HOMICÍDIO
COMISSÃO POR OMISSÃO
DEVER DE GARANTE
IMPUTAÇÃO OBJECTIVA DO RESULTADO
ILICITUDE NA COMPARTICIPAÇÃO
CULPA NA COMPARTICIPAÇÃO
Sumário

I – Sendo a arguida madrasta da vítima, ainda assim, perante uma relação de parentesco de menor intensidade do que o vínculo existente entre pais e filhos, a posição de garante do bem jurídico protegido exigida para a punição da comissão de um resultado por omissão decorre da combinação de uma fonte de carácter mais formal (as obrigações legalmente impostas à madrasta, mormente em dever de alimentos) com uma fonte de carácter material – a estreita comunidade de vida mantida entre ambas.

II – Adicionalmente, numa perspectiva diferente, surge reforçada a conclusão de sobre a arguida impender um dever de garante quando a mesma, madastra da vítima, é a única pessoa com possibilidade de poder intervir no sentido de evitar o resultado morte – no caso concreto, para além do arguido (agente comissivo por acção do crime), na habitação onde ocorreram os factos estavam apenas os outros filhos menores do arguido.
III – Acresce ainda que, na situação ocorrida, existiu uma enorme desproporção entre o bem jurídico colocado em perigo (a vida), e o esforço mínimo exigido à arguida no sentido de tentar evitar a produção do resultado típico; bastaria um simples telefone ou a saída de casa para pedir socorro.
IV – A omissão juridicamente relevante iniciou-se no momento em que a arguida não interrompeu de forma decisiva o processo causal, pedindo o auxílio de terceiros.
V – A omissão assume maior relevo quando, após a menor ter ficado inanimada, a madastra, representando que aquela podia morrer, com cuja possibilidade se conformou, em vez de promover imediato socorro, assumiu uma posição de passividade, contribuindo para que a menor permanecesse num sofá até ao momento do seu decesso.
VI – Nestes termos, a não prestação de socorro foi juridicamente adequada a provocar o resultado morte, ao menos no sentido de que a arguida não diminuiu o risco de que tal pudesse acontecer.
VII – As situações dos exemplos - padrão referidos no n.º 2 do artigo 132 do Código Penal são relevantes por via da culpa e não da ilicitude, e, por isso, não são comunicáveis, mas susceptíveis de valoração autónoma em relação a cada comparticipante, aplicando-se, não o artigo 28.º, mas o disposto no artigo 29 do referido diploma.

Texto Integral










I – Relatório
1.1. S. e M. vieram interpor recurso, em separado, do acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal (Juiz 3) do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria que condenou;
a) o arguido S. pela prática, em co- autoria material:
- um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos art. 131°, 132°, n° 2, al. a), c), d), e) e j) e 69°-A, todos do Código Penal, na pena de 22 anos de prisão;
- um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, previsto e punível pelo art. 254°, n° 1, al. a), do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão;
- um crime de abuso e simulação de sinais de perigo, previsto e punível pelo art. 306° do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão;
- e de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art. 152.º, n.º 1, al. d), n.º 2, al. a) e n.º 6, do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão.
Em cúmulo jurídico destas penas parcelares de prisão na pena única de 25 anos de prisão.
b) a arguida M., pela prática, em co-autoria material, de:
- um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos art. 131°, 132°, n° 2, al. a), c), d), e) e j) e 69°-A, todos do Código Penal, na pena de 18 anos de prisão;
- um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, previsto e punível pelo art. 254°, n° 1, al. a), do Código Penal, na pena de 18 meses de prisão;
- um crime de abuso e simulação de sinais de perigo, previsto e punível pelo art. 306° do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico destas penas parcelares de prisão na pena única de 18 anos e 9 meses de prisão.

1.2 - O arguido S. veio recorrer (recurso A), apresentando as seguintes conclusões:
I) Vem o arguido interpor recurso parcial do acórdão “a quo”, na parte em que decidiu pela condenação do recorrente pela prática de um único crime de homicídio qualificado previsto e punível previsto e punível pelos arts. 131º e 132º, nº 2 – alínea J – “in fine” do CP: conforme decisão “a quo” de fls.
II) O presente recurso visa questionar a avaliação das provas obtidas no curso do julgamento, face ao factualismo provado, em relação da circunstância qualificadora do crime de homicídio qualificado, no tocante ao facto de o arguido ter persistido ou não na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas – art. 132º/2, Al. J – in fine.do CP.
III) Mantendo-se, porém, relativamente ao crime de homicídio qualificado, a condenação prolatada na sentença “a quo”, relativamente às alíneas a), c) d), e) e j) -1ª parte, todos do nº 2 do art. 132º do CP; bem como se excluem do âmbito do presente recurso, as seguintes condenações: 18 meses pelo crime de profanação de cadáver, 9 meses pelo crime de abuso e simulação de sinais de perigo e 3 anos pelo crime de violência doméstica.
IV) A motivação exposta no presente recurso e as respectivas conclusões, fundamentam-se exclusivamente em matéria de direito, sendo que a sua procedência implicará a redução do sancionamento concreto do arguido, como a final se pedirá.
V) O nº 2 do art. 132º do CP e respectiva Alínea J vem estatuir o seguinte:

“(…) 2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: (…)”

“j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.”

VI) Nestes termos, a frieza de ânimo e a persistência na intenção de matar por mais de 24 horas, é certamente uma das circunstâncias mais fortes da especial censurabilidade ou perversidade do autor do crime de homicídio qualificado é condição essencial da agravação.

VII) Ainda que o Acórdão “a quo” considere que se encontre provado que o arguido agiu com frieza de ânimo – Cfr. nºs 14 a 20 dos factos provados, o mesmo já não se poderá dizer em relação na persistência na intenção de matar por mais de 24 horas - Cfr. nº 13 e ss. dos factos provados, tendo em conta os factos que ocorreram nos dias 1 e 6 de Maio.

VIII) A premeditação mencionada na alínea J – “in fine” do nº 2 do art.º. 132º do CP supõe uma resolução tomada que depois se protrai até a execução por um apreciável espaço de tempo que revela uma forte intensidade da vontade criminosa.

IX) Ou seja, nunca existiu premeditação por parte do arguido, em relação a tirar a vida à sua filha menor, conforme consta no item 13 dos factos provados.

X) Ou seja, não houve persistência na intenção do progenitor em matar a sua filha menor ao contrário do que afirma o acórdão às fls. 48:

“(…) Ora, também esta alínea se preenche, pois, o arguido já dias antes tinha espancado a filha, para saber o que teria sucedido com o padrinho e, por outro lado, não se deteve no prosseguimento do crime, estando a sua sensibilidade endurecida pela paixão que o animava.”

XI) O que sucede é 5 dias depois que o S. aborda a filha novamente sobre o assunto, apenas insiste perante a V. sobre os acontecimentos entre a V. e o Padrinho e a V. e seus coleguinhas de escola, o que mais uma vez ela não contou ao seu progenitor.

XII) Isto por não haver empatia e proximidade entre pai e filha, que é confirmado pelo relatório social junto aos autos o qual afirma que os laços afectivos não eram tão consistentes como o que mantinha com as outras filhas, fruto da união com a co-arguida M..

XIII) Por outro lado, o relatório social venha elucidar sobre a vida pregressa do S., mas não esclarece o que levou o arguido a proceder a tomar àquelas atitudes contra a própria filha, no decorrer dos acontecimentos do dia 06/05/20.

XIV) Sendo determinante para tal, a perícia sobre a sua personalidade, indeferida em sede de inquérito e de julgamento, uma vez que a analise da conduta do arguido, face a convicção do Juiz, baseado nas regras da experiência é insuficiente, pois a dita perícia poderia ajudar esclarecer a compreender o comportamento do arguido, nomeadamente na manhã do dia 06 de Maio de 2020.

XV) Concluindo-se aqui que pelos motivos acima expostos, o arguido excede largamente, nos meios em que procurou obter a verdade dos factos, o que levou a uma sucessão de factos ocorridos naquele mesmo dia 06/05, que num nexo causal que levou a morte da V., o qual se verificou, já na tarde de 06/05/20.

XVI) Assim, conclui-se que o arguido S. nunca premeditou o assassínio da própria filha, já que o mesmo não queria, nem previa tal resultado; mesmo porque a premeditação não está provada nos presentes autos, desde o dia 1 de Maio de 2020.

XVII) Face ao acima exposto, deve-se concluir que este tribunal não deve condenar o arguido S., pela prática do crime de homicídio qualificado, no que concerne a premeditação a que alude a alínea J – In fine. do nº 2 do art.º. 132º do CP.

XVIII) Ainda que as exigências de prevenção especial e geral e que as culpas sejam elevadíssimas, face a gravidade que o crime de homicídio qualificado, as penas nunca baixaram dos 14 anos, num limite legal inferior, de 12 anos, e nunca ultrapassaram os 20 anos, num limite legal, superior, de 25 anos.”

 XIX) A pena fixada ao arguido foi de 22 anos, muito próxima do limite máximo de 25 anos; ainda que em nosso entender, o Acórdão não tenha deixado claro o critério de para estabelecer os 22 anos de cumprimento efectivo da pena de prisão.

XX) Entendemos, porém, com a devida vénia, que por cada alínea em que o arguido foi condenado, pode se dizer que 22 anos corresponde a 4 anos e 5 meses por cada alínea considerando a seguinte conta 22 anos/ 5 (número alíneas a que foi condenado) = 4,4 Meses ou 4 anos e 5 meses por cada alínea.

XXI) Assim como 4 anos e 5 meses corresponde a 53 meses, no caso da alínea J em que incide sobre a frieza de ânimo e a persistência na intenção de matar, sendo que no presente recurso em relação a esta última agravante pede-se que não se incluída no computo da pena do arguido.

XXII) Assim considerando que a alínea J tal como todas as alíneas do dito nº 2, correspondem a 53 meses, a metade de 53 meses corresponde a 26 meses, ou seja, 2 anos e 2 meses.

XXIII) Assim, a pena de prisão efectiva a ser aplicada sem se considerar a Alínea J – “in fine”, deve ser reduzida em 2 anos e 2 meses (26 meses), pelo que considerando que cada alínea a que o arguido foi condenado corresponde a 4 anos e 5 meses (53 meses).

XXIV) sendo que no caso de excluir a alínea J – in fine – corresponde a 2 anos e 2 meses que corresponde a 26 meses, que é a metade de 53. (Cfr. arts. 34 ao 37 das alegações).

XXV) Assim, a pena de prisão efectiva aplicada ao arguido só pela prática do homicídio qualificado deve ser reduzida de 22 anos para 19 anos e 10 meses, no caso de ser determinado por esta Relação, que o arguido efectivamente não persistiu na intenção de matar.

 XXVI) Porém, não se deve olvidar que a pena ora reduzida continua a somar-se obviamente aos 18 meses pelo crime de profanação de cadáver e 9 meses pelo crime de abuso e simulação de sinais de perigo e 3 anos pelo crime de violência doméstica, pelo que a pena aplicada em cúmulo jurídico, no acórdão “a quo” reduz-se dos 25 anos para os 22 anos e 10 meses.

XXVII) Pelo que se mantém também a moldura penal de 22 anos a 27 anos de prisão, determinado pelo acórdão em questão, mas que por imperativo legal reduz-se para os 25 anos, mas que poderá ser diminuída para 22 anos e 10 meses caso se determine a exclusão da agravante da premeditação-Art. 132º/2, Al. J- “in fine”.

XXVIII) Face o acima exposto, o cúmulo jurídico da pena imposta ao arguido, deve ser reduzida dos 25 anos para os 22 anos e 10 meses.

XXIX) Assim o acórdão do tribunal colectivo que ora se recorre, violou o disposto nos arts. 131º e 132º, nº 2 – alínea J – “in fine” ambos do CP.

1.3. A arguida M. veio recorrer (recurso B), apresentando as seguintes conclusões:

1. A sentença proferida condenou a ora recorrente em co-autoria e na forma consumada, de um crime de homicídio qualificado p.p pelos artigos 131, 132.2 a), c), d), e) e j) e 69 A do CP na pena de 18 (dezoito) anos de prisão; Um crime de profanação de cadáver ou lugar fúnebre, p.p artigo 254.1 a) do CP na pena de 18 (dezoito) meses de prisão; Um crime de abuso e simulação de sinais de perigo, p.p pelo artigo 306 do CP na pena de 9 (nove) meses de prisão; Em cumulo jurídico das penas parcelares de prisão foi a recorrente condenada na pena única de 18 anos e 9 meses de prisão.

2. Para tanto, entendeu o tribunal à quo encontrar-se verificado o crime de homicídio por comissão, quanto á recorrente, considerando existir uma relação de proximidade pratica relativamente à Valentina, pois esta tinha-lhe sido confiada pela mãe, com ela (e o pai, o arguido S.) vivendo já a algum tempo. Impunha-se-lhe, pois, um dever jurídico que pessoalmente a obrigava a evitar o resultado decorrente da sua omissão”

3. A previsão do n.º 2 do art.º 10 do CP só se aplica quando existe um dever jurídico que   pessoalmente obrigue o agente a evitar o resultado.

4. Esse dever tem de decorrer diretamente da lei e não de quaisquer princípios morais ou de direito natural;

5. No caso em apreço, esse dever jurídico não se verifica entre recorrente e a vitima V., pelo que não é tal norma – artigo 10 n.º 2 do CP - aplicável ao caso sub judice

6. Entendeu o tribunal a quo ser o n.º 2, artigo 10 do CP uma restrição ao disposto no n.º 1 do mesmo preceito “… ao pressupor que a omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado decorrente da sua omissão. Trata-se de uma restrição de reconhecido melindre já que o legislador não nos fornece de pistas seguras que nos elucidem sobre qual a fonte desse dever jurídico (lei, contrato, situação concreta criada) nem quando se pode afirmar que, existindo esse dever, o omitente está pessoalmente obrigado a evitar o resultado proibido”.

7. Reconhecendo o tribunal a quo a lacuna do legislador quanto a falta de pistas que elucidem sobre qual a fonte desse dever jurídico, sempre deveria o tribunal recorrido ter decidido pela absolvição da recorrente relativamente ao crime de homicídio qualificado de que aquela vinha acusada,

8. Decidindo como decidiu, fê-lo contrariando o seu próprio entendimento;

9 .Quanto mais não seja, numa clara violação do principio in dúbio pro reo.

10. O Tribunal á quo equiparou o faccere ao omitter (nos termos do art.º 10.1 CP) numa clara expansão das margens da punibilidade, subtraindo-se ao principio da tipicidade penal e da legalidade.

11. Ainda que existisse um qualquer dever jurídico por parte da recorrente que fizesse cair a omissão da conduta, na previsão do n.º 2 do art. 10 do CP, não se encontra verificado o nexo de causalidade entre o facto ocorrido e a omissão da recorrente.

12.O n.º 1 do artigo 10 do CP consagra a doutrina da causalidade adequada para resolver a imputação objetiva do resultado ao agente e a equiparação da omissão à ação e para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma ação, ou omissão, é necessário que, em abstrato, ação ou omissão seja idónea para causar o resultado

13.Ora, considera o tribunal a quo como provado ter resultado a morte de V. de contusão cerebral com hemorragia subaracnoideia sendo esta causa de morte violenta, por ação contundente.

14. Deu o Tribunal à quo igualmente como provado que “o arguido desferiu múltiplas pancadas, com muita força, nas pernas e nádegas da menor Valentina, e que, já na casa de banho, o arguido S. desferiu uma pancada com muita força, com as mãos, na cabeça da mesma, na parte superior do crânio, que lhe provocou uma hemorragia interna e, consequentemente, fez com que ela caísse na banheira, tendo esta de seguida começado a desfalecer e a ter convulsões.

15. Resulta igualmente provado, das declarações de S. (arguido), declarações da recorrente e do testemunho de R. ter-se a recorrente interposto entre o arguido S. e a vitima no sentido de o demover à prática dos atos que conduziram a morte da vitima

16. O que resulta provado em sede de primeiras declarações do arguido S., a instancias do Ministério Público (segue transcrição dessas declarações)

“0h49m10s – S.: “Foi a minha mulher que diz para eu me acalmar e eu depois larguei aquilo tudo e fui para o quarto outra vez”

0h50m26 s - Procuradora: “E bateu como atingindo a cara atingindo o corpo... várias vezes?

S.: Oh minha senhora isso não sei...

Procuradora: E foi uma vez, várias vezes?

S.: foi até a minha mulher é que me puxou para eu parar

0h50m47s Procuradora: ou seja a sua esposa puxou-o e o senhor foi-se embora?

S.: Não, claro que não. Disse-lhe a ela para parar que não tem nada que andar a puxar que a filha é minha. Mas e depois eu fui para o quarto outra vez.

0h55m34s – Procuradora: "e a sua esposa perante isto (as agressões)?

S.: A minha esposa sempre...foi contra tudo o que eu fiz 55.40

0h55m40s Procuradora – “não, mas eu não lhe perguntei isso. Perguntei-lhe como é que ela fez em

termos de gestos ou de palavras?

S.: "para eu não fazer, para parar, para eu não fazer essas coisas 55.50

0h52m51s Procuradora – “só dizia ao senhor verbalmente, é isso?”

S.: "sim... e... agarrava-me e eu "afastava (?)" ela para ela não se meter neste assunto...essas coisas assim"

0h56m51s Procuradora- "e a sua esposa aí, foi ter consigo, não foi?

S.: Claro, ela estava sempre a tentar-me acalmar

0h56m56s Procuradora - "o que é que ela fez aí, na casa de banho?

S. "ela tentava... agarrava-me no chuveiro para eu não coiso... tentava-me desligar a agua... ela estava aqui neste lado e eu dizia-lhe para se afastar.

0h57m07s Procuradora – “e não se pôs à frente, por exemplo?”

 S.: “pôs-se claro”.

57.19 Procuradora - "então não se pôs à frente?”

S.: “pôs-se mas eu afastava sempre ela”.

0h57m23s - Procuradora – “então o senhor desviou a agua, foi isso?”

S.: "não sei não me recordo... sempre que ela vinha, sempre quer ela vinha, sempre que a minha esposa vinha para se pôr entre mim e a minha filha eu afastava sempre ela”.

17. E, em sede de declarações do arguido S., em primeira audiência de julgamento (26/3/2021), a instância do MP:

0h4m16 ss - Procuradora: Sr. S., do seu ponto de vista, quando é que a menina morreu?

S.: Quando já estava... quendo estava sentada no meu colo... eu aí deixei de sentir a pulsação.

0h4m30ss Procuradora: E a respiração dela?

S.: não senti mais nada.

0h4m35ss Proc. Os olhos dela como é que estavam?

S.: estavam semicerrados.

0h4m54ss Proc. e nessa altura o sr. disse à M. que a menina estava morta?

S.: sim, acho que sim.

0h5m01ss - Proc. Portanto quando a pôs no sofá, para si, ela já estava morta?

S.: Certo, sim.

18. E bem assim em sede de declarações para memória futura, da única testemunha presencial dos factos, R:

0h04m00 ss- R. - Acordei por volta das oito e meia da manhã e ouvi a V. dizer “Pára”. Ele estava-lhe a bater imenso.

0h4m15ss - A minha mãe a dizer para ele parar que ela ainda era pequena.

0h4m50ss - ...Molhava-a com agua a ferver, a minha mãe a chorar, a dizer para ele parar quieto que ela ainda era pequena. Que aquilo estava a aleija-la muito para ele parar quieto 5.03.

0h5m03ss – “… minha mãe disse para ele chamar o INEM, a policia, os bombeiros, chama a ajuda e ele disse assim "não, a filha é minha eu não vou chamar, eu faço aquilo que quiser" ... e a minha mãe disse "não, não faças isso, chama a ajuda. E ele "não, não te metas entre mim e ela que este assunto é entre mim e ela, por isso não tens de te meter, não tem nada a haver contigo. E a minha mãe continuou a insistir para ele chamar ajuda e ele não deixou. E depois ele disse assim "se tu disseres alguma coisa a alguém tu vais ficar sem as meninas e o R.”

0h28m21s R.: "ouvi alguém ir contra a parede e depois vi a V. a andar um bocadinho para a frente e cair da banheira. E a minha mãe foi a tentar levantá-la, ajudá-la, só que o S. afastou a minha mãe e foi aí que ele ameaçou a minha mãe de ficar sem nós.

0h29m58ss MM Juiz: e então, o que é que aconteceu imediatamente a seguir?

R.: a minha mãe foi tentar ajudar a V..

0h30m02ss - P. como é que a tua mãe fez?

R.: a minha mãe... ela viu que o S. lhe ia bater mais, afastou o S. e ia agarrar nela.

30.19 P. O S. também a tentou levantar, é isso?

R. sim, só que eu vi a minha mãe empurrar o S. para tentar levantar a V.. O S. aí pôs a minha mãe ao pé da parede “tu... isto é entre mim e ela... eu é que sou o pai dela eu sei o que é que faço”. E depois o S. disse à minha mãe que se... que aquilo era entre ela e ele, e se ela se atrevesse a chamar ajuda ou dizer a alguém o que quer que fosse que me ia perder a mim e às minhas irmãs.

R.: começou a perder a força. A minha mãe viu que não estava nada bem com ela. Disse ao S. para estar ali a olhar por ela. Ela perguntou-lhe "queres que eu chame o INEM, queres que eu chame o INEM? Queres que chame os bombeiros?" e ele disse assim “Não, não chamas nada que senão ficas sem os miúdos!”

19. Em esclarecimentos prestados pelo perito médico legal, fica provado que V. terá falecido escassos minutos após as agressões

“0h 2m50ss – MM Juiz. O sr. Doutor diz algum tempo depois dessas agressões, é isso?”.

Perito: exatamente.

0h3m02ss – MM Juiz Esse tempo, podemos fixá-lo nesse intervalo de tempo?

Perito: isso é prejudicado, não consigo aqui determinar o intervalo de tempo.

0h3m15ss – MM Juiz: O sr. doutor não consegue determinar o intervalo de tempo, é isso?

 Perito: Não, o que posso dizer é que esse intervalo de tempo não foi assim tão grande, portanto estamos a falar de minutos a hora. Portanto não posso ser mais preciso do que isso.

0h4m00ss – MM Juiz: depois a segunda questão era a menor V......... tivesse sido socorrida poderia ter sido evitado o resultado de morte?

Perito: Dificilmente. Dificilmente porque as lesões, a gravidade das lesões, embora não permitam afirmar uma morte imediata, mas a gravidade das lesões nomeadamente a magnitude do edema cerebral, a hemorragia cerebral, dificilmente teria uma condução diferente da do óbito, (…).

0h4m55ss - MM Juiz: Mas o sr. doutor quando diz dificilmente, não exclui essa possibilidade, ou exclui?

Perito: muito pouco provável, mesmo. (…)

20. Salvo o devido respeito, ao decidir como decidiu, fê-lo o Tribunal a quo ao contrário da prova produzida

21. Tendo ficado demonstrado e provado o constante auxilio da recorrente à vitima;

22.Tendo igualmente ficado provado em sede de declarações do arguido S. encontrar-se a vítima V. morta quando foi levada para o sofá

“1h4m06s – Procuradora - "então o senhor acha que quando a levou para o sofá ela já tinha falecido?

S.: “sim”.

1h4m14s – Procuradora - "pensei que, na sua ótica ela só tinha falecido mais tarde?

S: “eu quando ela estava sentada ao meu colo eu já não conseguia sentir a pulsação”.

23.Também em sede de esclarecimentos prestados pelo perito médico legal quanto à morte de V., afirma este ter aquela ocorrido escassos minutos após as agressões.

24. Salvo melhor entendimento, não se encontra verificado um nexo de causalidade claro e irrefutável entre omissão (recorrida) e o resultado.

25. Da prova produzida, resultou a morte da vitima da ação do arguido S. – pancada desferida pelo arguido na cabeça de V. – vindo esta em consequência a falecer, escassos minutos depois de disferida a pancada, revelando- se inócua toda e qualquer ajuda/auxilio que a recorrente pudesse ter procurado, além do prestado.

26. Conforme resulta de prova produzida (testemunhal) a recorrente (por ação) tentou proteger V., pelo que errou o Tribunal á quo quando, ao contrario da prova produzida, considerou ter a recorrente praticado um crime de homicídio qualificado, por omissão, por nada ter feito para evitar o resultado morte.

27. Não se encontra demonstrado, que a omissão pela qual a recorrente foi condenada tivesse  conduzido necessariamente à morte da V. pelo que, salvo melhor entendimento, não pode ser aplicado ao caso dos autos o disposto no n.º 1 do art.º 10 do CP, não sendo punível, por omissão, a conduta da recorrente, andou mal o tribunal à quo ao condenar a arguida pelo crime de homicídio por comissão 28.º. A ter cometido algum crime, terá a recorrente, porventura, cometido um crime de omissão de auxilio p.p. no art.º 200 do CP, mas nunca o crime de homicídio qualificado por comissão, pelo que foi condenada pelo que deste deve ser absolvida.

29. Ainda que se entenda ter a recorrente cometido um crime homicídio, não resulta provada a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o n.º 2 do artigo 132 do CP, pelo que, nunca poderia o tribunal á quo ter condenado a recorrente pelo crime homicídio qualificado quanto mais não fosse fazendo uso do principio in dubio pro reo.

30. Conforme dispõe o artigo 29 do CP “cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes”

31. Ficou provado que a recorrente fez o que pode para, em tempo útil, proteger a vitima;

32. Ficou igualmente provado que o decurso temporal que distou entre o inicio dos factos que conduziram à morte de V. e o momento em que foi levada para o sofá, foi de cerca de 45 minutos (8.30/8.45 a 9.30)

 33. Conforme resulta das declarações do arguido S., do testemunho de R., e esclarecimentos do perito médico, e atentas as regras da experiência, V. encontrava-se já morta quando foi levada para o sofá só assim

34. Considera o tribunal a quo para efeitos de prova as declarações dos arguidos sendo que desconsidera-as, sem qualquer fundamento, no respeitante ao momento da morte da V., nomeadamente as declarações do arguido S. quando afirma encontrar-se V. morta no momento em que foi levada para o sofá.

35. Incorrendo o tribunal a quo, a nosso ver, numa interpretação contrária, à prova produzida, condenando, incorretamente, a recorrente pela prática do crime de homicídio qualificado p.p art.º 132.2 CP

36. A verificar-se o crime de homicídio, sempre deveria a recorrente ter sido condenada pela norma legal 131 do CP sob a epigrafe “homicídio”, p.p com pena de 8 a 16 anos de prisão, e nunca numa pena superior a 12 anos prisão.

37. A pena aplicada é manifestamente excessiva.

38. O n.º 3 do art.º 10 do CP, admite a atenuação especial da pena no caso dos crimes praticados por omissão;

39. No caso em apreço, não foi provado ter a recorrente agido com dolo direto;

40. Ficou provada a personalidade colaborante e assertiva da recorrente, cfr. Relatório social, sempre disponível para fornecer detalhes e esclarecer as dúvidas que lhe foram sendo colocadas, o arrependimento demonstrado em tribunal, o sentido pedido de desculpas feito em Tribunal, e uma forte consciencialização da penalização social dos seus atos; Um percurso de vida, até ao momento, desmerecedor de qualquer reparo; Tudo fatores que, estamos em crer, diminui claramente a culpa da recorrente e, como tal, deveria ter sido a pena especialmente atenuada, nos limites do artigo 73 do CP, como permite a disposição citada (art.º 10.3CP).

41.Pelo que, nunca à arguida deveria ter sido aplicada pena superior a 16 anos e quatro meses pelo crime de homicídio qualificado pelo qual foi condenada.

1.4. Notificado o Ministério Público junto do tribunal a quo, veio o mesmo responder aos 2 recursos recurso nos seguintes termos:

a) Quanto ao recurso do arguido S. (recurso A), considerando que ocorreu a qualificativa prevista na al. j) do n.º 2 do art 132º do Cód. Penal, uma vez que o arguido agiu com frieza de ânimo ao tirar a vida à filha, persistindo na intenção de a matar, uma vez que já antes tinha agredido a filha;

b) Quanto recurso ao interposto pela arguida (recurso B):

- considerou que a impugnação da matéria de facto não observou o formalismo previsto no artigo 412 nºs 3 e 4 do C.P.P.;

-  defendeu a existência de dever jurídico de garante da recorrente, no sentido de estar obrigada a evitar o resultado, e o nexo causalidade entre o resultado (morte) e a sua conduta, justificando-se a imputação do resultado à omitente;

-  julgou bem fundamentada a opção do tribunal a quo no sentido de comunicar à arguida as qualificativas do crime verificadas quanto ao arguido, por aplicação do art 28º do Cód. Penal;

- avaliou como justa a qualificação jurídica do comportamento da arguida e a pena aplicada.

1.5. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a Exª Procuradora do Ministério Público junto ao Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de acompanhar integralmente o Ministério Público do tribunal a quo, considerando assim que os recursos devem improceder na totalidade, com a consequente confirmação da decisão recorrida.


***

II -  Fundamentação de Facto

(Facos considerados provados no acórdão sob recurso)

1- O arguido S. é pai da menor V., nascida a 07/02/11.

2- À data dos factos infra descritos, os arguidos viviam juntos, em comunhão de cama, mesa e habitação, na Rua (…), n.º (…), (…).

3- Desse agregado familiar faziam também parte os menores R., nascido a 30/08/07, filho da arguida, MM., nascida a 02/03/16 e C., nascida a 05/10/19, filhas de ambos os arguidos.

4- Desde pelo menos 15/03 até ao dia 6/05/20, a menor V. esteve a passar uma temporada ininterrupta, em casa do pai, na habitação acima referida, integrando o seu agregado familiar e ficando à guarda dos dois arguidos.

5- No dia 1 de Maio de 2020, Sexta-feira, de manhã, na cozinha da residência acima indicada, o arguido S. confrontou a filha V. com a circunstância de ter chegado ao seu conhecimento que a mesma tinha mantido contactos de cariz sexual com colegas da escola, designadamente, permitindo que lhe mexessem no “pipi”, ou seja, na zona genital, insistindo para que a mesma admitisse tais factos.

6- No decurso desse confronto e na presença da arguida M., o arguido colocou uma colher de pau em cima da mesa da cozinha e disse à filha que lhe batia com ela se a mesma não falasse.

7- Quando V. admitiu os referidos contactos, o arguido S. desferiu-lhe diversas palmadas, com muita força e usando uma das mãos, no seu corpo, atingindo-a na zona das nádegas e das pernas, causando-lhe desse modo dores.

8- Após, o arguido S. foi para o seu quarto e a menor V. ficou na cozinha com a arguida M., a fazer os trabalhos escolares.

9- A determinado momento, nesse mesmo dia 01 de Maio de 2020, a arguida M.  foi ter com o arguido S. ao quarto e disse-lhe que a V. tinha algo mais para lhe dizer.

10- Nessa sequência, V. contou aos arguidos que também tinha mantido contactos de natureza sexual com o Padrinho, P., o qual lhe dava presentes para lhe “mexer no pipi” e para ela também “mexer no pipi dele”, ou seja, na zona genital.

11- Perante tal revelação, o arguido S., enfurecido, desferiu várias palmadas com a sua mão nas nádegas e nas pernas da filha V., com muita força, causando-lhe dores.

12- Como consequência directa e necessária dessas condutas do arguido, sofreu a menor V., as seguintes lesões:

- no membro inferior esquerdo: na face posterior da coxa esquerda, três equimoses com tonalidades distintas, mais escuras com reabsorção hemoglobinica, que variam de tonalidade violácea, esverdeada e amareladas; equimose medindo cerca de 6x5 cm na região nadegueira,

- equimose com 9,8 cm com terço médio da coxa e equimose esverdeada com 5x4 cm no terço médio da perna esquerda.

13- Depois, no dia 06 de Maio de 2020, quarta-feira, cerca das 9h00, também na casa dos arguidos, o arguido S. decidiu confrontar novamente a filha V. com os contactos de natureza sexual que ele cria que ela havia tido, pretendendo saber se tinha havido penetração.

14- No decurso desse confronto e na presença da arguida M., o arguido S. desferiu várias palmadas nas nádegas e pernas da filha V., causando-lhe, desse modo, dores.

15- De seguida, o arguido levou a menor V. para a casa de banho, envergando esta uma t-shirt e cuecas, assim a colocando na banheira, tudo na presença da arguida M..

16- Depois, sabendo o arguido que a filha V. não gostava e tinha medo de água quente, disse à menor que a molhava com água a ferver, caso não lhe contasse o sucedido com o Padrinho.

17- Como a menor nada revelava, o arguido S. colocou-lhe água a ferver na região genital e inguinal, para assim a queimar e lhe infligir maior dor, usando o chuveiro para o efeito, apenas desligando a água quando a filha lhe implorou repetidamente que parasse, dizendo que ia contar.

18- Contudo, logo de seguida, como a menor não dizia o que o arguido S. pretendia ouvir, este desferiu-lhe vários murros na face, tórax, costas e pernas, com muita força, assim como lhe apertou o pescoço com as mãos, apertando-o e sufocando-a, causando-lhe, assim, dores.

 19- Entretanto, o arguido alcançou um chinelo de dedo e, com ele, desferiu múltiplas pancadas, com muita força, nas pernas e nádegas da menor V., marcando-lhe a pele com o formato desse chinelo, causando-lhe dores, tudo sempre na presença da arguida.

20- Após estarem na casa de banho e não obstante os gritos e as súplicas da V., o arguido S. desferiu uma pancada com muita força, com as mãos, na cabeça da mesma, na parte superior do crânio, que lhe provocou uma hemorragia interna e, consequentemente, fez com que ela caísse na banheira, tudo na presença da arguida M., que nada fez para o impedir.

21- De seguida, o arguido levantou a filha da banheira e esta começou a desfalecer e a ter convulsões, o que fez com que o mesmo e a arguida M. lhe desferissem bofetadas na cara.

22- Nesse momento, a arguida M. percebeu que a menor V. tinha os olhos abertos e que estava a olhar fixamente para ela.

23- Nesse instante, após o menor R. ter ouvido os gritos da V., este dirigiu-se à casa de banho, onde viu os arguidos agarrados à menor V., tendo-lhe o arguido S. dito para ir para o seu quarto e que não dissesse nada, caso contrário ficaria sem as suas irmãs.

24- Os arguidos S. e M., ao verificarem as convulsões da menor, ainda na casa de banho, pegaram-lhe e levaram-na para a cozinha, onde a arguida M. colocou uma cadeira no centro da cozinha, por baixo da c1araboia ali existente, que abriu, tendo a menor ficado ao colo do arguido S., sentado nessa cadeira.

25- Após, a menor V. ter estado em convulsões, ao colo do arguido, ficou inanimada.

26- Nessa altura, os dois arguidos perceberam que, em razão da pancada que o arguido S. desferiu na cabeça da sua filha, no interior da casa de banho, das convulsões que manifestava e do seu estado de prostração, V. podia morrer.

27- Não obstante e conformando-se com isso, em vez de promoverem socorro para a menor, como podiam e deviam, designadamente, ligando para o número de emergência 112, transportando-a ao hospital ou procurando algum vizinho ou transeunte que os ajudasse, o arguido S., com o acordo e em conjugação de esforços com a arguida M., pegou na V. ao colo e deitou-a no sofá da sala, ali a deixando até às 22h00.

28- Enquanto a menor V. permaneceu deitada no sofá, por diversas vezes, a arguida M. foi junto da mesma, verificando se ainda respirava.

29- Apesar disso, nada fez para chamar ajuda e socorrer a menor, tendo todos os meios ao seu alcance para o fazer, conhecendo a gravidade da pancada que o arguido S. lhe infligiu e a zona do corpo atingida e configurando e aceitando como possível a sua morte.

30- A certa altura, o arguido S. levou a sua filha M. para o quarto dela, onde ficou a ver televisão com o menor R., dizendo-lhes que a menor V. estava a dormir.

31- De seguida, os arguidos foram buscar um cobertor, com o qual a arguida M. tapou a menor V..

32- Depois do almoço, os arguidos saíram de casa e dirigiram-se à Lavandaria “…”, sita na (…), cerca das 14h18, onde colocaram roupa a lavar, aí regressando às 14h54, para a recolherem.

33- Ainda às 15h37 e 16h35, os arguidos circularam no veículo de matrícula (…), em frente ao Posto de Abastecimento de Combustível Galp, sito no Largo de (…), n° (…), na (…), continuando sempre a menor V. deitada no sofá.

34- Cerca das 17h45, os arguidos dirigiram-se à Farmácia (…), sita na (…), para comprar leite para a filha C..

35- Por volta do meio da tarde, o menor R. verificou que V. começou a espumar pela boca, tendo comunicado isso mesmo à mãe, apercebendo-se, nessa sequência, os arguidos, que a menor tinha falecido, formulando, então, o propósito de esconder o cadáver da mesma e de encobrir os seus actos.

36- Como consequência das ofensas corporais acima descritas, produzidas na casa de banho da residência dos arguidos, perpetradas pelo arguido S., sofreu a menor V. as lesões:

- Cabeça: hematoma periorbitário à esquerda; equimose violácea, escurecida por fenómeno de putrefação, na região frontal, nas Partes Moles, extensa infiltração hemorrágica na região periorbital esquerda que grada relação com o hematoma periorbitário descrito;

-  infiltração hemorrágica na região frontal, com 5x3 cm; nas Meninges, acentuada congestão com focos de hemorragia (acção de golpe e contra golpe nas regiões frontais, occipital e parietais); no Encéfalo, focos de contusão hemorrágica, com hemorragia subaracnoideia na região frontal, occipital e parietal;

- Pescoço: nas Estruturas Cartilagíneas, foco de infiltração hemorrágica junto às estruturas cartilagíneas;

- Tórax: na região posterior, mancha equimótica de limites imprecisos, localizada na região interescapular, em permeio às manchas de putrefacção; nas Paredes, infiltrações hemorrágicas nas regiões posteriores, que guardam relação com as equimoses descritas; no Pulmão direito e esquerdo e pleura visceral, petéquias subpleurais (petéquias de Tardieu);

- Abdómen: na região lombar, no flanco esquerdo, equimose de limites imprecisos e tonalidade violácea, em permeio às manchas de putrefacção; nas Paredes, infiltrações hemorrágicas na região lombar

- Área ano-genital: presença de uma zona de hiperemia, com destacamento da epiderme (flictenas}, com características de queimadura do segundo grau, localizada em ambas as regiões inguinais e face interna da coxa, com atingimento do monte púbico, revelando alterações cutâneas compatíveis com queimadura do 2° grau;

- Membro superior direito: duas equimoses violáceas na face cubital do terço distal do antebraço direito, medindo 2x5xl,5 cm; escoriação apergaminhada medindo 1 cm, em permeio à equimose violácea, medindo 2 cm na região deltoidéia; infiltrações hemorrágicas associadas às lesões descritas;

- Membro superior esquerdo: equimose violácea na face anterior do terço distal do antebraço esquerdo, medindo 2xl cm; quatro equimoses violáceas, cada na face proximal do antebraço esquerdo que, juntas, medem 5x3 cm; infiltrações hemorrágicas associadas às lesões descritas;

- Membro inferior direito: na face lateral da coxa direita, extenso conjunto de equimoses medindo 36xl0 cm, associada a uma escoriação circular com presença de linhas paralelas entre si, lesão modelar que se assemelha à sola de um chinelo; na face anterior da coxa, conjunto de equimoses violáceas, com lesão modelada (lesão com assinatura), que mede cerca de 12x8 cm, com o formato de um chinelo; na face posterior, equimose violácea com l0x8 cm no terço proximal da coxa esquerda; infiltrações hemorrágicas associadas às lesões descritas;

- Membro inferior esquerdo: na face anterior da coxa esquerda, conjunto de três equimoses violáceas com fundo pálido, medindo cerca de 1,4 cm cada uma, localizadas no terço médio distal, lesões modeladas que se assemelham às lesões produzidas por murros; no terço proximal da face anterior da perna esquerda, equimose violácea medindo 4,5x3 cm, com fundo pálido de 1 cm; infiltrações hemorrágicas associadas às lesões descritas.

37- A morte de V. foi devida a contusão cerebral com hemorragia subaracnoideia.

38- Depois de terem formulado o propósito de esconder o cadáver de V., cerca das 17h00 do dia 06/05/20, os dois arguidos, de acordo com o que combinaram entre si, foram verificar o local onde planeavam esconder aquele cadáver, dirigindo-se, então, no veículo de matrícula (…), conduzido pela arguida M., a uma zona florestal erma, situada junto ao entroncamento do (…) com a Estrada do (…), na Serra (…)..

39- Uma vez aí, o arguido saiu do carro e entrou na zona de floresta limítrofe, enquanto a arguida M. aguardava no veículo, abandonando, depois, os dois o local no mesmo, regressando a casa.

40- Cerca das 22 horas, quando os outros menores já se tinham ido deitar, os arguidos S. e M., aproveitando-se da circunstância de a essa hora ser de noite e de haver pouco movimento nas ruas, destaparam a menor V. e despiram-lhe a t-shirt preta que ela envergava, vestiram-lhe um pijama preto e vermelho e um casaco azul, que fecharam até cima, colocando o seu capuz na cabeça da mesma, atando-o com um lenço.

41- De seguida, o arguido pegou na V. ao colo, saiu de casa e dirigiu-se ao veículo de marca Renault, modelo Scenic, com a matrícula (…), que se encontrava estacionado em frente à residência.

42- A arguida foi à frente, abriu o carro e a porta de trás, tendo o arguido deitado o cadáver de V. no banco de trás da viatura.

  43- De seguida, os arguidos, fazendo-se transportar nesse veículo, conduzido pela arguida M. e levando com eles o cadáver, dirigiram-se à Serra (…).

44- Chegados ao entroncamento do Caminho dos (…) com a Estrada do (…), na Serra (…), o arguido S. saiu do veículo, pegou no cadáver da V. ao colo e levou-o para o interior da zona florestal limítrofe.

45- Enquanto isso, a arguida M. saiu do local com o veículo.

46- Já no interior da zona florestal, a cerca de trinta e três metros da estrada, o arguido S. depositou o cadáver da V. junto a umas urzes, em decúbito lateral direito, cobrindo-o com arbustos e com um pequeno pinheiro, que partiu no local.

47- De seguida, o arguido S. abandonou o local em direcção à estrada, onde ficou à espera que a arguida M. voltasse com a viatura, regressando, de seguida ambos a casa.

48- A distância percorrida pelos arguidos, entre a Rua (…), n.º (…), (…) e o local onde o cadáver da V. ficou depositado, na Serra (…), é de nove quilómetros e quatrocentos metros.

49- Depois, os dois arguidos combinaram entre si que, no dia seguinte, iriam participar o falso desaparecimento de V. às autoridades policiais.

50- Em execução desse desígnio, no dia 7 de Maio de 2020, cerca das I0h30, os dois arguidos dirigiram-se ao Posto Territorial de (…) da GNR, sito na Rua (…), n° (…), em (…), onde, perante o militar da GNR MF., participaram o desaparecimento da menor V., declarando que tal havia ocorrido entre as 23h00 do dia 6/05/20 e as 8h30 do dia 7/05/20, da residência onde habitavam, na (…), o que não correspondia à verdade, o que os mesmos bem sabiam.

51- Os arguidos informaram o militar da GNR que, cerca de um ano atrás, a menor tinha saído de casa sozinha, para se dirigir à residência da mãe, no (…), tendo nessa altura sido encontrada pela PSP de (…) e entregue à progenitora, o que, efectivamente, ocorreu.

52- Perante o teor dessa participação de desaparecimento e acreditando na veracidade da mesma e, assim, que a menor em causa pudesse estar em perigo, a GNR do Posto Territorial de (…), na pessoa do seu Comandante, Sargento-chefe PJ., depois de se ter inteirado das circunstâncias do desaparecimento na habitação de onde os arguidos afirmaram que a menor se havia ausentado e suas imediações, desencadeou os procedimentos policiais necessários e adequados para tentar encontrar V..

53- Nesse seguimento, iniciou-se uma operação policial de busca de pessoa desaparecida, com a colaboração dos serviços da protecção civil de (…) e a criação de um posto de comando a cerca de 100 metros da residência da menor.

54- Essa operação teve início na tarde do dia 07 de Maio de 2020 e manteve-se ininterruptamente, até ao dia 10de Maio de 2020, cerca das 12h00, altura em que o cadáver de V. foi encontrado, por indicação do arguido às autoridades policiais.

55- Na mesma, participaram 14 (catorze) elementos da Policia Judiciária, 120 (cento e vinte) militares da GNR, de diferentes Postos e Destacamentos Territoriais e Unidades de Intervenção da GNR, 90 (noventa) Bombeiros das corporações de (…), (…), (…), (…) e (…), um operacional da Câmara Municipal de (…), bem como grupos de escuteiros e de habitantes locais, integrados por mais de 100 (cem) pessoas.

56- Foram, ainda, usados meios de visualização com recurso a 12 (doze) Drones, equipas cinotécnicas com 38 (trinta e oito) canídeos, 48 (quarenta e oito) viaturas da GNR, 7 (sete) ambulâncias, 8 (oito) veículos de comando, 9 (nove) veículos operacionais, 19 (dezanove) veículos tácticos e 6 (seis) veículos de transporte pessoal.

57- Todos estes meios e logística tiveram um custo de € 31.244,00 (trinta e um mil, duzentos e quarenta e quatro euros), suportados pela Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de (…), acrescido de 1.785,98€ (mil setecentos e oitenta e cinco euros e noventa e oito cêntimos) gastos pela GNR, perfazendo um total de € 33.029,98 (trinta e três mil vinte e nove euros e noventa e oito cêntimos), despendidos na operação de buscas.

58- Os dois arguidos, actuando em conjugação de esforços e intenções, representaram como possível que, em consequência da pancada na cabeça que o arguido S. desferiu na filha V., a que a arguida M. assistiu, sem nada fazer para o impedir e podendo e devendo tê-lo feito, a menor viesse a morrer, conformando-se com essa possibilidade e resultado, bem sabendo os arguidos que a menor estava à guarda de ambos no período acima aludido.

59- Sabiam ambos os arguidos, que as ofensas corporais e lesões infligidas à menor não tinham qualquer motivo que as justificasse e que o sofrimento e dor assim a ela causado se destinava unicamente a forçar a admissão, pela menor, de práticas sexuais que teria tido com terceiros, aproveitando-se os arguidos da sua superioridade física e numérica, bem sabendo que, desse modo, a capacidade de defesa e reacção da menor estava substancialmente reduzida.

60- Deixaram a menor entregue a si própria no sofá da residência, durante várias horas, apercebendo-se da gravidade do estado da V., depois da forte pancada que lhe foi infligida, percebendo que estava moribunda, mas continuando a fazer a sua vida quotidiana, sem lhe prestar qualquer socorro ou auxílio, como podiam e deviam, inclusive ausentando-se de casa para irem às compras, ali a deixando, na presença dos outros menores, indiferentes ao sofrimento intenso da mesma.

61- Os arguidos conheciam os laços de parentesco que uniam a menor ao arguido S. e a sua idade e, nessa medida, sabiam que aquela se encontrava numa situação mais vulnerável e tinha menor capacidade de lhes oferecer resistência, aproveitando-se desse facto.

62- Os arguidos, actuando em conjugação de esforços e intenções, quiseram esconder o cadáver da menor V., dissimulando-o num terreno em local ermo, coberto por um pinheiro, bem sabendo que o faziam e que não estavam autorizados para tal.

63- Ao participarem falsamente o desaparecimento de V. à GNR, agiram os arguidos em conjugação de esforços e intenções, com o propósito de fazerem crer à autoridade policial perante a qual formalizaram aquela participação que a menor se havia ausentado sozinha e por sua iniciativa de casa, assim criando a aparência de que a mesma estava em perigo e iludindo a actividade das autoridades policiais, não obstante saberem que aquele desaparecimento não se verificou e que a mesma estava morta.

64- O arguido sabia, também, que, no dia 1/05/20, estava a molestar o corpo e a saúde da menor e que lhe produzia lesões e dores, querendo agir da forma por que o fez.

65- Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

- Factos pessoais dos arguidos

Do arguido S.

(…).

98- Do CRC do arguido não constam condenações.

Da arguida M.:

(…).

- Do pedido de indemnização civil:

(…)

B- Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, designadamente que:

1- O arguido S. bateu nas mãos da filha V. com a colher de pau.

2- A arguida M. segurou a menor V. quando o arguido S. precisasse.


(…)

 

***

III – Fundamentação de Direito

Apreciando e decidindo

a) O objecto dos recursos em apreciação, encontram-se limitados pelas respectivas conclusões apresentadas pelos recorrentes, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).

Recurso A – recorrente S.

b) A principal questão apreciar quanto ao recurso A, interposto pelo arguido S., cinge-se a saber o tribunal a quo errou ao considerar verificada a circunstância qualificativa do crime de homicídio prevista na alínea j) do Cód. Penal.

Na afirmativa, aferir se a pena quanto ao crime de homicídio deve ser diminuída, com consequências ainda na pena única resultante do cúmulo jurídico, a qual deve ser reduzida.

c) A  jurisprudência do S.T.J. tem associado à qualificativa prevista na al. j) do art 132º do Cód. Penal, (“Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas”), a um actuar “de forma calculada, com imperturbada calma, revelando desprezo pela vida”, um comportamento traduzido na “firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa”; A frieza de ânimo, segundo a jurisprudência do nosso tribunal superior, é uma acção praticada a coberto de evidente sangue frio, pressupondo um lento, reflexivo e cauteloso, deliberado, e imperturbado processo na preparação e execução do crime; traduz-se na formação da vontade de praticar o facto de modo frio, deliberado, calmo na preparação; trata-se assim de uma circunstância agravante relacionada com o processos de formação da vontade – cfr. Miguez Garcia e Castela Rio, Cód. Penal anotado,  2014, Ed. Almedina p. 513, onde se citam vários arestos do S.T.J. neste sentido.

A premeditação, revela uma atitude de elaboração mental e reflexão do propósito criminoso do agente, merecendo uma censurabilidade acrescida da conduta; são indícios dessa frieza de ânimo a reflexão sobre os meios empregados e a persistência na vontade de matar por mais de 24 horas – cfr. Pinto Albuquerque, Comentário do Cód. Penal, 3ª edição, Univ. Católica, p. 516.

d)  No caso, a decisão recorrida, de forma lacónica limita-se a dizer que “também esta alínea se preenche, pois o arguido já dias antes tinha espancado a filha, para saber o que teria sucedido com o padrinho e, por outro lado, não se deteve no prosseguimento do crime, estando a sua sensibilidade endurecida pela paixão que o animava”.

Ora, o que se retira neste campo da matéria de facto, é que o arguido terá pretendido obter informações sobre a conduta da vítima, designadamente dos contactos de cariz sexual que teria mantido com terceiros. Isso sucedeu desde logo primeiro  episódio de violência ocorrido no dia 1 de Maio de 2020 (factos provados n.º 5 a 11); Nesse circunstancialismo fáctico, nenhuma referência é feita relativamente à intenção de matar, o que até seria contraditório com a circunstância de terem sido autonomamente valorados, em termos jurídicos, esses mesmos acontecimentos do dia 1 de Maio, como integrando os elementos típicos do crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado (logo, não se incluindo nesse episódio o dolo de matar, mas sim de maltratar). Assim, não poderia tribunal “a quo” recorrer a esse episódio anterior para fundamentar alguma premeditação, reflexão, ou persistência na vontade de matar.

e) Considere-se ainda, que tendo o arguido sido condenado pela prática de um homicídio com dolo eventual, a própria natureza da premeditação afasta desde logo a possibilidade de se poder censurar, de forma acrescida, aquele crime com recurso à citada al. j) do art 132º n.º 2 do Cód. Penal -  – cfr. Pinto Albuquerque, Comentário do Cód. Penal, 3ª edição, Unv. Católica, p. 517, nota 28, e Ac. do S.T.J. de 18-9-2018, processo n.º 359/16.8JAFAR.S1; a premeditação parece implicar uma intenção, e não uma aceitação ou conformação perante o resultado, como sucede no dolo eventual.

f) Mas mesmo que não ocorresse esse obstáculo ditado pela forma que revestiu o dolo, o que não se retira da matéria de facto é a frieza de ânimo, nem a reflexão sobre os meios empregados, nem a persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas; não se vislumbra que facto provado pode sustentar, quanto ao crime de homicídio, que o arguido agiu de forma calculada, com  imperturbada calma, com o sangue-frio, com um lento, reflexivo e cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e execução do crime (a decisão recorrida até escreve que estando a sua sensibilidade endurecida pela paixão que o animava”…), circunstâncias das quais, como vimos, a nossa jurisprudência habilita como podendo integrar a  hipótese prevista na al. j) do citado n.º 2 do art 132º do Cód. Penal.

É assim procedente o recurso do arguido nesta parte.

g) Concluímos assim pela não verificação do “índice-padrão” previsto na referida alínea j) do art 132º Cód. Penal, o que não afasta o cometimento do homicídio qualificado, uma vez que sobrevivem ainda as circunstâncias previstas nas a), c), d), e), daquela norma, que se consideraram revelar uma especial censurabilidade e perversidade, o que não foi posto em causa neste recurso.

De todo o modo, da não verificação de uma circunstância considerada na fixação da pena aplicada ao homicídio deve derivar a diminuição da sua medida, pelo que passamos a fixar uma nova pena para o crime de homicídio,  dentro da respectiva moldura abstracta (prisão de 12 a 25 anos), a qual será feita em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização), nos termos do disposto no nº 1 do art. 71º do Cód. Penal, tendo em conta designadamente as circunstâncias enumeradas no nº 2 do citado normativo. A pena deve ser encontrada numa moldura penal de prevenção geral positiva – com o que se dá satisfação à necessidade comunitariamente sentida de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada -  definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida concreta da culpa, que estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção - art 40º Cód. Penal acima citado.

h) A decisão recorrida considerou para o efeito (para todos os crimes, em alguns casos especificando algumas circunstâncias quanto ao crime de homicídio):

“a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente:

- No caso concreto, a prática do crime de homicídio consumou-se através da prática de actos que preencheram várias alíneas do art. 132.º (…)

b) A intensidade do dolo (…) com excepção do crime de homicídio em que agiu com dolo eventual (…)

c) Os sentimentos manifestados no cometimento dos crimes e os fins ou motivos que o determinaram- o arguido agiu com o propósito concretizado, de obrigar a sua filha a dizer que relacionamento sexual tinha tido com o padrinho, esquecendo-se que seria ela a vítima, e usando de brutais e desumanos meios de coerção física, traduzidos em tortura e que acabaram por lhe causar a morte. (…)

d) A condição pessoal do arguido e a sua situação económica, vertidas nos factos provados, dos quais se conclui que apesar de ter sido abandonado pela mãe, conseguiu  até manter um percurso de vida com alguma estabilidade e normativo.

e) A conduta anterior aos factos e a posterior a estes, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências dos crimes:

- Quanto à sua conduta anterior e posterior, há que realçar que o arguido S. não tem nenhuma condenação averbada no seu CRC.

- Em audiência de julgamento, o arguido entendeu por bem prestar declarações, mas negou a prática do crime de homicídio e imputando-o à arguida M., em plena contradição com as declarações prestadas em sede de primeiro interrogatório e contra o peso esmagador dos outros meios de prova (como descrito supra), o que evidencia uma total ausência de autocensura, não mostrando a menor emoção e, menos ainda, qualquer arrependimento.

- Acresce que dos autos não resulta que o arguido tenha adoptado alguma conduta séria e consistente destinada a reparar as consequências dos crimes que praticou, pelo que, também por aí o mesmo não demonstrou sincero arrependimento nem interiorização da gravidade das suas condutas.

(…) as considerações de prevenção geral são elevadíssimas, uma vez que o crime de homicídio qualificado é o mais grave previsto no nosso ordenamento. 

A culpa situa-se em níveis altos, sendo que era exigível ao arguido que não praticasse os actos que praticou, especialmente o de homicídio (da sua própria filha).

i) Tudo ponderado (designadamente todas as circunstâncias consideradas pelo tribunal a quo, mas considerando agora que a matéria de facto não permite integrar o circunstancialismo previsto na al. j) do art 132º n.º 2 do Cód. Penal), decidimos aplicar a pena de prisão de 21 anos ao arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado.

j) Por último, teremos que fixar a pena única de tendo como pressuposto a nova pena parcelar, e as outras penas que não foram objecto de recurso.

O cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas tem por limite máximo a soma das penas aplicadas, e como limite mínimo a mais elevada das penas aplicadas, devendo ser considerada na medida da pena os factos e a personalidade do agente - artigo 77º do Cód. Penal.

No caso, a moldura a considerar, terá como mínimo a pena de 21 anos (pena mais alta do concurso), e quanto ao limite máximo, a soma das penas parcelares equivale a 26 anos e 7 meses, mas devendo ser considerado o limite de 25 anos imposto pelo n.º 3 do art 41º do Cód. Penal.

l) Na fixação da pena única, devemos considerar que o crime de violência doméstica antecede em alguns dias a prática do crime de homicídio (estando por detrás da perpetração destes 2 crimes a mesma “motivação” no sentido de apurar o comportamento da menor), enquanto os crimes de profanação de cadáver e de abuso e simulação de sinais de perigo, ocorrem na sequência do crime de homicídio, e por sua causa, ocorrendo uma conexão espácio temporal dos factos em concurso (podendo dizer-se que todos os factos a que correspondem os diversos crimes se encadeiam dentro de um mesmo contexto).

Atendendo mais uma vez aos factos provados e à personalidade do agente, consideramos adequada a pena de 24 anos de prisão.

Recurso B  - recorrente M.

m) Passando à apreciação do recurso B apresentado pela arguida M., são as seguintes as questões a apreciar:

i) Saber se o tribunal a quo errou ao considerar que sobre a arguida impendia um dever jurídico que pessoalmente a obrigava a evitar o resultado decorrente da sua omissão, defendendo a recorrente que tal não se verificava;

ii) Aferir se deve ser considerada a impugnação da matéria de facto, resultando das transcrições dos depoimentos que a  recorrente se interpôs entre o arguido S. e a vítima no sentido de o demover à prática dos atos que conduziram a morte da vitima, e ainda que a morte resultou da pancada desferida pelo arguido S.,  revelando- se inócua toda e qualquer ajuda/auxilio que a recorrente pudesse ter procurado, não podendo assim ser imputado à arguida a prática praticado um crime de homicídio qualificado, por omissão, por nada ter feito para evitar o resultado morte;

iii) Apurar se as qualificativas do homicídio detectadas imputadas ao arguido devem ser comunicadas à arguida por aplicação do art 28º do Cód. Penal, assim se imputando a esta igualmente a prática de um crime de homicídio qualificado, ou se deve ser aplicado o artigo 29º do Cód. Penal, segundo o qual cada comparticipante é punido segundo a sua culpa;

iv) Apreciar se a pena aplicada é manifestamente excessiva, devendo ser reduzida, mormente por aplicação do n.º 3 do art.º 10 do CP, o qual prevê a atenuação especial da pena no caso dos crimes praticados por omissão.

n) A primeira questão a apreciar no recurso interposto pela arguida (correspondente às conclusões 1ª a 10ª), prende-se em saber se  o tribunal a quo errou ao considerar que sobre a arguida impendia um dever jurídico que pessoalmente a obrigava a evitar o resultado decorrente da sua omissão, defendendo a recorrente não se verifica quanto a ela a existência desse dever que pessoalmente a obrigasse  a evitar o resultado, o qual  tem de decorrer diretamente da lei e não de quaisquer princípios morais ou de direito natural,  criticando a decisão recorrida que equiparou o faccere ao omitter (nos termos do art.º 10.1 CP), numa expansão das margens da punibilidade, subtraindo-se ao principio da tipicidade penal e da legalidade.

o) Apreciando, recorde-se que o art 10º do Cód. Penal estatui:

1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.

        p)  O n.º 1 daquela norma, alarga a incriminação dos crimes comissivos de resultado, previstos nos tipos incriminadores, aos comportamentos omissivos, operando uma equiparação da omissão à acção, classificando-se como crimes omissivos impróprios (distinguindo-os dos crimes omissivos próprios que são crimes de mera inactividade, sem que se exija a omissão provoque algum resultado);  A razão  desta equiparação, como explica Eduardo Correia, (Direito Criminal, vol. I, Almedina, 2007, p. 269),  (…)“parte da verificação de "certos valores autónomos num plano jurídico, certos preceitos que impõem certas condutas com vista a evitar a produção de certos efeitos. Por força deles vem a produção do evento, quando se deixam de levar a cabo essas actividades, a ser imputada ao omitente, tal como se ele activamente o produzisse.”

q) O n.º 2 do mesmo artigo 10º, apenas aceita a equiparação, aos comportamentos comissivos, dos comportamentos omissivos que não evitaram a produção de um certo resultado, desde que ocorra uma especial qualidade no agente; a omissão só é jurídico-penalmente revelante, quando sobre o omitente recaía um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado decorrente da sua omissão.

Como escreve Germano Marques da Silva “O fundamento material da responsabilidade nos crimes comissivos por omissão, reside na necessidade de assegurar a determinados bens jurídicos uma tutela reforçada perante a incapacidade dos respectivos titulares de protegê-los adequadamente: daqui a atribuição só a algumas pessoas do especial dever de garantir a integridade desses bens. E sendo assim, o princípio da equivalência entre a omissão não impeditiva e a acção causal pressupõe não já um simples dever jurídico de agir, mas uma posição de garante do bem jurídico protegido.” - Direito Penal Português: Teoria do Crime, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2012, p.71.

r) O legislador optou por não concretizar as fontes do dever de garante, sendo várias as formulações propostas na doutrina relativamente à sua densificação.

No caso concreto,  o tribunal cita a este propósito a posição de Figueiredo Dias, quando escreve «Uma coisa me parece certa: a lei, o contrato, a ingerência, não devem constituir fontes do dever de garantia, mas só planos em que aquele se deve reflectir, por homenagem às exigências que acabo de referir ... (…) decisiva é uma relação prática de proximidade -  digamos existencial - entre o omitente e determinados deveres jurídicos que ele tem o dever pessoal de proteger ou entre o omitente e determinadas fontes de perigo por cujo  controlo é pessoalmente responsável, concluindo a decisão recorrida que a arguida M. encontrava- se nessa relação de proximidade prática relativamente à V., “pois esta tinha-lhe sido confiada pela mãe, com ela (e o pai, o arguido S.) vivendo já há algum tempo. Impunha-se-lhe pois um dever jurídico que pessoalmente a obrigava a evitar o resultado decorrente da sua omissão.”

s) A definição do dever de garante é extremamente difícil e delicada em certas situações, mas a doutrina e jurisprudência têm desenvolvido algum consenso no sentido de a lei o impor a certas pessoas em razão de especiais qualidades, funções ou relações.  A posição de  Prof Figueiredo Dias, adoptada pela decisão recorrida, reflecte uma determinação dos deveres de garante, já não apenas por critérios formais, como tradicionalmente ocorria (tendo por fonte a lei, o contrato ou a ingerência), mas sim numa combinação entre a exigência da solidariedade do homem para com os outros dentro de uma comunidade, apoiada num claro vínculo jurídico (teoria “material-formal”) – cfr. Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais p. 702 a 704;  – sobre o tema das fontes do dever jurídico de garante, cfr. Faria Costa Direito  Penal, Ed Imprensa Nacional, p. 493 a 503, Germano Marques da Silva , ibidem p. 73.

t) No caso, podemos detectar a origem do dever de garante da arguida para com a menor, da comunidade de vida entre ambas estabelecida (partilhando uma habitação, existindo entre si laços de afeto ou proximidade), como o faz a decisão recorrida.

Mas de forma talvez mais impressiva, ou ao menos reforçando e cruzando o critério material da “comunidade de vida” com uma fonte formal (satisfazendo assim a posições que  optam por um dos critérios, ou aquelas que os combinam), parece-nos que a função protectora do bem jurídico concreto (a vida da menor) pode ser encontrada na existência de um dever de solidariedade natural para com o titular do bem jurídico, apoiada num vínculo jurídico familiar;  a nossa doutrina reconhece que da existência desses deveres familiares procede o dever do garante, desde logo de forma mais evidente nas relações entre cônjuges (fundamento art 1672º do Cód. Civil), ou entre pais e filhos (art 1874º n.º 1 do Cód. Civil) – cfr., por todos, Pinto Albuquerque, Cód. Penal Anotado, 3ª edição, Unv. Católica, p. 122, 47.

A arguida não era mãe da vítima, mas sua madrasta,  mas ainda assim pode retirar-se o dever de garante da circunstância do artigo 2009º n.º 1 al. f) do Cód. Civil determinar a obrigação e alimentos a enteados menores; se a lei vincula a madrasta com a obrigação e prestar alimentos ao enteado, por maioria de razão tem o dever de a proteger perante certos resultados, máxime de alguma ofensa à sua integridade física  – cfr. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais Teoria Geral do Crime, 3ª edição,  Univ Católica, p. 564.

É certo que estamos perante uma relação de parentesco de menor intensidade do que aquela que ocorre entre pais e filhos (até pela natureza biológica desta relação). Mas nestes casos, a verificação do dever jurídico de garante resultará precisamente entre a combinação de uma fonte de carácter mais formal (as obrigações legalmente impostas à madrasta mormente em dever de alimentos), com uma fonte de carácter material (a estreita comunidade de vida mantida entre ambas).

u) Adicionalmente, e numa perspectiva diferente, pensamos que se pode reforçar a conclusão de que sobre a arguida impendia um dever de garante das circunstâncias do caso concreto; a arguida era a única com possibilidade de poder intervir no sentido de evitar o resultado morte da vítima; recorde-se que para além do arguido – agente comissivo do crime – na casa estavam apenas os outros filhos menores, pelo que ocorria uma situação de monopólio de facto que impunha o dever de salvamento de uma pessoa com quem tinha uma relação íntima e familiar muito próxima. Note-se ainda, que ocorria uma enorme desproporção entre o bem jurídico colocado em perigo (a vida, ou seja o mais valioso), e o esforço mínimo exigido à arguida no sentido de tentar evitar a produção do resultado típico; bastaria pegar num telefone ou sair de casa e pedir socorro.

v) No segundo grupo de conclusões (11ª a 28ª) defende a recorrente que não se encontra verificado o nexo de causalidade entre o facto ocorrido e a omissão da recorrente.

Pretendendo sustentar essas conclusões, transcrevendo as declarações do arguido, da arguida e do menor R., do qual resultará que a recorrente se interpôs entre o arguido S. e a vítima no sentido de o demover à prática dos atos que conduziram a morte da vitima.

Retira ainda das mesmas transcrições, que a morte da  vitima resultou da ação do arguido S. – pancada desferida pelo arguido na cabeça de V. – vindo esta em consequência a falecer, escassos minutos depois de desferida a pancada, revelando-se inócua toda e qualquer ajuda/auxilio que a recorrente pudesse ter procurado, além do prestado, e que a recorrente  tentou proteger a vítima V., pelo que errou o Tribunal a quo quando,  considerou ter a recorrente praticado um crime de homicídio qualificado, por omissão, por nada ter feito para evitar o resultado morte, pelo que a ter cometido algum crime, terá a recorrente, porventura, cometido um crime de omissão de auxilio p.p. no art.º 200 do CP, mas nunca o crime de homicídio qualificado por comissão, pelo que foi condenada pelo que deste deve ser absolvida.

x) Antes de mais, e na apreciação deste grupo de conclusões cumpre referir o seguinte:

A recorrente interpôs um primeiro recurso, no início do qual (II – Motivações) referia que o mesmo “tem como objeto a apreciação da matéria de facto e de direito”, e ainda “Quanto à matéria de facto que ora se impugna (…)”.

Aquele primeiro recurso, mereceu um despacho de aperfeiçoamento, no sentido de que “quando deduz impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal, compete exclusivamente ao recorrente fixar o objecto do recurso, através da indicação precisa e especificada dos elementos previstos nos n.os 3 e 4 daquele normativo, ou seja, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Neste caso, quando as provas tenham sido gravadas, a especificação deve ser feita por referência ao consignado na acta, com a concreta indicação das passagens em que se funda a impugnação, indicação essa que terá de poder deduzir-se das conclusões formuladas (cf. artigos 412.º, n.º 4 e 417.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Penal). Segundo resulta do seu recurso, a arguida M. pretende impugnar a decisão proferida pelo tribunal colectivo sobre a matéria de facto (cf. páginas 3 a 7 e 16 a 21 do corpo da motivação). Sucede, todavia, que, nas conclusões que formulou a tal respeito, a recorrente se limitou a referir que o decidido em relação à omissão e ao resultado se encontra em clara oposição à prova produzida, que ficou demonstrado, quer por declarações dos arguidos, quer por declarações para memória futura da testemunha presencial (R.), que a recorrente sempre agiu em defesa e protecção da vítima V., e que errou o tribunal a quo quando, em clara oposição à prova produzida – declarações dos arguidos, testemunha R. –, condena a recorrente pelo crime de homicídio qualificado por omissão (cf. conclusões 9 a 11). Ou seja, das conclusões formuladas na motivação não é possível deduzir as indicações previstas nos n.os 3, alíneas a) e b), e 4 do Código de Processo Penal, pois a recorrente omitiu a indicação dos concretos pontos de facto do acórdão recorrido que considera incorrectamente julgados, tendo por referência a matéria que para tal efeito fez constar nos fundamentos do recurso, bem como não procedeu à especificação das concretas provas, em obediência ao disposto nos n.os 3, alínea b), e 4 do mesmo artigo, tendo também por referência os fundamentos que levou ao recurso (cf. páginas 16 a 20 da peça processual).

O certo é que apesar do teor do transcrito despacho de aperfeiçoamento,  a arguida apresentou um recurso praticamente igual ao primeiro acima assinalado, repetindo as omissões já anteriormente detectadas, designadamente continuando a não indicar os concretos pontos de facto do acórdão recorrido que considera incorrectamente julgados, tendo por referência a matéria que para tal efeito fez constar nos fundamentos do recurso,  nem a propósito de cada um desses factos a prova que impõe essa decisão diversa da recorrida, assim como continuou a não proceder à correta especificação das concretas provas, não sendo indicada a sessão de julgamento em que tais depoimentos foram produzidos. O mesmo é dizer que o conhecimento do recurso em termos de matéria de facto (referimo-nos à impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6 do Código de Processo Penal) fica prejudicado pela não satisfação dos requisitos impostos nas aludidas normas, incumprimento já antes assinalado, e que se verifica novamente no segundo recurso apresentado.

z) De todo o modo, atendendo à gravidade dos factos, e ainda que pelo menos parte do recurso quanto à matéria de facto pode ser retirado nos fundamentos de recurso previstos no art 410º n.º 2 do C.P.P. (recorrendo-se somente ao texto da decisão recorrida que reproduz em grande parte os depoimentos prestados), diremos o seguinte:

Resulta com clareza da decisão recorrida (fundamentação a matéria de facto), que a arguida não só não participou activamente nas agressões do arguido à vítima, como não existiu alguma adesão ou concordância relativamente às mesmas. Assim, como se lê em sede de fundamentação da matéria de facto provada, o próprio arguido declarou que “A M. disse-lhe para ele ter calma quando ele bateu na V., da primeira vez. Dessa vez, a M. ficou a falar com a menor, tendo-lhe antes perguntado o arguido onde é que ela tinha visto aquelas coisas e bateu-lhe; a M. puxou, para que ele parasse (…) A M. foi contra o que ele fazia, tendo-a afastado (fls. 23 do acórdão).

Ainda a decisão recorrida sumaria as declarações da arguida, ora recorrente, resultando que esta “disse-lhe para ele parar, dizendo ele que ele é que era o pai, que ele é que sabia, afastando-a para que ela não chegasse à menor, que tentava escapar-se da água quente (…)   Disse ao S. para pedirem ajuda, mas ele recusou (…) (fls. 25 do acórdão) (…)  “Voltou a dizer que deviam pedir ajuda, dizendo o S. que não, que ela ia ficar bem, que estava cansada e que a deitassem no sofá (fls. 26).

Por fim, e quanto a R., filho da arguida, ouvido em declarações para memória futura, lê-se no mesmo acórdão da 1ª instância (…)  relatou que acordou na manhã do dia 7, pelas 9,30 h e ouviu estaladas e a V. a gritar. O S. estava a bater na menina e a M. dizia-lhe para ele parar; (29) A sua mãe disse ao S. para chamarem o INEM e ajuda, dizendo este que não (…) A V. ficou sem se mexer e respirava lentamente, voltando a M. a dizer para chamarem ajuda (…) A sua mãe insistia que chamassem ajuda e o S. não dava resposta, dizia que a V. podia arrebitar (…) A sua mãe assistia e dizia para ele parar porque a menina não tinha a noção do que tinha feito (…)  fls. 29 da decisão recorrida.

E a fls. 33, ainda do mesmo acórdão, escreveu-se que “Ora, apenas estas três pessoas presenciaram os factos (para além da infeliz V.) e duas delas, a arguida M. e seu filho relataram de forma coerente, coincidente e credível a forma como eles terão ocorrido. Aliás, esta versão até coincide com a primeira versão trazida pelo arguido, que, porventura querendo exonerar-se de parte da sua responsabilidade, trouxe a julgamento uma versão que não mereceu crédito ao tribunal.”

aa) Relativamente a estes actos por parte da arguida no sentido de o arguido parar com as agressões, o tribunal a quo não se pronuncia, acabando por dar como provado (facto provado n.º 20) que  (…) Após estarem na casa de banho e não obstante os gritos e as súplicas da V., o arguido S. desferiu uma pancada com muita força, com as mãos, na cabeça da mesma, na parte superior do crânio, que lhe provocou uma hemorragia interna e, consequentemente, fez com que ela caísse na banheira, tudo na presença da arguida M., que nada fez para o impedir (sublinhado nosso).

Existe uma aparente contradição entre a fundamentação da matéria de facto (no qual se transcrevem aqueles depoimentos, aos quais o tribunal conferiu credibilidade), e aquela afirmação de que a arguida nada fez para evitar as agressões, sendo certo que como vimos a decisão recorrida sustenta-se de forma decisiva nos depoimentos do filho da arguida e da própria arguida.

Todavia, devemos considerar, antes de mais, que boa parte do relato da oposição da arguida à conduta do arguido se refere a momentos anteriores ao episódio decisivo referido no acima transcrito facto provado n.º 20.

Depois, lido o acórdão no seu contexto global, deve-se interpretar aquela expressão “a arguida nada fez”, no sentido de que a mesma não tomou alguma acção decisiva ou determinante (nem sequer a tentou) no sentido de evitar a continuidade das agressões. Isto é, apesar de manifestar verbalmente oposição à actuação do arguido, na prática não tomou qualquer acção no sentido de ao menos tentar que as agressões parassem (v.g. tentando impor-se fisicamente entre a vítima e o arguido, ou chamando por socorro).

Assim, e ainda que consideremos que essa actuação da arguida no sentido de não aderir e discordar da actuação do arguido poderia ter sido reflectida na matéria de facto provada, e como circunstância a considerar na fixação da medida da pena (ao menos enquanto sinal de que não existiu adesão da arguida às agressões), a mesma não pode ser qualificada como determinante no sentido de evitar o processo causal (as agressões) e o seu resultado (a morte da menor).

bb) Mais relevante ainda, é que o momento em que se terá consumado o crime de homicídio por omissão, não é nenhum dos assinalados pela recorrente em que a arguida tentou demover o arguido no sentido de parar as agressões à vítima, nem sequer o acima especificamente assinalado (facto provado n.º 20).

Os momentos considerados relevantes para integrar os elementos típicos do crime de homicídio por omissão imputado à arguida, são os que se seguiram  à entrada da vítima em convulsões, ou seja os factos provados n.º 26 a 29, nos quais se descreve que os arguidos perceberam que, em razão da pancada desferida pelo arguido a ofendida podia morrer, e não obstante, e conformando-se com isso, em vez de promoverem socorro para a menor, ambos os arguidos em conjugação de esforços, deitaram-na no sofá; ainda que a arguida tenha ido junto da vítima, verificando se ainda respirava,  nada fez para chamar ajuda e socorrer a menor, tendo todos os meios ao seu alcance para o fazer, conhecendo a gravidade da pancada  e configurando e aceitando como possível a sua morte.

cc) Por outro lado, defende a recorrente que “Da prova produzida, resultou a morte da vitima da ação do arguido S. – pancada desferida pelo arguido na cabeça de V. – vindo esta em consequência a falecer, escassos minutos depois de disferida a pancada, revelando- se inócua toda e qualquer ajuda/auxilio que a recorrente pudesse ter procurado, além do prestado”.

Neste campo, tendo ficado provado (facto n.º 37) que a morte de V. foi devida a contusão cerebral com hemorragia subaracnoideia, não ficou apurado o momento da sua morte.  O que resulta da decisão recorrida, em sede de fundamentação da matéria de facto, é que foi ouvido o perito médico o qual “esclareceu não ser possível determinar a hora a que ocorreu a morte da menor, atento o estado de putrefacção do corpo, mas que terá ocorrido algum tempo depois das agressões, de alguns minutos a escassas horas, sem grande precisão, até cerca de uma hora. Se fosse socorrida nesse intervalo, dificilmente sobreviveria, mas há relatos médicos de sobreviventes em casos semelhantes, sendo que, mesmo que sobrevivesse, ficaria com sequelas, face à gravidade das lesões. E quanto mais tempo passava sem socorro, menos hipóteses teria de sobreviver, pois o edema, que é uma hemorragia cerebral ia aumentando, tanto mais depressa quanto eram várias as lesões.  

 E em sede de fundamentação de direito concluiu o acórdão sob recurso que “Como resultou provado, a causa da morte de V. foi uma contusão cerebral com hemorragia subaracnoideia. Esta contusão foi causada pela actuação do arguido S., na forma supra descrita, ou seja, múltiplos e violentos golpes e pancadas, vibrados no corpo da menor. Ou seja, a conduta (activa) do arguido preenche os elementos objectivos do tipo em causa.

Porém, tal conduta só foi possível pela ausência de oposição efectiva da arguida M., sendo certo que a morte não foi imediata, pois a contusão teve menos de 24 horas de evolução, pelo que teria sido possível à arguida M. evitar o resultado morte, se convocasse socorro de imediato. É certo que, como esclareceu o perito médico, seria difícil evitar esse resultado e, mesmo que fosse evitado, a menor ficaria com graves sequelas, mas a arguida dispunha de meios de chamar socorro: tinha telefone e era ela a única com carta de condução, tendo um carro à sua disposição. Em vez disso, pretextando medo do arguido e receio de ficar sem os seus filhos, optou por nada fazer, deixando que a infeliz V. ficasse a agonizar deitada no sofá desde cerca das 9,00 h da manhã, até morrer.

dd) Independentemente da inoperabilidade da impugnação da matéria de facto acima assinalada, de o referido depoimento do perito não encontrar o reflexo pretendido pela recorrente na matéria de facto provada, e ainda de o seu teor não implicar a certeza (mas apenas a forte possibilidade) de a morte da menor se verificar, ainda que com socorro da arguida, diga-se o seguinte:

A questão insere-se no campo do nexo de causalidade entre a omissão da arguida e o resultado (no caso a morte da vítima).

O já citado art 10º do Cód. Penal prevê, como critério básico da imputação objectiva, a teoria da causalidade adequada, ao referir que no caso dos crimes de resultado, o facto abrange tanto a acção adequada a produzi-lo, como a omissão adequada a evitá-lo.

A causalidade na omissão não é uma causalidade verdadeira e própria, mas antes um seu equivalente normativo para fins de imputação jurídica do evento ao omitente. O juízo de omissão é um juízo hipotético que se concretiza em considerar que se a acção devida que foi omitida se tivesse concretizado o evento não se teria produzido - cfr. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Teoria Geral do Crime, 2ª p. 84.

ee) A doutrina tradicional apenas aceitava a imputação objectiva do resultado a uma omissão, no caso de uma probabilidade que roça a certeza; isto é, será de recusar que o nexo causal entre a omissão e o resultado apenas seria possível, quando com toda a probabilidade o resultado seria obtido, ainda que ocorresse a acção em vez da omissão. Esta corrente (“teoria da evitabilidade”) considera por exemplo, o marido que após ver a sua esposa a ser agredida, abandona-a sem socorro e assim consente a sua morte, somente pode ser punido se o tratamento imediato tivesse salvo a sua vida.

ff) Todavia, deve notar-se que a adoção desta teoria leva a resultados politico-criminalmente inaceitáveis, uma vez que quanto mais a vitima está exposta a perigos mais intensos (e por isso mais perto do resultado morte), mais se dispensa o dever de a salvar; por exemplo os pais que omitem o dever de levar o filho, com uma doença potencialmente mortal, para tratamento médico: quanto mais tempo passe sem aquela acção, mais provável será o resultado morte, e assim no caso de urgência, diminuiria ou mesmo excluiria a possibilidade de imputar o resultado aos pais, precisamente nos momentos em que surge como mais importante a acção; ou ainda noutro exemplo, a omissão de uma radioterapia que conduz num número impressivo de casos a um prolongamento da vida de 5 a 10 anos não permitiria que o resultado morte fosse atribuído ao médico omitente, uma vez que esse resultado morte sempre se produziria ainda que passados aqueles anos  – cfr. na doutrina e jurisprudência alemãs, Luis Greco, Problemas da Causalidade Objectiva nos Crimes Omissivos, Ed. Marcial Pons, 2018, p. 24 e ss.

E é no fundo a tese da recorrente; ainda que a arguida tivesse pedido por socorro imediatamente, ainda assim a menor, com grande probabilidade, morreria; logo daqui resultaria que quanto mais tempo passou sobre o momento da agressão sem que tivesse sido pedido o socorro, menos probabilidade existiria de a menor sobreviver, e assim mais provável seria que o resultado morte ocorresse, com exclusão da possibilidade de imputar o resultado morte à conduta omitida, o que constituiria um absurdo.

gg) Face aos resultados acima assinalados da aplicação da doutrina da evitabilidade, deve preferir-se a chamada teoria da diminuição do risco, a qual se contenta com a possibilidade forte do salvamento. É uma posição que evita as consequências inaceitáveis acima assinaladas, e em que a dogmática penal se aproxima da política criminal; O direito penal pretende proteger os bens jurídicos, de modo a que os mesmos sejam preservados, e não atingidos ou postos em causa por acção (ou inacção) humana.  Num direito penal dos bens jurídicos, o resultado deve ser uma componente do injusto, e não uma mera condição objectiva da punibilidade, pois a ocorrência do resultado confirma que a ordem jurídica tinha boas razões para proibir o respectivo comportamento omissivo; se a conduta devida melhorar as possibilidades de salvamento do bem, a proibição confirma-se como razoável e justificada.  – cfr.  por todos, Luis Greco, ibidem, p. 30.

hh) No caso em apreciação, repetindo-se que a questão de a possibilidade da morte ocorrer, ou não, pouco tempo após a pancada provocada na cabeça da vítima pelo arguido não encontrar reflexo na matéria de facto provada, ainda que se admitisse que tal pudesse ocorrer, ainda assim deve afirmar-se a causalidade entre a conduta omissiva da arguida e o resultado morte. Essa omissão inicia-se no momento em que a arguida não interrompeu de forma decisiva o processo causal (no caso, o desferimento de violentas pancadas por parte do arguido à vítima), pedindo auxílio de terceiros; como principalmente, essa omissão assume ainda maior relevo, quando  após a menor ter ficado inanimada, e tendo representado que a mesma podia morrer,  conformou-se  se com essa possibilidade, e em vez de promover o imediato socorro, mormente ligando para um número de emergência médica, ao invés de a deixar no sofá, onde permaneceu até ao momento em que veio a falecer. Ainda que não se tenha apurado o momento da morte da menor, das próprias declarações do perito resulta que a mesma não foi imediata, ou seja, não sucedeu logo após a pancada desferida pelo arguido na cabeça da vítima descrita no art 20º da matéria de facto provada. E assim, a não prestação de socorro imediato foi juridicamente adequada a provocar o resultado morte, ao menos no sentido de que não diminuiu o risco de que tal pudesse suceder, estando na disponibilidade da arguida aumentar de forma muito significativa as possibilidades de se evitar o resultado morte.

ii) A 3ª questão a apreciar relativamente ao recurso B, consta das conclusões 29ª e 30ª, 35ª e 36ª, onde a recorrente defende que o tribunal a quo não poderia ter condenado a arguida pela prática de um crime de homicídio qualificado, não resultando provada a especial censurabilidade ou perversidade, uma vez que face ao artigo 29º do Cód. Penal, cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes.

A questão situa-se assim em saber se as qualificativas que se consideraram verificadas relativamente ao arguido, se transmitem à arguida por força do disposto no art 28º do Cód. Penal.

Recorde-se que a decisão recorrida, nesta parte, começa por citar doutrina e jurisprudência caracterizadora do homicídio qualificado e dos exemplos padrão, os quais permitem concluir a atitude do agente manifestada no facto se possa apresentar especialmente censurável, ou a revelar e a expor externamente especial perversidade.

Após, escreve que “o exemplo padrão da al. a) facilmente se indicia, pois o arguido era pai da vítima. Já a arguida não te qualquer relação de parentesco com a infeliz V..” Ainda assim, procede à transcrição do art 28º do Cód. Penal, e cita doutrina no sentido da explicação dessa norma, conclui que “É manifestamente o caso dos autos, pelo que também relativamente à arguida se preenche esta alínea”. De seguida, a decisão sob recurso descreve ainda outros exemplos padrão que considera preenchidos, e condena o arguido -  e também a arguida - pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos art. 131°, 132°, n° 2, al. a), c), d), e) e j) do Cód. Penal.

jj) Ora como a própria decisão recorrida defende ao escrever que a qualificação do homicídio passa por uma “afirmação genérica de um especial tipo de culpa” e resulta ainda das citações a que procede de doutrina e jurisprudência, os exemplos-padrão prendem-se essencialmente com a questão da culpa.

O artigo 132º do Cód. Penal contempla um tipo de culpa agravada por força da cláusula geral da censurabilidade ou perversidade, concretizada de acordo com um elenco de circunstâncias não automáticas e não taxativo, posição assumida desde logo por Eduardo Correia e Figueiredo Dias na comissão de revisão do Cód. Penal - cfr. Pinto Albuquerque, Comentário ao Cód. Penal, Ed. Unv. Católica, p. 509, nota 2.

Como regista Teresa Serra (em obra aliás citada pela decisão recorrida), o legislador adotou um tipo de culpa como critério generalizador porque “só no âmbito de um conceito material de culpa susceptível de graduação, tendo como objecto de referência próprio o maior ou menor desvalor da atitude do agente actualizada no facto, a função de tipos de culpa agravadores da moldura penal pode ser inteiramente compreendida” – Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 2000, p. 125.

Ou, como escreve Fernando Silva (…) “a qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, sendo um tipo de culpa. (…) o tipo do artigo 132º do Código Penal integra elementos da culpa, traduzidos na maior censurabilidade ou perversidade reveladas pelo agente, correspondendo a um grau de censura agravado conformado através destes conceitos” in Direito Penal Especial, Os Crimes contra as Pessoas, 3ª Edição, Quid Iuris, p. 54 e ss.; cfr. ainda, no mesmo sentido, o Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial. 2ª Edição. Coimbra Editora, 2012, Tomo I, p. 51.

Tal como o privilegiamento do homicídio tem como base uma culpa diminuída do agente (cfr. a expressão “diminuam sensivelmente a culpa” a que se faz menção no art 133º do Cód. Penal), o homicídio qualificado prevê um tipo agravado de culpa, posição que, ao que julgamos, senão unanime, é largamente dominante na nossa jurisprudência - v.g. Ac.  do S.T.J. de 27-05-2010, processo n.º  517/08.9JA CBR.C1.S1,  in www.dgsi, e o Ac. do S.T.J. 19-2-2014, datajuris.

ll) Assim sendo, e precisamente ao contrário do que defende a decisão recorrida, é inaplicável no caso o artigo 28º do Cód. Penal, o qual, como a própria epígrafe denuncia, se refere exclusivamente à ilicitude do tipo. Ao invés, por força do artigo 29º do Cód. Penal, cada comparticipante num determinado homicídio é punido com as circunstâncias qualificativas que se verifiquem em relação a ele - cfr. Pinto Albuquerque, ibidem, p. 518, nota 31.

As situações dos exemplos - padrão referidos no n.º 2 do artigo 132º do Cód. Penal, são relevantes por via da culpa, e não da ilicitude e, por isso, não são comunicáveis, mas susceptíveis de valoração autónoma em relação a cada comparticipante, aplicando-se o disposto no artigo 29º do Código Penal - Ac. do S.T.J. de 17-3-1999, processo n.º 98PI1434.

Daqui resulta, que os exemplos-padrão que o tribunal a quo considerou verificados exclusivamente pela actuação do arguido (constantes das als a), c), d) e e), não se transmitem à arguida, que assim será absolvida da prática do crime de homicídio qualificado.

mm) Desqualificado o homicídio, devemos ainda considerar que a arguida foi condenada por homicídio na sua forma omissiva, por recair sobre a recorrente um dever jurídico de evitar o resultado - no caso a morte da enteada – por aplicação do n.º 2 do art 10º do Cód. Penal.

Nessas circunstâncias, o n.º 3 do mesmo artigo 10º, estabelece a possibilidade de a pena ser especialmente atenuada, constituindo essa previsão normativa uma das situações a que se refere o n.º 1 do art. 72º do Cód. Penal como um dos casos expressamente previstos na lei que apontam para essa eventualidade.

No caso, para além da forma omissiva, um outro elemento aponta para aplicação do instituto da atenuação especial da pena. Efetivamente, ao resultar provado que a arguida se conformou com o resultado, mas não que o quis, conclui-se que agiu com dolo eventual, circunstância omitida pela decisão recorrida, que não a menciona na fixação da pena à arguida, mas que deve ser considerada. Como é sabido, ao dolo directo e ao dolo eventual equivalem distintos graus de intensidade de representação e de vontade de realizar um facto típico -, sendo certo que o dolo eventual constitui, em qualquer caso, um grau menos intenso de vontade (conformação) do que aquela que está presente no dolo directo (intenção), o que forçosamente tem que assumir significativa relevância.

Assim sendo, o cometimento do crime por omissão, e com dolo eventual, aponta para uma forma circunscrita de culpa, convocando duplamente a atenuação especial da pena prevista no art. 73º do Cód. Penal (atenuando especialmente a pena  igualmente num caso de homicídio por omissão, com dolo eventual, mas em circunstâncias que, comparativamente, merecem maior censura, uma vez que foi a própria condenada quem provocou materialmente o processo causal  - agressões - não interrompido pelo devido auxílio à vítima, o que não se verifica neste caso,  cfr. o Ac. do STJ de 27-11-2013, 37/12.7JACBR.C1.S1, in dgsi.pt).

nn) A atenuação especial da pena implica a redução de um terço do limite máximo da pena, e a redução a um quinto do limite mínimo da pena - 73º n.º 1 al. a) e al. b), 1ª parte. Aplicando esses factores à moldura penal do crime de homicídio voluntário simples (8 a 16 anos – art 131º do Cód. Penal), obtemos a moldura penal especialmente atenuada de 3 anos e 4 meses a 11 anos e 8 meses, espaço onde teremos que encontrar a pena concreta.

oo) A determinação da medida concreta da pena de prisão, dentro da assinalada moldura abstracta,  é feita em função da culpa do arguido e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização), nos termos do disposto no nº 1 do art. 71º do Cód. Penal, tendo em conta designadamente as circunstâncias enumeradas no nº 2 do citado normativo;  A pena deve ser encontrada numa moldura penal de prevenção geral positiva – com o que se dá satisfação à necessidade comunitariamente sentida de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada -  definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida concreta da culpa, que estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção - art 40º do Cód. Penal.

No caso são muito altas as necessidades de prevenção geral, desde logo porque estamos perante um crime de homicídio, o qual provoca alarme e inquietação na comunidade, ao colocar irremediavelmente em causa o valor reconhecido por todos como o mais importante: a vida.

Ao nível da prevenção especial, a arguida não tem antecedentes criminais, mantendo até à prática do crime um estilo de vida normativo, estando socialmente inserida, pelo que as exigências neste campo não são particularmente elevadas.

O comportamento posterior ao crime da arguida não merece reparos, apresentando um comportamento estável, mostrando adequação face às regras impostas e estabelecendo boas relações, procurando ajudar colegas que precisam, sendo cordata com o corpo da guarda prisional e com os técnicos, sem evidenciar quaisquer incidências disciplinares.

Deve ainda ser valorado positivamente a sua postura em tribunal, tendo sido com base no seu depoimento – em conjugação com o do seu filho R. ouvido em declarações para memória futura – que o tribunal foi buscar boa parte da sua convicção relativamente aos factos considerados provados, e que a decisão sob recurso, na fixação a medida concreta da pena, considerou que a arguida revelou algum arrependimento.

Devemos ainda atender – ainda que de forma moderada – a circunstância de que resulta dos autos, que se a arguida não se opôs de forma decisiva ao processo causal (as agressões do arguido à vítima), demonstrou oposição (essencialmente verbal) às mesmas.

Tudo ponderado, decidimos fixar em 8 anos de prisão a pena pela prática do crime de homicídio voluntário por omissão, considerando a mesma adequada e conforme os padrões da nossa jurisprudência (cfr. o acima citado Ac. do STJ de 27-11-2013)).

pp) Passando a fixar a pena única de tendo como pressuposto a nova pena parcelar, e as outras 2 penas que não foram objecto de recurso, novamente com recurso aos critérios acima assinalados determinados pelo artigo 77º do Cód. Penal.

No caso, a moldura a considerar, terá como mínimo a pena de 8 anos (pena mais alta do concurso), e quanto ao limite máximo, a soma das penas parcelares equivale a 10 anos e 3 meses.

Também aqui há que ponderar a concentração e conexão espácio-temporal dos factos em concurso, uma vez que os factos relativos aos crimes de profanação de cadáver e de abuso e simulação de sinais de perigo, ocorreram na sequência do crime de homicídio, e por sua causa. Atendendo mais uma vez aos factos provados e à personalidade do agente, consideramos adequada a pena de 9 anos de prisão.


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IV – Dispositivo

Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra:

a)  em julgar procedente o recurso interposto pelo S., considerando não verificada a qualificativa da al. j) do n.º 2 do art 132º do Cód. Penal, condenando-o pela prática de um crime de homicídio qualificado, por omissão, nos termos do art. 131°e 132°, do Cód. Penal na pena de 21 (vinte e um) anos de prisão, e em concurso com os demais crimes na pena única de 24 (vinte e quatro) anos de prisão efectiva.

b) em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela arguida M., absolvendo-a da prática do crime de homicídio qualificado, condenando-a pela prática de um crime de homicídio simples, por omissão, nos termos do art 131, 10º e 73º do Cód. Penal, na pena de 8 (oito) anos de prisão, e em concurso com os demais crimes na pena única de 9 (nove) anos de prisão efectiva.

Quanto ao mais, mantém-se o decidido no acórdão recorrido.

Não há lugar ao pagamento de taxa de justiça relativamente a esta instância de recurso, uma vez que os recursos obtiveram algum provimento - art 513º n.º 1 do Cód. Processo Penal.

Coimbra, 24 de Novembro de 2021

João Novais (relator)

Elisa Sales (adjunta)