que, sem ele, não teria sido adoptada, ter-se-ia de repetir o julgamento e não proferir decisão inversa da proferida.
Acontece que, na espécie, mesmo anulado o depoimento em questão, a pretensão da recorrente em ver respondidas positivamente as questões 5, 6 e 7 da base instrutória não poderia ter acolhimento, pois entendemos ser manifestamente insuficiente o resultado do exame (algo inconclusivo e contraditório) para alicerçar, só por si, respostas positivas às citadas questões, sabido que sobre a autora recai o ónus da prova desses factos.
Entendemos, mesmo, manter a decisão proferida, em matéria de facto.
Em primeiro lugar e reafirma-se, à recorrente cabia provar tais factos, e não aos recorridos o seu contrário.
A manter-se, tão só, a prova produzida pela recorrente (mesmo sem a produzida pela parte contrária), temo-la como insuficiente para julgar provados os factos descritos os pontos 5, 6 e 7 da base instrutória.
Nesse sentido, milita, quase exclusivamente, o resultado dos exames médicos realizados.
Como se sabe, tanto a prova pericial como a prova testemunhal – as produzidas no processo com referência às questões 5, 6 e 7 da base instrutória – estão sujeitas à livre apreciação do tribunal (artigos 389º e 396º do CC e 591º do CPC), o que significa, não arbitrariedade, mas que o juiz, quanto à força probatória dessas provas, não está vinculado a quaisquer critérios legais pré-estabelecidos, antes se baseia em “regras da ciência e do raciocínio e nas máximas da experiência” (M. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 347, J. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 1996, 156, Alberto dos Reis, CPC Anotado, IV, 570). O Juiz decide sobre a matéria de facto da causa segundo a sua íntima convicção, formada no confronto dos vários meios de prova
A escritura de doação teve lugar em 18/02/99 e tinha, então, a autora 83 anos de idade.
Os exames médicos, com relatório no processo, foram feitos 20/03/2002 e Abril de 2003, portanto, em momento temporal bem distante do momento da outorga da escritura pública.
E sabe-se – é da lei da vida – da frequência com que a saúde das pessoas, o estado físico e mental, nessas idades, corre o risco de deterioração, por vezes, de forma rápida bem como do aumento a dependência de terceiros.
A autora era portadora de uma doença – ver relatório de fls. 107 e demais documentos clínicos juntos ao processo - pelo menos, desde 1987 (o que a obrigou a operação de urgência a neoplastia intestinal), não revelando qualquer elemento probatório dos autos que tal lhe tivesse diminuído as faculdades mentais, a capacidade de discernimento.
Do relatório de fls. 107 (exame de 2002) constata-se que, nessa data, a autora apresenta-se “consciente, colaborante e orientada no tempo, no espaço”. Daí não decorre diminuição de discernimento, deterioração das faculdades mentais que a impossibilitasse de compreender os seus actos e de determinar. Apenas se refere uma neurose ansiosa relacionada com conflitos emocionais com herdeiros (desconhecendo-se se tais conflitos respeitam às questões que se discutem neste processo), e que nenhuma ligação se faz a reportar a “neurose” à data da doação, a questões localizadas nesse espaço temporal. Desse exame absolutamente nada se aproveita em apoio das conclusões da recorrente, para se modificar a decisão de facto. Se algum valor se podia atribuir às conclusões do exame seria para afirmar o contrário do que a recorrente pretende.
Por outro lado, do relatório do exame de “Abril” de 2003 (de exame efectuado mais de quatro anos após a escritura, quando a autora já tem 87 anos de idade) extrai-se: - a mesma neurose centrada “no roubo”, fixação e mágoa que já vem de trás,
- que “responde sistematicamente que é analfabeta, que não está tola e que foi roubada…”,
- que está “orientada no espaço, sub-orientada no tempo”, e mantém uma memória razoavelmente preservada
- que o seu discurso é coerente (centrado “no roubo”),
São estes os resultados da observação do clínico.
Dos testes psicológicos, conclui-se revela alguma dificuldade de compreensão (“debilidade ligeira”).
E conclui-se (em Abril de 2003) “somos de opinião tratar-se de uma doente”, afirmação não questionável, o que os documentos do processo certificam e a autora necessita mesmo do auxílio de terceira pessoa, não só pela doença como pela sua avançada idade), e “que não terá decidido com clareza a respectiva doação. Tal não significa que seja inábil para gerir os seus bens, antes que se encontrava num momento de forte perturbação, associado ao conflito no lar”.
De nenhuma passagem do relatório se extrai a incapacidade da autora para compreender o sentido da declaração e, de forma nenhuma, se afirmar não ter sido feita a declaração de doar. Não decidir com clareza (como mera hipótese – “não terá” – ainda que possível ou, mesmo que se admitisse, provável) não significa nem incapacidade de entender, falta de consciência da declaração nem que esta não seja produto da vontade da declarante (ainda que não formada com clareza).
A conclusão nem sequer refere o momento em que foi “feita” a doação e a razão porque refere que se encontrava em momento de forte perturbação, (só se vendo tal afirmação como extrapolação da situação actual (perturbação emocional, neurose ansiosa). No exame, coloca-se a possibilidade (em vez de uma afirmação técnico/científica, localizada a um tempo e espaço) da autora não ter decidido (doar) com clareza, sem que se explique mesma essa conclusão/possibilidade. Mas acrescenta-se que a autora não está inábil para gerir os seus bens; a contrario, é de concluir que está capaz de exercer essa gestão. Ou seja, no parecer do médico, a autora teria a capacidade volitiva e cognitiva bastante para doar mas que num momento de perturbação (o porquê de ser no momento da escritura, não o esclareceu) não terá decidido com clareza a doação.
Parece relacionar o “não terá decidido com clareza a respectiva doação” com um momento de forte perturbação, associado ao conflito no lar. Como chega o médico ao conflito do lar e à perturbação nesse momento, não o esclarece e seguro é nem os elementos documentos do processo nem qualquer depoimento das testemunhas que conheciam as partes permite indiciar, sequer, a existência de qualquer conflito no lar, ao tempo da doação, pelo menos no que às relações entre a recorrente e os recorridos respeita.
Perante um relatório com este grau de convicção e motivação – e produto de exame médico realizado cerca (para mais) de quatro anos de distância dos factos, em pessoa da idade da autora – entendemo-lo como manifestamente insuficiente para, com base nele fazer um juízo de probabilidade bastante, suficiente para, em face das circunstâncias concretas da espécie, podermos concluir pela realidade dos factos descritos sob os pontos 5, 6 e 7 da base instrutório, passados no dia 18 de Fevereiro de 1999. Temos como manifestamente insuficientes os relatórios dos exames para concluir, em termos de probabilidade bastante que satisfaça as necessidades práticas da vida, pela realidade dos alegados factos.
E, se a coisas se passam assim face aos resultados dos exames médicos (única prova com algum relevo apresentada pela recorrente), em sede de prova testemunhal, a prova é quase inexistente (inexistente, se nos reportarmos apenas ao tempo anterior à e coevo da escritura) no sentido duma resposta positiva a essas questões da base instrutória.
As testemunhas H..... e I..... nada souberam dizer. A testemunha J..... (agente da GNR) absolutamente nada disse a essas questões. A testemunha L...... (agente da GNR e que afirmou bem conhecer as partes neste processo) absolutamente nada disse que favorecesse respostas positivas a tais questões; pelo contrário, desse depoimento depreende-se que a autora estava lúcida, sabia “bem o que estava fazer e queria fazer” e queria fazer a doação porque achava que ele (réu) era competente e mesmo que, ao tempo da doação eles (partes) davam-se bem (o que contraria os conflitos razão da perturbação emocional ou psicológica da autora que o médico refere no relatório). Por fim, a testemunha N....., que, segundo afirmou, começou a prestar serviços de taxista á autora “p’ra aí há dois anos” (desde 2001) diz não saber o que se passou entre as partes, “falava-se que ela deu”, “ela dizia que tinha feito um documento mas que não tinha dado” e para ele (testemunha) ela (autora) “sabia o que dizia”. Nenhuma testemunha afirma que a autora estivesse incapacitada, diminuída nas suas faculdades mentais, psicologicamente perturbada ao tempo da doação, que não soubesse o que dizia ou queria.
Esta prova é absolutamente insuficiente para se poder afirmar que a autora, quando estava no notário, “sem prever o alcance do acto praticado, a autora limitou-se a estar presente na leitura da escritura de doação ajuizada; sem discernir minimamente aquilo que se passava á sua volta, sem ideia sequer da repartição em que se encontrava e da natureza dos actos que lá se praticam” e “não tendo consciência de estar a fazer uma declaração negocial”.
Acresce que, em sentido contrário, depôs a notária, Dra. F..... que, embora esclarecendo não se lembrar, em concreto, da escritura em questão neste processo ou da pessoa da autora, afirma que era de todo impossível a autora estar no cartório sem saber o que estava a fazer, dado o procedimento que adopta, porque explica os actos notariais que realiza, é explicado o conteúdo da escritura, pergunta aos interessados se entenderam e, se alguém diz que não, repete a explicação (e a forma de actuar, porque reportada a um modo de actuar, sem excepção, não é irrelevante como prova da actuação voluntária do outorgante ou, pelo menos, da inverificação da inconsciência e desconhecimento do sentido do acto escriturado por parte do outorgante). E depor sobre o que se passa no notário e sobre o que este funcionário apreende no ambiente em que se desenrola o acto quanto à capacidade cognitiva e volitiva dos intervenientes ou e da inteligência destes quanto aos factos declarados nada tem que ver com a realidade das declarações dos outorgantes, que nem a testemunha atesta, nem a escritura certifica. Mas não será difícil a um notário atento, perspicaz, zeloso e diligente, quando na presença de pessoa (que está a outorgar uma escritura) na situação em que a autora se afirma “a autora limitou-se a estar presente na leitura da escritura de doação ajuizada; sem discernir minimamente aquilo que se passava á sua volta, sem ideia sequer da repartição em que se encontrava e da natureza dos actos que lá se praticam” e “não tendo consciência de estar a fazer uma declaração negocial” aperceber-se de que algo não está a correr bem, da limitação que afectaria o outorgante.
Por outro lado, a testemunha O....., que diz conhecer há muitos anos as pessoas envolvidas (e que mora a cerca de um quilómetro dessas pessoas, que são vizinhas, tendo, em tempos, efectuado serviços de construção civil em casa da autora), diz que essas pessoas se davam bem (antes da autora querer, a dada altura, que os RR deixassem de frequentar a sua casa) e que a autora (que a testemunha transportara diversas vezes de táxi) chegou a dizer-lhe “vou-lhe dar e com muita honra e muita obrigação porque se não fosse ele” (o réu) “meu marido ficava na cama meses e meses sem a barba ser feita” e que tinha dado ao C..... para ele tratar dela e que se não fosse ele (réu) tinha tido problemas com o homem (da B.....) que já se não mexia. De tudo se conclui que nem a desconsideração do depoimento da testemunha Dr. E..... importa a anulação da decisão da matéria de facto, quanto aos pontos 5, 6 e 7 da base instrutória, nem a prova produzida (mesmo se considerada apenas a oferecida e requerida pela recorrente) é bastante para modificar a matéria de facto julgada provada pelo tribunal recorrido, no que aos pontos controvertidos respeita, pelo que improcede a pretensão da recorrente.
VI. Da ampliação da matéria de facto. Quer a recorrente que sejam considerados os factos constantes do articulado superveniente por si oferecido, por serem relevantes (por “em oposição expressa com cláusula constante da escritura” que impõe a “obrigação dos donatários tratarem da doadora sã quando sã e doente quando doente”) e terem sido admitidos por acordo (conclusões 12 e 13). Tais factos, na parte em que revestem novidade (pois que alguns foram vertidos na petição e outros há que não revestem a natureza de supervenientes, não podendo deixar de ser conhecidos da autora, desde antes da propositura da acção, como sejam os relativos à situação, localização e estado, do seu domicílio) não foram impugnados e considerados admitidos por acordo (se não em oposição com a defesa no seu conjunto). Ora, os factos vertidos no ponto 2 desse articulado foram, no geral contrariados pelos RR e, por isso, levados à base instrutória (ver items 9, 12, 13 a 17 desta peça processual), enquanto reveladores de conduta sua violadora do encargo assumido na escritura. Que autora vivia sozinha e isolada, e que era deixada sozinha, todos os dias e todo as horas, desamparada pelos RR e que era pessoa doente, consta dos factos já provados. Sem que se tenham tais factos como decisivos para o desfecho da acção, em consideração das diversas soluções plausíveis do litígio, aditam-se, na medida em que se considerem provados, à factualidade que vem assente na decisão recorrida.
VII. São os seguintes os factos julgados provados na sentença recorrida:
1) Por testamento exarado em 27 de Abril de 1990, no Cartório Notarial de Arouca, o marido da autora, G....., também conhecido por G1....., fez o seu testamento em que deixou à autora: “a quota disponível de todos os bens que vierem a constituir a sua herança e para preenchimento da mesma quota desde já lhe lega o direito de habitação vitalício da casa onde agora habita, sita no lugar ....., nos limites do referido lugar de Friães, inscrita na matriz sob o art. 304 - cfr. documento de fls. 6 a 8, aqui dado por reproduzido. (A)
2) O testador faleceu em 16 de Março de 1998. (B)
3) Os bens da herança do testador eram constituídos pelos seguintes bens:
a) – Campo do Chão, terreno lavradio, situado no lugar ....., freguesia de Moldes, deste concelho, a confrontar do norte com P....., do nascente com J..... e outros, do sul com urbano do mesmo lado e caminho e do poente com M..... e outros, inscrito na matriz sob o art. 1409;
b) – Casa de Habitação, sita no mesmo lugar de ....., a confrontar do nascente com J....., do norte com Q....., do poente com M...... e do sul com o caminho público, inscrita na matriz urbana sob o art. 304. (C)
4) Por escritura lavrada em 18 de Fevereiro de 1999, no Cartório Notarial de Arouca, a autora declarou doar aos réus: “o quinhão hereditário a que tem direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu marido G....., falecido no dia 16 de Março de 1998 – documento de fls. 18 e 19, aqui dado por reproduzido. (D)
5) Dessa escritura consta ainda o seguinte: “declararam os segundos outorgantes (aqui réus) que aceitam a doação nos termos exarados, comprometendo-se a tratarem a doadora, primeira outorgante, sã quando sã e doente quando doente”. (E)
6) A autora nasceu no dia 19 de Junho de 1916. (F)
7) A autora foi a dada altura viver para um lar de terceira idade em Arouca e presentemente reside sozinha na casa mencionada em C). (G)
8) O réu marido era vizinho da autora e, por vezes, prestava serviços ao falecido marido da autora, nos terrenos que eram sua pertença. (1)
9) Após o falecimento do marido, a autora encontrou-se desamparada e só.(2)
10) Após a celebração da escritura, a autora foi viver para casa dela, sozinha e isolada. (8 e 13)
11) A autora é deixada sozinha, pelos réus, todos os dias, a todas as horas.(15)
12) A autora tem problemas de saúde diversos, como doença crónica (colostomizada) e necessita da ajuda constante de 3ª pessoa para satisfação das suas necessidades fisiológicas.(17)
A que acrescem (do articulado superveniente)
13) Desde início e meados de 2002, a autora, com 87 anos de idade, começou a apresentar graves dificuldade de locomoção, com problemas nas articulações os braços e das pernas.
14) Não tendo já forças nem saúde para fazer coisas indispensáveis e de necessidade básica, como ir comprar água.
15) Face ao descrito em 10, 11, 12 a 14, a autora implorou, através de pessoas que a ajudaram, a obtenção de internamento num lar de idosos.
16) Após as diligências, foi internada num lar para a terceira idade, em Cucujães, sendo utente dessa instituição e aí residindo desde 01 de Outubro de 2002, onde recebe o tratamento e amparo condignos e respeitadores da sua condição, estado de saúde e idade.
VIII. Quanto à terceira questão. Na posição da recorrente, não teve esta a consciência de que fez qualquer doação. Em rigor, a conclusão do afirmado, seria a de que nem fez qualquer declaração de doar (limitou-se a estar presente e sem saber onde se encontrava) ou outra e, de qualquer modo, sem consciência do acto (declaração de doar).
Nos termos do artigo 246º do CC, “a declaração não produz qualquer efeito, se o declarante não tiver consciência de fazer uma declaração negocial (…)”.
Para demonstrar a falta de consciência da declaração, a autora alegou factualidade bastante, que foi levada à base instrutora (pontos 2 a 7 dessa peça processual). Mas, recaindo sobe si o ónus da prova desses factos (artigo 342º/1 do CC), não o logrou, à excepção do facto vertido no ponto 2 (“após o falecimento do marido, a autora encontrou-se desamparada e só”), de todo irrelevante para produzir, por si, o efeito pretendido.
Resta que “por escritura lavrada em 18 de Fevereiro de 1999, no Cartório Notarial de Arouca, a autora declarou doar aos réus: o quinhão hereditário a que tem direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu marido” (al. 4 da matéria de facto). E não consta provada circunstância de facto que permita detectar vício da vontade da recorrente ao ser feita essa declaração de doação, ou que, ao manifestá-la, a autora não tivesse consciência do que estava a fazer ou a dizer. E deve ter-se presente que a situação prevista pela norma do artigo 246º do Código Civil (diploma a que pertencem todas as normas sem outra referência), não se aplica aos casos em que o declarante não possui capacidade para entender a declaração, antes aos que, não obstante a presença dessa capacidade, não se apercebe (ou não teve a consciência) de ter feito uma declaração negocial (no caso, de doar determinado direito aos recorridos) que como tal foi apreendida pelo destinatário, apesar da inexistência de uma manifestação de vontade com esse sentido, ao menos dirigida ao negócio que se tem como celebrado (cfr. Ac. STJ, de 04/10/2001, CJ, III, 61). Trata-se de uma divergência (não intencional) entre a vontade real e a declaração, pois “falta a vontade da acção como declaração, a consciência de se assumir um comportamento declarativo ou a aparência de uma declaração” (Pires de Lima/Antunes Varela, em CC Anotado, I, 3ª Ed., 231)
Segue-se que, na concreta espécie, a vontade declarada não se mostra afectada de vício que determine a nulidade (ou a inexistência jurídica, noutro entendimento) da declaração feita (Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, 1979, III, 287, Mora Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª Ed., 491).
Não obstante a referência, nas alegações ao artº 247º, não se surpreende, no contexto dos factos provados, qualquer erro na declaração, ou seja, que a autora tivesse a vontade de fazer determinada declaração e, de facto, declarasse algo divergente. Ou seja, que se tenha formado sem erro certa vontade, mas se tenha declarado outra (P. Lima/A. Varela, ob. cit., 231). O que contrariaria a pretensão da recorrente quando diz não ter consciência de fazer qualquer declaração e, no caso, de doar. Além de que o erro relevante é o que é essencial para o declarante e desde que a essencialidade seja cognoscível pelo declaratário, requisitos que os factos não revelam.
A situação alegada poder-se-ia enquadrar no âmbito do artº 257º, pois do que se trataria é de falta de vontade, na realidade da narrativa da inicial, caso a incapacidade da autora fosse notória ou do conhecimento dos réus. Por razões de saúde, a recorrente estaria acidentalmente incapacitada, incapaz de formar e manifestar livre e esclarecidamente a vontade negocial.
Sucede que também não se dispõe de suporte factual a demonstrar que, no acto da escritura de doação, a autora padecia de qualquer perturbação, psicológica ou mental, determinante de incapacidade (acidental) para entender o sentido da declaração, não compreendendo o que se lhe dizia ou o alcance do que dizia, ou que não tinha capacidade de livremente formar e manifestar a sua vontade por debilidade da saúde, nada que justifique a anulação da declaração (artº 257º), pelo improcede a questão.
IX. Vejamos se a recorrente tem fundamento para resolver a doação por incumprimento dos réus, donatários, do encargo que para eles resulta (ou se diz resultar) da escritura de doação.
Consta da escritura (referida em 4 da matéria de facto) a AUTORA declarou “que pela presente escritura doa” aos RR “o quinhão hereditário a que tem direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus marido G..... (….)” e pelos RR foi declarado que “aceitam a doação nos termos exarados, comprometendo-se eles outorgantes a tratarem a doadora, primeira outorgante, sã quando sã e doente quando doente”.
Se bem que nas conclusões do recurso não se inscreve expressamente a questão, na alegação fala a recorrente no carácter remuneratório da doação.
A doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente (art.940º/1). E assume a natureza de remuneratória quando a liberalidade é feita em atenção aos serviços recebidos pelo doador, que não tenham a natureza de dívida exigível (art. 941º). O que caracteriza a doação remuneratória, é o facto dos serviços que se quer remunerar não serem dívidas exigíveis. Remuneram-se serviços prestados, que o doador recebeu, que não têm natureza de dívida exigível. Os factos provados e o teor da escritura não revelam que a doação revista a natureza de remuneratória, que com a doação pretendesse a doadora, grata por serviços que haja recebido, remunerar os RR. O texto do documento não expressa intenção da autora remunerar quaisquer serviços que os RR lhe hajam prestado (a si ou ao seu falecido marido) nem os demais factos provados indiciam essa intenção da doadora, essa manifestação de gratidão para com qualquer tratamento que aqueles lhe tenham dispensado. Não existe fundamento para se considerar que a autora visou remunerar serviços prestados, devendo anotar-se que, caso contrário, a doação nem seria resolúvel (sem fundamento inscrito no contrato) nem revogável, nos termos do arts. 941º e 975º/b), questão que foi, e a nosso ver bem, tratada na decisão recorrida.
A doação, cujo efeito principal é a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito doados, pode ser onerada com encargos (art. 963º/1). Trata-se de doação modal ou com cláusula modal, que se traduz na imposição, ao beneficiário de uma liberalidade, do dever de adoptar uma certa conduta; é imposto ao beneficiário de uma liberalidade um encargo, como restrição à liberalidade, limitação que, no entanto, não assume a natureza de uma contraprestação do donatário, ou como correspectivo da liberalidade (v. Ac. STJ, de 2/295, em ITIJ/net, proc. 086047). Na doação modal, ao contrário da doação pura, o donatário fica adstrito ao cumprimento de uma ou mais prestações (tenham ou não conteúdo patrimonial) que, porém, não correspondem a prestação correspectiva da atribuição do doador. Por isso que a responsabilidade do donatário pelo cumprimento do encargo tem como limites o valor da coisa ou do direito doados (art. 963º/2).
Na doação, com cláusula modal, o donatário fica vinculado ao cumprimento de uma ou mais obrigações, cujo incumprimento pode facultar ao doador o direito de resolver a doação (art. 966º). Aquele fica obrigado a um determinado comportamento, seja no interesse do doador, de terceiro ou do próprio beneficiário (v. Manuel de Andrade, Teoria da Relação Jurídica, II, 393, e Mota Pinto, Teoria Geral da Relação Jurídica, 2ª Ed., 577, L. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, III, 2ª, 200), conduta imposta pela cláusula modal, sem assumir a função de contrapartida da atribuição patrimonial feita pelo doador.
Em caso de incumprimento do encargo pelo donatário, pode o autor da liberalidade resolver a doação, se tiver fundamento no contrato. A resolução é a destruição da relação contratual, que se constituiu validamente, por um dos contraentes, com base em facto posterior à celebração do contrato, e com a intenção de fazer regressar as partes à situação em que se encontrariam se não tivessem realizado o contrato (v. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 4ª ed., 265). O direito (potestativo) de resolução é, normalmente, de exercício condicionado á existência de um fundamento na lei ou no contrato (artº 432º), que permita a um dos contraentes libertar-se unilateralmente do vínculo contratual.
É entendimento comum que a resolução da doação, nos termos do art. 966º, só tem lugar quando as partes no contrato de doação previram essa forma da cessação do contrato. É o que resulta da norma quando prescreve que o doador pode pedir a resolução da doação, fundada no incumprimento de encargos “quando esse direito lhe seja conferido pelo contrato”. Esse direito só pode ser exercido pelo doador (ou seus herdeiros) e somente “é reconhecido, quer o modo não tenha, quer tenha valor patrimonial, quando seja atribuído pelo contrato” (v. P. Lima/A. Varela, CC Anotado, II, 2ª Ed., 262, Mota Pinto, ob. cit., 581, L. Menezes Leitão, ob. cit., 202). A resolução, que deverá ser realizada judicialmente, depende, como escreve este autor, ‘da sua instituição por cláusula contratual’. Daí que, não bastará que o doador alegue e prove o incumprimento do encargo imposto e que a cláusula modal foi a causa impulsiva da doação, para obter a resolução da doação; ‘é necessário que o direito de resolução lhe seja conferido pelo contrato e, portanto, corresponda a uma vontade real susceptível de desentranhar a sua eficácia em sede interpretativa’ (Mota Pinto, ob. e loc. cit.)”. A doação é um contrato e tratando-se de doação modal, a aceitação pelo donatário terá de abranger a liberalidade bem como o encargo, daí que a aceitação reporta-se à proposta do doador, nos seus exactos termos (não se dirige apenas a uma parte da proposta). Pelo que o direito de pedir a resolução haverá de estar previsto na convenção (v. Ac. STJ, de 9/2/99, no BMJ 484/402).
A doação é um negócio formal. Foi realizada por escritura pública (o quinhão hereditário doado integra bens imóveis). Na interpretação desse negócio não pode olvidar-se o preceituado no artº 238º/1, quanto à interpretação dos negócios jurídicos formais.
Em sede de interpretação do negócio jurídico, a declaração negocial vale de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (teoria da impressão do destinatário) – artigo 236º, 1. Mas se o declaratário conhece a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida (artº 236º, 2). Nesta situação prevalece o sentido subjectivo, tal como foi querido pelo autor da declaração, afastadas que ficam as razões da relevância do sentido objectivo, como sejam a legítima confiança do declaratário e os interesses gerais do comércio jurídico.
Não sendo conhecida a vontade real, segundo a teoria da impressão do destinatário, a declaração vale com o sentido que um declaratário normal ou razoável (medianamente instruído, diligente, sagaz, inteligente), colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, a não ser que este com ela não possa razoavelmente contar (art. 236º, nº 1). Releva o sentido que seria apreendido por um declaratário razoável (seja, pessoa esclarecida, sagaz, zelosa e diligente), em face dos termos da declaração e nas circunstâncias do concreto declaratário. Assim, não será se o declarante razoavelmente, não pudesse contar com esse sentido, pois que torna-se necessário que o declarante, actuando com o ónus de adequada declaração, devesse contar com a possibilidade de ao seu comportamento declarativo ser atribuído aquele sentido objecto” (Carvalho Fernandes, Teoria G. do Direito Civil, II, 3ª Ed., 415). “Na interpretação dos negócios jurídicos prevalece aquele sentido objectivo que se obtenha do ponto de vista do declaratário concreto, mas supondo-se uma pessoa razoável” (Manuel de Andrade, Teoria G. da Relação Jurídica, II, 312).
Nos negócios formais, a teoria da impressão do destinatário (art. 236º) sofre alguma adaptação objectiva, no sentido de que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, a não ser que seja essa a real vontade das partes e não se lhe oponham as razões determinantes da forma (art. 238º/1 e 2). O sentido hipotético da declaração que deve prevalecer no quadro objectivo da respectiva interpretação não pode prescindir de um mínimo de correspondência no texto do documento, como decorrência do carácter solene do negócio. Vale o sentido objectivo da declaração revelada no texto do documento. A teoria da impressão do destinatário, de certo modo, cede à teoria da manifestação; o que releva essencialmente é o sentido colhido no texto do documento.
Analisando o texto que corporiza a declaração negocial da recorrente, nele não se detecta o menor indício que esta se tenha reservado o direito de pedir a resolução em caso de incumprimento da cláusula modal.
Consta da escritura (referida em 4 da matéria de facto) a AUTORA declarou “que pela presente escritura doa” aos RR “o quinhão hereditário a que tem direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seus marido G..... (….)” e pelos RR foi declarado que “aceitam a doação nos termos exarados, comprometendo-se eles outorgantes a tratarem a doadora, primeira outorgante, sã quando sã e doente quando doente”.
Deste texto não há o menor indício (formal) da previsão da resolução e reserva de tal direito pela autora. Aliás, em rigor, dele nem decorre que a liberalidade haja sido feita (proposta) com a imposição do encargo. A autora declarou doar aos réus “o quinhão hereditário a que tem direito na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu marido G......, falecido no dia 16 de Março de 1998”. Da escritura, nada mais é por si declarado, nem sequer que impõe reserva alguma ou um encargo aos donatários. É a doação nesses termos (“exarados”) que os RR aceitam.
Declaram os RR que “aceitam a doação nos termos exarados”. Mais declaram que se comprometem “a tratarem a doadora, primeira outorgante, sã quando sã e doente quando doente”.
No texto do documento não se surpreende a previsão e reserva da possibilidade de resolução da doação em caso de incumprimento da obrigação a que os RR se vincularam. E deveria constar alguma referência à possibilidade de resolução no texto do documento para que a autora pudesse vir pedir, com êxito, a resolução da doação (o que não contende com o direito que tem de exigir o cumprimento das obrigações assumidas). Sendo o contrato de doação um contrato formal, as cláusula modais, por cujo incumprimento se pede a resolução da doação, devem constar expressas como dele deve constar que o seu inadimplemento é fundamento da resolução por parte do doador (e/ou dos seus herdeiros).
Ainda que assim não fosse, não se detecta na matéria de facto provada (e alegada) que a obrigação assumida pelos RR foi determinante da doação ou que esta não aconteceria se a autora soubesse que o inadimplemento teria lugar.
É certo que se verifica da matéria de facto algum incumprimento do encargo assumido pelos RR na escritura de doação, pois que, se não se extrai da cláusula respectiva que os RR se obrigassem a uma assistência permanente, a uma companhia contínua da autora, exigia-se-lhes que não a deixassem “sozinha todos os dias e a todas as horas” na medida em que devido ao seu estado de saúde necessita da ajuda constante de 3ª pessoa para satisfação das suas necessidades fisiológicas (als. 11 e 12 da matéria de facto).
Sucede que no contrato documentado pela escritura pública não se confere à autora o direito de resolver a doação por incumprimento da obrigação assumida pelos RR donatários. Não lhe assiste o direito de resolver a doação.
X. Da revogação da doação. “As doações são revogáveis por ingratidão do donatário” (artº 970º, retroagindo à data da proposição da acção os efeitos da revogação, nas relações entre as partes (artº 978º/1). O sentido da “ingratidão”, previsto naquela norma é bem mais restrito que o significado corrente e comum dessa expressão (como qualidade do que é ingrato, que não reconhece o favor recebido), e está limitada às situações previstas no artº 974º.
Estipula esta norma “a doação pode ser revogada por ingratidão, quando o donatário se torne incapaz, por indignidade, de suceder ao doador, ou quando se verifique alguma das ocorrências que justificam a deserdação”.
As causas da revogação são apenas as previstas nesse dispositivo (cfr. L. Menezes Leitão, ob. cit., 228). Com excepção desses casos, mesmo que o doador se arrependa, por qualquer motivo, da liberalidade que fez, aceite esta pelo donatário, fica-lhe obstruída possibilidade de marcha atrás.
Os casos em que ao doador é permitida a revogação da doação são, assim, os previstos nos arts. 2034º e 2166º. A revogação é admitida quando se verificar, em relação ao donatário, alguma das situações que, se verificada em relação a um herdeiro, fosse causa de incapacidade para suceder, por indignidade, ou justificativa de deserdação (de herdeiro legitimário). A revogação da doação por ingratidão, que não opera ope legis, demanda que o donatário se torne incapaz, por indignidade, para suceder ao doador ou que se encontre nalguma das situações justificativas de deserdação.
O incumprimento das cláusulas modais, que contêm limitações à prestação (liberalidade) do predisponente, não motiva a revogação da doação por ingratidão, mas apenas a sua resolução se este direito for conferido no contrato.
A revogação, tal como a resolução, consiste na destruição da relação contratual estabelecida. Mas enquanto na resolução, essa destruição opera por acto unilateral de algum dos contraentes e por facto posterior á celebração do contrato, estando condicionada à existência de fundamento na lei ou no negócio celebrado, e tem, em princípio, efeito ex tunc (arts. 432º e 434º/1), a revogação é feita pelos próprios contraentes assente em acordo posterior à celebração do contrato (o distrate), e, por regra, produz efeitos apenas para o futuro (ex nunc). Os contratos só podem modificar-se ou extinguir-se nos casos previstos na lei ou por mútuo acordo das partes (artº 406º/1). Excepcionalmente a lei concede a uma das partes o direito de extinguir o contrato, nomeadamente de o revogar, como sucede com a revogação da doação por ingratidão do donatário. Nestas situações, a lei concede a faculdade de revogação apenas a uma das partes, verificados certos fundamentos, que são, no caso da doação, os previstos nos arts. 974º, 2034º e 2166º.
Analisado o quadro factual apurado (als. 7 a 12), nenhuma possibilidade se verifica de o subsumir a alguma das situações previstas nas várias als. do artº 2034º. Não se revela nessa materialidade conduta dos RR que permita concluir por indignidade sucessória, acção ou omissão suas que impliquem incapacidade para suceder à doadora, nos termos dessa disposição.
A doação pode também ser revogada nos casos que justifiquem a deserdação (artº 2166º/1). São, de todo, inaplicáveis as situações das als. a) e b). É também causa justificativa da deserdação “ter o sucessível, sem justa causa, recusado ao autor da sucessão … os devidos alimentos” [(artº 2166º, nº 1, al. c)].
Por força do artº 2011º, são devidos alimentos pelo donatário (apenas) na medida em que os bens doados pudessem assegurar ao doador meios de subsistência e este careça deles, ficando a obrigação alimentar contida nos limites (do valor da coisa ou do direito doados) previstos no artº 963º/2, não podendo o donatário ficar sobrecarregado para além das forças da concreta doação.
Diz a recorrente que face à sua situação de desamparo, solidão, doenças crónicas e graves e avançada idade da autora é manifesta a ingratidão dos donatários que nessa situação a deixaram, não tratando da doadora, sem lograrem provar que deixaram de cumprir as suas obrigações com justa causa. O que a autora reclama é assim amparo e carinho, companhia, conforto, atenção e assistência.
Verificamos atrás que o incumprimento dos encargos modais não relevam para, por si, permitir ao doador revogar a doação. À revogação por ingratidão deve presidir alguma das ocorrências previstas nos arts. 2034º e 2166º do CC. E de entre elas, apenas se poderia suscitar, na espécie em decisão, a ocorrência da recusa à doadora dos “devidos alimentos”, quando o herdeiro não cumpre a obrigação concreta e já definida de prestar-lhe alimentos.
Decorre do disposto no art. 2003º/1 que por alimentos entende-se tudo quanto é indispensável ao sustento, habitação e vestuário e devem ser proporcionados aos meios de quem deve prestá-los (se por causa ou com fundamento na doação, deve ater-se às forças ou possibilidades da coisa ou direito doados, não as podendo exceder) e atender-se às necessidades daquele que há-de recebê-los.
Revertendo aos factos provados, não se vislumbra que a recorrente tenha exigido alimentos aos RR, que estes, por força da doação, tenham possibilidade de prestá-los e mesmo (atendendo que os alimentos devem ser satisfeitos mediante o pagamento de uma prestação pecuniária – art. 2005º) que a autora deles tinha necessidade. As carências da autora, no que os factos revelam, são de outra ordem, mais atenção, companhia, assistência, e não dos meios materiais destinados ao seu sustento (nomeadamente, no que concerne à alimentação e saúde). E, nos seus articulados (mesmo superveniente), a recorrente não exprime a necessidade de alimentos ou pedido de alimentos.
O artº 2166º, 1, c), fala em “os devidos alimentos” e os “alimentos são devidos desde a propositura da acção ou, estando já fixados pelo tribunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se constituiu em mora…” (artº 2006º).
Seguro é que não se revela no processo que alguma prestação de alimentos fosse pedida pela autora, fosse acordada com os RR ou que fosse fixada pelo tribunal e por “os devidos alimentos” deve considerar-se os fixados (seja por acordo seja por determinação judicial), e não a obrigação potencial que pode recair sobre diversas pessoas nos termos do artº 2009º (v. Acs. da RC, 29/10/1991, na CJ, 4, 124, de 1/6/93, no BMJ 423/596, 31/3/1998, na CJ, 2, 38, da RP, de 10/3/1988, na CJ, 2, 194). Nem sequer alega a autora necessidade duma prestação alimentar, para satisfazer as suas necessidades básicas de sustento. Ainda que se permita censurar os RR pelo desamparo e solidão a que terão votado a autora, a afirmar a falta de agradecimento ou reconhecimento ou ingratidão, em sentido comum, perante a liberalidade atribuída pela autora, não induz a sua conduta fundamento à revogação da doação por ingratidão nos termos do art. 974. Improcede a suscitada questão.
XI. Da questão da nulidade (parcial) da doação.
Pela escritura pública de 18/02/99, a autora doou aos RR o seu “quinhão hereditário a que tem direito na herança aberta” por óbito do seu marido G..... .
Este, que faleceu a 16/03/98, deixou testamento, de 2/04/1990, em que deixa à autora/recorrente (sua mulher) “a quota disponível de todos os bens que vierem a constituir a sua herança e para preenchimento da mesma quota desde já lhe lega o direito de habitação vitalício da casa onde agora habita, sita no lugar do Campo do Chão, nos limites do referido lugar de ...., inscrita na matriz sob o artigo 304º”.
Quer a recorrente que se declare nula a doação na parte que respeita à casa de habitação (o prédio inscrito no artigo matricial 304º) cujo direito de habitação vitalício foi legado à autora (para preenchimento da quota disponível deixada).
À autora foi legado o direito de habitação vitalício, que consiste na faculdade de se servir da casa de morada alheia na medida da necessidade do morador usuário e da sua família. Porque se trata de um direito adstrito à pessoa do seu titular, visando a satisfação de necessidades suas, “absorve apenas algumas das faculdades do gozo (as ligadas à utilização imediata da coisa …) compreendidas na propriedade plena” (P. Lima/A. Varela, ob. cit., III, 2ª ed., 546); o gozo que esse direito concede limita-se às necessidades do morador usuário e da sua família. A ligação estreita do direito à pessoa do seu titular e à satisfação das suas necessidades pessoais, que envolve a utilização directa da coisa pelo titular direito para satisfazer essas necessidades, e na medida das necessidades, determina que o direito seja de todo intransmissível, conforme o artº 1488º que dispõe que “morador usuário não pode trespassar ou locar o seu direito, nem onerá-lo por qualquer modo”. Sendo inerente a esse direito a utilização directa ou imediata da coisa pelo titular do direito (quer pela sua família), tomando o aspecto de um “usufruto limitado” na medida das necessidades pessoais do morador usuário, justifica-se a proibição da sua alienação, sendo nulo negócio que contrarie essa norma imperativa (cfr. artº 294º).
Não concorre fundamento para a nulidade pedida pela recorrente da doação no que respeita à casa de habitação. Por um lado, não foi doada aos recorridos qualquer casa de habitação (que a recorrente habite ou não) nem qualquer outro bem ou direito determinado ou concretizado. Doada foi uma alíquota, uma quota ideal (não preenchida em bens especificados) num património autónomo indiviso (mesmo que se conheçam os bens e direitos que o integram). Por outro, nem a recorrente tinha legitimidade para doar a casa da habitação, uma vez que a herança do seu falecido marido se encontra indivisa, desconhecendo-se a identidade dos herdeiros (e se outros existem), podendo o referido imóvel caber em partilha a outrem que nem a autora, sem que essa circunstância afectasse o direito de habitação, em que, mesmo por força da lei (artº 2103º-A), a autora tinha preferência.
O falecido G..... deixou à autora a quota disponível dos seus bens, e para preenchimento dessa quota (podendo ou não esgotá-la) legou-lhe o direito de habitação vitalício da casa que habita. Concretizou (ao menos, parcialmente) ou fez a determinação da “deixa” á autora, sendo indiferente que a quota disponível não ficasse completa com esse direito.
O que a autora doa aos RR é o seu quinhão hereditário na herança aberta por óbito do G..... (uma parte alíquota em tal herança), que poderia ser (pois desconhece-se se existem outros herdeiros) preenchida apenas por tal direito. A doação não incide directamente ou não tem como objecto mediato o direito de habitação como não incide sobre a casa de habitação, antes sobre uma quota ideal numa herança da qual, embora, se identificam os bens concretos que a integram.
Os termos da deixa testamentária e, posteriormente, da doação podiam permitir, no contexto dos factos provados, incluir no âmbito da doação o conjunto dos direitos que integram o quinhão que pertence à recorrente e, entre eles, o direito de habitação sobre a casa (que não esta) identificada na al. 3.b) da matéria de facto, legado à autora para preencher a quota disponível deixada pelo falecido marido, que se engloba no quinhão hereditário da recorrente na herança do “de cuius”.
Do que decorreria a nulidade da doação, enquanto abrangesse esse direito intransmissível (arts. 1488º e 294º do CC), o que não implica a nulidade de todo o negócio, como bem se observa na douta sentença recorrida, mas apenas a sua redução, com exclusão, se incluído na doação, desse direito, nos termos do artigo 292ºdo CC, pois absolutamente nenhum elemento/facto se tem a considerar que, a considerarem ou saberem ser nula a doação, enquanto incluísse o direito de habitação, as partes não tivessem celebrado o contrato. Pelo contrário, é de concluir que, a perspectivarem a nulidade (suposto incluído na doação esse direito), teriam celebrado o contrato (doação) sem a parte viciada.
Não se tem, porém, como seguro que essa fosse a vontade das partes, ou seja, que a autora cedesse o seu direito de habitar a casa, onde, de resto, continuou a viver por direito que lhe assiste, ou que os RR quisessem essa cedência, pelo que não se considera tal direito incluído na doação e, consequentemente não se considera nula a doação.
Acresce que o que a recorrente quer é, na improcedência dos demais pedidos, a nulidade da doação no que respeita á casa de habitação (imóvel identificado na al. 3.b) da matéria de facto), ficando a doação, na sua perspectiva, reduzida ao imóvel (campo) identificado na al. 3.a) dessa factualidade. Mas a doação não abrange nem a casa nem o campo do chão. Do que decorre não haver de declarar-se a nulidade da doação com esse âmbito. Pelo que o recurso improcede.
XII. Pelo exposto, acorda-se nesta Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Porto, 23 de Fevereiro de 2006
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira