INSOLVÊNCIA
ALIMENTOS A FILHOS MAIORES
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

Como decorre do artigo 245.º do CIRE, a exoneração não abrange os créditos por alimentos, donde parece não haver dúvidas que as questões relativas a alimentos são da competência exclusiva dos juízos de família e menores, ainda que exista processo de insolvência com decisão transitada em julgado.

Texto Integral

Apelação n.º 1183/08.7TBTMR-D.E1 (2ª Secção Cível)



ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA



No Tribunal Judicial da Comarca de Santarém (Juízo de Família e Menores de Tomar – Juiz 2) corre termos ação para alteração da prestação de alimentos intentada, em 04/07/2021, por … contra … (declarado insolvente no processo 330/21.8T8STR), a favor da filha de ambos (…), por apenso aos autos de Regulação das Responsabilidades Parentais, alegando, em síntese, que em Setembro ingressa em Mestrado, o que importa um pagamento mensal de € 580,00, e que o requerido, embora declarado insolvente, tem possibilidade de lhe pagar € 850,00 mensais, em vez dos € 400,00 a que está atualmente obrigado, pois recebe € 1.596,60 e declarou ter de prestar alimentos a um filho menor, no valor de pelo menos € 800,00, que na realidade integra o seu agregado familiar.
Concluindo pede que o requerido seja condenado a pagar uma mensalidade no montante de € 850,00 à filha, nascida em 21/03/1999 que embora, presentemente já seja maior, está inscrita em Mestrado, após ter concluído a licenciatura no Curso de Economia da Universidade Católica de Lisboa.

Em sede liminar foi indeferido o requerimento inicial por se entender que uma vez que o requerido foi declarado insolvente a competência material deixou de ser do Juízo de Família e Menores, devendo nas demandas declarativas ter-se em conta as previsões do CIRE.
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Inconformada, a requerente veio interpor recurso de apelação, tendo apresentado alegações e, nelas, formulado as seguintes conclusões:
1 – Como melhor consta da Sentença, o Tribunal a quo indeferiu liminarmente o requerimento inicial, estribando-se no n.º 1 do artigo 590.º do CPC, com fundamento em incompetência material do Juízo de Família e Menores para apreciar a pretensão invocada; no caso, uma alteração da Pensão de Alimentos atribuída à filha maior da apelante.
2 – Argumenta, em síntese, o Mm.º Juiz a quo, que: «Com a declaração de insolvência o requerido deixou de poder dispor do seu património e assumir obrigações com repercussões no mesmo e os credores apenas podem exercer os seus direitos em conformidade com o previsto no Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (artigos 81.º e 90.º do CIRE).
3 – E, que, este juízo não tem competência material para a apreciação desta demanda, a qual, salvo melhor opinião, se insere no âmbito do previsto pelo artigo 93.º do CIRE» – sublinhado e negrito nosso.
4 – Ora, dispõe o RGPTC, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09, no seu artigo 3.º, alínea d), que, para efeitos daquele Regime, «constituem providências tutelares cíveis», entre outras, «a fixação dos alimentos devidos à criança e aos filhos maiores ou emancipados, a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil e a execução por alimentos»;
5 – Também preceitua o artigo 6.º, alínea d), da Lei n.º 141/2015, de 08-09, que «Compete às secções de família e menores da instância central do tribunal de comarca em matéria tutelar cível», além do mais, «fixar os alimentos devidos à criança e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil e preparar e julgar as execuções por alimentos».
6 – Da conjugação das duas disposições legais, resulta, de imediato, que as questões de natureza patrimonial que constituem providências tutelares cíveis inserem-se na competência dos Juízos de Família e Menores.
7 – O artigo 123.º da LOSJ vem estabelecer a competência relativa a menores e a filhos maiores, dispondo, no seu n.º 1, alínea e), que cabe aos juízos de família e menores «fixar os alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil, … e preparar e julgar as execuções por alimentos».
8 – Além de que, a competência dos juízos de comércio encontra-se limitada no artigo 128.º da LOSJ, não prevendo a possibilidade de intervenção daqueles em matéria de providências tutelares cíveis ou outras questões de natureza patrimonial relativas a menores e a filhos maiores.
9 – As providências tutelares cíveis podem ter natureza patrimonial – quando, como é o caso, se destinam a fixar ou alterar prestações alimentícias – mas não têm natureza exclusivamente patrimonial, estando, consequentemente, excluídas do âmbito da competência dos juízos de comércio.
10 – Parece-nos, portanto, pacífico que uma eventual declaração de insolvência não pode interferir nem influenciar o julgamento e as decisões a serem proferidas em providências tutelares cíveis, cabendo aos juízos de comércio cumprir e executar – no domínio da sua competência especializada – aquelas decisões.
11 – Há, no entanto, que distinguir a obrigação geral de alimentos, consignada no artigo 2009.º do Código Civil, daquela outra obrigação, proveniente das responsabilidades parentais, ou seja, a obrigação de prestar alimentos a filhos (menores ou maiores, nos termos do artigo 1880.º do Código Civil).
12 – É que, estão vinculadas à prestação de alimentos, as pessoas elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 2009.º do Código Civil, pela ordem aí indicada, com base num exercício de um pode-dever de assistência.
13 – Por outro lado, estabelece o artigo 1878.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, que «Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros e administrar os seus bens.»
14 – Por seu turno, as despesas com os filhos maiores ou emancipados encontram-se reguladas no artigo 1880.º do Código Civil, nestes termos: «Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artº anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete.»
15 – Verifica-se, pois, uma dualidade de critérios entre a obrigação geral de prestar alimentos, resultante do preceituado no artigo 2009.º do C.C. e a obrigação, oriunda das responsabilidades parentais, de prestar alimentos aos filhos, quer nos termos do artigo 1878.º do C.C., sendo menores; ou, sendo maiores, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 1880.º e 1905.º, n.º 2, ambos do Código Civil e do artigo 989.º do Código de Processo Civil.
16 – O que nos leva a partir do pressuposto de que, a obrigação de prestar alimentos aos filhos, não poderá enquadrar-se na esfera do artigo 93.º do CIRE; pois, da dita norma se extrai que, a mesma, apenas faz alusão à obrigação geral de alimentos, mencionando, especificamente, as «pessoas referidas no artigo 2009.º do Código Civil».
17 – Com efeito, a antedita obrigação de alimentos só tem cabimento no domínio do artigo 239.º, n.º 3, alíneas b) e i), do CIRE, na medida em que o mesmo engloba o conceito de agregado familiar.
18 – Na verdade, escalpelizando este normativo, do mesmo se retira que integra o rendimento indisponível do devedor tudo quanto seja «razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.»
19 – Na fixação desse valor, necessário ao sustento mínimo, excluído da cessão de rendimentos, nos termos do supracitado normativo, terá de atender-se ao número de membros do agregado familiar dependentes do rendimento do insolvente.
20 – Conclui-se, deste modo, que é à obrigação geral de alimentos, consignada no artigo 2009.º do C.C. a que o artigo 93.º do CIRE se reporta, integrando-se a obrigação de prestar alimentos aos filhos, nos termos que decorrem das responsabilidades parentais, na previsão do artigo 239.º, n.º 3, alíneas b) e i), do CIRE, com referência ao «agregado familiar» – cfr. o Acórdão supracitado.
21 – Quer isto dizer que, a filha maior da recorrente, encontrando-se dependente do rendimento do progenitor, insolvente, na medida em que lhe está fixada uma pensão de alimentos, devida por aquele, pode e deve considerar-se como integrando o respetivo agregado familiar.
22 – Assim, o Tribunal a quo violou as regras de competência ínsitas nos artigos 123.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 62/2013, de 26-08, bem como a alínea d) do artigo 6.º da Lei n.º 141/2015, de 08-09.
23 – Além disso, a decisão ora em crise, denota erro, notoriamente gritante, na determinação da norma aplicável, ao caso concreto em apreço, ao enquadrar o mesmo na esfera do artigo 93.º do CIRE.
24 – Sendo certo que, os alimentos devidos a menores ou a filhos maiores ou emancipados, a que faz referência o artigo 1880.º do Código Civil, não se inserem no domínio daquele normativo legal, mas no do artigo 239.º, n.º 3, alíneas b) e i), do mesmo diploma legal, cfr. supra ficou demonstrado”.

Cumpre apreciar e decidir

O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso.
Tendo por referência as conclusões, a questão a apreciar resume-se em saber se, no caso, o Juízo de Família e Menores de Tomar é materialmente competente para a demanda.


Releva para apreciação da questão a matéria que foi referida no Relatório e que se dispensa de enunciação, de novo.

Conhecendo da questão
A recorrente sustenta que deve ser revogada a decisão e liminarmente admitido o seu requerimento inicial a fim de serem seguidos os demais trâmites processuais, por o tribunal, ao invés do que foi entendido, ser o materialmente competente para apreciar e decidir a causa.
Na apreciação da questão há que ter em consideração as seguintes normas legais:
- Artigo 3.º do Regulamento Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08/09, que dispõe o seguinte:
Para efeitos do RGPTC, constituem providências tutelares cíveis:
(…)
c) A regulação do exercício das responsabilidades parentais e o conhecimento das questões a este respeitantes;
d) A fixação dos alimentos devidos à criança e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil e a execução por alimentos; (…)”.
- Artigo 6º do Regulamento Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC) aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08/09 que dispõe o seguinte:
Compete às secções de família e menores da instância central do tribunal de comarca em matéria tutelar cível:
(…)
c) Regular o exercício das responsabilidades parentais e conhecer das questões a este respeitantes;
d) Fixar os alimentos devidos à criança e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil e preparar e julgar as execuções por alimentos; (…)
- Artigo 81.º Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26/08, que estabelece no artigo 81.º, n.º 3, alíneas g) e i) que os juízos de família e menores e os juízos de comércio são Tribunais de competência especializada.
- Artigo 123.º da mesma LOSJ que estabelece a competência relativa a menores e a filhos maiores, dispondo na alínea e), do seu n.º 1 que cabe aos juízos de família e menores “fixar os alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966, e preparar e julgar as execuções por alimentos”.
- Artigo 1880.º do Código Civil, que alude a despesas com os filhos maiores ou emancipados e em que se estipula “Se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete”.
- Artigo 128.º da LOSJ que define a competência refere:
1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.
- Artigo 85.º do CIRE que estabelece os efeitos sobre outras ações, refere:
“1 - Declarada a insolvência, todas as ações em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as ações de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo.
2 - O juiz requisita ao Tribunal ou entidade competente a remessa, para efeitos de apensação aos autos da insolvência, de todos os processos nos quais se tenha efetuado qualquer ato de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente.
3 - O administrador da insolvência substitui o insolvente em todas as ações referidas nos números anteriores, independentemente da apensação ao processo de insolvência e do acordo da parte contrária”.
- Artigo 93.º do CIRE que alude a créditos por alimentos e em que se refere:
O direito a exigir alimentos do insolvente relativo a período posterior à declaração de insolvência só pode ser exercido contra a massa se nenhuma das pessoas referidas no artigo 2009.º do CC estiver em condições de os prestar, devendo, neste caso, o juiz fixar o respetivo montante”.
- Artigo 245.º do CIRE, que alude aos efeitos da exoneração, estipula o seguinte:
1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º.
2 - A exoneração não abrange, porém:
a) Os créditos por alimentos;
(…).
Resulta do disposto nos aludidos artigos do RGPTC que as questões de natureza patrimonial que constituem providências tutelares cíveis cabem na competência dos juízos de família e menores.
Por outro lado, resulta dos aludidos artigos da LOSJ que a competência dos juízos de comércio está limitada, não prevendo a possibilidade de intervenção daqueles em matéria de providências tutelares cíveis ou outras questões de natureza patrimonial relativas a menores e a filhos maiores, donde se deve concluir que a competência dos juízos de família e menores é exclusiva em questões de natureza patrimonial que envolvam filhos.
O artigo 93.º do CIRE no qual se estribou o Julgador “a quo” para defender a incompetência material do Juízo, não regula a atribuição, modificação ou cessação do direito a alimentos, mas antes está relacionado com a exequibilidade do direito, atendendo a que a declaração de insolvência paralisa essa exequibilidade.
Também, este citado artigo, apenas contempla o exercício contra a massa do direito a alimentos consignado no regime geral do Código Civil (artigo 2003º e segs.) conforme resulta da referência expressa ao artigo 2009.º do CC, não contemplando o regime especial do artigo 1880.º do CC que afasta as regras do regime geral referido, não sendo suscetível de aplicação analógica para efeitos de se estender, para além dos progenitores, a obrigação de alimentos às pessoas indicadas no artigo 2009.º do CC (cfr. Ac. do STJ de 04/10/2005, in Col. Jur., Tomo 3º, 51).
Acresce que, como decorre do artigo 245.º do CIRE, a exoneração não abrange os créditos por alimentos, donde parece não haver dúvidas e as questões relativas a alimentos são da competência exclusiva dos juízos de família e menores, ainda que exista processo de insolvência com decisão transitada em julgado.
Com efeito, parece ser pacífico que “a declaração de insolvência não pode interferir ou influenciar o julgamento e as decisões a serem proferidas em providências tutelares cíveis, cabendo aos juízos de comércio cumprir e executar – no domínio da sua competência especializada – aquelas decisões” (cfr. Teresa Alves Azevedo, Ebook “Consequências do Processo de Insolvência nas Providências Tutelares Cíveis” nas III Jornadas do Direito da Família e das Crianças). Aliás, no âmbito do processo insolvencial do requerido, é o próprio juiz da insolvência, no despacho proferido em 11/05/2021, que em esclarecimento ao AI, reconhece que não é ao Tribunal do Comércio “que incumbe diligenciar pela fixação dos valores relativos à pensão de alimentos a atribuir ao filho (…), a liquidar por ambos os cônjuges, que peticionou no relatório, uma vez que nem aqueles autos são da competência, material deste Juízo, nem o Juízo de Comércio é parte naquela ação para tomar qualquer iniciativa que seja”.
Nestes termos, o Juízo de Família e Menores de Tomar é o competente para conhecer da ação intentada pela recorrente, pelo que o recurso merece procedência sendo de revogar a decisão recorrida.
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DECISÂO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que possibilite a normal tramitação dos autos.
Custas de parte pelo recorrido.
Évora, 11 de novembro de 2021
Maria da Conceição Ferreira
Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes