HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
CESSÃO DE UM CRÉDITO HIPOTECÁRIO
MÚTUO PARA AQUISIÇÃO DE HABITAÇÃO PRÓPRIA
INCUMPRIMENTO
DIREITO DE RETOMA INVIABILIZADO
Sumário


Sumário (da relatora):

I No incidente de habilitação de cessionário não se pode concluir, sem suporte factual, que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a posição da parte contrária no processo.
II No caso de cessão de um crédito hipotecário em execução que tem origem no incumprimento de um mútuo para aquisição de habitação própria, em que é cedente a Caixa ..., S.A. e cessionária uma instituição de titularização de créditos, face à legislação em vigor, não se pode considerar o direito de retoma inviabilizado.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

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Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO (seguindo o elaborado em 1ª instância).

X Designated Activity Company, na qualidade de cessionária veio, em 30/07/2020, deduzir incidente de habilitação do adquirente ou cessionário contra a Executada e a Exequente/cedente, requerendo a sua habilitação, para que com ela prossiga a execução, em substituição de Caixa ..., S. A., ora cedente.
Fundamentou a sua pretensão no conteúdo do contrato de cessão de créditos celebrado entre si e Caixa ..., S. A., em 12 de Maio de 2020, onde esta última cedeu à primeira os créditos que possuía sobre a executada.
Para tanto, juntou cópia do referido contrato de cessão de créditos e lista dos créditos cedidos onde consta o crédito exequendo.
A Executada E. R., apresentou oposição, com fundamento no desproporcionado agravamento das suas condições de defesa, violador da regra do “fabor debitoris”, em suma, por a habilitação ora contestada pretender inviabilizar o direito de retoma do contrato de mútuo do qual emerge a obrigação exequenda.
Concretiza que o crédito exequendo é um crédito à habitação regulado pelo Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de novembro, e que nos termos do disposto no Art. 23º-B, n.º 1 desse diploma “No prazo para a oposição à execução relativa a créditos à aquisição ou construção de habitação e créditos conexos garantidos por hipoteca ou até à venda executiva do imóvel sobre o qual incide a hipoteca do crédito à aquisição ou construção de habitação, caso não tenha havido lugar a reclamações de créditos por outros credores, tem o mutuário direito à retoma do contrato, desde que se verifique o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como os juros de mora e as despesas em que a instituição de crédito incorreu, quando as houver.”
Mais alega a contestante que é sua intenção proceder à retoma do contrato de mútuo, pelo que, nessa altura a resolução do mesmo ficará sem efeito, volvendo o contrato a vigorar como originalmente.
Concluiu que a cessão de créditos apenas teve como fim tornar mais difícil a posição do contestante no processo, ou mesmo inviabilizar essa sua pretensão de retoma do contrato de crédito, na medida em que a cessionária, sendo um fundo de investimentos, não poderá assegurar a manutenção de um crédito à habitação, actividade para a qual não está licenciada nem vocacionada.

Prossegue, ainda alegando que há fraude há lei, enquadrável no regime previsto no art.º 37.º do DL n.º 74-A/2017, de 23-06-2017 que dispõe:

«1 – São nulas as situações criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicação do disposto no presente decreto-lei.
2 – Configuram, nomeadamente, casos de fraude à lei:
a) A transformação de contratos de crédito sujeitos ao regime do presente decreto-lei em contratos de crédito excluídos do âmbito da aplicação do mesmo.»

Aduz ainda a Executada que resulta dos autos que a Exequente se nega a indicar os valores necessários para o exercício do direito de retoma, pelo que de tais actuações – cessão de crédito, por um lado, e omissão de informação resultam indícios dos quais decorrem que a exequente Caixa e a cessionária, praticaram uma contra-ordenação prevista no art.º 29º n.º 1 alínea bd) do Decreto-Lei n.º 74-A/2017 23-06-2017, punível nos termos da alínea m) do artigo 210.º do RGICSF.
Respondeu a Requerente cessionária que estamos perante uma execução de 2017 sendo que, desde a data do incumprimento (2010 e 2013, respetivamente) não se podendo equacionar que a cessão de créditos operada tenha prejudicado a posição da Executada, ou seja, que a respetiva posição processual tenha ficado com menores garantias em virtude da cessão de créditos operada em favor da aqui Requerente, até porque, apesar da cessão de créditos, o crédito mantém-se inalterado.
Frisa a Requerente que a Executada se limita a alegar que a transmissão do crédito constitui fraude à lei e, portanto, torna nula a presente habilitação, porém, a execução encontra-se pendente há 3 anos e o incumprimento há mais de 7 anos, pelo que se a Executada quisesse resolver a questão tê-lo-ia feito anteriormente, uma vez que a execução se encontra em curso desde mesmo antes da cessão dos créditos.
Face ao exposto, conclui, que esta arguição de nulidade não poderá ser considerada mais do que um expediente dilatório, pois que a Executada tem vindo a impugnar todos os atos processuais sem apresentar soluções ou propostas para a resolução da situação, devendo ser julgada improcedente a oposição.
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Foi fixado o valor do incidente em € 105.000,00 (cento e cinco mil euros).
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Foi de seguida proferida decisão que:
-julgou procedente o presente incidente de habilitação e, em consequência, decidiu:
a) habilitar X Designated Activity Company para prosseguir na acção executiva comum e demais apensos na posição de Exequente;
b) condenar a requerida contestante no pagamento das custas devidas pelo incidente, que fixo em 2 (duas) UC, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
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Inconformada, veio a requerida/executada interpor recurso, tendo apresentado alegações com as seguintes
-CONCLUSÕES- (que se reproduzem):

“1- A Sentença Recorrida ao julgar improcedente o pedido de nulidade da cessão de créditos por considerar que a cessão de créditos em massa operada pela exequente Caixa ... por via da qual esta transfere indistintamente o contrato de credito á habitação tipo t- 30celebrado com a Recorrente, com regime legal especifico de protecção do consumidor mutuário, misturando –o com créditos de outra natureza, para uma entidade financeira não bancária , não supervisionada pelos reguladores nem nacionais , Banco de Portugal e CMVM, nem pelo regulador bancário europeu, é válida por considerar que o único fundamento de oposição á mesma cessão é ter sido feita para tornar mais difícil a posição da Recorrente , o que esta não logrou provar, faz tábua rasa da diferença de regime legal entre uma cessão de créditos em massa , de 2572creditos e 1118 imoveis , para satisfação dos interesses dos bancos ex vi Decl. 42/2019 de 21 -03-2019, com dispensa de incidente de habilitação e o regime geral do art.356 do CPC de 2013 violando esta.
2- Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida erra na interpretação do regime legal dos artigos 356 do CPC e 585 do CC, por desatender ao comando do princípio actualista exigido pelo nº 1 in fine do art.. 9 do CC
3 O Tribunal Recorrido não leva na devida conta que a cessão operada pela Caixa ... é profundamente gravosa para a Recorrente/Executada, violando o disposto no artigo 586 do C.C e a regra da igualdade substancial das partes fixada no art. 4 do CPC
4- uma vez que a cessão em causa inviabiliza o exercício pela Recorrente do direito legal potestativo á retoma do contrato de credito á habitação celebrado entre a Recorrente e a Cedente CAIXA ..., que constitui o titulo executivo.
5- pelo que o Tribunal Recorrido faz tábua rasa do regime de ordem publica de protecção do consumidor de produtos /serviços bancários, fixado no citado Decreto-Lei n.º 74-A/2017 , que transpõe directiva da U.E. , olvidando que á luz do art. 37 deste regime legal a cessão em causa é nula por fraude á lei , o que torna a sentença recorrida violadora do primado do direito da união europeia e do principio da unidade do sistema jurídico imposto pelo artigo 9 do CC,
6- e erra ao afirmar que a improcedência do pedido de nulidade da cessão efectuada pela Caixa ... resulta da falta de demonstração pela Recorrente de que a mesma foi feita para prejudicar a posição processual desta.
7 - Ao contrário do que a sentença recorrido afirma na antepenúltima pagina, de que “ nos autos principais nunca foi dado conhecimento de que a Recorrente pretendesse pagar as prestações vencidas, como pressuposto do direito á retoma do contrato”
8- A verdade é que Tribunal Recorrido em 2020-02-04 por sentença que indeferiu o procedimento cautelar intentado pela Recorrente para obrigar a Caixa ... a informar dos montantes em divida para esta efectivar o direito legal á retoma do contrato e assim extinguir a execução, continuando a pagar a prestação de credito á habitação contrato tipo t 30, ex vi citado art 28 do DL 74-A/ 2017 - afirma na pagina 10, que a Recorrente em 2019-11-28 requereu que a Cedente Caixa ... lhe informasse as quantias em divida para efectivar o direito á retoma do contrato – vide ref Citius 167052559 e 94443125.
9 – por conseguinte, ao contrário do que o Tribunal Recorrido sustenta, a Reclamação de créditos do condomínio por apenso de Fevereiro de 2020- de montante minudente não existia quando a Recorrente em 2019-11-28 exerceu nos autos o direito potestativo legal de retoma do contrato , por ser anterior.
10- Acresce que á data da prolação da sentença recorrida, o Tribunal Recorrido, por força do acórdão deste Venerando Tribunal favorável á Recorrente, em Junho transacto, já havia notificado o Reclamante para se opor á inutilidade superveniente da lide por comprovado pagamento vide ref citius 174082556..
11- Por fim, e, diversamente do que o Tribunal Recorrido afirma, em 2019 em sede de suspensão dos autos para transacção com a Exequente/ Cedente Caixa ..., a Recorrente pagou, entregando DEZ MIL EUROS, além de muitos outros pagamentos, alguns a boca do balcão, e que perfazem cerca de 16000€, conforme documentos juntos pela Recorrente pelo mesmo requerimento de 2019-11-28.”
Pede a revogação da sentença recorrida e substituição por outra que “declare a invalidade por fraude á lei, da cessão do credito exequendo efectuada pela Exequente Caixa ... por a mesma impedir que a Recorrente devedora possa, ao abrigo do art. 585 do C.C., invocar contra a cessionária todos os meios de defesa que lhe é licito invocar, mormente o exercício do direito legal potestativo de retoma do contrato de credito á habitação tipo t30 estatuído o regime de ordem pública de protecção do consumidor de serviços bancários, art. 28 e 37 do DL 74-A/ 2017.”
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Foram apresentadas contra-alegações pela requerente com as seguintes
-CONCLUSÕES- (que se reproduzem):

“A. A decisão recorrida tem como objeto a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, a qual julgou procedente o incidente de habilitação de cessionário e, em consequência, habilitou a Y Designated Activity Company para prosseguir na ação executiva comum e demais apensos na posição de Exequente.
B. Por escritura pública datada de 12 de maio de 2020, a Caixa ..., S.A. cedeu a totalidade dos seus créditos à sociedade irlandesa Y Designated Activity Company, que comprou os créditos pelo preço de setenta e sete milhões, quinhentos e quarenta e seis mil oitocentos e vinte e um euros e noventa cêntimos.
C. Com a cessão de créditos, a Recorrida assumiu todos os direitos e garantias decorrentes da titularidade desse crédito, designadamente, o direito de receber, exigir e recuperar quaisquer montantes acessórios ou principais, como decorre do art.º 577.º, nº1 e 582.º Código Civil
D. Foi nestes termos que a convicção do Tribunal a quo se formou, decidindo como procedente o incidente de habilitação de cessionário intentado pela Recorrida.
E. Inconformada, a Apelante apresentou o presente Recurso.
F. Porém, a Apelante não indicou, em concreto, em que fundamentos alicerça o presente Recurso de Apelação, nem tampouco em que medida.
G. A Recorrente impugna a legitimidade da transmissão, mas em momento algum demonstrou que a transmissão apenas teve lugar para tornar mais difícil a sua posição, requisito de inoperabilidade da transmissão prescrito pelo artigo 263.º do Código de Processo Civil.
H. A alegação de que foram preteridas garantias processuais fundamentais também não se afigura como verdadeira, o que facilmente se demonstra pelas sucessivas impugnações operadas pela Recorrente durante a tramitação do processo até ao presente momento.
I. Considerando que à data da cessão de créditos a Apelante já se encontrava em incumprimento há vários anos, não pode, de igual forma, proceder a sua alegação de que a cessão consubstanciou um entrave ao exercício do direito de retoma do contrato.
J. Aliás, nem se pode equacionar que a cessão de créditos operada tenha prejudicado a posição da Executada, isto é, que a respetiva posição processual tenha ficado com menos garantias em virtude da cessão de créditos operada em favor da aqui Recorrida, até porque, apesar da cessão de créditos, o crédito manteve-se inalterado.
K. Tanto assim é que quer os Embargos de Executado quer a Oposição à Penhora foram improcedentes, precisamente, por ter ficado provado que foram tentadas diversas renegociações, tendo sempre havido incumprimento por parte da aqui Executada.
L. Também a alegação de que a transmissão de créditos operada entre a Caixa ... e a ora Recorrida correspondeu a uma fraude à lei que determinaria a nulidade da habilitação se encontra desprovida de sentido, tanto não o tem que a Recorrente não logrou fazer prova dos termos em que a mesma se teria verificado.
M. Se assim fosse o entendimento, não haveria cessões de créditos e, neste caso, cada Exequente seria obrigado a manter-se nessa posição processual até findarem os respectivos processos executivos.
N. Nestes termos, a arguição de nulidade da cessão de créditos, assim como a alegação de que a mesma consubstanciou um impedimento ao exercício do direito à retoma do contrato não poderão ser consideradas mais que meros expedientes dilatórios.
O. Concluindo-se, a final, pela total falta de fundamento que preside ao Recurso deduzido nos autos pela aqui Recorrente e que deverá, como tal, ser julgado totalmente improcedente, com todas as legais consequências.
P. Face a tudo o que antecede, sem prescindir do demais alegado, vigorando o Princípio da Livre Apreciação da Prova, não pode a Sentença proferida pelo Tribunal a quo ser alterada ou anulada por outra favorável à Recorrente.”
Pede que se negue provimento ao recurso e se confirme a sentença recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões e síntese final das mesmas decidir se a sentença proferida cometeu erro de julgamento por não declarar “a invalidade por fraude á lei, da cessão do credito exequendo efectuada pela Exequente Caixa ... por a mesma impedir que a Recorrente devedora possa, ao abrigo do art. 585 do C.C., invocar contra a cessionária todos os meios de defesa que lhe é licito invocar, mormente o exercício do direito legal potestativo de retoma do contrato de credito á habitação tipo t30 estatuído o regime de ordem pública de protecção do consumidor de serviços bancários, art. 28 e 37 do DL 74-A/ 2017.”
As questões relativas à admissibilidade e aos termos da admissão do recurso mostram-se prejudicadas face ao despacho proferido previamente pela relatora ao abrigo do artº. 652º, nº. 1, C.P.C..
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

A matéria a considerar é a que foi considerada como provada (e não provada) em 1ª instância, já que não foi apresentada no recurso impugnação da matéria de facto, sem prejuízo do que se apreciará “infra” quanto à matéria considerada não provada.
Assim, temos a seguinte fundamentação, retificando-se o lapso constante do ponto 1 com a eliminação da sua parte final –que mantemos destacada a negrito para se compreender- já que estamos no âmbito da execução e não do procedimento cautelar:

a) Matéria de Facto Provada
1. Caixa ..., S.A. intentou, em 02.05.2017, contra E. R. a execução para pagamento da quantia de 101 296,19 € (Cento e Um Mil Duzentos e Noventa e Seis Euros e Dezanove Cêntimos) de que os presentes autos de procedimento cautelar são apenso.
2. Como títulos executivos foram juntos:
a) A escritura pública de Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca, lavrada em 31 de Agosto de 2004, em que foram outorgantes, designadamente, a Exequente Caixa ..., S.A. e a Executada E. R. e pela qual declararam que a primeira concedia à segunda um empréstimo de €105.000,00 de que a segunda se confessava devedora; e que, em garantia do capital emprestado, juros e despesas, a Executada constituía a favor da Exequente hipoteca sobre a fracção autónoma designada pelas letras "AM", descrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .... - "AM" e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo .....º - "AM".
b) O documento denominado «Proposta de adesão ao cartão … Gold» assinado pela Executada E. R., em 06/06/05 acompanhado do extracto de débito;
c) O documento que constitui a proposta de adesão ao cartão de crédito da Caixa ..., assinado pela Executada E. R., em 25/03/2008 acompanhado do extracto de débito.
3. No requerimento executivo a Exequente expôs os seguintes factos:
«(DO CONTRATO DE MÚTUO)
1 - No exercício da sua actividade creditícia, a Exequente celebrou o seguinte empréstimo, a saber:
- Empréstimo n.º …………….85, no montante de € 105.000,00 (CENTO E CINCO MIL EUROS), celebrado por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, destinado a facultar recursos para a aquisição do imóvel para habitação própria e permanente, datada de 31 de Agosto de 2004, em que surge como mutuária E. R. - crf. docs. n.ºs 1 e 2 que ora se juntam e se dão por integralmente reproduzidos.
(DA GARANTIA)
2 - Para garantia do capital mutuado pelo empréstimo supra descrito, respectivos juros e despesas, a mutuária constituiu hipoteca voluntária sobre o seguinte prédio:
- fracção autónoma designada pelas letras "AM", correspondente a uma habitação no ..º andar direito, trás, com entrada pelo n.º … da Praceta ...., com uma garagem na sub-cave, designada pelo n.º .. e uma dependência para arrumos no mesmo piso, parte integrante do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Praceta ...., n.ºs 9, 10, 11, 12 e 13 e Rua …, n.ºs 39 e 41, freguesia de …, concelho de Braga, descrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .... - "AM" e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo .....º - "AM".
A referida hipoteca foi registada a favor da Caixa ..., ora Exequente, pela Ap. 55 de 17.08.2004 - crf. doc. n.º 3 ora junto.
(DA DÍVIDA)
3 - Por ter a executada deixado de cumprir as obrigações emergentes do contrato supra identificado, encontra-se em dívida, à data de 21 de Abril de 2017 a quantia de € 96.153,33 (NOVENTA E SEIS MIL CENTO E CINQUENTA E TRÊS EUROS E TRINTA E TRÊS CÊNTIMOS) - crf. doc. n.º 4 que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido.
4 - A partir desta data, a quantia em dívida agravou-se e agravar-se-á diariamente em € 8,79 (oito euros e setenta e nove cêntimos cêntimos) relativamente ao capital mutuado pelo empréstimo supra descrito, montante correspondente a juros calculados à respectiva taxa contratual actualizada, acrescido das despesas que a Exequente efectue, da responsabilidade da devedora, a liquidar oportunamente - cit. doc. n.º 4.
(DOS CONTRATOS DE UTILIZAÇÃO DE CARTÃO DE CRÉDITO)
5 - No exercício da sua actividade bancária foi ainda contratada com a Executada E. R. a utilização dos seguintes cartões de crédito:
- Cartão de crédito n.º ………17, nos termos das condições gerais a que o dito contrato ficou sujeito, aceites pela respectiva titular, seriam lançadas na "conta cartão" as quantias devidas pela titular, resultantes de operações de aquisição de bens ou serviços ou de adiantamento de dinheiro liquidadas pela Caixa ... - cfr. doc. n.º 5 ora junto e dado por integralmente reproduzido.
- Cartão de crédito n.º ……….71, nos termos das condições gerais a que o dito contrato ficou sujeito, aceites pela respectiva titular, seriam lançadas na "conta cartão" as quantias devidas pela titular, resultantes de operações de aquisição de bens ou serviços ou de adiantamento de dinheiro liquidadas pela Caixa ... - cfr. doc. n.º 6 ora junto e dado por integralmente reproduzido.
(DA DÍVIDA)
6 - Para permitir o ressarcimento do crédito, a titular dos cartões deveria aprovisionar a conta de depósitos à ordem a eles adstrita, por forma a permitir o débito do saldo devedor da "conta cartão".
7 - Tendo a titular do cartão deixado de proceder ao respectivo aprovisionamento da "conta cartão", encontra-se em dívida, a título de capital, à data de 21 de Abril de 2017, a quantia de € 3.764,03 (TRÊS MIL SETECENTOS E SESSENTA E QUATRO EUROS E TRÊS CÊNTIMOS) - cfr. docs. n.ºs 7 e 8 ora juntos e dados por integralmente reproduzidos.
8 - A dívida à Caixa ..., proveniente dos contratos de utilização de cartão de crédito em apreço, ascende, à presente data, ao montante global de € 5.142,86 (CINCO MIL CENTO E QUARENTA E DOIS EUROS E OITENTA E SEIS CÊNTIMOS) - cit. docs. n.ºs 7 e 8.
(DA DÍVIDA GLOBAL)
9 – Atento o exposto, a dívida global à Caixa ..., proveniente das operações supra identificadas, ascende, à data de 21 de Abril de 2017, ao montante global de € 101.296,19 (CENTO E UM MIL DUZENTOS E NOVENTA E SEIS EUROS E DEZANOVE CÊNTIMOS), quantia sujeita ao agravamento diário referido, até efectivo e integral pagamento.
(DA EXEQUIBILIDADE DO CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DE CARTÃO DE CRÉDITO)
10 - A força executiva dos contratos de utilização de cartão de crédito supra identificados, que servem de base à presente execução é-lhe conferida pelas disposições combinadas das alíneas b) e d), do n.º 1, do artigo 703º do novo Código de Processo Civil, e do n.º 4 do art.º 9 do Decreto-Lei 287/93, de 20 de Agosto.»
4. No âmbito da presente execução foi penhorada, em 14/09/2017, a Fração autónoma de prédio urbano em regime de propriedade horizontal, designada pela letra AM, referida em 2. a) – cfr. auto de penhora junto sob a ref.ª 5998497 dos autos de execução.
5. Por decisão da Sr. (ª) Agente de Execução de 19/09/2017, foi sustada a execução quanto ao imóvel penhorado e referido em 4, em virtude da existência de uma penhora anterior (realizada no Processo Executivo 2661/16.0T8VNF - Comarca de Braga - Vila Nova de Famalicão – Instância Central - 2ª Secção de Execução - J1) – cfr. ref.ª 6017861 dos autos de execução e certidão predial junta sob a ref.ª 9363740 dos autos de execução.
6. A Executada E. R. deduziu, em 17/11/2017, oposição à execução, mediante Embargos de Executado, que constitui o Apenso A, no âmbito da qual formulou o seguinte pedido:
«Termos em que em conformidade com preceituado no artigo 733 nº 1c) vem a Executada requerer o recebimento dos presentes embargos ou oposição á execução e decretada a suspensão da Execução com dispensa da prestação de caução por notória carência e impossibilidade de a prestar;
- requerendo-se sejam julgadas procedentes as invocadas causas de inexigibilidade das obrigações exequendas, por alegada e comprovada doença súbita e imprevista incapacitante da Executada que lhe diminuiu o único rendimento mensal – o parco vencimento- que corresponde a alteração anormal e superveniente das ciscunstâncias ex vi art 437 do CC que á luz da boa fé e por imperativo constitucional de proporcionalidade na relação negocial dos dois contratos dados á execução , carecem os juros e taxas ser reduzidos e as condições de pagamento ajustadas á real capacidade de pagamento da Executada que diminuiu involuntária e bruscamente comparativamente com que dispunha aquando a celebração dos dois contratos dados á execução, desde a comunicação pela Executada á Exequente da referida doença incapacitante» - cfr. p.i. junta ao apenso A.
7. Os Embargos de Executado foram admitidos, tendo já sido proferido despacho saneador, no qual foi indeferida a requerida suspensão da execução, encontrando-se designada para a audiência de julgamento o dia 6 de Julho.
8. Por decisão de 09/05/2019, foi determinada a suspensão da instância pelo período de 60 dias, por requerimento de Exequente e Executado, nos termos do artigo 272º, nº 4 do CPC, com vista à resolução extrajudicial – cfr. ref.ª 8623257 dos autos de execução.
9. Por requerimento de 26/09/2019, a Exequente Caixa ..., S.A., requereu o prosseguimento da execução, uma vez que as partes não lograram alcançar acordo – cfr. ref.ª 9142340 dos autos de execução.
10. Por requerimento junto aos autos de execução em 14/11/2019, a Exequente expôs, entre o mais, o seguinte:
«A dívida exequenda ascende, após aplicação dos pagamentos efetuados pela Executada, à data de 14 de novembro de 2019, ao valor de € 98.891,89 (noventa e oito mil oitocentos e noventa e um euros e oitenta e nove cêntimos) – cfr. nota de débito que ora se junta.» - cfr. ref.ª 9379343.
11. A Executada apresentou, em 28/11/2019 um requerimento, subscrito pela própria, pela qual requereu fosse a Exequente notificada para informar se foi ou não entregue a quantia necessária à retoma do contrato de crédito e que, em caso negativo, viesse demonstrar aos autos o montante necessário para o efeito – ref.ª 9443125 dos autos de execução.
12. Sobre tal requerimento pronunciou-se a Exequente, em 12/12/2020, nos seguintes termos: «1.O requerimento apresentado pela Embargante E. R. deverá ser desentranhado dos autos, uma vez que a Embargante acha-se representada por mandatária e na presente ação é obrigatória a constituição de advogado.
2. No mais, reitera-se o conteúdo do requerimento expedido nos autos a 14 de novembro de 2019.» - cfr. ref.ª 9507701 dos autos de execução.
13. Em 20/12/2019 a Sr. (ª) Agente de Execução procedeu à alteração da quantia exequenda em resultado dos pagamentos voluntários efectuados pela Executada, para 98.891,89 € - cfr. ref.ª 9551183 dos autos de execução.
14. No dia 11/02/2020 a Executada E. R. apresentou requerimento no âmbito da execução pelo qual veio, «incidentalmente e contra Caixa …, SA, Exequente nestes mesmos autos, exercer o direito legal de retoma do contrato de crédito á habitação que lhe é conferido pelo artigo artigo 28 do DL 74-A-2017».
15. No âmbito desse incidente requer a Executada,
«NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, vem requerente, em conformidade com o estatuído nos art 2º, 6 e 7 nº4 e 418 do Código de Processo Civil vem requerer seja ordenado á Requerida para que cumpra o regime legal do DL 74-A/2017, mormente o estatuído no artigo 27-B deste diploma legal, informando de modo claro e descriminado:
A) os montantes das prestações do credito concedido pelo contrato T30 a fls do requerimento executivo, vencidas e em dívida á Exequente e C) o valor devido a título de despesas e juros , sem perder de vista que esta beneficia de apoio judiciário na modalidade mais ampla de isenção de custas e encargos com A.E. e honorários do mandatário a fim da Requerente poder efectivar o direito à Retoma do contrato de credito á habitação tipo T30 dado á execução, extinguindo-a.
D) Que seja fixando à Exequente o prazo dez dias para prestar estas informações á Executada, fixando-se sanção pecuniária compulsória em montante não inferior a cem euros por cada dia que exceder o prazo vier a ser fixado, atentos os juros moratórios diários que a Exequente está a cobrar á Executada e o sofrimento psicológico que o risco de perda da única casa de habitação causa nesta pela falta de colaboração /obstrução da Exequente no exercício do indicado DIREITO de RETOMA que assiste á Executada e assim por fim aos autos.
- Em conformidade com o preceituado no nº1 do artigo 272 do CPC, requer-se seja atribuído efeito suspensivo da execução á decisão que se espera venha a deferir o presente requerimento sob pena de se frustrar o efeito útil da mesma, pela venda executiva da casa de habitação própria da Requerente que a todo o custo tem tentado impedir.»
16. Por escritura pública datada de 12 de Maio de 2020, a Caixa ..., S.A. cedeu parte dos seus créditos à sociedade irlandesa Y Designated Activity Company, aqui Requerente, que comprou os créditos pelo preço de setenta e sete milhões quinhentos e quarenta e seis mil oitocentos e vinte e um euros e noventa cêntimos, nomeadamente o crédito resultante do contrato de mútuo com hipoteca reclamado na presente execução.
17. Por apenso à presente execução veio reclamar créditos o CONDOMÍNIO DO PRÉDIO EM REGIME DE PROPRIEDADE HORIZONTAL SITO NA PRACETA ...., NºS 9, 10, 11, 12 E 13, BRAGA, estando tal crédito reconhecido por sentença proferida no processo nº 5182/19.5T8VNF-A.
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Acrescenta-se aqui porque decorre da consulta dos autos apensos que a reclamação foi apresentada em 20/4/2020.
Acrescenta-se ainda tendo como fonte a consulta da execução que ao incidente referido em 14 e 15 foi apresentada resposta pela Caixa ... S.A. e não foi objeto de decisão.
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b) Matéria de Facto não Provada

Não se provaram quaisquer outros factos alegados com interesse para a decisão a proferir, designadamente:
- que a cessão de créditos à Requerente foi realizada para inviabilizar o direito de retoma do contrato de mútuo do qual emerge a obrigação exequenda.
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A propósito da inclusão deste último ponto da matéria de facto considerada não provada, há que discernir e verificar a possível introdução na matéria de facto de “factos conclusivos”.
A discussão sobre a técnica usada na enunciação dos factos provados e não provados, e concretamente sobre o que deve constar destes (excluído o que for estritamente jurídico, valorativo ou conclusivo), ou deve antes ser remetido para a matéria de direito, prende-se com a eliminação no CPC de 2013 do nº. 4 do artº. 646º do C.P.C. que considerava não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito –e por analogia que contenha juízos de valor ou conclusivos. Esta eliminação prende-se desde logo com a nova estrutura do Código no que concerne à eliminação primeiro do questionário e depois da base instrutória, para os ainda mais genéricos (e por vezes até com pendor conclusivo) temas de prova –artº. 596º, nº. 1, do C.P.C.. Sobre os factos que encerrem em si mesmo essa valoração jurídica, veja-se a propósito António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa “O Código de Processo Civil Anotado”, Vol I, pags. 698 a 702, e pags. 716 a 722. E defendendo que a eliminação da dita disposição não significa que se tenha deixado de ter de considerar apenas factos, Ac. da Rel. do Porto de 7/10/2013 (dgsi.pt). Nesse sentido deve ser lido o artº. 607º, nº. 4, do C.P.C., devendo o Tribunal responder apenas aos factos que julga provados e não provados, não envolvendo esta decisão a alegação que contenha matéria conclusiva, irrelevante ou de direito. Neste sentido veja-se o Ac. do S.T.J de 28/9/2017 (www.dgsi.pt).
Significa isto no caso concreto que a colocação no facto não provado da matéria em causa corresponde a decidir o objeto do litígio e que conforme enunciado na própria sentença é saber: “se a cessão de créditos operada nos autos a favor da Requerente foi feita para tornar mais difícil a posição da requerida/ Executada”, já que aquela conclusão reconduz-se a esta outra conclusão na versão avançada pela recorrente (-veremos que não será assim).
Foi também esta a interpretação do Tribunal recorrido que diz: “In casu, foi também com base neste último fundamento que a requerida contestou a habilitação, invocando que é sua intenção proceder à retoma do contrato de crédito à habitação, ao abrigo do disposto no Art. 23º-B, n.º 1 do Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de novembro, e que a cessão de créditos apenas teve como fim tornar mais difícil a posição do contestante no processo, ou mesmo inviabilizar essa sua pretensão de retoma do contrato de crédito.”
Na sentença sob recurso acaba por se dizer e bem que a afirmação (conclusiva) carece de suporte factual. Se carece, a nosso ver nada deve ser levado aos factos não provados.
Este vício pode ser conhecido e corrigido por este Tribunal ao abrigo do disposto no artº. 662º, nº. 2, c), do C.P.C., pelo que se elimina o facto não provado.
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IV O MÉRITO DO RECURSO.

O Tribunal recorrido começou por enquadrar a figura da habilitação, e mais concretamente a habilitação de cessionário, incidente em causa nos autos –artº. 356º do C.P.C..

Antes de mais afastamos desde já a violação desta norma bem como do disposto no Decreto-Lei nº. 42/2019 de 28/3, mencionados pela recorrente, já que estes dizem respeito à questão adjetiva/processual e não substantiva, mostrando-se conciliáveis e no caso concreto conciliadas, com prevalência do regime especial consagrado por este diploma. Os efeitos supostamente “nefastos” para a posição da recorrente e conforme este alegou, tinham que ver com a tramitação do recurso e já foi tratado em sede de despacho prévio a este acórdão.

Cabe aqui delimitar o objeto do recurso, no sentido que não está em causa a validade formal do ato ou que o documento junto aos autos prove a cessão; conforme prevê o artº. 356º, nº. 1, a); o que a recorrente pretende que seja reanalisada é a sua pretensão em demonstrar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo.
Nesta senda, introduz-se a apreciação do regime jurídico de concessão de crédito à habitação própria, conforme Decreto-Lei nº. 349/98 de 11/11/98, com as alterações que lhe foram introduzidas e concretamente pelo Decreto-Lei nº. 74-A/2017 de 23/6 citado pela recorrente (com entrada em vigor em 1/1/2018, no que ao caso interessa, conforme o seu artº. 47º).
Também não se discute que o crédito transmitido diz respeito a um mútuo para aquisição de habitação própria e permanente. O contrato de mútuo é de 31/8/2004.
Antes de mais cremos que ao invocar a fraude que, nas palavras da recorrente, leva à nulidade do contrato, está a querer colocar em causa a sua validade substancial.
Ora, a fraude que se invoca é o incumprimento do dever de retoma, que tal como resulta do disposto no artº. 29º, bd) do Decreto-Lei nº. 74-A/2017 constitui contraordenação punível nos termos da alínea m) do artigo 210.º do RGICSF.
A violação do dever não está demonstrada nos autos, e não tem efeitos sobre a validade do contrato de cessão. São matérias distintas, e como tal com reflexos distintos. A contraordenação incide sobre a entidade mutuante e os seus efeitos esgotam-se nessa sua posição –ou violou o dever de retoma ou não violou, e se violou sujeita-se à punição. Isto nada tem que ver nem colide com a o contrato de cessão, logo nada tem que ver com a sua validade substancial.

Questão diversa é se com a cessão se procurou impedir a retoma. Esta matéria relaciona-se com o disposto no artº. 37º (-fraude à lei) do mesmo diploma que diz que:

“1 - São nulas as situações criadas com o intuito fraudulento de evitar a aplicação do disposto no presente decreto-lei. 2 - Configuram, nomeadamente, casos de fraude à lei: a) A transformação de contratos de crédito sujeitos ao regime do presente decreto-lei em contratos de crédito excluídos do âmbito da aplicação do mesmo; (…).

Ora, também esta situação –e aqui a fraude à lei incidiria sobre a validade substancial do contrato tornando-o nulo (cfr. ainda o artº. 280º, nº. 1, do C.C.) -é de afastar no caso dos autos.
Em primeiro lugar porque o intuito fraudulento tem de ser algo objetivado em factos, o que não resulta do alegado pela recorrente –no seguimento da alteração que fizemos à matéria de facto. Não basta dizer que operou a cessão, já que tal não equivale sem mais ao dito intuito, sob pena de qualquer cessão nestes casos ficar impedida.
Em segundo lugar, não se está perante um caso de transformação de contratos de crédito. A execução parte do princípio da sua resolução por incumprimento; e neste caso a retoma permite precisamente a “repristinação” do contrato resolvido –cfr. artº. 28º, nº. 2, do diploma: “2 - Caso o consumidor exerça o direito à retoma do contrato, considera-se sem efeito a sua resolução, mantendo-se o contrato de crédito em vigor nos exatos termos e condições iniciais, com eventuais alterações, não se verificando qualquer novação do contrato ou das garantias que asseguram o seu cumprimento.”
Tem de ser feita outra apreciação, face à estruturação das alegações de recurso.
Em primeiro lugar cremos que é precipitada a afirmação relativa à inviabilidade do direito de retoma: o incidente respetivo não foi apreciado e decidido e é prévio à habilitação. As considerações a esse respeito tecidas na decisão recorrida, salvo o devido respeito, mostram-se deslocadas e precipitadas. Como despiciendos são os demais argumentos a propósito tecidos pela recorrente. Todos eles dizem respeito à decisão do respetivo incidente. Não deixamos de atentar na seguinte sequência de factos: a execução é proposta em 2/5/2017, os embargos são apresentados em 17/11/2017; não foi realizada a venda do imóvel; o incidente relativo ao pedido de retoma foi apresentado em 11/2/2020, a reclamação de créditos foi apresentada em 20/4/2020; a escritura qui em causa teve lugar em 12/5/2020 e a habilitação foi promovida em 30/7/2020. Não há notícia de que o pagamento exigido para a retoma tenha sido realizado, mas há que averiguar das razões invocadas e requerimentos da executada no sentido de pretender saber o valor em dívida, bem como pagamentos que tenham sido feitos, e conjugar o que se apurar com o respetivo instrumento legal, nomeadamente verificando a assertividade de se exigir o pagamento prévio como pressupostos do exercício do dever de retoma.
Por outro lado, uma coisa é o direito de retoma, que até extrajudicialmente pode operar, outra coisa é a posição da executada no processo.
Se o direito de retoma for deferido (ou aceite extrajudicialmente), a execução terá de ser extinta –cfr. Ac. desta Rel. de 3/10/2019.
Se o direito de retoma for indeferido, então a questão deixa de se colocar.
Veja-se o que a propósito foi dito naquele acórdão: “A retoma do contrato, ao revogar a resolução contratual anteriormente operada pelo Banco e que era a “causa de pedir na execução”, acarretará a extinção da execução. Regime já anteriormente previsto no art.º 23.º-B, n.º 2, da Lei n.º 59/2012, de 09-11, cuja redacção foi mantida. Inexistindo dúvidas na jurisprudência que a retoma do contrato implica a extinção da execução – vide entre outros os acórdãos de 12.3.2019 (processo nº 477/12.1TBCLD.C1) e do TRL de 17.5.2018 (processo nº 5273/16.4T8FNC.L1 onde a questão é lateralmente abordada. (…) Até porque o título executivo, que emerge da resolução do contrato, com a retoma do contrato fica sem efeito.
O que foi transmitido foi o direito de crédito resultante de um contrato resolvido por falta de pagamento. O direito de retoma coloca-se e colocou-se – foi suscitado- previamente, perante a mutuante. O efeito de seu eventual deferimento na relação entre cedente e cessionário não está aqui em causa, e ultrapassa a executada/recorrente.
Relativamente à oposição que interessa a este incidente –que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo –não há qualquer sustento fatual para a mesma.
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Conforme já dissemos, o incidente de retoma está por decidir nos autos. Por isso é apenas em tese que se pode abordar a sua viabilidade face à cessão – também só em tese a questão foi suscitada.
Impõe-se nessa ordem de ideias acrescentar o seguinte: a cessão da dívida exequenda é, como já decorre, uma cessão de crédito hipotecária. O Decreto-Lei nº. 453/99 que foi alterado e republicado com o Decreto-Lei nº. 82/2002, de 5/4 não impede esta cessão atentas as qualidades de cedente e cessionário, nomeadamente sendo a cessionária uma instituição de titularização de créditos.
A cessão é válida nos termos do artº. 577º do C.C. e dos artºs. 1º nº. 2, 2º nº. 1 e 4º, nº. 4, do Decreto-Lei nº. 453/99.
Atente no que diz o artº. 6º, nº. 6 “- Dos meios de defesa que lhes seria lícito invocar contra o cedente, os devedores dos créditos objecto de cessão só podem opor ao cessionário aqueles que provenham de facto anterior ao momento em que a cessão se torne eficaz entre o cedente e o cessionário.
Esta norma conjuga-se com o disposto no artº. 585º do C.C. e diz respeito às exceções que obstam ao nascimento do crédito ou produzem a sua extinção como realçam Pires de Lima e Antunes Varela, “código Civil Anotado”, Vol. I, pag. 600, citando Vaz Serra.
No entanto, no que ao direito de retoma concerne, terá de conjugar-se também com o disposto nos seus números seguintes:
“7 - A cessão de créditos para titularização respeita sempre as situações jurídicas de que emergem os créditos objecto de cessão e todos os direitos e garantias dos devedores oponíveis ao cedente dos créditos ou o estipulado nos contratos celebrados com os devedores dos créditos, designadamente quanto ao exercício dos respectivos direitos em matéria de reembolso antecipado, de renegociação das condições do crédito, cessão da posição contratual e sub-rogação, mantendo estes todas as relações exclusivamente com o cedente, caso este seja uma das entidades referidas no nº 4.
8 - No caso de cessão para titularização de quaisquer créditos hipotecários concedidos ao abrigo de qualquer dos regimes previstos no Decreto-Lei nº 349/98, de 11 de Novembro, as entidades cessionárias passarão, por efeito da cessão, a ter também direito a receber quaisquer subsídios aplicáveis, não sendo os regimes de crédito previstos naquele decreto-lei de forma alguma afectados pela titularização dos créditos em causa.” (novo - redação introduzida pelo Decreto-Lei nº. 82/2002, de 5 de Abril.).
Neste sentido lê-se no seu preâmbulo: “Quanto aos legítimos direitos dos devedores, especialmente dos consumidores de serviços financeiros, consagram-se normas que visam a neutralidade da operação perante estes. É o que sucede, nomeadamente, no que respeita à manutenção, pela instituição financeira cedente, de poderes de gestão dos créditos e das respectivas garantias. Com efeito, em relação aos devedores, a titularização dos créditos não implica a diminuição de nenhuma das suas garantias, continuando aqueles, no que ao sector financeiro respeita e não obstante a ausência de notificação da cessão, a manter todos os seus direitos e todo o seu relacionamento com a instituição financeira cedente.”
Veja-se ainda em conformidade o seu artº. 45º, nº. 2.
Atente-se também no artº. 35º, nº. 1, do Decreto-Lei nº. 74-A/2017 no sentido da imperatividade das suas normas: “Caráter imperativo 1 - O consumidor não pode renunciar aos direitos que lhe são conferidos por força das disposições do presente decreto-lei, sendo nula qualquer convenção que os exclua ou restrinja.”
Rege ainda o Decreto-Lei nº. 227/2012 de 25/10 quanto aos princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e cria a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações (nomeadamente no caso de PERSI –cfr. a propósito o Ac. da Rel. de Guimarães de 30/01/2020, www.dgsi.pt, situação em que se prevê a impossibilidade de cedência do crédito conforme o seu artº. 18º, nº. 1, c) –e só neste caso).
Esse diploma aplica-se, além de outros, aos contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel celebrados com clientes bancários (artº. 2º, nº. 1, b)). E aplica-se apenas a consumidores em sentido técnico, face á remissão feita no artº. 3º, a), da definição de “cliente bancário” para a noção de consumidor, na aceção dada pelo nº. 1 do artº. 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei nº. 24/96, de 31/07, alterada pelo Decreto-Lei nº. 67/2003, de 08/04, desde que intervenha como mutuário em contrato de crédito (3). E entende-se por contrato de crédito “o contrato celebrado entre um cliente bancário e uma instituição de crédito com sede ou sucursal em território nacional que, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo anterior, esteja incluído no âmbito de aplicação do presente diploma” –artº. 3º, c).
Assim sendo, a cessão é válida face ao disposto no artº. 577º, nº. 1, última parte, do C.C..
Como salienta Antunes Varela (“Das Obrigações em Geral”, Vol. II, 6ª edição, pag. 303) “(…) há bastantes casos, designadamente nos contratos de prestação de serviços, no contrato de mandato e no contrato de trabalho, em que a prestação debitória, por sua natureza, se encontra de tal modo ligada à pessoa concreta do credor, que seria manifestamente desrazoável impor ao devedor, nos termos admitidos pelo artigo 577.º, a sua vinculação perante uma outra pessoa.” Dá como exemplos o direito à prestação de serviços a que se vinculou uma empregada doméstica para com uma determinada dona de casa, ou o direito à tarefa especializada a que se obrigou um perito perante uma determinada empresa.
Meneses Cordeiro (“Tratado de Direito Civil”, IX, 3ª edição, pags 770-771) diz que “(…) não é, pois, a «ligação à pessoa» que, por si, impede a cessão: antes a natureza da conduta e os efeitos dela resultantes (…)”, refere que esta impossibilidade de cessão deve ser sempre objectivamente detetável e enuncia como exemplos dela, os créditos de personalidade – que se prendem com bens ligados à pessoa do devedor –, os créditos “intuitu personae” e os créditos não autónomos ou acessórios, como os ligados a um dever de sigilo, ou em que a boa fé gera a sua inexigibilidade, nomeadamente em caso de cessão parcial ou a várias pessoas.
Menezes Leitão (“Direito das Obrigações”, Vol. II, 2016, 10ª edição, pags. 20-21) diz: “O último requisito para a cessão de créditos é o de que o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor, uma vez que, se tal suceder, não faria sentido obrigar o devedor a prestar perante pessoa diferente. Estão nessa situação (…) os créditos de onde resulte uma dependência pessoal entre credor e devedor, como o contrato de serviço doméstico, e ainda os créditos em que se tomem em especial consideração as qualidades ou condições do credor, como a prestação de serviço dos médicos ou dos advogados. Em todas estas situações a prestação encontra-se intimamente ligada à pessoa do credor, não sendo assim admitida a cessão, uma vez que ela implicaria sujeitar o devedor a ter que realizar a prestação a pessoa diferente daquela em relação à qual a prestação se encontra, por natureza, intimamente ligada.”
Conforme Ac. do STJ de 23/11/2017 (www.dgsi.pt) “A doutrina exposta leva-nos a concluir que, por esta via, estão excluídos da cessão os créditos cuja prestação se traduz numa conduta cuja natureza está ligada à pessoa do credor.
Assim, e exemplificando, pode dizer-se que a obrigação de prestar um serviço assumida por um advogado ou por um médico nasceu tendo em conta o circunstancialismo concreto relativo à pessoa a quem esse serviço deve ser prestado, não fazendo sentido que - por cessão do correspondente crédito - outra pessoa pudesse substituir-se ao credor inicial, pois que tal envolveria modificação do dever de prestar que, segundo o convencionado, impendia sobre o devedor.
Tem de haver, pois, para o devedor uma diferença relevante entre cumprir a prestação perante o credor inicial ou perante o cessionário.”
No caso o que interessa ao devedor é a manutenção dos direitos que tinha emergentes do regime jurídico do contrato que o ligava ao credor originário e isso tem de ser analisado face à norma “supra” citada. Já vimos que tais direitos estão salvaguardados.
Sandra Passinhas, na Revista de Direito Comercial, em 12/01/2021, pags. 65 e segs. (disponível em static1.squarespace.com), aborda este tema e refere na sua síntese conclusiva:
“Uma das formas de gestão dos NPLs consiste em vender esses empréstimos a outros operadores em mercados secundários; a transação de NPLs em mercado implica a cessão de créditos em massa por parte das entidades financeiras, tendo, em Portugal, sido aprovado o Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, que estabeleceu um regime simplificado para a cessão de carteiras de créditos. Na cessão de créditos, o crédito permanece inalterado, apenas se verificando a substituição do credor originário por um novo credor. Como a cessão dos créditos resultantes de um crédito hipotecário tem por efeito transmitir para o cessionário o (mesmo) direito de que era titular o cedente, transmitem-se para o adquirente, salvo convenção em contrário, as garantias e outros acessórios do crédito (artigo 582.º) e, imperativamente, por força do artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 74-A/2017, as garantias do devedor. O devedor, por seu lado, continua adstrito exatamente à mesma prestação a que se vinculou perante o cedente, resultante de um contrato de crédito à habitação, cuja qualificação como contrato de consumo é determinada no momento da celebração do contrato, cristalizando, e importando a sua sujeição a um determinado regime legal imperativo, no caso, o Decreto-Lei n.º 74-A/2017. Uma recusa de informação sobre a situação de incumprimento do devedor, ou da retoma do contrato de crédito, bem como o assédio sobre o mutuário, podem consubstanciar práticas comerciais desleais, proibidas pelo Decreto-Lei n.º 57/2008, de 26 de março.” (NPL-“non performed loan”).
Em suma, há que concluir que a decisão proferida não viola qualquer norma legal (-não estando concretizada a violação do artº. 586º do C.C.), sequer o artº. 9º do C.C., nem o princípio da igualdade plasmado no artº. 4º do C.P.C..
Resta pois confirmar a mesma.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negam provimento à apelação e confirmam a douta decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 4 de novembro de 2021.

Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)