IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS
ABUSO DE DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário


I - Atua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, a autora que vem invocar e pedir a nulidade de declaração que materializa compromissos assumidos com o 2.º réu e por aquela anteriormente consentidos - sendo que todas as negociações prévias ocorreram com o seu conhecimento e consentimento, inclusivamente representada por advogado -, mediante exclusiva invocação da preterição de forma mais solene para tal declaração, quando deixou que decorressem cerca de dois anos e três meses sobre a mesma e durante tal período de tempo o 2.º réu, de boa-fé, cumpriu as obrigações que assumira na dita “declaração” com notório empenho e justificado investimento na confiança adquirida com a subscrição de tal acordo, diligenciando por diversas formas e maneiras para que o objetivo pretendido (a edificabilidade do prédio) fosse alcançado - apesar de não lhe serem imputáveis as condicionantes que levaram à necessidade de tal acordo mas antes a conduta censuravelmente imputável à conduta adotada pela autora, juntamente com o 1.º réu marido -, e resulta objetivamente evidenciado nos autos que a autora apenas recorreu à presente ação judicial quando se apercebeu que o 2.º réu esgotara todas as diligências viáveis para o efeito, conforme informação prestada por este.
II - Em face das circunstâncias concretas do exercício do direito da autora a invocar a invalidade formal do negócio celebrado mostra-se admissível a paralisação dos efeitos de tal invalidade por configurar um evidente abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por violação dos princípios da boa-fé e do investimento na confiança que o 2.º réu nela depositou, sendo certo que a manutenção do negócio atingido pela invalidade formal não importa, no caso, qualquer prejuízo para eventuais terceiros de boa-fé protegidos pela publicidade que implica a exigência de documento autêntico ou documento particular autenticado, em nada colidindo com os valores inerentes a tal exigência formal, e o investimento de confiança adotado pelo 2.º réu, além de considerável, dificilmente poderia ser assegurado por outra via que não a presente invocação do abuso do direito.

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

M. C. instaurou ação declarativa comum contra F. D. e J. G., pedindo que seja declarado, frente a ambos os réus, nulo ou, pelo menos, e quando assim se não entenda, anulado e ineficaz em relação à autora, o acordo celebrado entre aqueles em 06-01-2015, e junto aos autos como documento n.º 3 da petição inicial e, em consequência, ser o 2.º réu condenado a restituir-lhe, ou a esta e ao 1.º réu, a quantia de 20.000,00 € que recebeu ao abrigo de tal acordo, acrescido dos juros legais de mora contados desde a data de citação até integral pagamento.
Alegou, para o efeito, e em síntese, que é casada com o 1.º réu no regime da comunhão geral de bens e que, por escritura de compra e venda celebrada em 29-12-2014, um e outro venderam ao 2.º réu o prédio rústico melhor identificado no artigo 2.º da petição inicial pelo preço de 43.000,00 € pago no ato da respetiva escritura. Posteriormente, no dia 6-01-2015, os réus, bem como um representante da imobiliária contratada para mediar o negócio supra referido, assinaram uma declaração, da qual constam como primeiros outorgantes os nomes da ora autora e do 1.º réu, mais resultando da mesma, na parte que agora releva, que «os primeiros outorgantes restituem nesta data ao segundo o valor de vinte mil euros», que «o segundo propõe-se alargar o conteúdo da servidão constituída, por forma a proceder a intervenção na faixa de terreno onerada com a servidão tornando-a apta ao trânsito permanente de pessoas e veículos automóveis»; «para a hipótese de, por via judicial ou extrajudicial se lograr obter o alargamento da servidão de passagem, nos moldes supra mencionados, mantém-se o contrato outorgado, devendo nesse caso, o segundo outorgante devolver aos primeiros aquela quantia do valor de vinte mil euros»; «na hipótese de não se conseguir lograr aquele objetivo, então declaram obrigar-se a revogar aquela mencionada escritura pública, com todas as consequências legais, designadamente a restituição do imóvel transmitido e a entrega do remanescente do preço na importância de 23.000,00 €»; «mais acordam, na eventualidade de procedência judicial do pedido e/ou acordo extrajudicial relativo ao alargamento da servidão, nos moldes descritos, que todas as despesas e encargos relativos às diligências judiciais ou extrajudiciais a realizar para efeitos de lograr o alargamento da servidão serão suportadas em partes iguais por ambas as partes, vendedores e comprador»; «na eventualidade de improcedência do pedido e impossibilidade legal de alargamento da servidão, nos moldes descritos, todas as despesas e encargos, serão exclusivamente suportadas pelos primeiros outorgantes». Mais alega a autora que, em simultâneo com a assinatura desta declaração, o 1.º réu entregou ao 2.º a quantia de 20.000,00 € que este recebeu. Porém, a autora alega que só teve conhecimento desta declaração no mês de janeiro de 2017 pois só então o seu marido, ora 1.º réu, lhe comunicou o que se passava e a levou com ele à solicitadora anteriormente contactada por este para lhe explicar o que se passava e o que teria de ser feito. Alega que a declaração datada de 06-01-2015 representa, em substância, uma alteração a condições essenciais do negócio plasmado na escritura de compra e venda anteriormente celebrado, constituindo uma redução do preço da venda acompanhada pela devolução da diferença e no aditamento de condições contratuais novas, sendo nulo por vício de forma, nos termos do disposto nos artigos 364.º, n.º 1, e 875.ºdo Código Civil (CC) nulo também por consubstanciar uma alienação de bem alheio, pertencente ao casal, e não de um bem próprio do 1.º réu; e nulo ainda porque mesmo que tal alteração seja entendida como um ato de administração ordinária, só a autora teria legitimidade para praticá-lo por se tratar de um bem por ela adquirido a título gratuito, nos termos do disposto no artigo 1678.º, n.º 2, alínea c), do CC.
Regularmente citados, apenas o 2.º réu contestou. Alegou que depois de celebrar o contrato de compra e venda supra referido constatou que, ao contrário do que lhe tinha sido garantido, tanto pela imobiliária bem como pela autora e pelo 1.º réu, o prédio rústico que adquirira não era apto para construção urbana, condicionalismos que foram explicados pelo 2.º réu comprador em data anterior ao acordo inicial que deu origem à escritura definitiva de compra e venda celebrada em 29-12-2014; mais alega que foi neste contexto que a declaração em crise nos autos foi subscrita pelo 1.º réu, sendo certo que apesar de a autora se encontrar ausente, todas as negociações ocorreram com o seu conhecimento e consentimento, pelo que, ao invocar a nulidade do acordo, age com abuso do direito. Mais alega que tentou obter junto da Câmara Municipal a necessária autorização de construção mas que a edilidade lhe comunicou que não autorizava a construção da pretendida habitação uma vez que o único acesso à via pública é feito através de caminho de servidão, considerando, por conseguinte, que o prédio não é acessível diretamente a partir da via pública. Mais alega que apesar de todos os contactos que encetou com a proprietária do prédio serviente para solucionar a questão, estes revelaram-se infrutíferos, tendo a mesma recusado qualquer proposta de acordo por parte do 2.º réu. Arguiu, ainda, a caducidade do direito de a autora vir pedir a anulação do negócio. Concluiu pedindo que o Tribunal declare a petição inepta, que julgue a ação improcedente e que condene a autora como litigante de má-fé em multa e indemnização.
A autora respondeu, pugnando pela improcedência das exceções de nulidade do processado por ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade dos réus, bem como da exceção perentória de caducidade.
Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual se julgaram improcedentes as exceções de nulidade do processado por ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade dos réus (relegando-se para a sentença a apreciação da exceção de caducidade), após o que foram proferidos os competentes despachos saneador, de identificação do objeto do litígio, de enunciação dos temas da prova e de admissão dos meios de prova, sendo que destes últimos as partes não reclamaram ao abrigo do disposto no artigo 596.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC).
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença a julgar a ação improcedente, absolvendo os réus dos pedidos formulados pela autora, e condenando esta última, como litigante de má-fé, no pagamento de uma multa de 10 (dez) UC, e no pagamento de uma indemnização ao réu J. G. no montante de 1.000,00 €.
Inconformada, a autora apresentou-se a recorrer, pugnando no sentido da revogação da sentença.

Termina as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«I
A matéria de facto dada como provada sob o nº 11 não corresponde à realidade, como resulta, além do mais, do documento nº4 junto com a petição inicial.

II
Tal matéria deve, por isso, ser eliminada e substituída por outra donde resulte que o Réu vendedor entregou ao Réu comprador, depositando-a na conta bancária deste, a quantia de 20.000,00€ no dia 05 de Janeiro de 2015 e que o acordo dos autos só foi redigido e assinado no dia seguinte.
III
Existe importante contradição contra o que a sentença refere ter sido o depoimento da testemunha M. G. acerca do telefonema para a Autora no dia 05/01/2015 e a transcrição desse mesmo depoimento na parte referida.
IV
Ao dar como provada a matéria constante dos nºs 11, 18, 20,25,27 (no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados, baseando-se exclusivamente nos depoimentos do Réu comprador e da sua companheira e, com este, promitente comprador do prédio, tendo, assim, também ela, um interesse idêntico ao de parte no resultado da ação, o Mmº Juiz a quo excede os limites da livre apreciação da prova, devendo, por isso, ser essa matéria considerada não provada.
V
Ainda que assim se não entenda, sempre a objetiva falibilidade da prova testemunhal e, ainda por cima, de uma só testemunha e interessada num desfecho da ação favorável a uma das partes, deverá fazer prevalecer os valores de segurança e certeza que o requisito legal da forma contratual visa proteger.
VI
Ao caso dos autos não é aplicável o abuso de direito, nomeadamente na modalidade do venire contra factum proprium, por não reunir nem os pressupostos gerais da sua aplicação tal como considerados no Ac. do S.T.J. de 12/11/2013, nem os pressupostos específicos em casos, como o dos autos, de neutralização da nulidade dum negócio jurídico por falta da forma legalmente exigida, como considera o Ac. do S.T.J. de 12/02/09,por não se tratar de um caso de “clamorosa”ofensa ao principio da boa fé. COM EFEITO,
VII
Nem a Autora emitiu uma declaração de anuência formada de modo suficientemente livre, informado, refletido e consciente para que devesse ou, sequer, pudesse considerar-se no futuro a ela irreversivelmente vinculada nem o 2º Réu reunia as condições para, de boa fé, poder considerar que a Autora não viria a impugnar o contrato, nomeadamente se ele, ao contrário daquilo a que se comprometera, não envidasse todos os esforços - ainda que alguns tivesse feito - para resolver o problema ou acertar definitivamente as contas com o 1º Réu.
VIII
O 2º Réu procurou foi perpetuar uma situação que lhe permitia ficar com o terreno e com os 20.000,00€ que conseguiu que o 1º Réu lhe entregasse daquela forma precipitada. Entrega esta que, obviamente, nunca teria ocorrido se ao venderem o prédio a A. e o 1º Réu estivessem a agir com intenção de enganar o comprador.
IX
E que nem o 2º Réu envidou todos os esforços nem o problema pode ser havido como insolucionável é a própria sentença que o admite quando refere “ (…) não podemos dar por certo que o 2º Réu esgotara todos os meios, “ judiciais e extrajudiciais”, para alcançar o objetivo pretendido e plasmado no acordo subscrito em 6 de Janeiro de 2015 (…)
X
Acresce, quanto à boa fé do Réu vendedor, que, segundo os factos provados, este acordo teve lugar em Janeiro/2015 e só em Agosto/2016 é que o 2º Réu anunciou aos vendedores que não conseguia resolver o problema e que queria desfazer o negócio.
XI
Todavia, o 2ºRéu recebeu e não deu qualquer resposta à corta de 29/12/2016 junta com a p.i. como documento nº 7, obrigando, por isso, à propositura da presente ação.
XII
Não é acertado o juízo de intenção acerca da Autora que afirma que “ (…) a A. deixou que decorressem cerca de dois anos e três meses durante os quais o R. J. G., de boa fé, foi cumprindo as obrigações que assumira na dita “declaração” (…) para o surpreender com a presente ação judicial”
XIII
O que os autos mais naturalmente permitem concluir é que o 2º Réu assumiu naquela acordo de 06/01/2015 a obrigação de tentar resolver o problema judicial ou extrajudicialmente e que só em Agosto de 2016 comunicou aos vendedores que “nunca conseguiria obter autorização de construção”, e que quatro meses depois, deixou sem resposta a carta que o 2º Réu lhe enviou a pedir esclarecimentos sobre o andamento do caso.
XIV
Os vendedores limitaram-se a esperar que o 2º Réu lhes desse novas das diligências que se obrigara a encetar e só quando o Réu vendedor os deixou sem qualquer resposta é que a A. se decidiu pela presente ação.
XV
Sobre o acordo de 06/01/2015, e seguindo a credibilizada versão do 2º Réu e da sua companheira e testemunha M. G., no dia 05/01/2015, estes dois e a sua advogada apresentaram-se em casa do 1º Réu e conseguiram levá-lo a entregar ao 2º Réu a quantia de 20.000,00€, mediante o compromisso de no dia seguinte vir a ser elaborado um documento escrito que estipularia as condições em que essa entrega era feita. E no dia seguinte, 06/01/2015, quando o 1º Réu já se encontrava desapossado desses 20.000,00€, conseguiu o 2º Réu que ele assinasse a referida “ Declaração”.
XVI
Nesta declaração - e estranhamente, como refere a sentença – é o 2º Réu quem, com o terreno em seu nome e os 20.000,00€ em sua posse, assume o encargo de tentar resolver “por meios judiciais ou extrajudiciais” os problemas que entretanto se suscitaram quanto à possibilidade de obtenção da licença camarária para construção.
XVII
Tais problemas, segundo os termos do acordo, consistem na necessidade de “garantir o acesso pleno à via publica” face a “ dúvidas levantadas pela proprietária do prédio serviente”
XVIII
Depois disso, segundo a versão dos mesmos, em Agosto de 2016 o 2º Réu comunica aos vendedores que “nunca conseguiria obter autorização para construção”, mas deixou sem resposta a carta que sobre o assunto lhe foi enviada pelo Réu vendedor em 29/12/2016 e procurou esquivar-se à citação para a presente ação.
XIX
Depois do tribunal, após várias tentativas frustradas, conseguir a sua citação através de 3ª pessoa, para a presente ação, o 2º Réu vem defender-se invocando já não o motivo consubstanciado naquele acordo (as dúvidas levantadas pela proprietária do prédio serviente), mas, antes, a interpretação que os serviços técnicos da Câmara Municipal fizeram das disposições do PDM quanto ao requisito de acesso próprio, ou pleno, à via pública, já que dúvidas não havia de que o terreno se encontra em área edificável para fins habitacionais.
XX
Todavia, quanto ao recurso a meios judiciais para superar os obstáculos colocados, como, p.ex., uma ação contra o Município sobre a correta interpretação e aplicação do P.D.M. ao caso em questão, nada o 2º Réu fez, apesar do acesso direto, próprio, exclusivo e permanente à via pública estar garantido pela servidão de passagem.
XXI
O mínimo que o 2º Réu podia e devia fazer - e que qualquer cidadão de boa fé faria - era, para além de responder àquela carta do 1º Réu, sugerir a este que fosse ele, 1º Réu, a tentar remover os obstáculos já que ele, 2º Réu, considerava que não conseguia
XXII
Dos factos vindos de considerar resulta, que nem nos preliminares nem na execução daquele acordo de 06/01/2015 agiu o 2º Réu de boa fé e que à Autora não restava outra saída para não ficar sem o terreno e sem os 20.000,00€ que não fosse intentar a presente ação.
XXIII
Desta forma, no que à Autora concerne, não existe má fé anterior e relativa ao acordo de 06/01/2015, pois que, assentimento que tivesse dado, tê-lo-ia feito antes de elaborado por escrito e apenas por via telefónica, a chorar junto à cabeceira de um filho acabado de sair duma intervenção cirúrgica a uma doença grave, ao mesmo tempo que era consolada pela companheira do Réu comprador que foi quem lhe explicou o que tencionavam vir a fazer
XXIV
Nem existiu má fé na propositura da presente ação em virtude de não lhe restar outra alternativa face ao comportamento do 2º Réu.
XXV
Quanto ao 2º Réu, não existiu boa fé nem nos preliminares nem na formação do acordo posto que num dia e em circunstâncias de inaceitável pressão logrou que o 1º Réu lhe entregasse os 20.000,00€ e no dia seguinte é que passou à redação do acordo, quando já tinha o dinheiro creditado na sua conta e o 1º Réu nada podia exigir.
XXVI
Outrossim, não existiu boa fé da parte do 2º Réu na execução do acordo, pois não utilizou todos os recursos a que se comprometera, não deu resposta às interpelações do 1º Réu, não lhe facultou a possibilidade deste tentar resolver o problema e manteve-se com o terreno e com os 20.000,00€ sem nada dizer aos vendedores. E assim permanecerá se esta sentença não for revogada.
XXVII
Por outro lado, se só em Agosto de 2016 é que o 2º Réu comunicou aos vendedores que não conseguiria resolver o problema e, depois disso, recebeu e não deu resposta à carta de 29/12/2016 que o 1º Réu lhe endereçou, não se pode dizer que a propositura da ação em Março de 2017 constitui fundamento bastante para que o 2º Réu criasse, legitimamente, expetativas de que a Autora não viria a recorrer a juízo invocando todos os argumentos legais adequados a repor a situação anterior à entrega dos 20.000,00€ e ulterior “declaração”
XXVIII
O Réu assistiu ao telefonema da sua companheira e da sua Advogada para a Autora e não pôde deixar de ter tido conhecimento de que ela se encontrava numa situação de aflição por causa do filho e que “não parava de chorar” quando terá dado a sua anuência e, por isso, sem tempo nem serenidade para refletir e formar uma vontade consciente e lúcida.
XXIX
O Réu sabia que a assinatura da Autora era necessária, pois que o nome dela até consta do acordo aqui em causa.
XXX
O Réu sabia que a Autora não acompanhou a redação do teor desse documento.
XXXI
O Réu sabia que se tinha obrigado a tentar resolver o problema extrajudicial ou judicialmente e que, pelo menos judicialmente, nada fez.
XXXII
Acresce que, no caso dos autos, a alegada violação da confiança legítima do 2º Réu por invocação pela A. da nulidade formal do acordo de 06/01/2015 colide com os valores tutelados pela obrigatoriedade de que esse acordo fosse subordinado a um documento autêntico ou autenticado, como a sentença reconhece.
XXXIII
Desta colisão resulta, como bem refere a douta sentença recorrida transcrevendo um excerto do Ac. S.T.J. de 14/03/2003, que só é aplicável, nestas circunstâncias, em casos concretos de “clamorosa ofensa do princípio de boa fé e do sentimento geral perfilhado pela comunidade,“ o que, manifestamente, não é o caso.
XXXIV
Acresce que o fundamento invocado pelo Réu comprador para a celebração daquele acordo de 06/01/2015 consiste na ocorrência de erro quanto às carateristicas do objeto do negócio e como tal, seria este anulável.
XXXV
O 2º Réu podia ter requerido a anulação do negócio quer dentro do prazo normal de um ano, quer posteriormente, inclusive por via de reconvenção na presente ação.
XXXVI
Dispôs e dispõe, assim, o 2º Réu de um meio diferente do abuso de direito para evitar e, ou, remover o prejuízo que alega. COM EFEITO,
XXXVII
A Autora não litigou com abuso de direito nem com má fé.
XXXVIII
A sentença recorrida, conquanto douta, viola, entre outros o artº 334º do Código Civil e o artº 607º,nº5 do C.P.C.
Termos em que, com o douto suprimento de Vªs Excªs, deve ao presente recurso ser concedido provimento e revogada a douta sentença recorrida, como é de JUSTIÇA».
Apenas o 2.º réu, J. G., apresentou resposta, pugnando pela total improcedência da apelação com a consequente manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, confirmando-se a admissão do recurso nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações do recorrente, e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - cf. artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - o objeto da apelação circunscreve-se às seguintes questões:

A) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
B) Reapreciação da decisão de mérito, na parte em que julgou verificada a exceção do abuso do direito, por violação dos princípios da boa-fé e da confiança.
C) Aferir se deve manter-se a condenação da autora/apelante como litigante de má-fé.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos
1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª Instância na decisão recorrida:
1. A A. e o 1.º R. casaram um com o outro no dia - de Fevereiro de 1967, sem estipulação de convenção antenupcial.
2. Por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 29 de Dezembro de 2014, a A. e o 1.º R. declararam vender ao 2.º R., pelo preço de 43.000,00 €, que declarou aceitar tal contrato, o “Prédio rústico, composto por terreno de cultura arvense com vinha em ramada, sito no lugar de …, da freguesia de ..., deste concelho de Ponte da Barca, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número … e inscrito na respectiva matriz sob o artigo …”, conforme documento junto a fls.14 e 15, cujo teor se dá por reproduzido.
3. Na dita escritura os outorgantes declararam ainda “Que na presente transacção interveio como mediador imobiliário “X – Mediação Imobiliária, Lda…”.
4. No dia 18 de Setembro de 2014, a A. e o 1.º R. celebraram com o 2.º R. e com M. C. um contrato-promessa de compra e venda que teve por objecto o prédio referido em 2.
5. Nessa data, o 2.º R. pagou à A. e ao 1.º R., a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 10.000,00 €.
6. E no dia referido em 2, conforme ficou estipulado no dito contrato-promessa, o 2.º R. pagou àqueles a quantia de 33.000,00 €.
7. Pela Ap. 882 de 2013/09/05, encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial de ... a constituição de uma servidão de passagem permanente, a pé, de tractor e veículos automóveis, a onerar o prédio n.º …, da freguesia de ..., em beneficio do prédio referido em 2, a qual se exerce através de uma faixa de terreno sita a poente, com largura de 3,5m, e a área total de 149m2, sendo que tal servidão de passagem é constituída sobre 74,50m2 do prédio n.º 477, à qual se acede directamente da estrada municipal.
8. Tal servidão foi constituida por escritura pública outorgada em 9 de Agosto de 2013, sendo outorgantes a A. e o 1.º R., na qualidade de proprietários do prédio referido em 2, e A. V., na qualidade de proprietária do prédio serviente, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ….
9. No dia 6 de Janeiro de 2015, o 1.º e o 2.º RR., um representante da empresa de mediação imobiliária referida em 3, assinaram um documento, cujas assinaturas o Sr. Notário reconheceu presencialmente, que denominaram de “DECLARAÇÃO”, reportando-se ao prédio rústico referido em 2, com o seguinte teor, entre o mais: “Aquele imóvel beneficia de uma servidão de passagem permanente a pé, de tractor e veículos automóveis, que lhe permite o acesso à via pública (estrada municipal), com o conteúdo constante da escritura de constituição de servidão outorgada no Cartório Notarial de Ponte da Barca no dia 9 de Agosto de 2013… O segundo negociou e adquiriu aquele imóvel com a finalidade de aí construir uma habitação unifamiliar. Para atingir aquele desiderato, designadamente para obter o licenciamento camarário, é imprescindível garantir o acesso pleno à via pública. Perante dúvidas levantadas pela proprietária do prédio serviente, aquele objectivo só pode ser atingido por meios judiciais ou extrajudiciais. Acordam, por isso, o seguinte: Os primeiros outorgantes restituem nesta data ao segundo o valor de vinte mil euros (20.000,00). O segundo propõe-se alargar conteúdo da servidão constituída, por forma a proceder a intervenção na faixa de terreno onerada com a servidão tornando-a apta ao trânsito permanente de pessoas e veículos automóveis. Para a hipótese de, por via judicial ou extrajudicial se lograr obter o alargamento da servidão de passagem, nos moldes supra mencionados, mantém-se o contrato outorgado, devendo nesse caso, o segundo outorgante devolver aos primeiros aquela quantia do valor de vinte mil euros (20.000,00). Na hipótese de não se conseguir lograr aquele objetivo, então declaram obrigar-se a revogar aquela mencionada escritura pública, com todas as consequências legais, designadamente a restituição do imóvel transmitido e a entrega do remanescente do preço na importância de 23.000,00€. Mais acordam, na eventualidade de procedência judicial do pedido e/ou acordo extrajudicial relativo ao alargamento da servidão, nos moldes descritos, que todas as despesas e encargos relativos às diligências judiciais ou extrajudiciais a realizar para efeitos de lograr o alargamento da servidão serão suportadas em partes iguais por ambas as partes, vendedores e comprador. Na eventualidade de improcedência do pedido e impossibilidade legal de alargamento da servidão, nos moldes descritos, todas as despesas e encargos, serão exclusivamente suportadas pelos primeiros outorgantes. Pelo terceiro outorgante em nome da sua representada, é declaro que na eventualidade de revogação da escritura pública, supra referida, se compromete a restituir aos primeiros outorgantes a importância recebida a titulo de comissão pela mediação na venda”, conforme documento junto a fls. 15, reverso, e 16 e reverso, cujo teor se dá por reproduzido.
10. Tal documento não foi subscrito pela A., apesar de a mesma nele constar, juntamente com o 1.º R., na qualidade de primeira outorgante.
11. Em simultâneo com a assinatura daquela declaração, o 1.º R. entregou ao 2.º R. a quantia de 20.000,00 €, que este recebeu.
12. O 2.º Réu é luso-francês, tendo nascido em França.
13. O 2.º Réu somente vem a Portugal ocasionalmente, em período de férias.
14. O 2.º Réu sempre sonhou ter uma casa em Portugal, mais concretamente em Ponte da Barca, terra dos seus pais.
15. Pelo que, em 2014, contactou o Réu a Y de Ponte da Barca, cujo franchisado é a sociedade X – Mediação Imobiliária, Lda., representada por F. C., sócio e à data gerente da mesma.
16. O 2.º R. explicou então ao dito F. C. que pretendia adquirir um terreno para construção de uma habitação em Ponte da Barca.
17. Nesse seguimento e dentro dos condicionalismos impostos pelo 2.º R., foi-lhe proposta a aquisição do prédio rústico referido em 2.
18. Tanto a empresa de mediação imobiliária como a A. e o 1.º R. garantiram que esse prédio rústico reunia todos os requisitos por si exigidos, nomeadamente que era apto e viável para a construção urbana.
19. Após a celebração do contrato referido em 2, o 1.º R. deslocou-se ao imóvel adquirido, acompanhado de uma Engenheira Civil e de um construtor civil.
20. Nessa altura, foi advertido por aquelas pessoas que atendendo às reais características do prédio, em confronto com os documentos de aquisição, não reunia ele condições para a construção urbana.
21. Verificou-se que o acesso ao prédio era efectuado por um caminho sito na sua extrema nascente, julgando o 2.º R. que esse caminho era exclusivo da sua propriedade.
22. Contudo, verificou-se que tal caminho era um caminho de servidão de passagem, designadamente a referida em 7.
23. Atendendo a que os terrenos, de forma a possibilitar a construção urbana, necessitam de acesso directo à via pública, foi o 2.º R. advertido de que existiam condicionantes que não lhe permitiriam destinar o prédio rústico à função para o qual fora adquirido.
24. A A. e o 1.º R. não alertaram o 2.º R sobre o referido em 7, tendo garantido sempre que o terreno em questão permitia a construção de uma habitação.
25. A. e 1.º R. bem sabiam que tal construção nunca seria permitida, atentas as reais características do prédio.
26. De imediato o 2.º R. contactou a empresa que mediara a celebração do contrato de compra e venda e exigiu que o negócio celebrado fosse desfeito e que lhe fosse restituída a quantia paga, sendo que o 1.º alegou que tal não poderia suceder uma vez que ele e a A. já tinham gasto a quantia que aquele pagara pela aquisição do prédio.
27. Pelo que se iniciaram negociações e várias reuniões entre todos os intervenientes, tendo a A. e o 1.º R., bem como a empresa X, sido representados por advogados, designadamente aquando da subscrição da “declaração” referida em 9.
28. À data destas negociações, a A. estava ausente em Lisboa a prestar assistência a um filho que se encontrava a recuperar de uma intervenção cirúrgica.
29. Contudo, todas as negociações ocorreram com o conhecimento e consentimento da A., que consentiu na emissão da “declaração” referida em 9 bem como na devolução ao 2.º R. da quantia de 20.000,00 €.
30. Após a assinatura da dita “declaração”, foi apresentado, em 7.01.2015, junto da Câmara Municipal ..., um pedido de informação prévia sobre a viabilidade de realizar operação urbanística no prédio referido em 2.
31. Em resposta, a Câmara Municipal ... informou o seguinte: “1. A parcela de terreno com a área de 2,296 m2 (CRP) localiza-se no extracto da carta de ordenamento do PDM de …, em solo urbano, designadamente em espaço urbano de baixa densidade. Na carta de condicionantes não se encontra abrangida por condicionantes. 2. Relativamente ao uso pretendido informa-se que de acordo com o n.º 1 artº 53º do RPDM este tipo de espaço pode ser ocupado por tipologias construtivas de moradias uni ou bifamiliares de 1 ou 2 pisos. Não é permitida a construção de edifícios para uso habitacional com mais de dois fogos n.º 2 artº 54º do RPDM… 5. Da alínea c) do artº 19º do RPDM resulta que quando o terreno se situa em solo urbano terá que ser servido por via pública pavimentada e com infraestruturas públicas de energia eléctrica, abastecimento de água e drenagem de águas residuais… Esta norma do RPDM deverá ser conjugada com as normas previstas nos nº 2 e 3 artº 43º do RMUE. Ou seja, no licenciamento ou na autorização de construções em prédios situados nos espaços urbanos serão sempre asseguradas as adequadas condições de acessibilidade de veículos e de peões directamente a partir da via pública… Todavia na área rural, definida nos termos da alínea c), do nº 1 do artº 2º, a acessibilidade referida no anteriormente poderá efetuar-se através de caminho de servidão que ligue a acesso publico, desde que o requerente apresente certidão predial a comprovar o registo da mesma a favor do prédio onde se pretende edificar. 5.1 Assim, muito embora conste da certidão de registo de propriedade a inscrição de registo de caminho de servidão (passagem permanente a pé e automóvel com a largura de 3,5 metros), uma vez que não estamos perante solo rural, mas sim perante solo urbano, não se aplica o regime excecional que possibilita o acesso ao prédio através de caminho de servidão, pelo que se conclui que a sua edificabilidade fica condicionada ao regime geral, ou seja a acessibilidade de veículos e de peões ao prédio deverá ser efectuada directamente a partir da via pública. Na presente situação, o prédio não é acessível diretamente a partir da via pública pelo que não reúne condições suficientes à sua edificabilidade, designadamente a acessibilidade ao prédio nos termos do acima informado”.
32. Apesar do referido em 31, o 2.º R. requereu, em 1.07.2015, a reapreciação do seu anterior pedido.
33. Contudo, em 21 de Julho de 2015, a Câmara Municipal ... manteve a sua anterior posição, não tendo sido autorizada a edificação no prédio adquirido pelo 2.º R.
34. Na sequência do referido em 31 e 33, o 2.º R. tentou chegar a acordo com a proprietária do prédio serviente, A. V., para adquirir a propriedade do caminho, integrando-o no seu prédio.
35. Todos os contactos com a proprietária do prédio serviente revelaram-se infrutíferos, tendo a mesma recusado qualquer proposta de acordo por parte do 2.º R.
36. O 2.º R. requereu ainda a várias pessoas que intercedessem nesse sentido junto da filha e genro da identificada A. V., sem qualquer sucesso.
37. O 2.º R. chegou a colocar “touvenant” no caminho em questão, tendo de imediato sido interpelado pela GNR e recebido interpelação escrita por parte da A. V., para se abster de tais intervenções no caminho.
38. A proprietária do prédio serviente e os seus familiares afirmaram sempre que nunca seria obtido consentimento ou assentimento para permitir a construção de qualquer habitação no prédio do 2.º R.
39. O 2.º R. chegou a contactar um advogado para analisar a viabilidade de uma acção judicial, mas foi informado que inexiste qualquer acção judicial que obrigue a proprietária do prédio serviente a alargar, vender-lhe ou ceder-lhe, contra a sua vontade, tal faixa de terreno.
40. Em Agosto de 2016, o 2.º R. disse à A. e ao 1.º R. que nunca conseguiria obter autorização de construção no terreno em questão, e que conforme o acordado com ambos, teriam os mesmos que restituir-lhe a quantia de 23.000,00 €, passando novamente aqueles a ser proprietários do prédio rústico.
41. O 2.º R. veio posteriormente a apurar ainda que a proprietária do prédio serviente e a A. e o 1.º Réu se encontram de relações cortadas.
42. A presente acção foi proposta no dia 8 de Março de 2017.
1.2. Na decisão recorrida, o Tribunal a quo considerou não provados os factos seguintes:
1. Para além do referido nos pontos 5 e 6 do elenco de factos provados, o preço de venda do imóvel foi pago integralmente no acto da escritura pública.
2. O prédio referido no ponto 2 do elenco de factos provados foi herdado pela A. por óbito de seus progenitores, ocorrido já no estado de casada com o 1.º R.
3. A A. só teve conhecimento da “declaração” referida em 9 no mês de janeiro de 2017.
4. Em resposta ao referido no ponto 40 do elenco de factos provados, a A. e o 1.º R. afirmaram não se encontrarem em condições de cumprir o acordado, alegando que não tinham este quantitativo, que já tinham pago mais-valias pela venda efectuada e que já não dispunham do qualquer dinheiro para devolver.
5. O 2.º R. ainda propôs ao A. e ao 1.º R. que lhe fosse somente devolvida a quantia de 21.500,00 €, sendo que desta quantia 5.000,00 € teriam de ser devolvidos pela sociedade imobiliária X, o que aqueles não aceitaram.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

2.1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A apelante manifesta a sua discordância relativamente à decisão de facto constante da sentença recorrida, nos seguintes termos:
i) A matéria de facto dada como provada sob o n.º 11 não corresponde à realidade, como resulta, além do mais, do documento n.º 4 junto com a petição inicial, devendo, por isso, ser eliminada e substituída por outra donde resulte que o Réu vendedor entregou ao Réu comprador, depositando-a na conta bancária deste, a quantia de 20.000,00 € no dia 05 de janeiro de 2015 e que o acordo dos autos só foi redigido e assinado no dia seguinte (Conclusões I e II da alegação da apelação);
ii) A matéria constante dos nºs 11, 18, 20,25,27 ( no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados, deve ser considerada não provada (Conclusão IV da alegação da apelação).
No âmbito da resposta apresentada à alegação da apelação, vem o réu/recorrido, J. G., sustentar a rejeição do recurso relativo à matéria de facto.
Para o efeito alega que a recorrente não observa, como lhe competia, o disposto no artigo 640.º do CPC, limitando-se a discordar do juízo e da apreciação que o Tribunal a quo faz dos depoimentos e demais elementos probatórios considerados na sentença. Sustenta que a recorrente não assinalou, a par e passo, quais os concretos pontos de facto que considera indevidamente julgados, não especifica quais os específicos meios probatórios que impunha ali decisões diferentes, não faz qualquer referência à prova gravada e, consequentemente, não indica com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, faltando a posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido.
Tal como resulta da análise conjugada do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como de facto, sendo este último o meio adequado e específico legalmente imposto ao recorrente que pretenda manifestar divergências quanto a concretas questões de facto decididas em sede de sentença final pelo tribunal de 1.ª instância que realizou o julgamento, o que implica o ónus de suscitar a revisão da correspondente decisão.
A impugnação da decisão relativa à matéria de facto obedece a determinadas exigências, cujo incumprimento pode determinar a respetiva rejeição, pelo que deverá a questão do cumprimento dos ónus impostos à recorrente ser apreciada em momento prévio à eventual reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

O artigo 640.º do CPC prevê diversos ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, prescrevendo o seguinte:

«Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º».

Relativamente ao alcance do regime decorrente do preceito legal acabado de citar, refere Abrantes Geraldes (1), que «a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar, com exactidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto».
Debruçando-se sobre os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que cumpra o ónus previsto no artigo 640.º do CPC, na linha do entendimento constante da jurisprudência do STJ, refere-se no Ac. STJ de 3-12-2015 (2): «Uma correta impugnação, que cumpra o ónus previsto no art. 640.º do Código de Processo Civil, passaria por identificar que determinado facto provado foi incorretamente julgado, enunciando-o e apresentando o porquê de tal incorreção, isto é, dever-se-ia apresentar uma análise crítica do/s elemento/s de prova de que o julgador deveria retirar uma conclusão diferente da que retirou, e apresentar o facto tal como deveria ter sido dado como provado ou não provado».
Efetivamente, a impugnação da decisão de facto feita perante a Relação não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em 1.ª instância, razão pela qual se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação (3).
No que respeita aos pontos da impugnação enunciados em i) e ii) supra observa-se que a apelante indica expressamente, na motivação e nas conclusões da respetiva alegação, quais os factos que considera incorretamente julgados.
Por outro lado, ainda que da correspondente motivação da alegação não decorra de forma clara qual a decisão pretendida pela apelante sobre as questões de facto impugnadas (limitando-se a alegar que «devem considerar-se como não escritas, por não poderem ter sido dadas como foram, as respostas aos pontos 11, 18, 20, 25 (conclusivo), 27 (no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados (FP)»), julgamos que tal aspeto resulta suficientemente percetível da análise das correspondentes conclusões da apelação, nos termos seguintes:
- a recorrente pretende que o facto constante do ponto 11 da matéria provada seja substituído por outro com o seguinte teor: O réu vendedor entregou ao réu comprador, depositando-a na conta bancária deste, a quantia de 20.000,00 € no dia 05 de janeiro de 2015 e que o acordo dos autos só foi redigido e assinado no dia seguinte.
- a recorrente pretende que a matéria constante dos nºs 18, 20,25,27 ( no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados, passe a integrar o elenco dos factos não provados.
Relativamente, ainda, à impugnação na vertente de facto observa-se que a recorrente, nas respetivas conclusões da alegação, alude de forma expressa ao documento n.º 4 junto com a petição inicial, enquanto meio de prova que sustenta a respetiva impugnação quanto à matéria vertida no ponto 11 dos factos provados.
Quanto à restante matéria impugnada - pontos 18, 20, 25, 27 (no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados - verifica-se que a recorrente tece considerações genéricas sobre a apreciação da prova que foi feita pelo Tribunal a quo, aludindo a circunstâncias que parecem traduzir a sua discordância quanto à valoração e ao exercício dos poderes inerentes à livre apreciação da prova que foi feita por aquele Tribunal.
Contudo, a recorrente insurge-se de forma direta contra o relevo probatório atribuído na sentença ao depoimento da testemunha M. G., sustentando que que tal valoração excede os limites da livre apreciação da prova tendo por base o alegado interesse direto desta testemunha no desenlace da causa. Neste domínio, a recorrente parece ainda pôr em causa o próprio âmbito material, ou o conteúdo, do depoimento prestado por tal testemunha, tal como valorado pelo Tribunal a quo, aludindo a uma pretensa contradição entre o que a sentença recorrida refere ter sido o depoimento daquela testemunha e uma curta transcrição do respetivo depoimento que enuncia na motivação da alegação de recurso, com indicação, quanto a este excerto, da passagem da gravação do correspondente depoimento em que se baseia («conf. 03m e 40s - 05m e 01 s»).
Assim, relativamente ao âmbito probatório da impugnação deduzida quanto aos pontos 18, 20, 25, 27 (no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados, a apelante limita-se a indicar uma única passagem, ou segmento da gravação, em que baseia a impugnação, com referência ao depoimento da testemunha M. G. (com transcrição de um curto excerto de tal depoimento).
Já em relação aos restantes meios de prova produzidos em audiência final, e que foram também valorados pelo Tribunal a quo em conjunto com o depoimento da testemunha M. G., a recorrente não especifica qualquer concreta passagem das respetivas gravações, nem procede à transcrição de algum excerto que entenda relevante para a decisão a proferir relativamente às questões de facto em apreciação. Também não indica outros meios de prova, designadamente documentos cuja reapreciação pretende seja feita quanto a estes pontos da matéria de facto impugnada.
Ora, relativamente aos restantes depoimentos, ou declarações, prestados em audiência, e que foram gravados, incumbia à apelante, querendo, invocá-los de forma direta, alegando as concretas razões da impugnação quanto aos mesmos e indicando com exatidão as passagens da gravação relevantes para o efeito, sem prejuízo de poder proceder à transcrição desses excertos, sob pena de imediata rejeição do recurso nesta parte, conforme decorre do estatuído na alínea a) do n.º 2 do citado artigo 640.º do CPC.
Deste modo, resta circunscrever o âmbito probatório da impugnação deduzida quanto aos pontos 18, 20, 25, 27 (no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados ao invocado depoimento da testemunha M. G..
Como se viu, a recorrente limita-se a referenciar um pequeno excerto do extenso depoimento prestado pela testemunha M. G. em sede de audiência final, indicando a correspondente passagem ou segmento da gravação, pretendendo com tal referência, ao que parece, pôr em causa o próprio âmbito material, ou conteúdo, do depoimento prestado por tal testemunha, tal como valorado pelo Tribunal a quo, assim baseando a impugnação deduzida quanto à globalidade dos pontos 18, 20, 25, 27 (no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados.
Ora, uma rigorosa e compreensível delimitação do âmbito probatório do recurso exige a indicação das concretas razões da impugnação, reportadas a determinadas circunstâncias específicas da concreta matéria de facto impugnada ou a cada concreto facto impugnado, para além da indicação dos concretos meio probatórios em que a recorrente fundamenta a sua discordância.
Julgamos, ainda assim, que esta constatação não leva, no caso em apreciação, à rejeição liminar da impugnação da matéria de facto quanto aos pontos 18, 20, 25, 27 (no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados, mas dificulta de forma relevante a tarefa deste Tribunal de recurso na identificação dos fundamentos em que a recorrente se baseia para concluir de forma diferente daquilo que a 1.ª instância decidiu, sobretudo tendo em conta a extensa e minuciosa motivação da decisão de facto que consta da sentença recorrida.
Atendendo à alegação genérica contida na motivação da alegação da recorrente, na qual se reporta à matéria vertida no impugnado ponto 25 dos factos provados (4) como traduzindo um ponto conclusivo, cumpre analisar previamente se a matéria ali vertida integra os poderes de cognição do tribunal em sede de decisão sobre a matéria de facto, ponderadas as circunstâncias do caso em apreciação.
Neste domínio, e conforme resulta do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do CPC o Tribunal só deve declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, o que afasta do âmbito de tal pronúncia todos os pontos que contenham matéria de direito, englobando esta, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos (5).
Em primeiro lugar, cumpre realçar que a recorrente não indica nem concretiza na alegação da apelação quais as razões pelas quais considera que o segmento da matéria de facto sob censura encerra um juízo conclusivo.
Ainda assim, importa analisar se a expressão em apreciação assume caráter conclusivo ou de direito, porquanto a inclusão na fundamentação de facto constante da sentença de matéria de direito ou conclusiva configura uma deficiência da decisão, vício que é passível de ser conhecido, mesmo oficiosamente, pelo Tribunal da Relação, tal como decorre do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC.
A este propósito, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa (6), «não se encontra no CPC de 2013 uma norma como a do n.º 4 do art. 646º do CPC de 1961, que considerava “não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito”.
Esta opção não significa, obviamente, que seja admissível doravante a assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspectos que dependem da decisão da matéria de facto. A opção legislativa tem subjacente a admissibilidade de uma metodologia em que, com mais maleabilidade, se faça o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que a circunstância de ambos os segmentos surgirem agregados na mesma peça processual facilita e simplifica a decisão do litígio (…).
Por conseguinte, revela-se importante que o juiz reflicta no segmento da matéria de facto os efeitos decorrentes da aplicação de normas imperativas em matéria de direito probatório e os que decorrem da convicção formada sobre outros meios de prova sujeitos a livre apreciação, optando por uma descrição mais ou menos pormenorizada ou concretizada, de acordo com as necessidades do pleito, desde que seja assegurada uma descrição natural e inteligível da realidade que, para além de revelar o contexto jurídico em que se integra, permita a qualquer das partes a sua impugnação».
Aliás, em idêntico sentido concluía já a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do artigo 646.º, n.º 4, do CPC anterior, de que são exemplo os Acs. STJ de 3-11-2009 (7) e de 13-11-2007 (8). Tal como se salienta neste último aresto, «torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infracção desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos. (…), não pode perder se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas».
No caso em apreciação resulta manifesto que o facto vertido no ponto agora impugnado revela-se inteiramente compreensível no contexto da restante matéria de facto vertida na referida decisão, para além de constituir expressão de uso corrente.
Com efeito, o alcance de tal expressão surge suficientemente evidenciado no conjunto da matéria de facto constante da decisão recorrida.
Basta atentarmos no teor dos factos vertidos nos pontos 7, 21, 22, 23, e 24, da matéria de facto provada (não impugnados pela recorrente), os quais permitem esclarecer, concretizar e densificar de forma facilmente compreensível a realidade em apreciação. Assim, estes factos permitem delimitar de forma percetível e clara as concretas particularidades verificadas no prédio rústico descrito em 2., que constituem obstáculo à verificação das condicionantes necessárias para que o mesmo fosse destinado à função para o qual fora adquirido pelo 2.º réu (para construção de uma habitação, conforme enunciado nos pontos 14, 16 e 17 da matéria de facto provada): o acesso da via pública ao prédio só se podia fazer através de caminho de servidão, ou seja, através de um prédio de terceiro (prédio aludido em 7 dos factos provados), o que não configurava o necessário acesso direto à via pública enquanto condição de edificabilidade do prédio rústico em causa.
Assim sendo, resulta manifesto que a matéria em questão não se pode reconduzir a conceitos normativos nem a juízos valorativos indeterminados antes consubstanciando expressões correntes que traduzem uma consequência lógica extraída de factos simples e facilmente apreensíveis à luz da restante matéria de facto não impugnada pela recorrente.
Por conseguinte, não pode proceder a invocada exclusão de tal facto por força da sua alegada natureza conclusiva, uma vez que se considera que a mesma constitui matéria de facto.
Cumpre, então, proceder à reapreciação da decisão proferida pela 1.ª instância relativamente ao impugnado ponto 11 dos factos provados - «Em simultâneo com a assinatura daquela declaração, o 1.º R. entregou ao 2.º R. a quantia de 20.000,00 €, que este recebeu».
Pretende a apelante que este facto, constante do ponto 11 da matéria provada, seja substituído por outro com o seguinte teor: O réu vendedor entregou ao réu comprador, depositando-a na conta bancária deste, a quantia de 20.000,00 € no dia 05 de janeiro de 2015 e que o acordo dos autos só foi redigido e assinado no dia seguinte.
No entanto, verificamos que a concreta formulação fáctica que a apelante pretende agora fazer constar da matéria de facto provada por via da alteração do correspondente ponto 11., não foi oportunamente alegada por qualquer das partes em sede de articulados.
Com efeito, analisados detalhadamente os articulados apresentados pelas partes na ação em apreciação verificamos que o impugnado ponto 11., com a redação que o Tribunal a quo fez constar da matéria de facto provada, corresponde integralmente ao facto alegado pela própria recorrente/autora no artigo 16.º da petição inicial da ação em referência.
Surpreendentemente, e contra aquilo que oportunamente alegou logo em sede de petição inicial, vem agora a recorrente, em sede de apelação, sustentar que tal facto por si alegado não corresponde à realidade, invocando que tal resulta, além do mais, do documento n.º 4 com a petição inicial.
Porém, trata-se de matéria que como vimos foi expressamente alegada pela autora em sede de petição inicial e não foi concretamente impugnada pelo 2.º réu contestante, ora recorrido, no âmbito do articulado de contestação oportunamente apresentado, nem pelo 1.º réu (que não apresentou contestação).
Como tal, é evidente que a matéria de facto agora impugnada pela recorrente, com referência ao ponto 11 dos factos provados, deve ter-se por provada, porquanto foi admitida pelos réus na contestação, nos termos previstos no artigo 574.º, n.º 2, do CPC, por confissão tácita ou ficta, o que implica que tal facto seja tido por assente e provado nos autos, tanto mais que o mesmo não configura um facto que só possa ser provado por documento escrito.
Deste modo, trata-se de matéria definitivamente adquirida como provada no processo razão pela qual não há lugar a qualquer averiguação autónoma em sede instrutória, tal como prescreve o artigo 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC.
Daí que se conclua que o teor da matéria de facto que foi enunciada pelo Tribunal a quo no ponto agora impugnado pela apelante deve fazer parte do elenco dos factos provados, mostrando-se desnecessária a reapreciação do meio de prova documental que foi indicado pela recorrente a propósito desta matéria.
Por conseguinte, improcedem nesta parte as conclusões do recurso, mantendo-se a decisão recorrida quanto ao ponto 11 dos “Factos provados”.
Relativamente ao âmbito probatório da impugnação deduzida quanto aos pontos 18, 20, 25, 27 (no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados, a recorrente limita-se a referenciar um pequeno excerto do extenso depoimento prestado pela testemunha M. G. em sede de audiência final, indicando a correspondente passagem ou segmento da gravação, pretendendo com tal referência, ao que supomos, pôr em causa o próprio âmbito material, ou conteúdo, do depoimento prestado por tal testemunha, tal como valorado pelo Tribunal a quo, assim baseando a impugnação deduzida quanto à globalidade dos referidos pontos da matéria de facto.
Para o efeito, alude a apelante a uma pretensa contradição entre o que a sentença recorrida refere ter sido o depoimento daquela testemunha e uma curta transcrição do respetivo depoimento que enuncia na motivação da alegação de recurso, com indicação, quanto a este excerto, da passagem da gravação do correspondente depoimento em que se baseia ( «conf. 03m e 40s - 05m e 01 s»).
Ora, da audição integral do registo das gravações prestadas em audiência final pela referida testemunha M. G. não resulta qualquer constatação relevante que nos leve a divergir da apreciação feita pelo Tribunal a quo a propósito da credibilidade e do conteúdo material de tais declarações, sendo este totalmente compatível com a motivação da convicção daquele Tribunal quanto à decisão sobre os factos sujeitos à livre apreciação judicial.
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que o Tribunal a quo não procedeu à transcrição de nenhum depoimento ou sequer de segmentos parciais dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas em sede de audiência final, pelo que não se alcança fundamento para a pretendida comparação entre a enunciação dos motivos que conduziram à formulação do juízo probatório formulado por aquele Tribunal sobre os factos considerados provados e o conteúdo material exato do concreto excerto do depoimento da testemunha M. G. que vem reproduzido pela recorrente na alegação da apelação.
Assim, aquele Tribunal especificou de forma exaustiva e detalhada os motivos que o determinaram a formular o juízo probatório relativamente aos factos considerados provados e aos não provados, procedendo à análise crítica das provas que foram produzidas, em observância do preceituado no artigo 607.º, n.ºs 4 e 5 do CPC.
Por outro lado, e ainda que se constate através da audição integral do registo de gravação do depoimento da testemunha M. G. que a concreta passagem vertida na transcrição que foi reproduzida pela apelante corresponde ao que consta do segmento correspondente do gravação do referido depoimento, certo é que não se verifica qualquer contradição com o que a sentença recorrida refere, em súmula, ter decorrido do depoimento daquela testemunha.
Com efeito, do teor material de tal transcrição meramente parcial não decorre qualquer incompatibilidade com o que a sentença recorrida refere, em súmula, ter decorrido do depoimento daquela testemunha, posto que a exposição que consta da motivação da decisão recorrida corresponde efetivamente ao que resulta de tal depoimento quanto ao núcleo essencial da factualidade relevante para a decisão da causa, tal como resultou da audição integral que agora fizemos do meio de prova em referência.
Acresce que a lei não impõe ao Juiz que proceda à reprodução integral das declarações prestadas ou que enuncie de forma narrativa todas as situações ou os episódios expostos pela testemunha ao longo do seu extenso depoimento.
Como tal, julgamos que não se verifica qualquer contradição entre o que a sentença recorrida refere, em súmula, ter decorrido do depoimento daquela testemunha e a curta transcrição do respetivo depoimento que a recorrente reproduziu na motivação da alegação de recurso, com indicação, quanto a este excerto, da passagem da gravação do correspondente depoimento em que se baseia (« conf. 03m e 40s - 05m e 01 s»).
A recorrente insurge-se de forma genérica contra o relevo probatório atribuído na sentença ao depoimento da testemunha M. G., sustentando que tal valoração excede os limites da livre apreciação da prova tendo por base o alegado interesse direto desta testemunha no desenlace da causa, sustentando mesmo que a valoração feita pelo Tribunal a quo a propósito de tal depoimento entra no domínio do arbítrio.
Revisto e analisado integralmente o registo de gravação do depoimento da testemunha M. G. constata-se que as referências e os esclarecimentos que esta testemunha apresentou perante o Tribunal foram claros, consistentes e absolutamente plausíveis, não se eximindo a responder de forma direta, substanciada e precisa às questões formuladas.
Neste enquadramento, também esta Relação formula convicção idêntica à que ficou plasmada na decisão recorrida, sendo inteiramente de sufragar a motivação expressa na decisão da matéria de facto quando relevou o depoimento prestado por esta testemunha, atenta a credibilidade do respetivo depoimento quando visto e ponderado criticamente à luz dos restantes meios de prova produzidos, não obstante ser companheira do 1.º réu, com quem vive em união de facto há já vários anos.
Por outro lado, não é exata a conclusão formulada pela recorrente quando sustenta que o destino da ação foi ditado unicamente por este depoimento, antes denotando tal alegação uma abordagem descontextualizada, muito redutora e simplista do juízo valorativo crítico empreendido na motivação da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Com efeito, resulta para nós inequívoco que o referido depoimento foi devidamente valorado pelo Tribunal a quo em conjunto com a globalidade dos meios de prova produzidos nos autos, ou seja: a totalidade dos depoimentos/declarações de parte, dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência final bem como o teor dos documentos e relatórios periciais juntos aos autos foram analisados criticamente por aquele Tribunal de uma forma que consideramos clara, rigorosa e explícita, tendo por base a perceção que só a imediação permite e tomando em consideração as regras de experiência comum e os juízos de normalidade social, nos termos e pelas razões que foram explicitadas na referida decisão, assim avaliando a consistência e verosimilhança dos diversos depoimentos prestados em sede de audiência final
Neste domínio, importa sublinhar que a necessária ponderação dos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova implica que «o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados» (9).
Analisada a sentença recorrida temos por evidente que o Tribunal a quo não deixou de ponderar o eventual interesse da testemunha M. G. no desfecho da causa, tal como indiciado pela relação de união de facto existente entre esta testemunha e o 2.º réu J. G..
Efetivamente, o Tribunal a quo analisou detalhada e criticamente todos os depoimentos prestados pelas testemunhas ouvidas em sede de audiência final - entre os quais o da testemunha M. G., mas também os depoimentos das testemunhas F. C. e M. P., o mesmo sucedendo relativamente aos depoimentos/declarações prestados pelas próprias partes, no caso, a autora M. C., o marido desta, ora 1.º réu F. D. e o 1.º réu J. G., nos termos e pelas razões que foram amplamente explicitadas na referida decisão.
Ainda que relativamente a estes últimos meios de prova (que foram também valorados pelo Tribunal a quo em conjunto com o depoimento da testemunha M. G.) a recorrente não especifique qualquer concreta passagem das respetivas gravações, nem proceda à transcrição de algum excerto que entenda relevante para a decisão a proferir relativamente às questões de facto que impugna, vem a mesma insurgir-se genericamente contra a alegada desvalorização pelo Tribunal a quo dos depoimentos da testemunha da autora - M. P. - e da testemunha comum - F. C. -, invocando como única razão justificativa que estas duas testemunhas nenhum interesse tinham no desfecho da ação.
Porém, após reapreciação integral que também fizemos dos depoimentos destas duas testemunhas, e ponderando ainda a razão de ciência e o tipo de relacionamento ou de proximidade revelado com as partes, não podemos sufragar a alegação feita pela recorrente no sentido de que tais testemunhas nenhum interesse tinham no desfecho da ação.
Assim, e em primeiro lugar, cumpre assinalar que a testemunha F. C. declarou trabalhar para a agência de mediação imobiliária X, a qual figura como terceiro outorgante na “Declaração” que constitui o objeto da presente ação, confirmando ter assinado tal documento na qualidade de representante legal da referida agência de mediação imobiliária, que também foi a mediadora no negócio que deu origem à escritura pública de compra e venda outorgada pela ora autora e 1.º réu e o 2.º réu no dia 29-12-2014.
Ora, se atentarmos no teor do acordo vertido em tal “Declaração” verificamos que do mesmo também resultam obrigações específicas para a referida sociedade de mediação imobiliária (terceira outorgante), concretamente a obrigação de restituir aos primeiros outorgantes, M. C. e marido, F. D., a importância recebida a título de comissão pela mediação da venda.
É certo que tal obrigação ficou condicionada à eventualidade da revogação da aludida escritura pública de 29-12-2014. Porém, resulta ainda da referida “Declaração” que os ali primeiros e segundos outorgantes se vincularam expressamente no referido documento a revogar a mencionada escritura pública, com todas as consequências legais, designadamente a restituição do imóvel transmitido e a entrega do remanescente do preço, na importância de 23.000,00€, na hipótese de, por via judicial ou extrajudicial, não lograrem obter o alargamento do conteúdo da servidão constituída, por forma a proceder a intervenção na faixa de terreno onerada com a servidão tornando-a apta ao trânsito permanente de pessoas e veículos automóveis, do que resulta, ainda que indiretamente, o interesse da referida sociedade de mediação imobiliária na eventual declaração de nulidade da “Declaração” que corporiza o acordo dos restantes intervenientes quanto à revogação da escritura pública de compra e venda outorgada pela ora autora e 1.º réu e o 2.º réu no dia 29-12-2014.
Por outro lado, a testemunha M. P. (solicitadora de profissão, e amiga da autora e do 1.º réu F. D.) evidenciou ao longo do seu depoimento um relacionamento de grande proximidade e solidariedade com a autora e marido, ora 1.º réu, certamente por via da duradoura relação de amizade “desde sempre” mantida com o casal, circunstâncias que facilmente se constatam mediante a audição do registo da gravação do respetivo depoimento e que não deixaram de ser ponderadas pelo Tribunal a quo no âmbito da valoração da credibilidade de tal depoimento, em sede de motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida.
Neste quadro, revela-se absolutamente adequada a ponderação crítica efetuada pelo Tribunal a quo relativamente ao conteúdo material de todos os depoimentos prestados, confrontando-os com os restantes meios de prova disponíveis e valorando-os à luz das mais elementares regras da lógica e da experiência comum, de molde a evidenciar fragilidades e/ou contradições e, com isso, aferir da credibilidade e verosimilhança de tais depoimentos.
Assim, tal como enunciou - e bem - o Tribunal a quo na motivação da sentença recorrida, também nós entendemos que «[a]s explicações que o 1.º R. apresentou para não ter comunicado à esposa que tinha disposto de uma quantia muito razoável do pecúlio do casal e de ter subscrito o documento em crise nos autos não foram satisfatórias. A explicação que apresentou para justificar o ter ocultado da esposa os acontecimentos ocorridos nos primeiros dias de Janeiro de 2015 – ou seja, que o casal, nessa altura, passava por um período difícil por causa da doença do filho – não convenceu. Em primeiro lugar, o R. afirmou que só dois anos depois, em Janeiro de 2017, é que deu a conhecer à A. tudo aquilo que tinha sucedido naqueles dias. É no mínimo estranho que o R. tenha esperado dois anos para contar à esposa o acordo que tinha feito com o R. J. G. e com a empresa de mediação imobiliária. Mas é ainda mais estranho que, para o fazer, e conforme o referiu, tenha sentido necessidade de recorrer à intermediação de uma Sr.ª solicitadora (a depoente M. P.), e que tenha sido pela boca desta última que a A., sua esposa, soube do acordo. Afigura-se manifestamente inverosímil à luz das mais elementares regras da lógica e da experiência comum que (em primeiro lugar) o R. marido tenha aguardado dois anos para dar conhecimento à esposa do acordo celebrado com o R. J. G., e que (em segundo lugar), quando decidiu fazê-lo, tenha pedido a um terceiro o substituísse nessa tarefa. É que o R. não disse que comunicou à esposa o sucedido e que só depois pediu a alguém com conhecimentos jurídicos que lhe explicasse o alcance da “declaração” por ele subscrita, o que até podia reputar-se razoável. Não, o que o R. disse é que foi a dita solicitadora quem, no seu gabinete, deu a conhecer à A. o acordo celebrado pelo seu marido. Trata-se de um relato que não tem suporte nas regras da normalidade. E apesar de a depoente solicitadora ter referido no seu testemunho que, de facto, marido e mulher – de quem disse ser muito amiga – estiveram no seu gabinete a dada altura e que lhes explicou as implicações do acordo por aquele assinado, não pôde asseverar que foi nesse exacto momento que a A. teve conhecimento do mesmo (disse “achar” que assim sucedeu, mas não explicou porquê).
Note-se, porém, que uma coisa é o R. não ter contado à A. ao longo de dois anos que celebrara com o 2.º R. o acordo em questão, e outra, bem distinta, é ela ter tido conhecimento desse acordo logo no dia em que foi celebrado, como o R. J. G. alegou. E, na verdade, cremos que se fez prova segura de que assim efectivamente sucedeu, como passaremos a explicar.
Em primeiro lugar, note-se que ambos os RR. esclareceram que a “declaração” foi subscrita no Cartório Notarial de …. Não se trata, portanto, de um documento que as partes se limitaram a assinar num local qualquer, o que indicia desde logo que houve o cuidado de preparar o assunto. Foi referido inclusivamente que a redacção do documento teve a intervenção do Sr. Notário (disse-o o 2.º R.). Mais, no dia em que a “declaração” foi assinada o R. marido teve o cuidado de se fazer acompanhar de um advogado (Dr. J. N.), como esclareceu. E que nesse mesmo dia, antes de se dirigir ao Cartório Notarial, se deslocou aos serviços da Câmara Municipal – mais uma vez acompanhado do referido Sr. advogado – e falou com a arquitecta da edilidade, que lhe garantiu que com a “declaração” a obra seria licenciada. Tal comportamento não é o de uma pessoa deprimida e esgotada psicologicamente (cfr. artigo 25.º da p.i.), que se deixa facilmente convencer por terceiros a dispor do seu património. É, isso sim, o comportamento de uma pessoa avisada, cautelosa e esclarecida, e não o de quem deixar passar um longo período de tempo para dar a conhecer à esposa, ainda mais pela boca de um terceiro, que assinou um determinado contrato, circunstância que reforça a nossa convicção de que o R. marido não deixou de auscultar a sua esposa quanto aos termos do acordo que veio a subscrever no mencionado Cartório Notarial e que aquele teve o assentimento da A.
No contexto apontado, relevou-se o depoimento de M. G., que apesar de ser companheira do 1.º R, com quem vive em união de facto há já vários anos, o prestou de forma que se afigurou credível. Em primeiro lugar referiu que também ela esteve presente na reunião em casa da A. e do 1.º R. que antecedeu a formalização da “declaração”, explicando que este último telefonou à esposa e que inclusivamente chegou a falar – a depoente – ao telefone com ela, explicando-lhe o que pretendiam fazer e garantindo que eram pessoas sérias, e que aquela assentiu em fazer o acordo. A testemunha revelou espontaneamente um pormenor que à partida não seria relevante, mas que no conjunto de circunstâncias já escalpelizadas até veio a demonstrar-se importante no que tange com a credibilidade do seu depoimento: a A. chorava ao telefone e a depoente dirigia-lhe palavras de conforto. Ta(l) pormenor é coerente com o difícil momento familiar que a A. estava a vivenciar por causa da doença do filho, operado alguns dias antes do telefonema.
A depoente referiu ainda que a formalização do acordo foi feita no Cartório Notarial e que o Dr. J. N. acompanhou o R. marido. E que o 2.º R. foi acompanhado pela Dr.ª V. P., também ela advogada, e que foram tais jurisconsultos que prepararam o documento. Asseverou ainda que o R. marido falou ao telefone com a esposa no exterior do Cartório».
Após reapreciação que fizemos da prova produzida julgamos ainda plenamente justificada a ponderação crítica efetuada pelo Tribunal a quo a propósito do depoimento prestado pela testemunha F. C., quando ponderado em conjunto com os restantes meios de prova produzidos, nos seguintes termos:
«A testemunha F. C. – ou seja, o representante da agência de mediação imobiliária X – não se quis comprometer com nenhuma das versões apresentadas pelas partes, A. e 2.º R. Referiu que esteve presente na reunião realizada em casa da A. e do R. marido no dia 5 de Janeiro de 2015 (assim o disse também o 1.º R.), enquanto que o 2.º R. e a testemunha M. G. afirmaram o inverso, asseverando que, para além deles, quem mais esteve ali presente foi a Sr.ª Dr.ª V. P. (o que foi negado pelo depoente e pelo 1.º R.). A presença da Sr.ª advogada naquela reunião não é relevante uma vez que não pôde prestar depoimento. Mas é relevante para aferir da credibilidade das versões apresentadas. E, na verdade, para quem, como o depoente F. C., diz ter presenciado a dita reunião, é estranho que não tenha conseguido reproduzir o que nela se passou, ainda que o fizesse em traços genéricos já que, entretanto, se passaram mais de quatro anos, sendo normal que a memória se vá desvanecendo com o decurso do tempo. Mas a testemunha de nada ou quase nada se recordou quanto ao que se passou nessa reunião, o que é tanto mais insólito quanto é certo que no dia seguinte assumiu obrigações gravosas para a sua representada, designadamente a de esta poder vir a ter que restituir a comissão recebida pela mediação da venda do prédio do casal ao R. J. G..
Na senda da estranheza que tal depoimento nos causou, ficámos com sérias dúvidas de que a testemunha tenha estado presente na apontada reunião. Não obstante, o depoente ainda prestou algumas informações relevantes no que tange com a contratação dos serviços da sua empresa pela A. e pelo R. marido. Referiu que este último lhe facultou apenas uma folha da descrição predial e que a que faltava era, precisamente, a que se referia à constituição da servidão, sendo que tanto a A. como o R. marido reconheceram ter conhecimento que o R. J. G. apenas quis adquirir o seu prédio para aí construir uma habitação, sendo certo que aqueles não olvidavam que o conhecimento daquela circunstância – que o acesso da via pública ao prédio só se podia fazer através de caminho de servidão, ou seja, através de um prédio de terceiro – seria crucial para qualquer potencial comprador (note-se que a servidão foi constituída por escritura pública cerca de um ano e meio antes do contrato de compra e venda). Aliás, a A. reconheceu que, já antes de vender o terreno, existiam graves conflitos com a dona do prédio serviente – sua madrasta –, mas que só depois de vender o terreno é que tentou arranjar, junto daquela, sem sucesso, uma solução para resolver a questão da acessibilidade ao prédio, tendo ficado bem patente que nunca o casal deu conhecimento de tal conflito – ou sequer da existência da servidão – ao R. J. G. (a própria A. o reconheceu).
Fez-se prova, portanto, que o casal sabia que existência do caminho de servidão colocaria entraves à edificabilidade do terreno, sendo que a A. confessou que a sua madrasta e os respectivos familiares afirmaram sempre que nunca seria obtido o seu consentimento para a construção de qualquer habitação no terreno entretanto adquirido pelo 2.º R., estando ambas, inclusivamente, de relações cortadas».
Neste enquadramento, revistos e analisados todos os meios de prova juntos ao processo e produzidos em sede de audiência final, incluindo o depoimento da testemunha M. G., concretamente indicado pela recorrente na presente apelação, também esta Relação formula convicção idêntica à que ficou plasmada na decisão recorrida no que concerne aos factos que resultaram provados, sendo inteiramente de sufragar a motivação expressa na decisão da matéria de facto quando conclui o seguinte:
«Resumindo, o Tribunal entendeu que se fez prova segura que a A. estava ao corrente dos termos da “declaração” que o seu marido assinou no dia 6 de Janeiro de 2015. É aliás curioso notar que apesar de a A. não ter estado presente no Cartório Notarial no momento da assinatura daquele documento, se tenha nele feito figurar o seu nome nas vestes de primeira outorgante, a par do marido, o que permite inferir que alguém terá tido o cuidado de perguntar se a esposa do A. estava informada do teor do acordo (repare-se que a companheira do A. disse recordar-se que naquele momento alguém – que não soube identificar – perguntou ao R. marido se a esposa estava avisada sobre os termos do convénio, e que o mesmo respondeu afirmativamente). A tudo acresce que a A., nas suas declarações, disse que antes de se ter deslocado ao escritório da solicitadora M. P., se recorda de ter visto em casa cartas devolvidas que o marido remetera ao 2.º R. (cfr. fls. 19, reverso, e 20 e reverso), cujo conteúdo desconhece, mas que, sobre elas, o seu marido dizia que o J. G. não dava “novas”. Que “novas” eram essas, a A. diz desconhecer, afigurando-se pouco plausível que, volvidos quase dois anos sobre a venda do terreno – veja-se que a missiva junta a fls. 19, reverso, data de 29.11.2016 –, não tenha tido a curiosidade natural de perguntar ao marido que assuntos ainda estariam pendentes com o comprador».
Entendemos, assim, que os fundamentos invocados pela recorrente para justificar a alteração da decisão da matéria de facto contida na decisão recorrida, no que concerne aos pontos 18, 20, 25, 27 (no respeitante à A.), 29 e 40 do elenco dos factos provados, não permitem infirmar a valoração que a propósito foi feita pelo Tribunal a quo, a qual se afigura rigorosa, acertada e absolutamente adequada à prova produzida.
Em consequência, julga-se integralmente improcedente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto apresentada pela apelante, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre os factos vertidos em 1.1. e 1.2. supra.

2.2. Reapreciação da decisão de mérito, na parte em que julgou verificada a exceção do abuso do direito, por violação dos princípios da boa-fé e da confiança.
Atenta a improcedência da impugnação da matéria de facto resulta evidente que os factos a considerar na apreciação da questão de direito são os que se mostram enunciados sob o ponto 1.1., supra.
O quadro fáctico que releva para a subsunção jurídica é exatamente o mesmo que serviu de base à sentença recorrida.
Quanto à invocada nulidade do negócio formalizado no documento subscrito no dia 6 de janeiro de 2015, o Tribunal a quo entendeu que o facto de tal “declaração” não ter sido assinada pela autora não lhe retira legitimidade para arguir tal vício, à luz do disposto no artigo 286.º do CC, na medida em que o acordo nela formalizado incide de forma objetiva sobre o contrato subscrevera dias antes e que se consubstancia na venda do prédio rústico que é objeto do referido documento.
Com efeito, decorre do artigo 286.º do CC que a nulidade de ato ou negócio jurídico pode ser invocada a todo o tempo por qualquer interessado, reportando-se esta referência ao sujeito de qualquer relação jurídica que, de algum modo, possa ser afectado pelos efeitos que o negócio tendia a produzir na sua consistência jurídica ou mesmo na sua consistência meramente prática ou a quem obtém uma utilidade ou remove alguma desvantagem com a declaração de nulidade (10), como sucede no caso em apreciação com a autora, ora recorrente.
O Tribunal a quo entendeu, ainda, que a dita declaração consubstancia um pacto modificativo das obrigações plasmadas no contrato de compra e venda celebrado em 29 de dezembro de 2014, porquanto, tendo o réu J. G. apurado, após a celebração do contrato, que o acesso da via pública ao prédio rústico que comprara à autora e ao 1.º réu era feito através de um caminho de servidão que onerava uma parcela de terreno de um prédio vizinho e que tal circunstância colocaria entraves à edificação de uma habitação no local, como sempre fora sua pretensão (cf. pontos 7, 8, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23), quis primeiramente desfazer o negócio (ponto 26) mas acabou por entrar em negociações com os vendedores para solucionarem o problema detetado, tendo sido nesse contexto que foi subscrita a “declaração” em apreço (ponto 27), na qual o réu comprador se obrigou a desenvolver diligências com vista a “garantir o acesso pleno à via pública” do prédio adquirido aos vendedores, desse modo obtendo o licenciamento camarário necessário para ali construir uma habitação. Caso fosse bem sucedido, o contrato de compra e venda manter-se-ia e o 2.º réu devolveria a quantia de 20.000,00 € que os vendedores, na data da subscrição do documento, lhe restituíram; caso contrário, estes últimos ver-se-iam obrigados a revogar o contrato, o que teria como consequência a restituição do imóvel transmitido e a entrega do remanescente do preço pago (23.000,00 €).
No contexto indicado o Tribunal a quo concluiu que as partes quiseram fixar uma condição resolutiva (artigo 270.º do CC), dado que todos os efeitos do contrato se produziram, com exceção do da entrega do preço, já que parte dele foi restituído ao comprador), ou seja, sujeitar a resolução do contrato de compra e venda a um facto futuro e incerto, que dependia do insucesso da atividade que o réu J. G. se obrigou a empreender no sentido de obter da edilidade de Ponte da Barca a licença de construção da habitação que pretendia erigir no prédio adquirido à autora e o réu marido, o que passava por garantir o acesso pleno do prédio à via pública, o que não se discute na presente apelação.
Em consequência, concluiu, ainda, que as estipulações acordadas naquele documento contendem com a consolidação do direito de propriedade do réu J. G. sobre aquele prédio - sendo que os vendedores, ao abrigo daquele acordo, devolveram inclusivamente parte do preço que receberam com a celebração do contrato de compra e venda -, pelo que as mesmas só seriam formalmente válidas se vertidas em escritura pública ou documento particular autenticado, sob pena de nulidade, nos termos previstos nos artigos 220.º e 875.º do CC.
Também quanto à conclusão, vertida na sentença recorrida, de que as partes não observaram a forma legalmente prescrita para validamente modificarem o contrato de compra e venda celebrado em 29 de dezembro de 2014, sendo por isso nulo, por falta de forma legalmente prevista, o negócio jurídico que a “declaração” referida no ponto 9 do elenco de factos provados sustenta, não existe controvérsia, porquanto apenas a autora veio recorrer da sentença, não pondo em causa, como é evidente, as consequências extraídas pelo Tribunal a quo no sentido de que o documento em apreço não foi autenticado pelo notário. Com efeito, este último apenas se limitou a reconhecer as assinaturas que os réus (e o legal representante da empresa de mediação imobiliária) fizeram perante si, nos termos do artigo 153.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, do Código do Notariado, constatando-se que os declarantes não confirmaram o seu conteúdo perante o notário.
Resta, assim, apreciar da adequação da conclusão alcançada pelo Tribunal a quo na parte em que julgou abusiva a invocação pela autora da comprovada nulidade formal do negócio, por entender que a mesma é ditada apenas pelo interesse da ora recorrente em se desvincular do contrato, traduzindo um abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.
No caso, a 1.ª instância entendeu, no essencial, que não obstante a nulidade formal do negócio, a conduta objetivamente adotada pela autora e pelo réu marido justificava o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade do negócio consubstanciado na declaração datada de 6 de janeiro de 2015 por violação dos princípios da boa-fé e da confiança que o 2.º réu nele depositou.
Desde logo, por resultar dos factos reproduzidos que a conduta adotada pela autora e pelo réu marido, previamente à celebração do contrato de compra e venda, é censurável: aqueles sabiam que o réu J. G. apenas queria comprar o prédio rústico para nele construir uma habitação de que pudesse desfrutar nas suas vindas a Portugal, e sabiam também que tal edificação não seria autorizada - como de facto não foi, conforme resulta dos despachos camarários referidos nos pontos 31 e 33 - dadas as características concretas do terreno, devido à inexistência de uma ligação direta à via pública, pois que ela só se encontrava assegurada através de um caminho de servidão constituído em prédio de terceiro, nomeadamente a vizinha A. V., com quem aqueles se encontravam de relações cortadas (e que não facilitou ao 2.º réu, não obstante as diligências realizadas para o efeito, a resolução do problema), informação que os vendedores ocultaram ao comprador.
Neste domínio, a 1.ª instância valorou, ainda, que, posteriormente à celebração do contrato de compra e venda, a autora e o réu marido acabaram por reconhecer que, de facto, para o comprador construir, como pretendia, uma habitação no prédio alienado seria necessário solucionar o problema do “acesso pleno à via pública”, pois só desse modo poderia ser emitida a competente licença camarária. Ainda assim, e não obstante esse assumir de responsabilidades, através da “declaração” em causa nos presentes autos, foi sobre o réu comprador que recaiu o ónus de diligenciar pela resolução do problema. Com efeito, foi ele quem se obrigou a “alargar conteúdo da servidão constituída, por forma a proceder a intervenção na faixa de terreno onerada com a servidão tornando-a apta ao trânsito permanente de pessoas e veículos automóveis”, e a fazê-lo judicial ou extrajudicialmente.
Neste domínio a sentença recorrida valorou também que «[n]ão obstante, este último logo no dia 7.01.2015 apresentou junto da Câmara Municipal ... um pedido de informação prévia sobre a viabilidade de realizar operação urbanística no prédio que adquirira. Tendo sido emitida uma informação contrária aos seus interesses, requereu a reapreciação do seu pedido em 1.07.2015. De seguida tentou chegar a acordo com a proprietária do prédio serviente, A. V., para adquirir a propriedade do caminho, integrando-o no seu prédio. Conquanto todos os contactos com a proprietária do prédio serviente se tenham revelado infrutíferos - já que aquela recusou qualquer proposta de acordo -, pediu ainda a várias pessoas que intercedessem nesse sentido junto da filha e genro da identificada A. V., mais uma vez sem qualquer sucesso. E, porfiando nos seus intentos, colocou “touvenant” no caminho em questão, tendo sido interpelado pela GNR e recebido interpelação escrita por parte da A. V. para se abster de tais intervenções no caminho. E contactou também um advogado para analisar a viabilidade de uma acção judicial, mas foi informado que inexiste qualquer acção judicial que obrigue a proprietária do prédio serviente a alargar, vender-lhe ou ceder-lhe, contra a sua vontade, tal faixa de terreno. Por fim, em Agosto de 2016, dá conhecimento aos vendedores que o negócio terá que ser desfeito em virtude do insucesso das suas tentativas de dotar o prédio de um acesso direto à via pública».

Em função do descrito acervo fáctico, concluiu o Tribunal a quo:
«Ora, o que temos em primeiro lugar é que a A. “consentiu”, por via daquele acordo, que o 2.º R. marido resolvesse um problema que, não fosse a circunstância de, ela e o marido, terem ocultado a questão do acesso do prédio à via pública ser feito através de um caminho de servidão, nunca se teria colocado porque aquele não teria comprado o terreno. Em segundo lugar, só quando a A. percebeu que esse problema eventualmente poderia não ter solução - e dizemos eventualmente já que não podemos ter por certo que o 2.º R. esgotara todos os meios, “judiciais e extrajudiciais”, para alcançar o objectivo pretendido e plasmado no acordo subscrito em 6 de Janeiro de 2015 -, é que decidiu vir a juízo invocar a nulidade do acordo. O mesmo é dizer que a A. deixou que decorressem cerca de dois anos e três meses durante os quais o R. J. G., de boa fé, foi cumprindo as obrigações que assumira na dita “declaração” - e fê-lo com afinco, como vimos, e com custos pessoais e monetários - para o surpreender com a presente acção judicial.
Em suma, concluímos do exposto que a A., ao vir invocar a nulidade formal do acordo depois de decorridos mais de dois anos após a sua subscrição e durante os quais o 2.º R. diligenciou por diversas formas e maneiras para que o objectivo pretendido (a edificabilidade do prédio) fosse alcançado, criou uma evidente confiança naquele de que tal vício não viesse a ser invocado. Tanto mais que, como já sublinhámos, foi ela, juntamente com o marido, a responsável pelo actual estado de coisas».
Como se viu, a apelante insurge-se contra a decisão da 1.ª Instância, sustentando, no essencial, não ser aplicável ao caso o abuso do direito, nomeadamente na modalidade do venire contra factum proprium, por não reunir nem os pressupostos gerais da sua aplicação, nem os pressupostos específicos em casos, como o dos autos, de neutralização da nulidade de negócio jurídico por falta da forma legalmente exigida, por não se tratar de um caso de “clamorosa” ofensa ao princípio da boa-fé. Defende, ainda, que o fundamento invocado pelo réu comprador para a celebração daquele acordo de 06-01-2015 consiste na ocorrência de erro quanto às características do objeto do negócio, pelo que dispunha o recorrido de um meio diferente do abuso de direito para evitar e, ou, remover o prejuízo que alega, mediante pedido de anulação do negócio quer dentro do prazo normal de um ano, quer posteriormente, inclusive por via de reconvenção na presente ação. Conclui pedindo a revogação da sentença recorrida por defender que não litigou com abuso de direito nem com má-fé.
O artigo 334.º CC com a epígrafe «Abuso do direito» dispõe que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Tal como decorre do citado preceito legal, a verificação do abuso do direito pressupõe o exercício anormal, excessivo ou ilegítimo dos poderes inerentes a determinado direito.
Deste modo, para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. Em qualquer caso, para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito (11).
É entendimento pacífico que a conceção de abuso do direito, adotada no sistema jurídico português, é a objetiva: «Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites» (12).
Neste domínio, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes (13).
Tal como esclarece Luís A. Carvalho Fernandes (14), a propósito do citado artigo 334.º do CC, «[o] preceito identifica como abusivo o exercício de um direito com manifesto excesso dos limites que assim lhe são impostos. Esta nota, que, num exame preliminar, parece conduzir o abuso a uma figura unitária, não tem, porém, esse significado, porquanto das diferentes fontes desses limites resultam múltiplas e diversas situações de exercício abusivo, que não é possível reduzir a uma única categoria dogmática, pelo que respeita às suas modalidades e às suas consequências».
Daí que o citado autor proceda de forma autónoma à identificação dos modos de exercício que são sancionados como abusivos, por referência a cada um dos limites nele elencados (15), salientando, no que ao caso releva: «[a] ideia geral que preside ao tipo venire contra factum proprium é a da proibição de comportamentos contraditórios que, no plano do exercício do direito, considera inadmissível uma actuação contrária a outra antes assumida pelo seu titular.
Os comportamentos em presença podem ser - e, em regra, são -, em si mesmos lícitos, mas o anteriormente adoptado e que se contraria verificou-se em circunstâncias tais que criam na outra parte a confiança de ele ser mantido e de o titular do direito agir, na sua actuação futura, em conformidade com o seu significado objectivo.
Em geral, a situação de abuso assenta na verificação destes dois elementos; não é, porém, de excluir que ele ocorra também no exercício contraditório sem exigência de confiança».
Como refere António Menezes Cordeiro, o abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium «exprime o exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente. A conduta sinuosa é socialmente desprimorosa, pondo em causa a credibilidade do agente e fazendo oscilar a confiança nas relações humanas. O Direito proíbe condutas contraditórias: mas apenas em certas circunstâncias, historicamente reunidas em torno da boa-fé e do abuso do direito» (16).
Estreitamente ligada ao tipo venire contra factum proprium surge-nos a figura das inalegabilidades formais, a qual configura um subgrupo do venire (17).
Assim, a inalegabilidade aproxima-se do venire, requerendo, como ele: (1) a situação de confiança; (2) a justificação para a confiança; (3) o investimento de confiança; (4) a imputação de confiança ao responsável que irá, depois, arcar com as consequências» (18).
Analisando e densificando a questão de saber até onde é admissível a paralisação do efeitos da nulidade por vício de forma com recurso à boa-fé, Luís A. Carvalho Fernandes (19) enuncia as posições que têm vindo a ser enunciadas a propósito de tal questão pela doutrina portuguesa, e os argumentos em se alicerçam, sustentando ser de dar prevalência ao entendimento restritivo dos efeitos da exigência da forma legal, favorável à conservação do negócio jurídico e à tutela da confiança da contraparte, por força do cariz consensualista do sistema, relativamente a situações em que prevaleçam razões particularmente significativas, consubstanciadas em comportamentos juridicamente condenáveis da parte que da nulidade se quer prevalecer.
Foi também este o entendimento adotado na sentença recorrida, seguindo de perto o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2003 (20), tal como resulta do seguinte segmento da fundamentação da sentença recorrida: «Nos casos de nulidade formal dos negócios - como sucede no caso concreto -, a jurisprudência vem avisando que não é qualquer actuação que justifica o impedimento do exercício do direito de requerer a nulidade, porquanto as regras imperativas de forma visam, por norma, fins de certeza e segurança do comércio em geral, pelo que só excepcionalmente é que se pode admitir a invocação do abuso de direito, “desde que, no caso concreto, as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso de direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo”».
Assim, tratando-se de inalegabilidades formais, importa ainda ter em consideração outras três proposições: « (1) devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; nunca, também, os de terceiros de boa-fé; (2) a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar; (3) o investimento de confiança apresentar-se-á sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via.
Nesta altura, a tutela da confiança impõe, ex bona fide, a manutenção do negócio vitimado pela invalidade formal. (…) passará a ser uma relação legal, apoiada no 334.º e em tudo semelhante à situação negocial falhada por vício de forma» (21
Como se viu, a recorrente discorda da decisão recorrida, sustentando, além do mais, que alegada violação da confiança legítima do 2.º réu por invocação pela autora da nulidade formal do acordo de 06-01-2015 colide com os valores tutelados pela obrigatoriedade de que esse acordo fosse subordinado a um documento autêntico ou autenticado, não se verificando o requisito da clamorosa ofensa do princípio de boa fé e do sentimento geral perfilhado pela comunidade.
Feito este enquadramento, e ponderados os fundamentos de facto e de direito enunciados na decisão recorrida para decidir a questão enunciada, observa-se que o Tribunal a quo fez, em nosso entender, uma adequada avaliação da mesma posto que o entendimento sufragado corresponde ao que julgamos resultar efetivamente dos critérios legais aplicáveis em face do acervo fáctico que permanece inalterado em sede de apelação.
Em primeiro lugar, entendemos que os factos revelam uma conduta da autora e do 1.º réu que é objetivamente adequada a criar no 2.º réu a convicção de que a falta de autenticação do documento em apreço pelo notário (ou a não sujeição a escritura pública) não era impeditiva do cumprimento dos compromissos mútuos assumidos no acordo em referência.
Assim, não resulta dos autos que tais formalidades acrescidas tenham alguma vez sido exigidas pelo ora 1.º réu, ou pela autora/recorrente (que, no caso, apesar de não ter subscrito o documento, dele consta formalmente, juntamente com o 1.º réu - que o subscreveu efetivamente -, na qualidade de primeira outorgante, tendo ficado, além do mais, demonstrado que todas as negociações ocorreram com o seu conhecimento e consentimento, que consentiu na emissão da “declaração” referida em 9 bem como na devolução ao 2.º R. da quantia de 20.000,00 € - cf. ponto 29 dos factos provados). Aliás, tal como resulta dos autos, o referido documento foi reduzido a escrito e, inclusivamente, com as assinaturas reconhecidas presencialmente pelo Notário (cf. o ponto 9 dos factos provados).
Note-se, a propósito, que a demonstração da existência de negociações e de várias reuniões entre todos os intervenientes, tendo a autora e o 1.º réu, bem como a empresa X, sido representados por advogados, designadamente aquando da subscrição da “declaração” referida em 9 (tal como decorre do ponto 27 dos factos provados), é de molde a fazer crer que nunca iria ser invocada qualquer vício formal do negócio consubstanciado em tal declaração, sendo tais circunstâncias objetivamente idóneas a criar no 2.º réu a legítima convicção e confiança de que jamais os referidos intervenientes iriam invocar a nulidade do referido acordo por falta de forma mais solene, para se eximirem ao cumprimento dos compromissos mútuos assumidos no mesmo.
Deste modo, a arguição da nulidade formal do acordo vertido na referida declaração significa, no caso, sem qualquer dúvida, uma atuação contrária à que a autora e o 1.º réu marido desenvolveram durante as negociações e que culminaram na emissão da “declaração” referida em 9, a qual foi subscrita pelo 1.º réu/marido com o consentimento da autora/mulher, que consentiu na emissão da “declaração” bem como na devolução ao 2.º R. da quantia de 20.000,00 €, constituindo claramente e de forma ostensiva uma inversão de atuação que contraria a confiança justificadamente depositada pelo 2.º réu na estabilidade de tal acordo.
Tanto assim é que se provou, efetivamente, que o 2.º réu, tendo subscrito em 6-01-2015 a declaração agora posta em crise, logo no dia 7-01-2015 apresentou junto da Câmara Municipal ... um pedido de informação prévia sobre a viabilidade de realizar operação urbanística no prédio que adquirira (ponto 30 dos factos provados). E, tendo sido emitida uma informação contrária aos seus interesses, requereu a reapreciação do seu pedido em 1-07-2015 (pontos 31 e 32 dos factos provados). De seguida, tentou chegar a acordo com a proprietária do prédio serviente, A. V., para adquirir a propriedade do caminho, integrando-o no seu prédio (ponto 34 dos factos provados). Não obstante todos os contactos com a proprietária do prédio serviente se terem revelado infrutíferos - já que aquela recusou qualquer proposta de acordo (ponto 35 dos factos provados) -, o 2.º réu pediu ainda a várias pessoas que intercedessem nesse sentido junto da filha e genro da identificada A. V., mais uma vez sem qualquer sucesso (ponto 36 dos factos provados). Mais se provou que o 2.º réu chegou a colocar “touvenant” no caminho em questão, tendo sido interpelado pela GNR e recebido interpelação escrita por parte da A. V. para se abster de tais intervenções no caminho (ponto 37 dos factos provados). E, além de todas as diligências antes enunciadas, veio também a contactar um advogado para analisar a viabilidade de uma ação judicial, mas foi informado que inexiste qualquer ação judicial que obrigue a proprietária do prédio serviente a alargar, vender-lhe ou ceder-lhe, contra a sua vontade, tal faixa de terreno (ponto 39 dos factos provados).
Dos factos antes enunciados resulta indiscutível que o 2.º réu confiou fundadamente na validade, eficácia e permanência dos compromissos mútuos assumidos na “declaração” referida em 9., e que a falta de forma mais solene de tal acordo não seria invocada pela autora, já que todas as negociações ocorreram com o seu consentimento e conhecimento, consentindo ainda na emissão da na emissão da “declaração” referida em 9 bem como na devolução ao 2.º R. da quantia de 20.000,00 €.
Por outro lado, também não procede a alegação da recorrente de que o 2.º réu não envidou todos os esforços para superar os obstáculos colocados, antes se constatando que o 2.º réu atuou com a diligência necessária à prossecução dos compromissos assumidos, denotando a sua boa-fé no cumprimento dos encargos ou das obrigações respetivas, o que revela de forma clara o investimento na confiança adquirida com a subscrição de tal acordo, acreditando que a atuação da autora nunca conduziria ao pedido agora formulado na presente ação.
Assim sendo, resta sufragar inteiramente o juízo decisório vertido na sentença recorrida quando conclui que a autora deixou que decorressem cerca de dois anos e três meses durante os quais o réu J. G., de boa-fé, foi cumprindo as obrigações que assumira na dita “declaração” - e fê-lo com afinco, como vimos, e com custos pessoais e monetários – para o surpreender com a presente ação judicial.
Neste plano objetivo, resultam ainda manifestamente improcedentes e inócuas as referências feitas pela recorrente a propósito da invocada omissão ou insuficiência das diligências empreendidas pelo 2.º réu, designadamente com recurso a meios judiciais, para superar os obstáculos colocados pelos serviços técnicos da Câmara Municipal ... ou dando a conhecer ao 1.º réu marido as diligências efetuadas. Em primeiro lugar, deve dizer-se que a autora, ora recorrente, nunca antes invocou em sede de articulados o eventual incumprimento, ou a falta de diligência, do 2.º réu relativamente aos compromissos que assumiu na “declaração” referida em 9, limitando-se a invocar e peticionar a nulidade de tal declaração por vício de forma. Também nunca antes invocara a alegada falta de resposta do 2.º réu às interpelações do 1.º réu, o que, de resto, não consta da matéria de facto relevante para a decisão da causa. Por outro lado, e como se viu, importa realçar o notório empenho e o patente investimento do 2.º réu na confiança adquirida com a subscrição de tal acordo.
Por último, como se observou já, ganha relevo a circunstância de a autora ter deixado que decorressem cerca de dois anos e três meses, durante os quais o réu J. G., de boa-fé, foi cumprindo as obrigações que assumira na dita “declaração”, diligenciando por diversas formas e maneiras para que o objetivo pretendido (a edificabilidade do prédio) fosse alcançado, para o surpreender com a presente ação judicial, resultando objetivamente evidenciado nos autos que a autora apenas o fez quando se apercebeu que o 2.º réu esgotara todas as diligências empreendidas para o efeito. Assim, a “declaração” impugnada data de 6-01-2015 (ponto 9 dos factos provados) e a presente ação foi proposta no dia 8-03-2017 (ponto 42 dos factos provados), sendo que foi em agosto de 2016, que o 2.º réu disse à autora e ao 1.º réu que nunca conseguiria obter autorização de construção no terreno em questão, e que conforme o acordado com ambos, teriam os mesmos que restituir-lhe a quantia de 23.000,00 €, passando novamente aqueles a ser proprietários do prédio rústico.
Daí que pretender, agora, a autora, invocar a nulidade dos compromissos assumidos e consentidos, mediante a invocação da preterição de forma mais solene para tal declaração, constitui um evidente, manifesto e gritante abuso do direito, traduzido num venire contra factum proprium, por violação dos princípios da boa-fé e do investimento na confiança que o 2.º réu nela depositou, tal como concluiu - e bem - a sentença recorrida.
Por outro lado, os factos também revelam que tanto a autora como o 1.º réu, previamente à celebração da escritura pública de compra e venda celebrada a 29-12-2014 (aludida em 2 da matéria de facto provada), sabiam que o 2.º réu apenas pretendia adquirir o prédio rústico aludido em 2., para nele construir uma habitação em Ponte da Barca (pontos 16 a 18 dos factos provados). Apesar disso, e de saberem que tal construção nunca seria permitida, atentas as reais características do prédio (ponto 25 dos factos provados), não alertaram o 2.º réu que o caminho de acesso ao prédio era um caminho de servidão de passagem, tendo garantido sempre que o terreno em questão permitia a construção de uma habitação (pontos 7, 21, 22, 23, 24 e 25 dos factos provados). Ainda assim, e após contacto do 2.º réu com a empresa que mediara a celebração do contrato de compra e venda, a exigir que o negócio celebrado fosse desfeito e que lhe fosse restituída a quantia paga, o 1.º réu alegou que tal não poderia suceder uma vez que ele e a autora já tinham gasto a quantia que aquele pagara pela aquisição do prédio (ponto 26 dos factos provados), pelo que se iniciaram negociações e várias reuniões entre todos os intervenientes, tendo a autora e o 1.º réu, bem como a empresa X, sido representados por advogados, designadamente aquando da subscrição da “declaração” referida em 9 (ponto 27), sendo que todas as negociações ocorreram com o conhecimento e consentimento da autora, que consentiu na emissão da “declaração” referida em 9 bem como na devolução ao 2.º R. da quantia de 20.000,00 € (ponto 29), tal como ficou a constar da referida declaração.
Assim, revela-se evidente que a situação de investimento na confiança por parte do 2.º réu, que é considerável, deve ser censuravelmente imputável à conduta adotada pela autora, juntamente com o 1.º réu marido, tal como também concluiu a sentença recorrida.
E nem se diga, como sustenta a apelante na alegação da presente apelação, que o fundamento invocado pelo réu comprador para a celebração daquele acordo de 06-01-2015 consiste na ocorrência de erro quanto às características do objeto do negócio, pelo que o 2.º réu/recorrido dispunha de um meio diferente do abuso do direito para evitar e, ou, remover o prejuízo invocado, mediante pedido de anulação do negócio - quer dentro do prazo normal de um ano, quer posteriormente, inclusive por via de reconvenção na presente ação -, pois o que se verifica é que a declaração posta em crise na presente ação consubstancia, como se viu, um pacto modificativo das obrigações plasmadas no contrato de compra e venda celebrado em 29-12-2014, o que só por si inviabilizava o recurso à invocada anulação do negócio com base no invocado erro. Efetivamente, tendo o réu J. G. apurado, após a celebração do contrato, que o acesso da via pública ao prédio rústico que comprara à autora e ao 1.º réu era feito através de um caminho de servidão que onerava uma parcela de terreno de um prédio vizinho e que tal circunstância colocaria entraves à edificação de uma habitação no local, como sempre fora sua pretensão (cf. pontos 7, 8, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23), quis primeiramente desfazer o negócio (ponto 26) mas acabou por entrar em negociações com os vendedores para solucionarem o problema detetado, tendo sido nesse contexto que foi subscrita a “declaração” em apreço (ponto 27), na qual o réu comprador se obrigou a desenvolver diligências com vista a “garantir o acesso pleno à via pública” do prédio adquirido aos vendedores, desse modo obtendo o licenciamento camarário necessário para ali construir uma habitação. Caso fosse bem-sucedido, o contrato de compra e venda manter-se-ia e o 2.º réu devolveria a quantia de 20.000,00 € que os vendedores, na data da subscrição do documento, lhe restituíram; caso contrário, estes últimos ver-se-iam obrigados a revogar o contrato, o que teria como consequência a restituição do imóvel transmitido e a entrega do remanescente do preço (23.000,00 €).
Daí que se conclua que o investimento de confiança adotado pelo 2.º réu, além de considerável, dificilmente poderia ser assegurado por outra via que não a presente invocação do abuso do direito.
Por último, resta constatar que, no caso, estão em causa apenas os interesses das partes envolvidas, pelo que a manutenção do negócio atingido pela invalidade formal, por via da figura jurídica do abuso do direito, não importa qualquer prejuízo para eventuais terceiros de boa-fé protegidos pela publicidade que implica a exigência de documento autêntico ou documento particular autenticado, em nada colidindo com os valores inerentes a tal exigência formal.
Por conseguinte, em face da factualidade apurada e das circunstâncias concretas do exercício do direito da autora a invocar a invalidade formal do negócio celebrado em 6-01-2015, mostra-se admissível a paralisação dos efeitos de tal invalidade com recurso à boa-fé, por configurar um evidente abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por violação dos princípios da boa-fé e do investimento na confiança que o 2.º réu nela depositou, o que importa a improcedência da pretensão formulada pela autora na presente ação, tal como concluiu - e bem - a sentença recorrida.
Daí que improcedam integralmente, nesta parte, as conclusões da apelação, restando confirmar a sentença recorrida no segmento em que julgou improcedente a ação.

2.3. Aferir se deve manter-se a condenação da autora/apelante como litigante de má-fé.
Na alegação da apelação a recorrente parece expressar a sua discordância relativamente à condenação como litigante de má-fé, sustentando sinteticamente que não litigou com má-fé (Conclusão XXXVII da alegação).
Neste particular, cumpre analisar se deverá ou não ser mantida a decisão que condenou a autora/apelante como litigante de má-fé na multa de 10 (dez) UC, e no pagamento de uma indemnização ao réu J. G. no montante de 1.000,00 € (mil euros).

Litiga de má-fé, nos termos do artigo 542.º, n.º 2, do CPC, a parte que, com dolo ou negligência grave:
«a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

Tal como decorre do n.º 2 do citado preceito legal, só a atuação dolosa ou gravemente negligente da parte pode sustentar a responsabilização da parte como litigante de má-fé, orientação que perdura desde que foi consagrada pelo Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12-12 relativamente ao n.º 2 do correspondente artigo 456.º do CPC então em vigor, passando assim a sancionar-se, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária (22).
Assim, «As partes têm o dever de pautar a sua atuação processual por regras de conduta conformes com a boa-fé (art. 8). A lide diz-se temerária, quando essas regras são violadas com culpa grave ou erro grosseiro, e dolosa, quando a violação é intencional ou consciente. A litigância temerária é mais do que a litigância imprudente, que se verifica quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culposamente, mas apenas com culpa leve» (23).
A este propósito, explicam ainda António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa (24), em anotação ao referido preceito, que «a má-fé, quer dolosa, quer baseada em culpa grave, continua a poder apresentar-se sob as vestes da litigância substancial ou instrumental. Integrará a primeira a conduta da parte que infringir o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava ou não devia ignorar, a que alterar a verdade dos factos ou a que omitir factos relevantes para a decisão da causa».
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-02-2015 (25), «[i]mpõe-se, pois, para que haja litigância de má-fé, que a parte, ao deduzir a sua pretensão ou oposição infundamentada ou ao afirmar factos não ocorridos, tenha atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, ou encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento».
Neste contexto, deve entender-se que viola gravemente o dever de cooperação com o tribunal e a parte contrária, devendo ser sancionada por litigância de má-fé a conduta do réu que nega factos pessoais que vieram a ser declarados provados (26).
No caso presente, e tal como sublinhou a sentença recorrida, a autora alegou em sede de petição inicial que só teve conhecimento do teor da “declaração” (a que se reporta o ponto 9 do elenco dos factos provados) em janeiro de 2017 (cf. o alegado no artigo 17.º da petição inicial).
Ao invés, o que se verifica é que se provou uma versão dos factos que se mostra de todo incompatível com o alegado pela autora em sede de petição inicial, ou seja, e tal como também se sintetizou na decisão recorrida, que «apesar de à data das negociações entabuladas entre o seu marido e o R. J. G. se encontrar ausente em Lisboa a prestar assistência a um filho que se encontrava a recuperar de uma intervenção cirúrgica, elas ocorreram com o seu conhecimento e consentimento, tendo consentido na emissão da dita “declaração” bem como na devolução ao 2.º R. da quantia de 20.000,00 €».
Ora, perante o que resulta dos factos provados não pode deixar de se concluir, tal como fez a decisão recorrida, que a autora tinha perfeito conhecimento, por serem factos pessoais que, por esse mesmo motivo, a autora não podia desconhecer, que a correspondente versão dos factos constante da petição inicial não correspondia à verdade.
Por conseguinte, a conduta processual da autora permite configurar uma alteração consciente da verdade dos factos, o que leva a qualificar tal comportamento à luz do disposto no artigo 542.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CPC, como litigante de má-fé, tal como concluiu a 1.ª instância.
A propósito dos critérios atinentes à fixação do montante da multa por litigância de má-fé importa considerar o que estabelece a artigo 27.º, do Regulamento das Custas Processuais, ao prever que nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC (n.º 3), e que o montante da multa ou penalidade é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste (n.º 4 do citado preceito legal).
No caso vertente, verificamos que a sentença recorrida atendeu devidamente à gravidade da atuação da autora e aos seus reflexos na sustentação das pretensões formuladas pela autora na presente ação.
Não obstante a inexistência de elementos sobre a situação económica da autora, ponderou ainda como sendo razoável a situação económica da litigante, já que não requereu não requereu que lhe fosse concedido apoio judiciário, fixando em 10 UC a correspondente multa.
Por conseguinte, à luz de todo o enquadramento antes enunciado, consideramos que a fixação da multa no montante de 10 UC mostra-se adequada e proporcional às circunstâncias do processo e às finalidades da condenação, entendendo-se que o juízo em que ela assenta engloba já todos os reflexos da atuação processual da autora na sustentação das pretensões formuladas pela autora na presente ação.
Verificando-se, por último, que os elementos constantes dos autos permitem fixar, desde logo, a importância da indemnização devida, tendo como critério fundamental a gravidade da conduta do litigante de má-fé e fixando-a sempre em quantia certa, nos termos previstos no artigo 543.º, n.º 2, do CPC, revela-se adequada a condenação da autora como litigante de má-fé, bem como a ponderação efetuada pelo tribunal recorrido quanto ao montante da multa fixada e à indemnização prevista no artigo 543.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPC, esta última no montante de 1.000,00 €.
Pelo exposto, cumpre julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar integralmente a sentença recorrida.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada improcedente, as custas da apelação são integralmente da responsabilidade da recorrente, atento o seu decaimento.

Síntese conclusiva:

I - Atua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, a autora que vem invocar e pedir a nulidade de declaração que materializa compromissos assumidos com o 2.º réu e por aquela anteriormente consentidos - sendo que todas as negociações prévias ocorreram com o seu conhecimento e consentimento, inclusivamente representada por advogado -, mediante exclusiva invocação da preterição de forma mais solene para tal declaração, quando deixou que decorressem cerca de dois anos e três meses sobre a mesma e durante tal período de tempo o 2.º réu, de boa-fé, cumpriu as obrigações que assumira na dita “declaração” com notório empenho e justificado investimento na confiança adquirida com a subscrição de tal acordo, diligenciando por diversas formas e maneiras para que o objetivo pretendido (a edificabilidade do prédio) fosse alcançado - apesar de não lhe serem imputáveis as condicionantes que levaram à necessidade de tal acordo mas antes a conduta censuravelmente imputável à conduta adotada pela autora, juntamente com o 1.º réu marido -, e resulta objetivamente evidenciado nos autos que a autora apenas recorreu à presente ação judicial quando se apercebeu que o 2.º réu esgotara todas as diligências viáveis para o efeito, conforme informação prestada por este.
II - Em face das circunstâncias concretas do exercício do direito da autora a invocar a invalidade formal do negócio celebrado mostra-se admissível a paralisação dos efeitos de tal invalidade por configurar um evidente abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por violação dos princípios da boa-fé e do investimento na confiança que o 2.º réu nela depositou, sendo certo que a manutenção do negócio atingido pela invalidade formal não importa, no caso, qualquer prejuízo para eventuais terceiros de boa-fé protegidos pela publicidade que implica a exigência de documento autêntico ou documento particular autenticado, em nada colidindo com os valores inerentes a tal exigência formal, e o investimento de confiança adotado pelo 2.º réu, além de considerável, dificilmente poderia ser assegurado por outra via que não a presente invocação do abuso do direito.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, assim confirmando integralmente a sentença recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.

Guimarães, 11 de novembro de 2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Joaquim Espinheira Baltar (1.º adjunto)
Luísa Duarte Ramos (2.º adjunto)



1. Cf. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2013, p. 126.
2. Relator Melo Lima, proferido na revista n.º 1348/12.7TTBRG.G1.S1- 4.ª Secção - disponível em www.dgsi.pt.
3. Cf. o Ac. do STJ de 19-05-2015 (relatora: Maria dos Prazeres Beleza), revista n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 - 7.ª Secção - disponível em www.dgsi.pt.
4. Com o seguinte teor: «25. A. e 1.º R. bem sabiam que tal construção nunca seria permitida, atentas as reais características do prédio».
5. Cf. por todos, o Ac. do STJ de 28-09-2017 (relatora: Fernanda Isabel Pereira), p. n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1 – 7.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
6. Cf. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 738.
7. Relator Salazar Casanova, p. 4073/04.9TBMAI.P1, disponível em www.dgsi.pt com o seguinte sumário, na parte que aqui releva: «[n]ão devem ser necessariamente consideradas não escritas as respostas a quesito quando nele se formulam questões de facto posto que integrem índole conclusiva ou juízos de valor de facto ou a formulação de vocábulos de uso e compreensão correntes ainda que utilizados no Direito, designadamente quando tais respostas evidenciam a compreensão da realidade de facto questionada, não devendo, por isso, proceder-se em todos os casos, abstraindo das circunstâncias concretas, a uma interpretação extensiva ou analógica do artigo 646.º/4 do C.P.C. assimilando sempre tais questões a questões de direito».
8. Relator Nuno Cameira, p. 07A3060, disponível em www.dgsi.pt.
9. Neste sentido, cf. por todos, o Ac. TRG de 30-11-2017 (relator: António Barroca Penha) p. 1426/15.0T8BGC-A.G1, disponível em www.dgsi.pt.
10. Cf., por todos, o Ac. TRE de 07-11-2019 (relatora: Maria João Sousa e Faro), p. 34/09.0TBPVC.E1, disponível em www.dgsi.pt.
11. Cf. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 6.ª edição, Coimbra, Almedina, 1989, pgs. 515-516.
12. Cf., Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 298.
13. Cf., Pires de Lima e Antunes Varela - Obra citada - p. 299.
14. Cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil II, Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica, 5.ª edição - revista e actualizada, Lisboa, 2017, Universidade Católica Editora, p. 624.
15. Obra Citada, p. 628.
16. Cf., António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Coordenação António Menezes Cordeiro, CIDP, Almedina, 2020, p. 933.
17. Cf., António Menezes Cordeiro – Obra citada -, p. 936.
18. Cf., António Menezes Cordeiro - Obra citada -, p. 642.
19. Obra Citada, pgs. 302 e 303.
20. Relator Araújo Barros, p. 03B3125, disponível em www.dgsi.pt.
21. Cf., António Menezes Cordeiro - Obra citada -, pgs. 642-643.
22. Cf. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 456.
23. Cf. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Ob. Cit. p. 456, em anotação ao artigo 542.º do CPC.
24. Cf. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 593.
25. Relator Silva Salazar, p. 1120/11.1TBPFR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
26. Neste sentido, cf. o Ac. do STJ de 18-10-2018 (relator: Ilídio Sacarrão Martins), p. 74300/16.1YIPRT.E1-A. S1 - 7.ª Secção -, disponível em www.dgsi.pt.