CRÉDITO SOB CONDIÇÃO
Sumário

– Um credor sob condição suspensiva que ainda não se verificou não pode reclamar um crédito na fase da reclamação de créditos de uma execução alheia, tal como não poderia requerer a execução do seu crédito (artigos 778/1-2, 713 e 715/1-2, todos do CPC).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:


           
Por apenso à execução que R-Lda, move a T-SA, veio, entre outros, o B-SA, reclamar a verificação e graduação de créditos, no montante global de 200.000€, alegando, em síntese que a T-SA é devedora ao B-SA pelo montante e operação bancária seguinte:

Em 04/02/2008, o B-SA prestou garantia bancária a favor de WC-AG, no montante de 200.000€; o crédito reclamado beneficia de garantia real prestada através de contrato de penhor sobre o depósito a prazo, no montante de 200.000€, penhorado nos autos; considerando que a garantia bancária prestada pelo B-SA se mantém activa, a garantia real do crédito a ela subjacente também se mantém sobre a totalidade do montante 200,000€, até à satisfação integral do seu crédito.

A executada e a exequente não deduziram oposição.

Por sentença de 28/05/2021, esta reclamação foi julgada improcedente, com os seguintes fundamentos:

A reclamação de créditos tem como pressuposto básico que o reclamante tenha um crédito sobre o reclamado que goze de garantia real sobre os bens penhorados: art. 788/ 1 do CPC.

Ora, ainda que o B-SA goze de garantia real sobre o bem penhorado, na petição de reclamação de créditos o B-SA não invoca qualquer crédito sobre a T-SA, limitando-se a alegar que prestou a referida garantia bancária, sendo certo que o penhor, garantia real invocada, garante as importâncias necessárias para pagamento das responsabilidades asseguradas pela garantia bancária, donde, a invocação do penhor pressupõe que o B-SA, honrando a garantia bancária prestada, teve que pagar à garantida WC-AG, um determinado montante, até ao máximo de 200.000€.

Seria sobre esse montante pago, por força da garantia bancária prestada, que o B-SA poderia invocar o penhor como garantia real do mesmo.

Ora, o B-SA nada pagou por força da invocada garantia bancária, limitando-se a alegar que a garantia bancária prestada se mantém activa, e a garantia real do crédito a ela subjacente também se mantém sobre a totalidade do montante 200,000€.

Mesmo que isso seja verdade, tal não significa que o B-SA tenha seja titular de qualquer crédito sobre a T-SA.

A garantia bancária poderá nem sequer vir a ser accionada pela beneficiária WC-AG.

Assim, ainda que o B-SA goze de garantia real sobre o bem penhorado, na petição de reclamação de créditos o B-SA não invoca qualquer crédito sobre a T-SA […]

A invocação do penhor pressupõe que o B-SA, ora reclamante, honrando a garantia bancária prestada, tenho pago à WC-AG, beneficiária da garantia bancária, um determinado montante, até ao máximo garantido, tendo ficado credora da executada/ordenadora da garantia bancária, T-SA, por esse montante […], e seria esse crédito […] que estaria garantido pelo penhor.

Ora, o B-SA não alega que, em execução da garantia bancária, tenha pago qualquer montante à beneficiária da garantia bancária e sendo, por isso, credora da executada.

Só por si, a prestação da garantia bancária não transforma o B-SA em credor da T-SA.

Com efeito, basta que a T-SA cumpra integralmente as obrigações assumidas perante WC, beneficiária da garantia bancária, e esta não poderá accionar a garantia bancária.

O B-SA recorre desta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

[…]

41)Apesar de sob condição, o crédito prestado sob forma de garantia bancária consubstancia numa obrigação crédito do B-SA à T-SA, porque a garantia bancária prestada é irrevogável e com pagamento on fisrt demand, a favor de WC-AG.

42)Que só não foi ainda accionada e o valor do crédito entregue ao beneficiário porque este ainda não o solicitou, mas que pode fazê-lo em qualquer momento […]

[…]

47)Considerando que o art. 788/7 do CPC dispõe que o credor é admitido à execução ainda que o respectivo crédito se não mostre vencido.

48)E o art. 791/3 do CPC determina que a consequência para o crédito não vencido está em a sentença final apenas determinar que, na conta para pagamento, se efectue o desconto correspondente ao benefício da antecipação.

49)Nesse sentido parecem apontar Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes (CPC Anotado, vol. III, Coimbra, 203, pág. 506), dizendo:

“Diferentemente da obrigação exequenda, a obrigação do credor reclamante pode ser inexigível, o que constitui derivação do regime da extinção, com a venda executiva, de todos os direitos reais de garantia que incidam sobre o seu objecto (…). Se o for, há lugar ao desconto, no final, dos juros correspondentes ao período de antecipação (art. 791-3)”.

50)Assim, numa interpretação correcta e útil do regime legal, o crédito com condição suspensiva deve equiparar-se ao crédito ainda não vencido, aplicando-se o previsto no art. 791/3 do CPC, fazendo-se o respetivo desconto pela antecipação.

51)Este entendimento, também foi acompanhado pelo legislador com a aprovação do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL 53/2004 de 18/03.

52)No âmbito do referido código, nomeadamente do art. 50, estão definidos os denominados créditos sob condição, resolutiva e suspensiva dentro dos quais se incluem, as garantias bancárias como créditos sujeitos à verificação ou não de um acontecimento futuro e incerto por força de um negócio jurídico, como é o caso.

53)Ora no âmbito deste código, estes créditos não só são reclamados e reconhecidos, nos termos aos artigos 128/1-b e seguintes, do CIRE,

54)Como são considerados créditos no pagamento aos credores nos termos dos artigos 172 e 181 do CIRE.

55)Assim parece-nos profundamente injusto que o mesmo tipo de crédito, sob condição, como o é a garantia bancária tenha uma definição jurídica e um tratamento diferente quando está a ser reclamado em processo executivo e quando está a ser reclamado em processo de insolvência.

56)Quando o crédito é concedido através de garantia bancária, cria no credor uma expectativa de cumprimento pontual por parte do devedor, podendo ser prestada no âmbito deste contrato de crédito uma garantia real e no devedor a segurança de que o beneficiário da mesma ira receber o montante nela constante logo que interpelado o banco emitente da mesma, para o efeito.

57)Não podendo o credor antecipar todos riscos inerentes ao seu crédito, nomeadamente os relacionados com a eventual reclamação do mesmo em processo executivo ou em processo de insolvência, por o referido crédito ter em cada um dos processos um valor jurídico diferente,

58)Enquanto na execução o seu crédito não é considerado enquanto não se verificar a condição, ou seja, enquanto a garantia bancária não for executada pelo beneficiário, “desaparecendo” o crédito e a garantia a ela associada se a garantia bancária não tiver sido executada.

59)Na insolvência, o seu crédito é reconhecido e graduado e pago aos credores nos termos dos artigos já indicados.

60)Para além do risco de segurança jurídica que o diferente tratamento impõe, o resultado acaba por ser profundamente injusto, se por exemplo imediatamente a seguir à decisão transitada em julgado da reclamação de créditos em processo de execução a garantia bancária for executada pelo beneficiário da mesma, o garante, no caso o B-SA, fica privado da sua garantia in casu o penhor do depósito a prazo mantendo-se contudo, a obrigação de pagamento ao beneficiário da garantia no cumprimento do contrato de garantia bancária.

61)Corremos ainda o risco da utilização abusiva de acções executivas com visa à libertação das garantias prestadas como contra garantias à emissão de garantias bancárias.

63)Pelo que deverá ser aplicado o regime disposto nos artigos 788 e 791 do CPC, no entendimento que deve ser reconhecida e existência do crédito sob condição do B-SA, nas condições reclamadas.

64)Se esse não for o entendimento e por razões de justiça e segurança jurídica, na aplicação e interpretação da lei, com os fundamento invocados, deve ser dada provimento ao recurso, nos termos do art. 644/2-d do CPC e aceite e reconhecidos os créditos sob condição, apresentados na reclamação de créditos pelo B-SA [sic].

Não foram apresentadas contra-alegações.

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Questão a decidir: se o crédito do B-SA devia ter sido reconhecido.

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Os factos que importam a esta decisão constam do relatório que antecede e podem ser sintetizados assim: o B-SA prestou uma garantia autónoma a terceiro, por ordem da executada, garantia que está contra-garantida por um penhor sobre a conta bancária penhorada nos autos; a garantia autónoma não foi accionada; o B-SA não pagou nada por conta da mesma.

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Apreciando:

A sentença recorrida tem razão, o que salta à vista.

A que propósito é que o B-SA poderia receber o pagamento por um crédito que não se sabe se algum dia virá a ter eficácia, ou seja, por um reembolso que não se sabe se alguma vez corresponderá a um desembolso?

Como diz a sentença recorrida e é uma evidência, o B-SA apenas terá direito ao pagamento do reembolso se e quando vier a pagar alguma coisa à beneficiária da garantia. Como está dependente de uma condição, que pode não se vir a verificar, o B-SA não pode receber, antes disso, o reembolso, sob pena de ficar com o valor correspondente sem causa para isso, ou, dito de outro modo, de ficar enriquecido injustamente (é reembolsado de algo que não desembolsou).

E se, depois, o B-SA entendesse que não podia ficar com o pagamento para o caso de não ocorrer a condição suspensiva (isto é, para o caso de o beneficiário da garantia nunca accionar a garantia bancária), devolvê-lo-ia quando? Cinco, dez ou vinte anos depois, quando tivesse a certeza que a garantia nunca seria accionada?   
       
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A invocação da passagem da obra de Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes baseia-se numa construção artificiosa do B-SA: um crédito ainda não vencido não é um crédito sob condição suspensiva, nem é equiparável a ele, pois que um crédito ainda não vencido já é eficaz, enquanto um crédito sob condição suspensiva não o é (art. 270/1 do CC). Para além disso, aquela passagem tem por pressuposto que o crédito entretanto se vença. Daí que se fale no desconto pelo período de antecipação (art. 791/3 do CPC). Ora, num crédito sob condição suspensiva, ainda não verificada, não se pode pôr, sequer, a questão do vencimento antecipado.

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Posto isto:
O crédito do B-SA tem sido visto como um crédito sob condição suspensiva: o direito ao reembolso que ele tem sobre a T-SA/ordenante só se concretizará se e quando o B-SA/garante pagar ao WC/beneficiário o que for pedido por este quando eventualmente tiver satisfeito perante outrem alguma obrigação da T-SA (sobre o direito ao reembolso do garante autónomo veja-se, por exemplo, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, 2011, páginas 119 a 137, especialmente páginas 122, §3, e 129/III; e Menezes Leitão, Garantias das obrigações, 2016, 5.ª edição, Almedina, páginas 135-147, especialmente páginas 143 e 146-147).

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O art. 788/1 do CPC dispõe: Só o credor que goze de garantia real sobre os bens penhorados pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos. E a primeira parte do n.º 2 do artigo acrescenta: A reclamação tem por base um título exequível […].

Portanto, desconsiderando a questão do vencimento do crédito, o credor reclamante que aqui está em causa é um credor que, em princípio, teria de estar em condições de poder lançar mão de uma execução com base num título exequível, o que, por sua vez, pressupõe também uma obrigação exequenda, isto é, uma obrigação que seja certa, exigível (de novo sem prejuízo da questão do vencimento) e líquida (art. 713 do CPC).

O artigo 715/1 do CPC, sob a epígrafe, entre o mais, de ‘obrigação condicional’, dispõe: Quando a obrigação esteja dependente de condição suspensiva […], incumbe ao credor alegar e provar documentalmente, no próprio requerimento executivo, que se verificou a condição […]. E acrescenta o n.º 2: Quando a prova não possa ser feita por documentos, o credor, ao requerer a execução, oferece de imediato as respectivas provas.

Portanto, uma obrigação que esteja dependente de uma condição suspensiva que ainda não se verificou não é uma obrigação exequível e por isso não pode ser objecto de uma reclamação de créditos.

Se um credor admite, na peça processual onde reclama o seu crédito sob condição suspensiva, que a condição não se verificou, a sua pretensão está condenada à partida à improcedência.

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Sobre a obrigação condicional, quer na reclamação de créditos, quer na execução: Lebre de Freitas, A acção executiva, 7.ª edição, Gestlegal, 2017, páginas 39-44, 100-102, 111-112, 356-357 e 363. Na reclamação de créditos e ainda antes da reforma de 2013 do CPC, em que a condição suspensiva era enquadrada na incerteza da obrigação: Salvador da Costa, O concurso de credores, Almedina, 1998, 245-246. Sobre uma situação idêntica à dos autos: o ac. do TRL de 14/02/2013, proc. 3251/10.6TBBRR-A.L1-6; na perspectiva da inexistência de título executivo, em casos de penhores bancários para contragarantia de garantias autónomas, este acórdão refere os acórdãos do TRP de 14/05/2012, proc. 3448/09.1YYPRT-A.P1; e de 15/02/2012, proc. 8817/09.4YYPRT-C.P1; e do TRL de 21/03/2012, proc. 287/10.0TTPDL-A.L1-4, e de 24/02/2011, proc. 5510/09.1TVLSB-D.L1-2; refere também o ac. do TRP de 09/02/2009, proc. 495/05.6TBSJM, mas este da perspectiva da inexequibilidade do crédito; todos estes acórdãos têm desenvolvimentos significativos.

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Se a execução comum (com a natureza de uma execução singular) dispõe, expressamente, que um crédito sob condição suspensiva que ainda não se verificou não pode ser reclamado/executado, tal não pode ser ultrapassado pelo facto de o processo de insolvência (com a natureza de uma execução colectiva) admitir essa reclamação. São processos distintos, regulados de forma diferente pelo legislador com atribuição constitucional para tal.

De qualquer modo diga-se que na insolvência existe um regime específico dos créditos condicionais que acautela a natureza condicional do direito correspondente. Este crédito nunca será pago sem a certeza de que a condição se verificará. Tal como resulta do art. 181 do CIRE (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris, 3.ª edição, págs. 666-669; Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, páginas 77, 100 e 294-295; Maria do Rosário Epifânio, Manual de direito da insolvência, 7.ª edição, Almedina, 2019, páginas 268-270 e 334-336; Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE anotado, Almedina, 2013, anotações aos artigos 50 e 181).

A inexistência de tal regime na execução (singular) torna claro que a execução pressupõe a impossibilidade de reclamação de um crédito sob condição suspensiva sem verificação da condição.

E o regime não tem nada de injusto, pois que obsta, pelo contrário, ao enriquecimento injustificado do garante.

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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.

O B-SA perde as suas custas de parte (não há outras), por ter perdido o recurso.



Lisboa, 18/11/2021



Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas