ADMISSIBILIDADE DA RECONVENÇÃO
REQUISITOS
Sumário

A admissibilidade da reconvenção exige uma conexão material entre as duas ações (a inicial, do autor, e a posterior, do réu reconvinte), ou seja, uma ligação entre o objeto das duas causas, embora seja suficiente uma coincidência apenas parcial desse objeto.

Texto Integral

Processo n.º 334/19.0T8VFR-A.P1

Recorrente – B…, SL
Recorrida – C…, Lda.

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório
1 – C…, Unipessoal, Lda. instaurou a presente ação contra B…, SL, e pediu a condenação desta no pagamento da quantia total de 56.085,88€, acrescida da quantia que se vier a apurar relativamente às comissões do ano de 2018, e, ainda, juros de mora, calculados à taxa legal em vigor, desde 27.08.2018 até efetivo e integral pagamento.

2 – A autora, fundamentando a sua pretensão, esclareceu ser uma sociedade unipessoal que é “agente de comércio por grosso de calçado e artigos de couro”, tem como único sócio D…, mas é gerida, de facto, pela mulher deste, E…, a qual, muito antes da criação da sociedade, desenvolvia por conta própria a mesma atividade. A ré, por sua vez, dedica-se ao comércio de calçado. No ano de 2006, a ré e a aludida gerente celebraram um contrato de agência, nos termos do qual a segunda se obrigou a promover a venda dos artigos comercializados pela primeira, e esta obrigou-se a pagar-lhe o valor de 10% sobre o preço das vendas. Em fins de 2017, E… e marido decidiram constituir a sociedade autora, o que a primeira comunicou à ré, tendo-se decidido manter o contrato, nos termos em que vigorava. Durante a execução do contrato, a autora aumentou o volume de faturação da ré e angariou novos clientes. No dia 26 de junho de 2018, sem que nada o fizesse prever, a ré enviou à autora uma carta comunicando-lhe a rescisão da relação contratual, e não mais lhe entregando qualquer coleção. Ora, findo o contrato, a ré continua a beneficiar da atividade desenvolvida pela autora e esta não mais beneficiou de qualquer comissão. A autora é credora da indemnização de clientela, que calcula em 15.000,00€, além da decorrente da falta de aviso prévio (4.500,00€), bem como de comissões que se encontram por liquidar, porque indevidamente deduzidas (43.202,68€), tudo num total de 62.702,68€, cujo pagamento solicitou à ré. Sucede que a ré não aceita liquidar aquela quantia e ainda se afirma credora do montante de 24.178,30€, quando a autora só assumiu a responsabilidade pelo cumprimento de uma dívida de 6.616,80€ e não qualquer outra, fixando o seu crédito, por isso, em 56.085,88€. Além destes valores, a autora tem, ainda, comissões das vendas realizadas em fevereiro/março de 2018, mas a ré não lhe enviou a listagem das comissões correspondentes. Assim, “o valor que se vier a apurar deverá ser integrado no pedido da presente ação”.

3 – A ré contestou, impugnando “o teor da petição” e dizendo ter decidido cessar a relação contratual, por “ incumprimento” da autora. Sustenta que, do extrato de conta-corrente, verifica-se que sempre existiu dinheiro pago a mais, pela ré à autora, tanto a ela, propriamente, como à gerente E…. Quando esta decidiu passar a atividade para uma empresa, os receios de incumprimento aumentaram, e foi-lhe exigido o pagamento do saldo devedor, de então, o qual, tendo sido reduzido, se manteve bastante alto, e atualmente (em 2018) é de 24.178,38€. A cessação contratual não foi inopinada, mas decorreu da persistência da dívida da autora, que fez cessar a confiança da ré.

4 – Em reconvenção, a ré veio alegar que existia acordo entre as partes para que a autora apenas fosse paga das suas comissões no caso de os clientes finais procederem ao efetivo pagamento dos produtos e, assim, o valor em dívida à ré decorre de valores que foram sendo antecipados por conta de comissões sobre valores nunca efetivamente recebidos dos clientes angariados pela autora, ou seja, um montante que terá de ser restituído, sob pena de enriquecimento sem causa, à custa da ré. Como decorre do extrato de conta mantida entre as partes, o valor de 24.178,30€ era o saldo final, a favor da ré, a 31.12.2018, valor esse que traduz que as quantidades adiantadas à autora, por conta de comissões, superavam as comissões que efetivamente iam sendo pagas, e a autora admitiu a existência desse saldo devedor.

5 – Concluindo, a ré pretende: “deverá a petição inicial ser considerada improcedente, procedendo-se à absolvição da R., devendo ser considerado procedente o pedido reconvencional ora formulado e, com isso, ser condenada a A. no pagamento, à R., do valor em dívida de €24.178,30”.

6 – A autora replicou e, quanto à reconvenção deduzida pela ré, sustentou que o pretendido é que a autora lhe pague aquilo que os clientes não lhe pagaram. E, sendo verdade que entre as partes estava convencionado que as comissões da autora só seriam pagas caso a ré recebesse dos clientes, o que com a reconvenção se pretende é o pagamento, pela autora, de 40% do calçado fornecido, que a ré lhe debitava, perante o incumprimento dos clientes, não sendo de todo verdade que havia dinheiro pago a mais pela ré à autora, mas o que subsiste são os aludidos 40%.

7 - Concluindo, a autora entende que “Deve a presente reconvenção ser julgada improcedente por não provada e, em consequência, ser a autor absolvida do pedido”.

8 – Foi proferido despacho que não admitiu a reconvenção, condenando a ré nas “custas do incidente”. Tal despacho – objeto do presente recursoé do seguinte teor: “De acordo com o disposto no art. 266, n.º 2 do Código de Processo Civil a reconvenção só é admissível (...) A R. estriba o seu pedido alegando que resolveu o contrato de agência com a A. por justa causa, pelo facto de a A. solicitar à R. antecipação de valores de dinheiro por conta de futuras comissões por vendas que não tinham ainda sido realizadas, entendendo a R. que tal postura ocorreu de forma contínua e sucessiva no tempo. Para sustentar o pedido reconvencional alega, no Art. 76.º do seu pedido reconvencional: “A R. tem um crédito perante a A. de €24.178,30, decorrentes de débitos não liquidados pelos clientes finais angariados pela A.(...).” E no seu Art. 77.º alega: “Correspondendo a valores antecipados à A., pela R., sem que os clientes finais tivessem procedido ao pagamento dos valores dos produtos fornecidos.” Cumpre também consignar que as partes estão de acordo quanto ao facto de haver acordo entre a A. e a R. para que a A. apenas fosse paga das suas comissões, no caso de os clientes finais procederem ao efetivo pagamento dos produtos fornecidos (cfr. Art. 78.º da contestação e 3.º da réplica). Ora, atentando no pedido reconvencional, resulta que a R. pretende ver-se reembolsada do valor de calçado que forneceu e não lhe foi pago pelo cliente final, pretendendo integrar aquele valor em comissões (que não especifica em que período ocorreram, montantes, a R. não localiza temporalmente as verbas que pede, mal se compreendendo também onde se insere o peticionado pela R. uma vez que também refere relações comerciais havidas entre ela R. e E… e não apenas entre a R. e a A.) eventualmente adiantadas à A. Por outro lado, repete-se ainda: desconhece-se a que data se reporta a dívida que a R. pede em sede de reconvenção, mal se entendendo se a dívida é reportada parcial ou na totalidade a E… ou à A., sendo que tal dúvida não é sanada pela leitura do articulados. Como resulta da simples leitura do transcrito art. 266, n.º 2 do C. P. Civil, o crédito reclamado pela R. não se integra em nenhuma das alíneas daquele preceito, nem de resto a R. incorpora o seu pedido em qualquer das alíneas mencionadas. Termos em que um alegado crédito que a R. detenha sobre a A. não tem correspondência nem se encontra consubstanciado em qualquer alegação de onde se conclua que decorre e é fruto de prejuízos que a atuação desta lhe terá causado no âmbito da relação contratual mantida entre ambas e que não são passíveis de ser compensados com um eventual crédito da A. Assim sendo, não se admite a reconvenção deduzida. Custas do incidente pela R.”.

II – Do Recurso
9 – Inconformada com o decidido, a ré apelou, e pretendendo que seja revogada a decisão de não admissão da reconvenção, formula as seguintes Conclusões:
………………………………
………………………………
………………………………

10 – Não houve resposta ao recurso, que foi recebido nos termos legais. Dispensaram-se os Vistos e nada se observa que obste ao conhecimento do mérito da apelação, cujo objeto, atentas as conclusões da apelante, consiste em saber se o despacho recorrido deve ser revogado, uma vez que não há fundamento para que não seja admitida a reconvenção.

III – Fundamentação
III.I – Fundamentação de facto
11 – A factualidade que resulta do antecedente relatório mostra-se bastante à apreciação do recurso.

III.II – Fundamentação de Direito
12 – A reconvenção – nas palavras de Miguel Mesquita[1] – “consiste, tipicamente, numa ação declarativa (condenatória, constitutiva ou de mera apreciação) intentada, através da contestação, pelo réu (reconvinte) contra o autor (reconvindo), assente em factos materiais e causadora, quando admissível, de uma acumulação, no âmbito de um processo pendente, de ações cruzadas e sincrónicas (a ação inicial ou originária e a ação reconvencional: conventio et reconventio pari passu ambulant). A reconvenção constitui, portanto, parte integrante da ação inicial, formando com esta um todo.”

13 – António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa também consideram a reconvenção “uma ação cruzada contra o autor, servindo para o réu formular pretensão ou pretensões correspondentes a uma ou diversas ações autónomas”, acrescentando que “a qualificação como reconvenção não está tanto dependente da classificação que lhe seja dada pelo réu, antes da apreciação do teor do pedido formulado”.[2]

14 – Sendo “uma verdadeira ação (do réu), que se entrecruza no mesmo processo com uma já pendente (...) a regime processual da reconvenção não pode deixar de ser idêntico ao de qualquer ação própria e independente”. A reconvenção apresenta, por isso, “uma estrutura formal idêntica à da petição inicial” e “pode ser inepta, como a petição inicial”[3] ou justificar/impor o aperfeiçoamento do respetivo articulado, a convite do tribunal.[4]

15 – Não estando em causa no presente recurso razões processuais impeditivas da admissão da reconvenção, importa saber se, não obstante, se mostram presentes os “requisitos materiais ou objetivos”[5] da sua admissibilidade, o que remete para o disposto no n.º 2 do artigo 266 do Código de Processo Civil (CPC): “2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos: a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa; b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor; d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter”.

16 – Citamos, desde logo a propósito da alínea a) que antes transcrevemos, o sumário do acórdão de 10.02.2020 desta Secção e Relação do Porto [Processo n.º 426/13.0TBMLD-E.P1, Relator, Desembargador Jorge Seabra, dgsi]: “I - A conexão exigida para efeitos de admissibilidade da reconvenção traduz-se no justo equilíbrio entre os interesses da economia processual e da economia de meios – que postula a resolução de todos os eventuais litígios entre as partes através de um único processo e um único julgamento – e o interesse na ordenada tramitação do processo – acautelando o interesse do autor e do sistema judicial na obtenção tão célere quanto possível de uma decisão quanto a esse litígio. II - Para que a reconvenção seja admissível ao abrigo da al. a), do n.º 2 do artigo 266º, do CPC, é necessário que o pedido reconvencional, enquanto pretensão material autónoma em face da pretensão do autor, tenha a mesma causa de pedir da acção ou decorra da causa de pedir (ato ou facto jurídico) que serve de fundamento à defesa do réu perante a pretensão deduzida pelo autor (...) IV - Ao nível da admissão processual da reconvenção não tem o julgador que fazer uma aturada indagação sobre o mérito da causa de pedir da reconvenção, sendo bastante que a mesma tenha, à luz das várias soluções plausíveis de direito, a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir a pretensão do autor”.

17 – No caso presente, o tribunal recorrido não admitiu a reconvenção, porque a recorrente “não localiza temporalmente as verbas que pede, mal se compreendendo também onde se insere o peticionado pela R. uma vez que também refere relações comerciais havidas entre ela R. e E… e não apenas entre a R. e a A.” e (repete) “mal se entendendo se a dívida é reportada parcial ou na totalidade a E… ou à A., sendo que tal dúvida não é sanada pela leitura do articulados” e “o crédito reclamado pela R. não se integra em nenhuma das alíneas daquele preceito [266, n.º 2], nem de resto a R. incorpora o seu pedido em qualquer das alíneas mencionadas” e, concluindo: “um alegado crédito que a R. detenha sobre a A. não tem correspondência nem se encontra consubstanciado em qualquer alegação de onde se conclua que decorre e é fruto de prejuízos que a atuação desta lhe terá causado no âmbito da relação contratual mantida entre ambas e que não são passíveis de ser compensados com um eventual crédito da A.”

18 – Discordamos do decidido e dos fundamentos da decisão. Em primeiro lugar, a admissibilidade da reconvenção não pode confundir-se com a sua procedência ou improcedência, e aquela não defere qualquer mérito, futuro e necessário, à pretensão do reconvinte.

19 – Depois, nem sequer vemos o obstáculo avançado pelo tribunal recorrido relativamente à indefinição temporal da pretensão reconvencional, quando a ré remete para a contabilidade onde se inscreve o seu alegado crédito e a data da liquidação do mesmo.

20 – Em terceiro lugar, parece-nos claro que o pedido é formulado contra a (única) autora (sociedade), sendo certo que foi esta quem, logo na sua petição inicial, esclareceu que a relação contratual foi continuada – com o acordo de ambas – pela aqui demandante, depois de ter existido com a atual gerente de facto da sociedade.

21 – Por último – e se dúvidas houvesse – é a autora que, logo na petição inicial, dá conta de a ré lhe continuar a exigir uma determinada quantia (afinal, coincidente com o valor reclamado na reconvenção) alegadamente relativa a comissões (que a autora depois, em resposta, nega que assim seja) e relativamente à qual a demandante reconhece um determinado valor (como crédito da ré) que abate à liquidação feita na sua petição inicial.

22 – De algum modo, podemos dizer que a autora, logo na petição inicial, “abriu a porta” à reconvenção da ré, chegando a reconhecer parte do valor que veio, depois, a ser reclamado.

23 – Em suma, o pedido reconvencional fundamenta-se, na alegação da ré, no mesmo contrato[6] que a autora invoca e até, mais que isso, num débito, nascido da antecipação condicional das comissões – na versão da ré – parcialmente reconhecido pela autora, ou seja, o pedido reconvencional é admissível nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 266 do CPC.

24 – Diga-se, a terminar (embora este argumento nunca fosse decisivo, mas revela-se explicativo, enquanto denota as posições das partes), que a autora nunca, e nomeadamente na resposta à contestação/reconvenção, invoca a inadmissibilidade da reconvenção, antes reclama a sua improcedência.

25 – Por tudo quanto se deixou dito, entendemos que o recurso se revela procedente e, em conformidade, o despacho deve ser revogado e substituído por outro que – salvo se diversa razão o impedir – admita a reconvenção formulada pela ré e adapte o processo a essa admissão.

26 – As custas do recurso serão da responsabilidade da reconvinte e/ou reconvinda na proporção em que venha a ser definida, a final, a responsabilidade pelas custas do pedido reconvencional.

IV – Dispositivo
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a presente apelação e, em conformidade, revoga-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que – salvo se causa diversa o impedir – admita a reconvenção formulada pela ré, adaptando o prosseguimento do processo a essa admissão.

Custas do recurso por recorrente (reconvinte) e/ou recorrida (reconvinda) na proporção que, a final, venha a ser definida quanto à responsabilidade pelas custas da reconvenção.

Porto, 28.10.2021
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
_____________
[1] Reconvenção e Excepção no Processo Civil, Almedina, 2009, págs. 99/100.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pág. 301.
[3] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2.ª Edição, Almedina, 2019, págs. 170 e 172.
[4] V. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.02.2015 [Relator, Desembargador Pedro Martins, Processo n.º 5807/13.6TBMTS.P1, dgsi] onde, a propósito, se cita vária doutrina, e se decide pela substituição ao tribunal recorrido na formulação do convite ao aperfeiçoamento da reconvenção.
[5] Repetimos a expressão usada por Miguel Mesquita (Reconvenção e ... cit., pág. 146), autor que igualmente os refere [os requisitos do n.º 2 do artigo 274, correspondente ao n.º 2 do atual 266] ““pressupostos” ou “requisitos substantivos” da reconvenção”. Refere ainda o autor (ob. e loc. cit.) que a nossa lei, ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, refere nas três primeiras alíneas do n.º 2 do artigo 274 (leia-a, agora, 266), os casos em que “tal nexo se verifica”, sendo que este [nexo] significa “uma conexão objetiva ou material entre duas ações cruzadas ou, por outras palavras, uma ligação ou nexo entre os objetos da causa inicial e da causa reconvencional”.
[6] Voltamos a citar Miguel Mesquita (reconvenção e ... cit., pág.148): “É suficiente, segundo o melhor entendimento, que ocorra uma coincidência meramente parcial entre as causas de pedir da ação e da reconvenção, sendo aliás, a situação mais frequente na prática.”