COMPETÊNCIA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
CONTRATO DE EMPREITADA
JUNTA DE FREGUESIA
Sumário


SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da relatora):

É da competência dos tribunais administrativos o julgamento da acção respeitante a questões derivadas da execução de um contrato de empreitada celebrado entre uma junta de freguesia e um empreiteiro, para a construção de complexos de piscinas, balneárias e pavilhões gimnodesportivos, por a ré ser uma das entidades adjudicantes elencadas no artigo 2º do Código dos Contratos Administrativos.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

Construções F. M., Ldª, com sede na freguesia de …, Guimarães, veio propor a presente acção comum contra Junta de Freguesia de ..., invocando que, no âmbito da sua actividade de construção civil, celebrou com a ré vários contratos de empreitada, na execução dos quais realizou para a mesma as obras que enuncia na sua douta petição.
Alegando que não se encontram pagos todos os valores àqueles atinentes, peticiona a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €39.172,50, acrescida de juros, contados desde a citação até pagamento.

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A ré contestou e, em sede de audiência prévia, veio arguir a incompetência material do tribunal, com os fundamentos que da respectiva acta se colhem, pugnando pela procedência da excepção com decisão no sentido de a causa ser do foro dos tribunais administrativos e fiscais.
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Respondeu a autora dizendo não assistir razão à ré, pelas razões que enunciou no seu articulado de fls.52.
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Veio, então, a ser proferida a decisão sob recurso, que, em resumo, entendeu estarem subjacentes ao litígio relações jurídico-administrativas e não de direito privado, pelo que a competência material para conhecer da acção em que se discute a execução dos contratos em causa é dos tribunais administrativos, nos termos do artigo 4º, nº1, alínea e) do ETAF.
Em consequência, julgou verificada a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria e absolveu a ré da instância.
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Com ela não se conformando, veio a autora interpor o presente recurso, onde conclui nos seguintes termos:

1º - A competência dos tribunais em razão da matéria é aferida pelos termos jurídico/processuais, tais como foram apresentados pelas partes no tocante ao pedido, causa de pedir e da natureza das partes.
2º - A Recorrente/Apelante veio instaurar uma acção declarativa de condenação, da qual pretendeu apenas o pagamento por parte da R. do montante de €: 39.172,50, acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal desde a citação até integral pagamento, relativamente ao incumprimento da Recorrida/Apelada do pagamento de facturas decorrentes de dois contratos de empreitada celebrados em 15/03/2007 e 21/10/2011.
3ª - A Recorrida/Apelada veio contestar a presente acção) arguindo a prescrição da dívida e se não tivesse procedência a mesma, a impugnação do montante em dívida.
4ª - O pedido da A. assenta numa dívida, devendo as regras de incumprimento da mesma ser reguladas pelas normas previstas no artº, 483º do c.c. e seguintes.
5ª - Nos autos nenhuma norma jurídica de natureza administrativa de validade, interpretação e execução dos contratos foi colocada em discussão e colocada em crise.
6ª – O douto Tribunal a quo concluiu pela procedência da excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, pugnando que o julgamento e a discussão dos dois contratos ora celebrados seriam materialmente competentes os tribunais administrativos e fiscais.
7ª - Tal entendimento não deve proceder, porquanto assenta numa errada interpretação da legislação aplicável sobre a qualificação jurídica dos dois contratos de empreitada.
8ª - De facto o «Mtº. Juiz a qur» concluiu que os dois contratos de empreitada celebrados foram contratos administrativos de obras públicas através de ajuste directo, tendo sido adoptados procedimentos pré-contratuais regidos pelas normas de direito público, enquadrando-os juridicamente da seguinte forma:
a) o contrato de subempreitada celebrado em 15/03/2007 mereceu do «Mtº. Juiz a quo » o enquadramento no artº. 47º do nºl do Decreto-Lei nº59/99;
b) o contrato de empreitada celebrado em 21/10/2011, mereceu do «Mtº. Juiz a quo » o enquadramento jurídico sujeito à disciplina do artº, 16º nºl do Decreto Lei nº18/2008 de 29/01.
9ª - A Apelante não aceita o enquadramento adoptado pelo «Mtº. Juiz a quo » relativamente aos dois contratos que os qualificou de contratos Administrativos mesmo na hipótese teórica de assim se entender - de harmonia com os valores dos mesmos} o enquadramento e aplicação do direito seria o seguinte:
a) O contrato celebrado em 15/03/2007 em que o valor foi de €: 35.882}OO acrescido do respectivo IVA à taxa legal de 5%} prefazendo o montante de €: 37.676}10} de harmonia com a alínea b) do nº2 do artº. 48º do Decreto-lei nº59/99 o procedimento a adoptar seria de concurso limitado sem publicação de anúncio} obedecendo a um conjunto de formalidades previstas nos artigos 129º e seguintes;
b) O contrato celebrado em 21/10/2011} com o valor de contrato de €: 68.652}23} acrescido do respectivo IVA à taxa legal de 6%, prefazendo o montante de €: 72.771}36} de harmonia com o arts, 19º alínea c) do Decreto-Lei nº18/2008 de 29/01, o procedimento a adoptar teria que ser a consulta prévia com convite a pelo menos três entidades e o cumprimento de demais formalidades previstas na legislação aplicável.
Procedimentos esses diferentes do ajuste directo que o Tribunal Recorrido defende e que não tem qualquer suporte factual e legal nos autos em discussão.
10ª - A total ausência nos autos em discussão de documentos e outros elementos que não as facturas não pagas} a ausência documental de qualquer procedimento administrativo sobre a validade} a formação} a celebração e execução do contrato em termos de interpretação e aplicação de normas administrativas, a não invocação pela Ré de qualquer facto relativo à formação, interpretação e à execução dos contratos} constituem elementos essenciais demonstrativos para o apuramento das vontades da A. e R. na celebração os dois contratos em termos de autonomia contratual.
11ª - A Ré nunca interveio nestes dois contratos na qualidade e ao abrigo da « jus imperii» não se tendo constituído uma relação jurídica administrativa a ser dirimida pelos Tribunais Administrativos e Fiscais.
12ª- Tanto assim, que no contrato de empreitada celebrado em 21/10/2011, são as próprias partes A. e R. que convencionaram na cláusula décima primeira que para «todas as questões emergentes deste contrato» é estipulado o foro da Comarca de Guimarães».
13ª - Os dois negócios realizados entre A. e R. foram contratos celebrados ao abrigo do artº. 405º do Código Civil no âmbito do direito privado.
14ª - O entendimento do Tribunal Recorrido contraria as disposições legais relativas à competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais constantes do ETAF, pois as mesmas determinam que estes tribunais não são materialmente competentes para conhecer do mérito da causa que constitui objecto dos presentes autos, violando nomeadamente o disposto nos artº. s 1 e 4 alínea e) do ETAF e o artº. 212º nº3 da CRP.
15ª - Na realidade, os Tribunais Judiciais são competentes em razão da matéria para todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurídica nos termos do artº. 64º do C.P.C. e do artº. 40º nºl da LOSJ e do artº. 71º nºl do C.P.C.

Conclui pela procedência do recurso, devendo a douta sentença ser revogada e, em consequência, os autos do presente processo prosseguir a sua marcha para, a final, ser proferida decisão de mérito relativamente aos factos em discussão.
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Com relevo para a decisão do presente recurso, deve considerar-se a seguinte factualidade (que, contudo, não foi fixada na decisão em crise):
A Autora é uma empresa de construção civil portadora do alvará de construção civil.
Alegou na sua petição que, no exercício da sua actividade, celebrou com a Ré vários contratos de empreitada durante os anos de 2003 a 2011, nos quais prestou os seus serviços que ali enuncia, nomeadamente, Complexo das piscinas, Balneários provisórios do Gimnodesportivo da Escola da … em ..., drenagem de águas pluviais na Rua do Tapado e outros, que não se encontram totalmente pagos pela ré.
A ré é a Junta de Freguesia de ..., Guimarães.
Peticiona a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €39.172,50, acrescida de juros, contados desde a citação até pagamento.

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Há que ter presente que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do C. P. Civil).
Nos recursos apreciam-se questões e não razões.
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Submete-se a este tribunal a questão da competência material do tribunal para a presente demanda, que acima se delineou, curando-se, assim, de saber se a decisão que conclui que pertence ao foro administrativo é, ou não, de manter.

De acordo com a doutrina, a competência em razão da matéria determina-se pelo conteúdo da lide, tendo em conta o pedido e a causa de pedir – veja-se, por todos, Alberto dos Reis, no Comentário ao Código de Processo Civil, vol.I, pag.10 e Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag.88.
Também a jurisprudência se tem orientado no mesmo sentido, sendo exemplo disso o acórdão da RP de 08.04.02, publicado no respectivo “site”, onde se decidiu que “para responder a esta questão importa ter presente a pretensão formulada pela autora e os fundamentos em que a mesma se baseia...e deve olhar-se aos termos em que a acção foi posta, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou direito para o qual se pretende a tutela jurídica, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes)”.
Ou, mais recentemente mas sempre na linha que se tem como unitária, o acórdão do STJ de 22.10.2015, Procº 678/11.0TBABT.E1.S1, (dgsi), do qual consta que «o pressuposto processual da competência material, fixado com referência à data da propositura da acção, deve ser aferido em função da pretensão deduzida, tanto na vertente objectiva, conglobando o pedido e a causa de pedir, como na vertente subjectiva, respeitante às partes, tomando-se por base a relação material controvertida tal como vem configurada pelo autor» .
Nos termos do artº 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 20/2012, de 14/05, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.
Este normativo consubstancia-se numa transcrição dos artºs 202º, nº1 e 212º, nº3, da Constituição, o que implica que o artº 64º do Código de Processo Civil segundo o qual «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» “seja lido em conformidade com o citado artº 212º, n3º”, isto é, “de que a jurisdição comum do direito administrativo é a administrativa e que as causas juridico-administrativas só saem da esfera dos tribunais administrativos se uma lei dispuser (validamente) em sentido contrário” – Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol.I, pag.21, de Mário Esteves de Oliveira.
Nas palavras do Tribunal dos Conflitos, por acórdão datado de 07 de Outubro de 2010, este artº 212º, nº3, «consagra uma reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos. E o primeiro problema que a sua interpretação suscita é o de saber se a reserva é absoluta, quer no sentido negativo, quer no sentido positivo, implicando, por um lado, que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e, por outro lado, que só eles poderão julgar tais questões. (...) é dominante a interpretação com o sentido de que a cláusula consagra uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtractivos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material.
(…) Esta última linha de leitura, que não é repelida pelo texto (que não diz explicita e inequivocamente que aos tribunais administrativos competem apenas questões administrativas e que estas só a eles estão atribuídas) assenta na ideia de que a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do nº3 do artº 214º foi a abolição do carácter facultativo da jurisdição administrativa e não a consagração de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos, tem sido acolhida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional [vide, entre outros, os acórdãos n.º 372/94 (in DR II Série, n.º 204, de 3 de Setembro de 1994), 347/97 (in DR II Série, n.º 170, de 25 de Julho de 1997) e 284/2003, de 29 de Maio de 2003].
Não se vê razão para divergir desta interpretação.
Consideramos, pois, que o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas».
No caso que ora nos ocupa, deparamo-nos com uma ré que se qualifica como uma autarquia local.
No âmbito das suas atribuições e no uso das suas competências, celebrou com a autora os contratos de empreitada ora em litígio.
Por força do artigo 4º, nº1, do ETAF (Âmbito da jurisdição), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
a) (…)
b) (…)
c) (…)
d) (…)
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes; (actualizado pela Lei 114/2009).
Na necessidade de proceder à transposição das Directivas 2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março, bem como da Directiva 2005/51/CE, da Comissão, de 7 de Setembro, e ainda da Directiva 2005/75/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Novembro, fundamentalmente relativas a procedimentos pré-contratuais públicos impôs-se a criação do Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-lei nº18/2008.
Como ensina Vieira de Andrade (As Formas Principais da Actividade Administrativa: Regulamento, Acto e Contrato Administrativo, Sumários das Lições de Direito Administrativo, II, 1ª TURMA, Ano Lectivo 2009/2010), diferentemente do Código do Procedimento Administrativo que fazia estabelecia a distinção entre contrato administrativo e contrato de direito privado da Administração consoante a natureza da relação jurídica em causa, através da adopção de um critério estatutário, associado ao objecto, com base em diversos tópicos doutrinais (sujeitos públicos, relação de sujeição, finalidade de interesse público, “ ambiência” de direito público), «o Código dos Contratos Públicos (CCP), aprovado pelo Decreto-lei nº18/2008, de 29 de Janeiro, segue um caminho diferente: adopta dois conceitos polarizadores, embora parcialmente sobreponíveis, para efeitos de delimitação do respectivo âmbito de aplicação, que abrange, por um lado, a contratação administrativa (formação do contrato) e, por outro, o regime substantivo da relação contratual (execução do contrato).
Este conceito legal de “contrato público” (artigo 1º, nº2) abrange todos os contratos celebrados no âmbito da função administrativa, independentemente da sua designação e da sua natureza (isto é, mesmo que sejam de direito privado), desde que sejam outorgados pelas “entidades adjudicantes” referidas na lei (artigo 2º)».
Como se dispõe no artº1º, do CCP, o seu regime estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo – nº1 – e o regime da contratação pública estabelecido na sua parte II é aplicável à formação dos contratos públicos, entendendo -se por tal todos aqueles que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes em tal Código referidas – nº2.
Ora, como resulta do artº 2º, nº1, alínea c), as autarquias locais fazem parte do elenco legal de “entidades adjudicantes” e, sendo assim, é aplicável aos contratos por ela celebrados, entre os quais se inclui o dos autos, o regime da contratação pública.
Em conclusão, «os contratos cuja interpretação, validade ou execução pertence à jurisdição dos tribunais administrativos, nos termos da alínea e) são assim quaisquer contratos, administrativos ou não, que uma lei específica submeta ou admita que sejam submetidos a um procedimento contratual regulado por normas de direito administrativo…
Assim, e ao abrigo da alínea e) do nº1 do artº 4º do ETAF, basta que exista uma qualquer lei … a dispor que um contrato privado está ou pode estar sujeito a tal procedimento para que a estatuição desta alínea já funcione. Neste âmbito assumem especial relevância os contratos celebrados na sequência dos procedimentos pré-contratuais actualmente previstos e regulados no CCP para que amiúde são remetidas as pessoas colectivas de direito privado por efeitos de mecanismo de financiamento ou atribuição de apoios públicos. Em tais casos, os litígios respeitantes … ao contrato de natureza privada, celebrado entre dois sujeitos privados, mas que uma lei tenha sujeito ou tenha admitido que fosse sujeito a um procedimento pré-contratual público são da competência dos Tribunais Administrativos» - “A Amplitude da Competência Material dos Tribunais Administrativos em sede de Acções Relativas a Responsabilidade Civil Contratual”, Maria Helena Canelas, “Julgar”, nº15, 2011.
Por tudo, não há qualquer censura quanto à solução encontrada na 1ª instância.

III – DECISÃO

Nestes termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas pela apelante.