RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCUMPRIMENTO
MULTA
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
CONTRADITÓRIO
Sumário

I - Ao incumprimento do acordo das responsabilidades parentais, que pode dar origem à condenação em multa prevista no art. 41.º, n.º1 RGPTC, aplicam-se as regras dos processos de jurisdição voluntária (ex vi art. 12.º daquele Regime), sendo assim aplicável a estes processos o disposto nos arts. 292.º a 295.º, 986.º a 988.º CPC.
II - O julgamento de acordo com critérios de conveniência e de oportunidade, previsto para a jurisdição voluntária, não afasta as regras processuais e substantivas basilares, como as que respeitam, desde logo, à natureza do objeto, à legitimidade das partes e ao exercício do contraditório.
III – Para aplicação da multa prevista no art. 41.º, n.º1 RGPTC, impõe-se que se aleguem factos concretos dos quais resulta para um ou ambos os progenitores a imputação subjetiva da falta concreta, se arrole a prova desses factos, se confira ao faltoso a possibilidade de contraditório, se realize julgamento e se profira sentença com elenco dos factos donde resulte explícita o incumprimento pelo (s) progenitor (es) de qualquer segmento do regime de responsabilidades parentais.

Texto Integral

Processo n.º 2052/15.0T8CLD-C.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
………………………………
………………………………
………………………………

*
Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO:

REQUERENTE: B…, residente na Rua …, n.º …, ….-… …, Vila Nova de Famalicão.
REQUERIDA: C… E D…, atualmente residente em França.

Instaurou o requerente, por apenso aos autos que se iniciaram como incumprimento de regulação das responsabilidades parentais, uma vez que o respetivo regime foi fixado por acordo junto com o divórcio por mútuo consentimento, incidente de incumprimento do regime acordado.
Alega o requerente – em requerimento apresentado a 13.10.2020 - desconhecer o paradeiro dos filhos, desde outubro de 2019, embora a requerida tenha vindo aos autos principais informar pretender ausentar-se para França com os filhos, decisão que nunca contou com o assentimento do requerente.
A requerida apresentou alegações afirmando encontrar-se ausente no estrangeiro pois viu-se obrigada a procurar emprego que lhe permitisse, e aos filhos, melhores condições de vida, não tendo sido nunca o requerente impedido pela requerida de contactar com os menores, nomeadamente pelos meios de comunicação à distância, tendo-se mesmo colocado a hipótese de a filha C… vir para Portugal e ficar a guarda do pai. O requerido consentiu na deslocação dos menores para o estrangeiro.

Realizada conferência de pais, pelo pai foi dito que não tem contacto com os menores, que se encontram em França com a mãe, não tendo concordado com essa decisão.
Pela mandatária da requerida foi dito que a mesma se encontra em França, sendo que, quando foi proferido despacho datado de 9.12.2019, segundo o qual a requerida deveria intentar incidente autónomo para passar a viver no estrangeiro com os filhos, já a mesma se encontrava em França.
Acordaram os progenitores na seguinte alteração das responsabilidades parentais:
1.- Acordam as partes que durante a semana ao fim do dia, e pelo menos à quarta-feira, o Progenitor poderá falar com os Menores por meio de videochamada, chamada, ou outro meio idóneo, entre as 19 horas (hora francesa) e as 22 horas (hora francesa), obrigando-se a Progenitora a estar disponível para que existam esses contactos.
2.- Mais acordam as partes que o Progenitor poderá falar com os Menores ao fim-de-semana, aos sábados e aos domingos, por meio de videochamada, chamada, ou outro meio idóneo, entre as 19 horas (hora francesa) e as 22 horas (hora francesa).
De seguida, pelo MP foi promovido fosse declarado o incumprimento e condenada a progenitora em multa, nos termos do art. 41.º, n.º 1, do RGPTC.
Foi, de imediato, proferida sentença, homologando o acordo firmado pelas partes, julgando-se verificado o incumprimento do regime de visitas e condenando-se a requerida em multa de 15 UCS, nos termos daquele normativo.
Foram os seguintes os factos dados como provados na sentença:
1.- Por acordo homologado, procedeu-se à regulação das responsabilidades parentais dos menores, C… e D…, tendo-se fixado, além do mais, que:
– O exercício das responsabilidades parentais será exercido conjuntamente por ambos os requerentes, sendo que as questões de particular importância para a vida, educação e saúde dos menores serão decididas por acordo;
- O pai poderá visitar e levar consigo os menores sempre que o deseje – respeitando as orientações educativas dos menores e os deveres profissionais da mãe – devendo para tanto, ir buscá-los ao infantário ou à residência da mãe e entrega-los onde esta o determinar, ficando assim estabelecido em regime livre de visitas.”
2.- Ocorre que o acordo não se encontra a ser cumprido, no que respeita a visitas e convivência com o progenitor.
3.- O progenitor, desde outubro de 2019, que desconhece o paradeiro dos filhos.

Desta sentença recorre a requerida, visando a sua revogação, com base nos argumentos que assim conclui:
………………………………
………………………………
………………………………

Contra-alegou apenas o MP, pugnando pela manutenção do decidido.

Os autos correram vistos legais.

Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 635.º, nºs 3 e 4 e 63.9º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil):
Da verificação dos pressupostos de aplicação da multa prevista no art. 41.º, n.º1, RGPTC.

FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Para além dos factos acima referidos, importa ainda considerar o seguinte, quanto aos filhos de requerente e requerida e que resulta aos documentos juntos com a petição inicial que constitui o apenso A:
- C…, filha de requerente e requerida, nasceu a 27.10.2005.
- D…, filho das partes, nasceu a 11.07.2007.

Fundamentos de Direito
A sentença de que se recorre homologou um acordo de alteração das responsabilidades parentais e condenou a requerida em multa por incumprimento do acordo anterior, mais especificamente do segmento relativo ao regime de visitas.
Nos termos do art. 41.º, n.º1, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (aprovado pela L 141/2015, de 8.9), a sentença fixou a multa em 15 UC’s, tendo-o feito na sequência de promoção do MP com o seguinte teor:
Considerando o teor das declarações prestadas, promove-se que seja declarado o incumprimento e que seja a Progenitora condenada em multa, nos termos do disposto no artigo 41º, n.º1, do RGPTC.
Foi de imediato proferida sentença, sem conferir contraditório a requerida.
O art. 41.º, n.º 1 do RGPTC dispõe: Se, relativamente à situação da criança, um dos pais ou a terceira pessoa a quem aquela haja sido confiada não cumprir com o que tiver sido acordado ou decidido, pode o tribunal, oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou do outro progenitor, requerer, ao tribunal que no momento for territorialmente competente, as diligências necessárias para o cumprimento coercivo e a condenação do remisso em multa até vinte unidades de conta e, verificando-se os respetivos pressupostos, em indemnização a favor da criança, do progenitor requerente ou de ambos.
Esta, assim, em causa apenas a multa pela incumprimento.
O que dizer sobre tal incumprimento?
Os presentes autos tiveram início uma vez que o progenitor alegava não ter autorizado a saída dos menores para o estrangeiro, nada sabendo sobre o respetivo paradeiro desde mais de um ano antes da instauração deste incidente.
A requerida alegou que foi obrigada a ausentar-se para o estrangeiro por motivos de trabalho, mas que o fez com o conhecimento e consentimento do requerente.
Está em causa a violação do regime de visitas.
Ignorando o pai onde se acham os filhos ou encontrando-se estes no estrangeiro, o estipulado entre as partes quanto a visitas, estadias de fim-de-semana, etc…, não poderia concretizar-se.
As partes, contudo, entenderam-se quanto ao novo regime de responsabilidades parentais, tendo fixado por acordo uma forma de contacto entre o progenitor e os filhos.
Certo que, oficiosamente, quer o tribunal, quer o MP podem promover a condenação em multa em caso de violação do regime das responsabilidades parentais, porém, impõe-se que se aduzam, então, os factos concretos dos quais resulta culpa provada de um dos progenitores na violação do regime em apreço, não sendo de dispensar que se dê ao mesmo a possibilidade de se defender de tais imputações, nomeadamente oferecendo a prova que entenda (art. 3.º, n.º 3 CPC), impondo-se, ainda, a realização de instrução relativamente aos factos controvertidos.
É verdade que estamos perante processo de jurisdição voluntária, conforme resulta do disposto no art. 12.º RGPTC.
Assim, é-lhe aplicável o disposto nos arts. 292.º a 295.º e 986.º a 988.º CPC.
A denominada jurisdição voluntária, por oposição à jurisdição contenciosa, é sempre exercitada em relação aos interesses dos sujeitos envolvidos ou a situações jurídicas subjetivas cuja tutela é assumida pelo ordenamento jurídico por razões de interesse geral da comunidade.
A atividade do tribunal na resolução do concreto conflito de interesses visa prover apenas:
1) Um certo interesse ou feixe de interesses previstos na lei (interesses do interditando, do inabilitado, do menor, do cônjuge separado de facto que pede alimentos etc.);
2) Um certo interesse ou feixe de interesses deixados à livre apreciação do juiz (nos suprimentos do consentimento);
3) Permitir que o juiz se limite a controlar uma autocomposição processual das próprias partes (homologação de acordo obtido pelas próprias partes).
Dado que nestes processos há, normalmente, apenas um interesse a regular (v.g., o do menor, o do cônjuge que pretenda alienar bens imóveis ou que pretenda obter do outro cônjuge o custeamento de certas despesas domésticas, o da pessoa ameaçada ou ofendida nos seus direitos de personalidade ou no seu direito geral de personalidade, etc.), é natural que haja uma diferente modelação prática de certos princípios e regras processuais.
Assim, nestes processos (de jurisdição voluntária) é mais forte a presença do princípio do inquisitório, e muito menos a actuação do princípio do dispositivo, na medida em que o julgador pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, tendo o poder de só admitir as provas que julgue necessárias (art. 986.º CPC).
O juiz, por outro lado, não está sujeito a critérios de decisão fundados na legalidade estrita, podendo pautar-se pela equidade, adotando em cada caso a solução que lhe pareça mais conveniente e oportuna, em suma, mais justa (art.987.º).
Depois, as decisões adotadas pelo julgador são livremente modificáveis com fundamento em circunstâncias supervenientes (rebus sic stantibus), ao invés da imodificabilidade que caracteriza as sentenças e os acórdãos no âmbito da jurisdição contenciosa, seja pelo próprio juiz, após terem sido proferidas (art.613.º CPC), seja após terem transitado em julgado (art.619.º e art.621.º CPC).
Da circunstância de alguns dos processos integrados na denominada jurisdição voluntária evidenciarem um verdadeiro conflito de interesses entre as partes (p. ex., na acção de alimentos devidos a filhos maiores ou emancipados, nos casos em que não se formou acordo na Conservatória competente ou nas hipóteses em que a acção deve ser deduzida por apenso a acção pendente), a distinção entre esta atividade jurisdicional e a denominada jurisdição contenciosa tende a esbater-se.
Ora, julgar de acordo com critérios de conveniência e oportunidade não significa postergar regras processuais e substantivas basilares, como as que respeitam, desde logo, à natureza do objeto, à legitimidade das partes e ao exercício do contraditório[1].
In casu, o que verificamos é que o MP não balizou o objeto do processo no que respeita à aplicação de multa, não tendo alegado quaisquer factos dos quais resulte a imputação subjetiva a progenitora de uma responsabilidade por incumprimento do regime de visitas e não tendo arrolado prova.
Recorde-se que a requerida alega ter o pai autorizado a ida da mesma, com os filhos, para França, dizendo este o contrário. Sobre tal tema, o MP limitou-se a invocar “considerando o teor das declarações prestadas” quando é certo que as mesmas são contraditórias: afinal, o requerente deu ou não assentimento para a deslocação dos menores para o estrangeiro? O mesmo afirma que tal se não verificou, mas a requerida alega que isso sucedeu.
Não tendo sido efetuada prova, como pode fundar-se o requerimento do MP – e a sentença – em alegações contraditórias?
Depois, ao arrepio do que estabelece o disposto no art. 293.º CPC, não foi concedido à requerida prazo para a mesma se pronunciar quanto ao incidente de aplicação da multa que apenas em ata foi suscitado, o que constitui uma violação daquele normativo, conjugado com o disposto no art. 3.º, n.º 3 CPC.
Também não foi produzida prova suficiente, face à contradição do invocado pelas partes – recorde-se que estava mesmo ausente a requerida que não foi ouvida – não tendo sido cumprido o disposto no art. 295.º CPC: produção de prova e alegações orais pelas partes.
Finalmente, apesar de todas estas nulidades com influência na decisão – art. 195.º CPC, não se impõe a anulação do processado porquanto a própria sentença, em si mesma, é insuficiente para lograr obter arrimo na condenação prevista no citado art. 41.º, n.º1, porquanto apenas aí se aduz, nos factos dados como provados, que o pai, desde outubro de 2019, ignora o paradeiro dos filhos, mas nada se diz sobre ter sido a progenitora a ausentar-se de Portugal para o estrangeiro, com os filhos, com desconhecimento e contra a vontade do pai e sem razão justificativa.
Sendo assim, perante estes factos não é sequer cogitável o que consta como fundamento da sentença relativamente ao crime de rapto de crianças, permanecendo a questão de saber se houve de facto violação do regime de visitas, uma vez que os factos dados como provados a este respeito são insuficientes além de conclusivos. Com efeito, é manifestamente conclusivo dizer-se o acordo não se encontra a ser cumprido, impondo-se se explicite por que razão não está a ser cumprido, imputando responsabilidades concretas quanto a tal incumprimento.
Na verdade, a aplicação de uma multa grave, como é a que se fixou em 15 UC’s não dispensa o elenco de prova e factos graves donde resulte que a violação do regime de responsabilidades parentais – no caso, do segmento relativo ao regime de visitas – é imputável culposamente ao progenitor relapso. Não resulta tal imputação dos factos dados como provados na sentença recorrida, não constando aí ter-se a requerida ausentado de Portugal para o estrangeiro, com os filhos, em determinada época, sem consentimento, expresso ou tácito do requerente, impedindo desde então contactos entre pai e filhos. É insuficiente para esse desiderato o facto de o progenitor desconhecer o paradeiro dos filhos, pois tal facto pode ficar a dever-se a variadíssimas situações que não a ausência dos mesmos para o estrangeiro a impulso inconsequente da mãe, sendo que razões de trabalho – que não foram apuradas nos autos, embora tenham sido alegadas pela mãe – podem justificar de forma plausível a ausência para o estrangeiro.
Face ao exposto, o recurso é de proceder e, assim, impõe-se a revogação da sentença no segmento relativo à aplicação de multa, com absolvição da requerida da mesma.

Dispositivo
Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte em que condenou a requerida em multa de 15 UC’s, absolvendo-se a mesma de tal multa.
Sem custas.

Porto, 28.10.2021
Fernanda Almeida
António Eleutério
Maria José Simões
______________
[1] Cfr. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, O processo especial de tutela da personalidade no Código de Processo Civil de 2013, p. 68: No âmbito da jurisdição voluntária, o tribunal decide segundo critérios de conveniência e oportunidade (não de equidade, nem de direito estrito). Naturalmente que esta regra, que mais uma vez se explica pela intenção de dotar o tribunal das ferramentas adequadas à melhor prossecução do interesse único ou dominante no concreto processo que estiver em causa, não vale para os pressupostos (processuais ou substantivos) da decisão, mas apenas para esta última. Os pressupostos são estritamente vinculados (sublinhado nosso). Também A. Varela explica de forma clara que o ponto central da jurisdição voluntária está na forma como se decide e não na violação arbitrária de regras processuais. Diz o Professor que os processos de jurisdição voluntária ”necessitam de julgamento, mas de julgamento que não pode subordinar-se, por esta ou aquela razão, aos critérios rígidos de normas gerais e abstractas, com as do direito continental. São temas cujo julgamento não pede a decisão da lei, porque apela antes para o bom senso do julgador, para os critérios de razoabilidade das pessoas” (Os tribunais judiciais, a jurisdição voluntária e as conservatórias do registo civil, RLJ, 128, p.131/132).