CESSÃO DA POSIÇÃO CONTRATUAL
HABILITAÇÃO DO ADQUIRENTE
FORMA
Sumário


1 – A cessão de créditos consiste num acordo entre o credor e um terceiro tendo por objecto um crédito transmissível e consubstanciado num facto transmissivo (cfr. art. 577º, n.º 1, do Código Civil).
2 – Para habilitação do cessionário, de acordo com o art. 356º do CPC, satisfaz as exigências legais um título escrito que prove a cessão, como seja o contrato escrito, desde que identifique claramente o crédito, de molde a permitir saber qual o objeto da cessão. (sumário do relator)

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I - Por apenso aos autos de execução em que é exequente J… e executados V… e T…, veio R… requerer a sua habilitação como cessionário do crédito exequendo, a fim de nos autos passar a ocupar o lugar do exequente.
Alegou, em suma, que por contrato de cessão de créditos e dação em pagamento celebrado por documento particular adquiriu ao primitivo exequente o referido crédito.
Notificados, os requeridos/executados vieram apresentar articulado onde deduziram oposição ao pedido, invocando “invalidade do título executivo de cessão de créditos”.
Veio a ser proferida sentença na qual foi julgado procedente o pedido de habilitação, declarando-se habilitado o requerente R… para nos autos ocupar a posição de exequente e prosseguir a execução.

*
II - Não se conformando com o decidido, vieram os executados/requeridos interpor recurso e apresentar as respectivas alegações, terminando com as seguintes conclusões:
1 - Verificando-se a existência de um contrato de cessão de créditos que não definiu valores ou montantes que indiquem o crédito cedido, está o contrato de cessão de créditos viciado, por falta de um elemento essencial para a transmissão da dívida, dado que, pela análise e estudo do referido contrato, verifica-se que o mesmo é um contrato oneroso.
2 - Verificando-se a existência de uma cumulação de contratos, o de cessão de crédito e o de dação em cumprimento, sendo ambos omissos quanto a montantes e valores, quer da cessão quer da dívida, que se pretende extinguir, verifica-se a omissão de um elemento essencial dos contratos onerosos, o preço ou montante, pelo qual o crédito é cedido e a dívida existente entre as partes que se pretende ver extinta com tal contrato de dupla natureza.
3 – Sendo a cessão de créditos uma forma de transmissão de obrigação, a habilitação de cessionário para ser válida e eficaz, deve o contrato de cessão conter todos os elementos estruturantes da cessão, sob pena da sua invalidade e ineficácia.
*
III – Não foram apresentadas contra-alegações por parte do recorrido.
*
IV - Na sentença em questão foi considerado provado o seguinte quadro factual, que não é posto em causa no recurso:
1. No dia 14 de Outubro de 2019, J… intentou contra V… e T… a acção executiva que corre termos sob o nº 2998/19.6T8LLE neste Juízo de Execução de Loulé, apresentando como título executivo a sentença condenatória proferida no processo nº 35/18.7T8TVR onde figura como Autor J… e como Réus V… e T… e em cujo segmento decisório se pode ler, além do mais: “III-Decisão: Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em sua consequência:
a) Condenam-se os Réus a pagar ao Autor a quantia de € 13.320,00 (treze mil trezentos e vinte euros) a título de honorários devidos pelos serviços prestados no âmbito da sua actividade profissional de advogado, acrescida do valor do Iva que for devido sobre essa quantia, e, bem assim,
b) Condenam-se os Réus a pagar ao Autor os juros de mora vencidos e vincendos calculados sobre o montante referido na alínea a) deste segmento decisório, à taxa de juro supletiva para os juros civis, contados desde a citação dos Réus e até integral pagamento …”;
2. Foi celebrado acordo reduzido a escrito, no essencial com o seguinte teor “Contrato de Cessão de Créditos e Dação em Pagamento. Aos vinte e oito dias do mês de Novembro de dois mil e dezanove é celebrado entre: Primeiros Contraentes: J… e mulher A…, casado no regime de comunhão de adquiridos (…) Segundo Contraente: R…, solteiro, maior (…) É celebrado de boa-fé, de forma livre e esclarecida, para bom, efetivo e pontual cumprimento, o presente contrato de cessão de créditos que se rege nos termos do disposto nos arts. 577º e 840º nº 2 do C. Civil e nos das seguintes cláusulas e condições:
01. O primeiro contraente marido é titular de um direito de crédito sobre V… e mulher, T…, residentes em Tavira, no montante de 16.383,60 € (acrescido de juros moratórios vencidos desde a data da citação) declarado por sentença judicial proferida pelo Meritíssimo Juiz do Juízo Local de Competência Genérica de Tavira no âmbito da ação declarativa de condenação nº 35/18.7T8TVR, transitada em julgado em 4 de Setembro transato, a qual faz parte integrante do presente contrato, tendo sido instaurado a competente execução de sentença que corre termos pelo Juiz 1 do Juízo de Execução de Loulé sob o nº 2998/19.6T8LLE.
02. Na data da celebração do presente contrato, o devedor ainda não cumpriu tal obrigação, não realizando o pagamento a que foi condenado, pelo que são devidos juros moratórios à taxa legal até integral e efetivo pagamento, pelo que a cessão integra igualmente os juros vencidos e vincendos até completo pagamento.
03. Pelo presente contrato, os primeiros contraentes cedem ao segundo, o aludido crédito, e juros moratórios vencidos e vincendos a partir desta data, como forma de pagamento da sua dívida para com o mesmo, que assim fica integralmente saldada.
04. O Segundo contraente deverá prosseguir com a cobrança judicial do mesmo, habilitando-se nos autos de execução supra identificados, correndo por sua conta as inerentes e necessárias despesas.
05. O segundo contraente não tem mais nada a reclamar dos primeiros, seja a que título for.
(…) Por estarem conformes à vontade de ambas, livremente manifestada, e de boa fé, os termos do presente contrato, para bom e efetivo cumprimento, vão as partes assinar, procedendo-se à autenticação das assinaturas para todos os legais e competentes efeitos.
Coimbra, 28 de Novembro de 2019. Os primeiros Contraentes: (…) O Segundo Contraente (…)”.
*
V – Antes do mais, recordamos que o objecto do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso (artºs. 635º n.º 4, 639º n.º 1 e 608º n.º 2 ex vi do art.º 663º n.º 2 todos do CPC).
Assim, tendo em atenção as conclusões apresentadas pelos apelantes, e não se perfilando nenhuma questão a conhecer oficiosamente, temos que o objecto do recurso traduz-se simplesmente em avaliar e decidir da pretendida invalidade da cessão de créditos invocada neste incidente como causa de pedir.
*
VI - Passamos então a conhecer do objecto do recurso, tal como resulta das suas conclusões.
Como se constata da leitura das alegações do recurso e mais concisamente das suas conclusões, os recorrentes atacam a sentença que julgou habilitado o recorrido para ocupar na execução a posição de exequente contestando a validade do acto jurídico que esteve na base dessa habilitação.
Recordemos, como ponto de partida, que o art. 356.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Habilitação do adquirente ou cessionário”, dispõe no seu n.º 1 o seguinte:
1 - A habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, faz-se nos termos seguintes:
a) Lavrado no processo o termo da cessão ou junto ao requerimento de habilitação, que é autuado por apenso, o título da aquisição ou da cessão, é notificada a parte contrária para contestar; na contestação pode o notificado impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo;
b) Se houver contestação, o requerente pode responder-lhe e em seguida, produzidas as provas necessárias, é proferida decisão; na falta de contestação, verifica-se se o documento prova a aquisição ou a cessão e, no caso afirmativo, declara-se habilitado o adquirente ou cessionário.
Estamos, portanto, perante um incidente de instância que permite a alteração subjectiva desta, concretamente a substituição de um sujeito processual por outro.
Esta previsão legal constitui excepção ao princípio da estabilidade da instância. Com efeito, a regra é a fixada no art. 260º do CPC, o qual determina que após a citação do réu a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir.
A possibilidade aberta pelo art. 356º surge em ligação estreita com o disposto no art. 262º do mesmo diploma, que estatui que a instância pode modificar-se quanto às pessoas “em consequência da substituição de alguma das partes, quer por sucessão, quer por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio”.
Em suma, face ao disposto no art. 356º do CPC pode o adquirente ou cessionário vir a ocupar na lide a posição do transmitente; mas sendo apresentado documento para comprovar a aquisição ou cessão alegadas pelo requerente tem o tribunal que apreciar se o documento que titula o negócio de transmissão invocado “prova a aquisição ou a cessão”.
No caso presente os recorrentes não discutem o documento apresentado, os requisitos formais deste, ou a sua autenticidade, mas sim o próprio negócio titulado.
Este não seria válido, porque tratando-se de um negócio oneroso verifica-se a omissão de um elemento essencial do negócio, o preço pelo qual o crédito é cedido.
Segundo argumentação exposta, estaríamos perante uma nulidade do contrato de cessão de créditos em análise, por equiparação ao contrato de compra e venda – faltando a estipulação do preço, elemento essencial, o negócio seria nulo.
Efectivamente, na situação em análise verifica-se que por contrato escrito, documento particular, o exequente originário declarou ceder ao requerente/cessionário o crédito exequendo, com transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios a ele inerentes.
Do documento que titula o negócio consta a completa identificação do crédito exequendo (crédito de que o exequente é titular, no montante de €16.383,60 acrescidos de juros moratórios vencidos desde a data da citação, declarado por sentença judicial proferida pelo Meritíssimo Juiz do Juízo Local de Competência Genérica de Tavira no âmbito da ação declarativa de condenação nº 35/18.7T8TVR, transitada em julgado em 4 de Setembro transato, a qual faz parte integrante do presente contrato, tendo sido instaurado a competente execução de sentença que corre termos pelo Juiz 1 do Juízo de Execução de Loulé sob o nº 2998/19.6T8LLE) e a declaração de que “”pelo presente contrato, os primeiros contraentes cedem ao segundo, o aludido crédito, e juros moratórios vencidos e vincendos a partir desta data, como forma de pagamento da sua dívida para com o mesmo, que assim fica integralmente saldada.”
Não ficamos efectivamente a conhecer qual o valor da dívida que o cedente tinha para com o cessionário e que este declara saldada com a transmissão do crédito identificado como objecto do negócio.
Porém, temos como certo que para os efeitos da habilitação do cessionário satisfaz as exigências legais um título escrito que prove a cessão, como seja o contrato escrito de cessão, desde que identifique claramente o crédito, de molde a permitir saber qual o objeto da cessão, e sem que este tenha de expressar o exacto montante da dívida ao tempo da transmissão ou o valor acordado para essa transmissão (que até pode ser gratuita, como reconhecem os apelantes).
Não pode acompanhar-se a convicção dos apelantes quando afirmam que a indicação do preço constitui um elemento essencial do negócio da cessão de créditos, de tal modo que a falta da sua indicação constituiria nulidade do negócio.
Com efeito, o nº 1 do artigo 577º do Código Civil preceitua apenas que “o credor pode ceder a terceiro, uma parte ou a totalidade do seu crédito independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita pela determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor”.
Repare-se que a lei nem sequer exige forma legal taxada e tarifada para a cessão, com excepção das situações abrangidas pelo n.º 2 da mesma norma (… “a cessão de créditos hipotecários, quando não seja feita em testamento e a hipoteca recaia sobre bens imóveis, deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado”).
E perante a dita norma diz Menezes Cordeiro (Obrigações, 1980, vol. 2º, pág. 90) que “são requisitos da cessão: a) um acordo entre o credor e o terceiro; b) consubstanciado num facto transmissivo (fonte da transmissão); c) a transmissibilidade do crédito”.
Em suma, não se vislumbra suporte legal para a convicção dos apelantes, que constitui o fundamento do seu recurso, de que existe uma nulidade do negócio jurídico de cessão de um crédito se o preço dessa cessão não constar de um documento que titule o negócio.
Não há exigências de forma ou de substância que corroborem esse entendimento.
Não se encontra na lei, nem na jurisprudência, qualquer apoio para a posição.
Veja-se a este propósito o Acórdão da Relação de Coimbra de 16-03-2021, relator Carlos Moreira (in www.dgsi.pt):
Porque a cessão pode ser efectivada mesmo sem consentimento do devedor, porque a lei não exige forma especialmente solene para a mesma, e porque a habilitação do cessionário em processo pendente não afecta a substância, o objecto da causa, nem prejudica a posição do devedor nos autos, a prova daquela cessão para este efeito – artº 356º do CPC – não tem de ser exigente no sentido de dever abranger todas as suas vicissitudes e particularismos, como seja o valor cedido e demais condições de cedência.”
A verdade é que está assente que por contrato celebrado em 28 de Novembro de 2019 o exequente J…, com o consentimento do cônjuge (A…) cedeu ao requerente R… os créditos que detinha sobre os executados V… e T… e reconhecidos naquela sentença proferida nos autos nº 35/18.7T8TVR.
Em consequência, deve o requerente R… ser admitido a ocupar a posição processual do exequente original, tal como decidido na sentença revidenda, e improcede o recurso em análise.
Recorde-se que a intervenção do cessionário no processo não introduz qualquer alteração no atinente à substância e ao objecto do processo, continuando este a ser delineado e dilucidado tal como inicialmente definido pelas partes originárias, pelo que o executado/devedor não terá qualquer prejuízo ou afectação da sua posição quer processual quer substantivamente com essa intervenção.
Diga-se ainda, que se assim não fosse, se ele entendesse que a cessão e consequente substituição processual subjectiva visou prejudicá-lo, poderia invocar esse fundamento para sua oposição ao requerimento de habilitação – o que nos autos nunca sucedeu (nem sucede no recurso).
Em conclusão, julgamos que improcede a argumentação dos apelantes, pelo que decidimos confirmar a sentença recorrida.
Decidindo:
Por tudo o exposto, este tribunal de recurso julga improcedente a presente apelação, confirmando inteiramente a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Évora, 11 de Novembro de 2021
José Lúcio
Manuel Bargado
Francisco Xavier