INADMISSIBILIDADE
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Sumário

É de rejeitar liminarmente, por inadmissibilidade legal, a abertura de instrução requerida pelo assistente, no caso de o respectivo requerimento ser omisso quanto a todos ou alguns dos factos constitutivos do crime que é imputado ao arguido, maxime, quando os ali descritos são despidos de qualquer sanção criminal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

Nos autos de instrução nº.../03..TAVNF, que correm termos no .º juízo criminal de Vila Nova de Famalicão, foi proferido o seguinte despacho:

“Notificado do despacho de arquivamento de fls. 73, veio o assistente a fls. 86 requerer abertura de instrução.
Atento que a mesma foi considerada eivada de lapsos, proferiu-se o despacho de fls. 129, convidando-se ao aperfeiçoamento.
Decorrido o prazo legal aí concedido o assistente B.......... veio juntar o requerimento de fls. 138.
Cumpre decidir.
Desde já dir-se-á que é caso para manter integralmente os fundamentos de direito e de facto no despacho de fls. 129.
Como já se referiu, a fls. 138, veio o assistente juntar requerimento a “aperfeiçoar” o requerimento de abertura de instrução. No entanto, e resulta claro da leitura de tal requerimento, o mesmo continua a não cumprir os cânones do art. 283°, n.°3, do C.P.P.— ou seja, não contém factos, mas tão só conclusões e referências a meios de prova.
Como tal o inicial referido mantém-se, ou seja, com o somatório de toda a alegação continua o Tribunal sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar a instrução. Isto é, inexiste objecto instrutório.
É que não basta que se queira carrear indícios para os autos a fim de poder obter uma decisão de pronúncia. É igualmente necessário saber sobre que matéria é que se pretende recolher indícios e contra quem, devendo o requerimento de abertura de instrução por parte do assistente assemelhar-se a uma acusação.
Em face da argumentação do assistente, temos como certo, que não se encontra preenchido – ainda que no possível ou como base de partida – o quanto vem disposto no art. 287°, n.°3 do CPP.
Concordamos integralmente com as palavras de Maia Gonçalves, in CPP Anot., 7.a Ed.1996, p. 456, quando nos diz que “Se o assistente na completar o requerimento, o juiz não procederá a instrução”.
Renovamos, ainda, a citação do Ac. da RE, de 14-4-95, in CJ, T2, p. 280, onde se pode ler que “O requerimento para abertura de instrução, no caso de abstenção de acusação, equivale à acusação, devendo conter a indicação dos factos concretos a averiguar e que possam preencher os elementos objectivos e subjectivos do crime imputado ao arguido.”
Efectuado o convite ao aperfeiçoamento, no sentido da delimitação do objecto instrutório, dada a irregularidade patente do requerimento inicialmente apresentado, e não vindo agora os assistentes carrear os elementos necessários e legalmente exigíveis, outra solução não resta que a do indeferimento e rejeição da requerida instrução, sob pena de não o fazendo se poder incorrer na situação de nulidade prevista no art. 309°, n.°1 do CPP, através da elaboração de decisão instrutória em que se vertam factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução, situação esta sempre eminente face ao facto de do nada – existente – se ter que retirar algo – naquele momento processual.
Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 1/2 UC – art. 84°, nº 2 do CCJ.
Notifique”.
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Inconformado, interpôs o assistente B.........., o presente recurso, concluindo:

«1.°- O requerimento de instrução apresentado constitui uma narração dos factos praticados pelo arguido;
2.°- Constitui a explicação de que há indícios suficientes da prática de um crime, neste caso do crime de usura, p. p. pelo art. 22º do C.P..
3º- O requerimento de abertura de instrução não está sujeito a qualquer formalidade especial.
4.°- O Recorrente narra factos no seu requerimento, rejeita a posição do Digníssimo Procurador Adjunto e invoca em concreto o crime que no seu entendimento foi cometido pelo Arguido.
5.° - Juntou documentos a apresentou testemunhas.
6.°- A verificação dos factos alegados constitui a prática pelo arguido de um crime de usura p. p. art. 226.° do C.P..
7.°- Pelo que deve o requerimento de instrução apresentado ser aceite, realizadas as diligências de prova e proferido a final despacho de pronúncia.
8.°- Ao decidir de forma diferente violou o Meritíssimo Juiz “a quo” o disposto no art. 287º do C.P.P.».

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Porque de inegável interesse, transcrevem-se sucessivamente o requerimento inicial, objecto de despacho de aperfeiçoamento e o requerimento objecto do despacho recorrido, sob as alíneas A) e B):

A):
«1º No, aliás, douto despacho de arquivamento o Digníssimo Procurador Adjunto conclui que os “termos contratuais não excederam o limite daquilo que é aceitável nas relações comerciais”.
2º E por isso entendeu não se ter recolhido indícios suficientes da prática do crime de usura p. p. art. 226.° do Código Penal.
3º Ora salvo o devido respeito não é esse o entendimento do Requerente:
4º Desde logo porque a falta de capacidade mental do C.......... é notório e evidente.
5º Uma pessoa que já esteve diversas vezes internada em psiquiatria (doc. nº l).
6º Tem manifestado grandes perturbações e denotado euforia excessiva, acompanhada de grande esbanjamento de dinheiro em coisas supérfluas e sem utilidade.
7º Isto para além de ser uma pessoa extremamente agressiva.
8º Aliás, está neste momento pendente junto do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, um processo de internamento compulsivo em regime ambulatório do referido C.......... .
9º No decurso da venda do objecto dos presentes autos, foram várias pessoas que falaram com o responsável do estabelecimento D.........., Lda, em Vila Nova de Famalicão, na altura em que os bens apenas se encontravam encomendados.
10º Nessa altura, foi explicado às pessoas que se encontravam no estabelecimento comercial que as máquinas encomendadas, nem sequer sítio tinham para serem usadas.
11º São máquinas agrícolas, sendo certo que o C.......... nunca foi agricultor, nem tem terras para trabalhar.
12º Sendo certo que, já não era a primeira tentativa do C.......... em adquirir tais máquinas.
13º Pois já o havia feito noutros estabelecimentos comerciais, só que as pessoas uma vez avisadas, já não vendiam.
14º Tudo isto foi directamente e várias vezes comunicado aos legais Representantes da D.........., Lda.
15º Do exposto resulta inequívoco que ao venderem as máquinas ao C.......... cometeram os arguidos um crime p. p. no art. 226.° - 1 do Código Penal.
Termos em que, e demonstrada que foi, a existência de indícios suficientes de prática de um crime de usura pelos arguidos, requer-se a V. EXa se digne ordenar a inquirição das testemunhas abaixo indicadas e a realização do competente debate instrutivo, seguindo-se os ulteriores termos».

B):
«1º Estatui o art. 226º, n.°1 do Código Penal que “Quem, com intenção de alcançar um beneficio patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de ... anomalia psíquica ou fraqueza de carácter do devedor…. Punido com pena de prisão ate 2 anos…
2º Por sua vez o art. 217, n.° 1 estatui que: “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determine outrem à pratica de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão…”
3º Ora, no presente caso o C.........., em Maio de 2002 dirigiu-se à firma D.........., Lda, sita em Vila Nova de Famalicão.
4º Uma vez que ai encomendou varias máquinas agrícolas.
5º Alterados para o efeito, amigos e familiares do C..........: deslocaram-se ao estabelecimento da D.........., Lda, na altura em que os bens apenas se encontravam encomendados, ou seja, em Maio de 2002
6º E, uma vez ai, explicaram a todos os vendedores e ao legal representante da D.........., Lda, o Arguido E.........., que o C.......... sofria de uma anomalia psíquica.
7º Não era agricultor.
8º Não precisava das máquinas encomendadas.
9º Nem sequer tinha sítio para as usar.
10º Dando-se aqui por integralmente reproduzido tudo quanto vem alegado no requerimento de abertura de instrução.
11º Comunicaram ainda que não era a primeira vez que o C.......... fazia tal coisa, pois um dos seus desequilíbrios era gastar dinheiro comprando coisas desnecessárias.
12º O Arguido tomou conhecimento pois ouviu atentamente as várias pessoas que lá se dirigiram.
13º Foi ainda expressamente solicitado ao Arguido que não vendesse tais máquinas, que cancelasse a encomenda.
14º E que não “desse ouvidos ao C..........”.
15º Apesar de tudo isto o Arguido vendeu as máquinas ao C.......... .
16, Aceitou dinheiro deste.
17. E teve o lucro resultante da venda à custa da anomalia psíquica do C.......... .
18º Sendo certo que, com uma pessoa normal não teria efectuado tal negócio, nem teria ganho tal dinheiro, pois ninguém no seu perfeito juízo compra algo que não precisa.
19º Resulta pois inequívoco, ao contrario do que conclui o digno procurador adjunto, de que o Arguido cometeu o crime de usura p. p. pelo art. 226.° do Código Penal».

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Respondendo, o Ministério Público sufraga a decisão em recurso.
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O Senhor juiz manteve a decisão.
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Subindo os autos, o Senhor procurador geral adjunto, emitiu parecer de provimento do recurso.
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Não houve resposta.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir:

Em conformidade com as conclusões do recorrente, a única questão a apreciar e decidir é se o seu requerimento de abertura da instrução contém os factos constitutivos, objectivos e subjectivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, previsto e punido pelo artº226º do Código Penal, de usura e se é passível de rejeição, nos consentidos termos do artº287º nº3 do Código de Processo Penal, por sua inadmissibilidade legal.
Ora, uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido é uma instrução que a lei não pode admitir, até porque seria inútil, e não é lícito praticar no processo actos inúteis, conforme preceitua o artigo 137° do Código de Processo Civil, ex vi o artigo 4° do Código de Processo Penal.
É, pois, legalmente inadmissível a instrução quando seja requerida pelo assistente e este não descreva no seu requerimento os factos integradores do crime pelo qual pretende a pronúncia do arguido.
Por isso que, nos termos do artigo 287°, n.°3 do Código de Processo Penal, a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.
E, se a lei processual penal diz qual é a consequência de falta de narração dos factos no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, não há aqui lugar para a figura do convite ao requerente para apresentar novo requerimento com os factos em falta.
Alias, tal solução colidiria com o carácter peremptório do prazo referido no nº1 do artigo 287°, sendo que neste sentido já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no acórdão n.° 27/2001 de 30 de Janeiro de 2001, publicado no DR – II Série, de 23/03/2001 e, recentemente, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do S.T.J., nº7/2005, de 4/11, in DR-Iª Série –A.

Se é inequívoco que o requerimento de abertura de instrução, independentemente da qualidade processual do requerente, deve, para além das razões de facto e de direito de discordância, observar ainda os requisitos enunciados sob as alíneas b) e c) do n°3 do art°283° do Cód. Proc. Penal, o não cumprimento destes pela requerente, não é expressamente cominado com a nulidade do acto no art°287° do Cód. Proc. Penal, preceito que disciplina a sua forma e demais requisitos, aqui previstos, que hão-de informar tal requerimento.

Por isso que, a inobservância do disposto sob as alíneas b) e c), do nº3 do art°283º do Cód. Proc. Penal, tão só constitua irregularidade processual.

E pese embora o entendimento, com apoio doutrinal e em certa medida jurisprudencial de que «o requerimento do assistente tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta …, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta dos pressupostos de objecto, de arguido», como doutrina Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal III, pág. 134, a verdade é que a omissão de tais requisitos se reconduzem, por sua exigência e tipificação legal no próprio art°287° n°2, in fine, à mera similitude da nulidade da acusação, tal como previsto no nº3 do artº283º do Cód. Proc. Penal.

Ou seja, para que se verifique uma verdadeira e própria inadmissibilidade legal da instrução, por defeito congénito do requerimento da sua abertura pelo assistente, necessário se torna que de tal requerimento se não possa intuir minimamente os factos denunciados e suas consequências, as circunstâncias de modo, lugar e tempo da sua prática e a possibilidade ainda investigável, do assistente, quanto à identificação dos seus agentes e as disposições legais aplicáveis.

A “inadmissibilidade legal” da instrução, tal como a economia dos conceitos o consente, há-de necessariamente e apenas resultar da própria lei, designadamente da inobservância do disposto no n°1, al. a) e b) do artº 287º do Código de Processo Penal e não já de deficiências previstas no seu n°2, mas sim, por manifesta falta de condições de procedibilidade ou de perseguição criminal (pense-se, por ex., na verificação da prescrição ou de qualquer causa de extinção do procedimento criminal, por os factos manifestamente não constituírem infracção criminal e no seu limite, por carência absoluta dos factos integradores de qualquer tipo legal de crime e sua indicação, etc. ...).

Ora, na recensão dos autos e concretamente do requerimento de abertura de instrução, mesmo após a operada correcção, resulta que entre o pai do assistente, C.......... e o responsável do estabelecimento «D.........., Lda.», arguido E.........., fora celebrado um contrato de compra e venda de máquinas agrícolas, não sendo aquele agricultor, apesar do arguido e referido estabelecimento ter sido alertado ainda antes da concretização do negócio (na pendência ainda da encomenda dos bens, quer pelo assistente, quer por outros familiares e amigos de que «o C.......... sofria de uma anomalia psíquica».
Invoca ainda o assistente, que «apesar de tudo isto o Arguido vendeu as máquinas ao C.......... . Aceitou dinheiro deste. E teve o lucro resultante da venda à custa da anomalia psíquica do C.........., sendo certo que, com uma pessoa normal não teria efectuado tal negócio, nem teria ganho tal dinheiro, pois ninguém no seu perfeito juízo compra algo que não precisa».

Estes, em síntese, os factos imputados ao arguido, como integradores de todos os elementos do tipo legal do crime de usura, previsto e punido pelo artº226º, nº1 do Código Penal.

Como tal, há-de buscar-se a relevância de tais factos por referência aos elementos tipo do imputado crime.

Dispõe o artº226º nº1 do Código Penal:

«Quem, com intenção de alcançar um benefício patrimonial, para si ou para outra pessoa, explorando situação de …, anomalia psíquica, incapacidade, inépcia, inexperiência ou fraqueza de carácter do devedor, …, FIZER COM QUE ele se obrigue a conceder ou prometa, sob qualquer forma, a seu favor ou a favor de outra pessoa, vantagem pecuniária que for, segundo as circunstâncias do caso, MANIFESTAMENTE DESPROPORCIONADA COM A CONTRAPRESTAÇÃO é punido com pena de prisão até 2 anos …».

Ora, o facto do assistente ter alertado o arguido de que o comprador seu pai sofria de anomalia psíquica, nada traduz quanto a esta ser manifesta para o arguido vendedor – o arguido não estava obrigado a acreditar no que lhe diziam e não podia ser censurado por lhe não dar crédito – como também é totalmente omisso o requerimento da instrução quanto aos factos integrantes do negócio celebrado, de que é inequivocamente essencial o preço pedido e pago e eventualmente condições de pagamento e garantias exigidas ou prestadas pelo comprador, valores reais dos mesmos bens e, finalmente, factos concretos demonstrativos da desproporcionalidade manifesta da vantagem pecuniária obtida pelo arguido, através do referido negócio, cujos relevantes contornos não são trazidos pelo assistente, para além da invocada informação do padecimento de anomalia psíquica, sendo que tal vantagem é elemento essencial do tipo.

Por outro lado, não permitem os factos vazados no requerimento de instrução, sem mais, apreender o indispensável elemento subjectivo do imputado crime, que não se basta com o mero dolo eventual.

Desta circunspecta análise, é segura a conclusão de que os factos em que se estriba o assistente no seu rejeitado requerimento, tal como descritos, não constituem crime, designadamente o imputado de usura.
Quando muito, constituem ilícito civil, a ser neutralizado em tal sede.

Ainda que provados em julgamento criminal, deles não resultará seguramente qualquer punição para o arguido.

Como bem se conclui no despacho em apreço, não fornecendo o requerimento instrutório do assistente «os elementos necessários e legalmente exigíveis, outra solução ao resta que a do indeferimento e rejeição da requerida instrução, sob pena de não o fazendo se poder incorrer na situação de nulidade prevista no art. 309°, n.°1 do CPP, através da elaboração de decisão instrutória em que se vertam factos que constituam uma alteração substancial dos descritos no requerimento para abertura de instrução, situação esta sempre eminente face ao facto de do nada – se ter que retirar algo – naquele momento processual».

É assim de rejeitar, liminarmente, a requerida abertura de instrução pelo assistente, por sua inadmissibilidade legal, cujo requerimento é manifestamente omisso quanto a todos ou alguns dos factos constitutivos do crime que é imputado ao arguido, máxime quando os ali descritos são despidos de qualquer sanção criminal.

Não merece, pois, qualquer reparo ou censura o despacho recorrido.

Decisão:

Acordam os Juízes, desta Relação, em negar provimento ao recurso e em confirmar a decisão em apreço.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 3Ucs a taxa de justiça, tendo-se em conta a já paga pela sua constituição como assistente.

Porto, 01 de Março de 2006
Ângelo Augusto Brandão Morais
José Carlos Borges Martins
João Inácio Monteiro