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INSOLVÊNCIA
APREENSÃO DE BENS
GARANTIA BANCÁRIA AUTÓNOMA
CADUCIDADE
ACÇÃO DE SEPARAÇÃO OU DE RESTITUIÇÃO DE BENS
Sumário
I – Com excepção da hipótese prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 141.º do CIRE, a instauração de acção nos termos estatuídos pelo artigo 146.º do mesmo código, com vista ao exercício do direito à separação ou restituição de bens, pressupõe a prévia apreensão (indevida) de tais bens para a massa insolvente. II – Não se integra no conceito de bem a apreender para a massa insolvente o título correspondente à garantia bancária autónoma constituída a favor da insolvente, já que o que está aqui em causa é uma operação de crédito que faculta o exercício de um direito (o de o beneficiário poder acionar a garantia). III – O interesse em agir ou interesse processual traduz-se pela necessidade justificada de prosseguir uma acção com vista à resolução de uma situação de incerteza ou dúvida, pelo que terá de existir utilidade do pedido do autor. IV – Tal interesse inexiste se a sociedade ordenadora de uma garantia bancária autónoma on first demand (sociedade essa, entretanto, declarada insolvente) intenta uma acção contra a sociedade beneficiária (também ela declarada insolvente), quando aquela garantia não foi accionada e o crédito da mesma resultante não foi reclamado - mesmo a título de crédito sob condição -, seja pela segunda, seja pelo garante (entidade bancária que emitiu a garantia). V – Não se enquadra no escopo da acção de separação ou de restituição de bens prevista no artigo 146.º do CIRE a pretensão tendente a obter a declaração de caducidade de garantias bancárias autónomas nas quais está identificada como beneficiária a sociedade insolvente.
Texto Integral
Acordam na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.
I - RELATÓRIO
Por apenso ao processo no qual foi declarada a insolvência da sociedade “J … L.da”, veio a MASSA INSOLVENTE DA EM …SA intentar, ao abrigo do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CIRE, a presente acção de separação ou restituição de bens contra a insolvente, a respectiva massa insolvente e todos os credores (ref.ª/Citius 27139905).
Para tanto alegou que a sociedade “EM … SA” (entretanto declarada insolvente) celebrou com a insolvente contratos de empreitada, no escopo dos quais a primeira constituiu a favor da segunda quatro garantias bancárias on first demand.
Defende, no entanto, que tais garantias caducaram, seja pela extinção do fundamento em que se alicerçaram (os contratos de empreitada foram integralmente executados e a insolvente não detém qualquer crédito sobre a autora), seja pela extinção do mandato que a “EM … SA” concedeu ao banco emitente (extinção essa resultante do facto de esta sociedade ter sido declarada insolvente – artigo 110.º, n.º 1, do CIRE), pelo que deverá a insolvente demandada (através do Administrador da Insolvência) proceder à devolução de tais títulos (os quais integram a massa insolvente da “J … L.da”).
Conclui, com tais fundamentos, peticionando a declaração de caducidade e de nenhum efeito das garantias bancárias, assim como a condenação da ré a reconhecer tal caducidade e a restituir à autora os mencionados títulos.
Procedeu-se às legais citações, nenhuma contestação tendo sido apresentada (ref.ª/Citius 399054057).
O Administrador da Insolvência comunicou aos autos que as garantias bancárias aqui em causa não se encontravam na posse dos então sócios gerentes da insolvente (ref.ª/Citius 27371347), bem como que não foram apreendidas para a massa insolvente (ref.ª/Citius 28331892).
A autora reiterou a sua pretensão, argumentando que a devolução física pode ser substituída pela declaração de caducidade das garantias tituladas, nos moldes peticionados (ref.ª/Citius 28420661).
Considerando a referida não apreensão, a M.ma Juíza a quo notificou a autora para se pronunciar quanto à impossibilidade originária da lide/ falta de interesse em agir (ref.ª/Citius 403200637), tendo a mesma reiterado, uma vez mais, a sua pretensão (ref.ª/Citius 28710296).
Por despacho sob a ref.ª/Citius 404217777, o tribunal a quo decidiu pela falta de interesse em agir da autora, tendo absolvido os réus da instância, nos seguintes termos: “A inutilidade que dá origem à extinção da instância nos termos do artigo 277.º do Código de Processo Civil é aquela que for superveniente. No caso dos autos, porém, não se verifica qualquer superveniência. Ocorre, sim, uma impossibilidade originária da lide porquanto pretende a autora obter a restituição dos títulos das garantias que não é possível restituir por não terem sido objeto de apreensão. Nem sequer é suscetível de se atender a alegação da autora no sentido de que, não estando tais garantias apreendidas, mantém o interesse na declaração da sua caducidade. Ora, o reconhecimento deste pretendido direito não se enquadra no objeto da ação prevista no artigo 146.º do CIRE ou de qualquer outra prevista neste diploma. Acresce ainda que a insolvente, de acordo com o alegado na petição inicial e em conformidade com o que resulta dos documentos que comprovam as garantias prestadas, não é a única beneficiária das mesmas, pelo que sempre a ação destinada ao reconhecimento do direito peticionado pela autora teria de ser intentada também contra as demais beneficiárias. Sem embargo, tal ação para além de não correr termos sob qualquer das espécies previstas no CIRE também não poderia sequer correr por apenso à insolvência de “J …” porquanto não está em causa um direito sobre qualquer bem compreendido na massa insolvente, nem o seu valor tem qualquer influência no valor da massa. Pelo exposto, julgo verificada a falta do pressuposto processual consubstanciado na falta de interesse em agir, o qual constitui uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 577.º e 578.º do Código de Processo Civil, e, consequentemente, absolvo os réus da presente instância.”
Inconformada com tal decisão, dela interpôs RECURSO a autora (ref.ª/Citius 29061782), formulando as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
“1. No âmbito dos presentes autos não foi apresentada contestação, pelo que, nos termos do art. 567º do Código de Processo Civil, deverão ser tidos como confessados todos os factos alegados na petição inicial. 2. A Recorrente constituiu a favor da insolvente quatro garantias bancárias (cfr. doc. 1 a 4 juntos com a petição inicial). 3. Inexistem fundamentos para a manutenção das garantias bancárias em colação, incorrendo o Tribunal a quo em manifesto erro de julgamento. 4. A caducidade do contrato de garantia bancária verifica-se, como qualquer negócio jurídico, com o termo do mesmo ou com a extinção de um elemento essencial na constituição e manutenção daquele contrato. 5. Com a extinção do fundamento em que se alicerça o contrato de garantia bancária, este, necessariamente, caduca. 6. Considerando que os contratos de empreitada celebrado entre Recorrente e Recorrida foram integralmente executados deixaram de existir fundamento para a vigência das garantias bancárias. 7. A garantia em apreço foi emitida e mantida pelas instituições de crédito a pedido da A. – ou seja, no âmbito de um mandato concedido ao banco emitente. 8. Extinguindo-se o mandato que constitui natureza da garantia bancária, esta, necessariamente, extingue-se. 9. Ora, nos termos do artigo 110º/1 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE), os contratos de mandato caducam com a declaração de insolvência do mandante. 10. Assim, o mandato concedido pela Recorrente ao Banco para emitir e manter a garantia em alterque caducou com a declaração de insolvência e, em consequência, a garantia está agora destituída de eficácia jurídica. 11. A Recorrida não reclamou créditos no âmbito do processo de insolvência da A, ao abrigo do art. 128 CIRE, nem sequer reclamou posteriormente, nos termos dos artigos 146º CIRE, resultando evidente que não é detentora de qualquer crédito (maxime provido de garantia bancária). 12. Pese embora as garantias bancárias possam não ter sido apreendidas, a Insolvente recebeu os títulos das garantias por parte da Recorrente. 13. Cumpre ao Sr. Administrador da Insolvência – por determinação expressa da lei – apreender todos os bens pertencentes ao insolvente, nos termos do art. 149º do CIRE. 14. De acordo com a sentença que decretou a insolvência da aqui Insolvente R., o Tribunal ordenou ao I. Administrador da Insolvência a apreensão de todos os bens, de acordo com o disposto no artigo 36.º/1, al. g) CIRE. 15. Não pode, naturalmente, a Recorrente ficar prejudicada face à inércia do Administrador de Insolvência. 16. Ainda que as garantias bancárias não tenham sido apreendidas, conforme declara o Tribunal a quo, a devolução física pode ser substituída pela declaração de caducidade das garantias tituladas, o que se peticionou em sede de petição inicial. 17. A ser impraticável concretizar-se a restituição do bem, se deve, com efeito equivalente, declarar a caducidade das garantias tituladas, nos termos oportunamente peticionados porquanto só assim se garantirá que o direito da Insolvente vertido em tais títulos não será exercido por outrem que venha a ingressar, ilegitimamente, na posse dos mesmos. 18. É evidente a existência do direito/ interesse em agir da Recorrente em ver canceladas ou declaradas caducadas as garantias bancárias em apreço. 19. É evidente o interesse em agir da Recorrente porquanto é a beneficiária das referidas garantias bancárias. 20. Dispõe o artigo 788.º/1 do Código Civil que “Extinta a dívida, tem o devedor o direito de exigir a restituição do título da obrigação…” – logo, por identidade - senão maioria – de razão, o devedor pode reclamar a devolução do título (da garantia da) obrigação. 21. Termos em que assiste à Recorrente o direito (interesse em agir) de peticionar a condenação da Recorrida Insolvente / massa insolvente (de acordo com o litisconsórcio legal passivo previsto no artigo 146.º/1 CIRE) na devolução/declaração de caducidade dos títulos. 22. O Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 36.º/1, al. g), 110º e 149º do CIRE, bem como o art. 788º nº 1 do CC.”
Peticiona, a final, a revogação da sentença do Tribunal de 1ª Instância, bem como a sua substituição por outra que julgue procedente a presente acção.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido pelo tribunal a quo e subiu como de apelação, imediatamente, nos próprios autos de Restituição e Separação de Bens e com efeito devolutivo (ref.ª/Citius 408289169).
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes- artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC.
Assim, as questões a decidir são:
- se existe interesse em agir por parte da autora para efeitos de instauração da presente acção;
- na afirmativa, se os contratos de garantia bancária celebrados entre a insolvente “EM … SA” e a insolvente “J … L.da” se extinguiram por caducidade decorrente da declaração de insolvência da primeira, nos termos previstos pelo artigo 110.º do CIRE, bem como na sequência do integral cumprimento dos contratos de empreitada que lhes estão subjacentes (com ausência de qualquer crédito detido pela segunda sob a autora).
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III – FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Os factos e ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório supra enunciado, o qual, por brevidade, se dá aqui por reproduzido.
Fundamentação de direito
A recorrente insurge-se contra a decisão do tribunal a quo que absolveu os réus da presente instância com fundamento na verificação da excepção dilatória de falta de interesse em agir por parte da autora, pretendendo a sua revogação e substituição por sentença que julgue a acção procedente.
Cumpre apreciar.
Como prescreve o artigo 1.º, n.º 1, do CIRE[i], “o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores”.
Visa-se, desta forma, concentrar todos os credores num único processo, num plano de igualdade[ii], sem prejuízo, claro está, dos privilégios e garantias que sejam legalmente reconhecidos.
Todos os credores terão necessariamente de exercer os seus direitos no âmbito do processo de insolvência (artigo 90.º) -, mesmos aqueles cujos créditos estejam já reconhecidos por decisão transitada em julgado (artigo 128.º, n.º 5) -, sendo que, proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente ou do produto da venda destes últimos (artigos 36.º, n.º 1, al. g), 149.º e 150.º)[iii].
Por tal motivo, é essencial que o Administrador da Insolvência proceda à apreensão de todos os bens da insolvente (apreensão essa que é feita com a assistência da comissão de credores ou, existindo, de um representante da mesma), dessa forma agindo em benefício do colectivo dos credores.
Através de tal apreensão, evita-se a prática de actos (pelo devedor) que possam diminuir a garantia dos credores e viabiliza-se a liquidação para ulterior pagamento aos mesmos.
É, pois, através da apreensão que se forma a massa insolvente (património de afectação especial), a qual é composta de todos os bens e direitos integrantes do património do devedor à data da declaração de insolvência e, ainda, dos bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (artigo 46.º, n.º 1).
Nos artigos 141.º e segs. encontra-se regulada a reclamação para restituição e separação de bens, meio específico de oposição de que um terceiro pode lançar mão e que se processa em termos semelhantes ao da verificação de créditos.
Na verdade, prescreve o n.º 1 desse artigo que as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos são igualmente aplicáveis: “a) À reclamação e verificação do direito de restituição, a seus donos, dos bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente fosse mero possuidor em nome alheio; b) À reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns; c) À reclamação destinada a separar da massa os bens de terceiro indevidamente apreendidos e quaisquer outros bens, dos quais o insolvente não tenha a plena e exclusiva propriedade, ou sejam estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa.”
Ou seja, ocorrendo uma situação de apreensão indevida por parte do administrador da insolvência, aquele que se sinta ofendido na sua posse e/ou direito de propriedade em consequência da apreensão, pode fazer valer o seu direito à restituição e separação dos bens através do mencionado mecanismo (único legalmente admissível para reagir).
Determinando o CIRE qual o procedimento e o prazo pelo qual deverão ser apresentadas as reclamações de créditos e as destinadas à restituição e separação de bens (artigos 128.º e segs. e 141.º e segs.), consagra, ainda, no seu artigo 146.º, a possibilidade de verificação ulterior de créditos ou de outros direitos.
Segundo o seu n.º 1, “Findo o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos, bem como o direito à separação ou restituição de bens, de modo a serem atendidos no processo de insolvência, por meio de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, efetuando-se a citação dos credores por meio de edital eletrónico publicado no portal Citius, considerando-se aqueles citados decorridos cinco dias após a data da sua publicação”.
Neste caso, a restituição/separação de bens terá de ser requerida em acção autónoma (que não constitui qualquer fase do processo de insolvência) mas, por respeitar a interesses relativos à massa insolvente, correrá por apenso ao processo de insolvência – artigo 148.º -, assumindo, também ela, natureza urgente – artigo 9.º, n.º 1.
Importa, então, aferir se a situação configurada nos autos se enquadra na previsão do artigo 146.º.
Pretende a recorrente que o tribunal declare extintas, por caducidade, as quatro garantias bancárias que foram prestadas a favor da insolvente e que lhe sejam restituídos os respectivos títulos.
Analisemos, antes de mais, a natureza dos títulos a que se reporta a presente acção.
Tratam-se de garantias bancárias autónomas à primeira solicitação (on first demand) as quais se caracterizam, tal como a sua denominação o indica, pela obrigação que o garante (normalmente uma instituição bancária ou financeira) tem em pagar a quantia pecuniária acordada e nela estabelecida, logo que tal lhe seja exigido pelo terceiro beneficiário (o qual está isento da prova do pressuposto do seu direito, da constituição da obrigação).
Tal figura envolve três relações distintas[iv]: a) um contrato base que, no caso em apreço, corresponde a um contrato de empreitada (celebrado entre o ordenante da garantia e o beneficiário e que constitui a relação principal, causal ou subjacente); b) um contrato de mandato sem representação (celebrado entre o ordenante e o banco garante – o primeiro incumbe o segundo de prestar a garantia, o pagamento, exigido pela contraparte) e c) um contrato garantia (entre o garante e o beneficiário – o primeiro obriga-se a pagar ao segundo o montante convencionado).
Ao garante não será permitido discutir os fundamentos e pressupostos de tal pedido, estando impedido de recusar o pagamento através da invocação de alguma excepção fundada na relação subjacente à emissão da garantia (contrato base/fundamental) previamente estabelecida entre o beneficiário (credor) e o ordenador (devedor) – designadamente, alguma das excepções que a este último fosse possível invocar por referência ao contrato fundamental[v].
Este tipo de garantia (sem tipificação específica no Código Civil mas consentida e reconhecida juridicamente em nome do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405.º do mesmo código[vi]) integra a categoria das denominadas garantias pessoais (a par da fiança e do aval)[vii] sendo essencial, para a sua apreciação, indagar das cláusulas insertas no título que a sustenta (a pretendida função de garantia está objectivada no próprio título).
A garantia on first demand apresenta, pois, características de autonomia e automaticidade, uma vez que o pagamento é efectuado desde que o beneficiário interpele o banco para esse efeito e independentemente da validade ou eficácia da relação principal, já que o garante assume uma obrigação própria, distinta e independente do contrato base (não assumindo qualquer natureza acessória com referência à obrigação garantida, como ocorre, por exemplo, com a fiança). Ou seja, o garante responsabiliza-se por uma obrigação própria e não pelo cumprimento de uma obrigação alheia (do devedor garantido).
Tal automaticidade não é, contudo, absoluta, podendo o garante recusar o pagamento quando: a) verifique prova inequívoca e irrefutável de existência de fraude à lei, de má-fé ou de abuso de direito por parte do beneficiário; b) o contrato garantido ofenda a ordem pública ou os bons costumes; c) verifique prova irrefutável de que o contrato base foi cumprido; ou d) tenha ocorrido caducidade (pelo não exercício no prazo de validade que tenha sido previsto, validade essa determinada através de uma data ou de qualquer outro evento extintivo apostos no próprio contrato de garantia) ou resolução da garantia.
Feito este enquadramento, passemos então à primeira das questões enunciadas – saber se a autora, ao abrigo do disposto no artigo 146.º, tem o direito (interesse em agir) de peticionar a devolução ou declaração de caducidade dos títulos aqui em causa.
A M.ma Juíza a quo entendeu negativamente, com três argumentos:
- não estarem as garantias bancárias em causa apreendidas no processo de insolvência do qual a presente acção é apenso (o que configurará uma situação de impossibilidade originária da lide);
- o reconhecimento do pretendido direito não se enquadrar no objecto da acção prevista no artigo 146.º ou de qualquer outra prevista no CIRE; e
- não ser a insolvente a única beneficiária das garantias em apreço.
Concluiu, assim, pela falta de interesse em agir da autora.
Ora, desde já, se dirá que, ao contrário do decidido, o facto de os títulos correspondentes às constituídas garantias bancárias não terem sido apreendidos para a massa insolvente não permite concluir, sem mais, pela falta do referido pressuposto processual.
Com efeito, não se está, neste caso, perante um qualquer bem propriedade da insolvente, ou que esteja na posse da mesma, que importe preservar e, posteriormente, vender (finalidades visadas pela apreensão).
A garantia bancária traduz, antes, uma operação de crédito através da qual a entidade bancária garante a execução da obrigação constituída pelo seu cliente face a um terceiro, viabilizando a este último o exercício de um direito (precisamente o de acionar a garantia constituída a seu favor).
Aliás, a sua constituição nem sequer está sujeita a qualquer formalismo (embora, como é lógico, dificilmente se possa conceber uma garantia bancária sem o respectivo suporte documental).
Antecipando a possibilidade de “ser impraticável concretizar-se a restituição do bem”, solicita a autora que se deverá “com efeito equivalente, declarar a caducidade das garantias tituladas (…) porquanto só assim se garantirá que o direito da insolvente vertido em tais títulos não será exercido por outrem que venha a ingressar, ilegitimamente, na posse dos mesmos.”.
Mais defende o seu direito/interesse em ver canceladas ou declaradas caducadas as garantias, alegando ser “beneficiária das referidas garantias bancárias”.
Vejamos se assim sucede.
O pressuposto processual do interesse em agir tem subjacente a existência de uma situação que careça objectivamente de resolução judicial tendente a por cobro a um conflito de interesses ou que tutele interesses juridicamente relevantes, sempre que os efeitos não possam ser alcançados por meios extrajudiciais[viii].
Como se pode ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/05/2018 (citado, aliás, nas alegações de recurso)[ix], “O interesse processual, apesar de a lei não lhe fazer referência, de forma direta, porque o CPC não o contempla como exceção dilatória nominada, continua a constituir um pressuposto processual relativo às partes. Ora, mesmo omisso na lei processual civil como pressuposto, é exigido pela doutrina e pela jurisprudência maioritária a fim de se evitar a proposição de ações referentes a pretensões que manifestamente não carecem de tutela judiciária. Esse interesse, também chamado interesse em agir, pode ser definido, segundo Miguel Teixeira de Sousa “[c]omo o interesse da parte ativa em obter a tutela judicial de uma situação subjetiva através de um determinado meio processual e o correspondente interesse da parte passiva em impedir a concessão daquela tutela”. O seu objeto consiste “[n]a providência requerida ao tribunal, através da qual se procura a satisfação de um direito ou interesse juridicamente protegidos, interesse colocado em causa por uma situação de facto objetivamente existente gerada pelo comportamento da parte requerida”. Nas palavras de Antunes Varela, o interesse processual consiste “[n]a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação. (…) Relativamente ao Autor, tem-se entendido que a necessidade de correr às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjetivo (motivo, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação.” Para se justificar o recurso à tutela jurisdicional tem que se verificar uma situação objetiva de carência, em que o titular de uma relação material controvertida se encontra. Ora, para o demandante, o interesse processual consiste na necessidade do recurso aos tribunais para, através da instauração da respetiva ação, obter a tutela judicial de uma situação subjetiva. Por fim, interesse processual e legitimidade não se confundem, ou seja, são diferentes porque o autor pode ser titular da relação material controvertida, tendo, por isso, um interesse potencial em demandar, e não ter, face às circunstâncias concretas da sua situação, necessidade efetiva de recorrer à tutela jurisdicional. Ou seja, uma coisa é ser titular da relação material litigada, base da legitimidade das partes; outra coisa, substancialmente distinta, é a necessidade de lançar mão da demanda, em que consiste o interesse em agir. Apesar dessa diversidade, têm em comum a necessidade de deverem ser aferidos objetivamente pela posição alegada pelo autor.”
Daqui decorre que o facto de se exigir o preenchimento deste pressuposto processual referente às partes mais não visa do que evitar que sejam propostas acções nas quais seja manifesto que as pretensões não carecem de tutela judiciária.
Isto posto, impõe-se, antes de mais, afirmar que, ao contrário do alegado pela apelante, a mesma não é “beneficiária das referidas garantias bancárias” (beneficiária é a insolvente).
E também há que realçar que as quatro garantias bancárias aqui em causa não “pertencem” à autora pois, como se referiu, a partir do momento em que são constituídas, passam a assumir autonomia face ao contrato base, razão pela qual a apelante nenhum poder detém sobre as mesmas (não é proprietária, nem possuidora, nem detentora de qualquer outro direito real) – o que sempre seria impeditivo de os títulos lhe serem restituídos como pretendido (não sendo aqui aplicável o disposto no artigo 788.º do Código Civil, como invocado nas alegações de recurso).
Acresce que a ré insolvente (beneficiária) não accionou qualquer uma das garantias, não reclamou quaisquer créditos no processo de insolvência da autora e não intentou qualquer acção contra a massa insolvente da mesma (como a própria apelante o afirma).
Por seu turno, as entidades bancárias que emitiram essas mesmas garantias também não terão reclamado no processo de insolvência da autora qualquer crédito – mesmo a título de crédito sob condição[x] (uma vez que nada é alegado nos autos nesse sentido).
Com efeito, os bancos emissores, enquanto garante, podem reclamar o valor das garantias no processo de insolvência, seja a título definitivo (quando já tenham honrado as garantias), seja a título de crédito sob condição suspensiva (nas situações nas quais as garantias não tenham ainda sido accionadas pelos beneficiários).
Recorde-se que, como prescreve o n.º 1 do artigo 146.º, a acção para separação/restituição de bens visa reconhecer um direito que possa ser atendido no processo de insolvência.
Ora, em caso de procedência da presente acção, não vemos como poderia o direito da autora ser atendido no processo de insolvência à qual a acção está apensa (designadamente para os efeitos consignados no artigo 160.º, ou seja, em sede de liquidação[xi]).
Nessa medida, para além de a pretensão da autora não se integrar no denominado direito à restituição ou separação de bens da massa insolvente a que alude o artigo 146.º, não se vislumbra qual a utilidade que poderia advir da presente acção, uma vez que os responsáveis pelo pagamento das garantias são as entidades bancárias que as emitiram (e, reitera-se, a autora nem sequer alegou que tais entidades tenham reclamado o seu eventual crédito no processo de insolvência da “EM … SA”).
Porque elucidativo, veja-se o email de 16/12/2019, remetido pelo ilustre mandatário da autora ao Sr. Administrador da Insolvência (email esse junto com a Petição Inicial), no qual se pode ler:
“Enviamos, em anexo, as cópias dos títulos físicos que foram oportunamente entregues à “J …” – e que desconhecemos se foram conservados e apreendidos na sequência da declaração de insolvência. As garantias são antigas e não foram – nem poderão ser – acionadas pela “J …” (sendo que esta também não reclamou créditos – nomeadamente, decorrentes de defeitos de empreitada – na insolvência da N/ Cliente). Apesar da antiguidade e da caducidade das garantias, os bancos emitentes necessitam que os títulos lhes sejam devolvidos pela beneficiária “J … ” ou que, em alternativa, a “J …” emita uma declaração de cancelamento das mesmas. Em situações análogas, de beneficiários de garantias que entretanto ficaram insolventes, os Srs. Administradores de Insolvência têm enviado diretamente aos bancos pedidos de cancelamento das garantias, uma vez que já não serão utilizadas e, na maioria dos casos, nem sequer sabem do paradeiro dos títulos. (…)”, o sublinhado é nosso.
Finalmente, não se poderá deixar de ressaltar que as garantias apenas poderão ser pagas aos beneficiários nas mesmas identificado
s (pois, assim como o garante não poderá discutir o contrato base, também se encontra apenas vinculado a pagar a garantia aos beneficiários nela identificados) sendo que, em duas delas, para além da insolvente, existem também outras duas beneficiárias, pelo que a decisão a proferir na presente acção nunca poderia ser oponível a estas últimas (já que não são rés).
Do texto das garantias bancárias aqui em causa, constata-se que:
a) as garantias bancárias n.º 265/2004, datada de 21/12/2004 e n.º 125/02/0823842, datada de 11/07/2005, foram emitidas, não apenas a favor da insolvente mas, também, da sociedade “Activos – Promoção Imobiliária, SA” e do Fundo de Investimento Imobiliário Fechado – TDF, representado por “TDF – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, SA”;
b) estipulou-se expressamente que estas duas garantias poderiam ser accionadas por alguma dessas beneficiárias e, ainda, pela Câmara Municipal da Amadora;
c) a garantia bancária n.º 057/2006, datada de 17/04/2006, embora prestadas apenas a favor da insolvente, poderia ser accionadas pela insolvente ou pela Câmara Municipal da Amadora;
d) a garantia bancária n.º 056/2006, datada de 17/04/2006, tem como única beneficiária a insolvente, apenas esta podendo accionar aquela;
Aqui chegados é, pois, nosso entendimento inexistir qualquer interesse em agir por parte da autora, a tal conclusão não obstando o facto de a mesma alegar que os contratos de empreitada subjacentes à emissão de tais garantias terão sido integralmente executados (e de tal alegação não ter sido contestada na presente acção). Reitera-se, pois, que a obrigação assumida pelo garante é independente da obrigação do devedor.
Como escreve Mónica Jardim[xii], “Não se pode confundir aquilo que o garante assegura com a sua obrigação, com aquilo a que o garante se obriga. O garante não se obriga a cumprir a obrigação do devedor. Isto é verdade e evidente, caso a obrigação a que está vinculado o devedor seja uma obrigação de prestação de facto, ou de entrega de coisa diferente de dinheiro, pois, como já referimos, a prestação a que se obriga o garante é pecuniária. Mas, é também verdade, no caso da obrigação do devedor do contrato base ser pecuniária, pois o garante assegura um resultado mas não se obriga a produzi-lo, responsabiliza-se, isso sim, pelo risco da sua não produção, obrigando-se por isso a entregar ao credor uma determinada quantia pecuniária (previamente convencionada), sempre que, por qualquer causa (independentemente da culpa do devedor), não se produza o dito resultado. O garante assume uma obrigação de indemnização baseada na responsabilidade objectiva, obrigação essa que é própria e distinta da obrigação cujo cumprimento garante. Obrigação que é autónoma e independente e que, de forma alguma, se molda sobre a obrigação do devedor do contrato base (de prestar ou de indemnizar), quer quanto ao objecto – que consiste sempre na entrega de uma quantia pecuniária, enquanto que a obrigação do devedor pode ter por objecto uma prestação de facto – quer quanto aos pressupostos da sua exigibilidade”.
Tal entendimento não é igualmente posto em causa por a recorrente defender que o seu interesse no prosseguimento da acção se justifica por pretender ver canceladas ou declaradas caducadas as garantias bancárias em apreço, já que, como referido, não é esse o escopo da acção pela mesma intentada.
Assim, pese embora com fundamento não totalmente coincidente com a decisão recorrida, impõe-se manter a mesma quando julgou verificada a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir por parte da autora e absolveu os RR da instância, não tendo sido violados quaisquer normativos legais.
Consequentemente, prejudicado ficou o conhecimento da segunda questão objecto deste recurso.
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IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida, embora por fundamentos não inteiramente coincidentes.
Custas do recurso pela apelante.
Lisboa, 26 de Outubro de 2021
Renata Linhares de Castro
Nuno Magalhães Teixeira
Rosário Gonçalves
(por opção da relatora, o presente acórdão não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
_______________________________________________________ [i] Diploma a que pertencem todos os artigos mencionados neste acórdão sem que seja mencionada a sua origem. [ii] O chamado princípio a par conditio creditorium ou da igualdade entre credoresque, como escreve CATARINA SERRA, “na sua génese (…) corresponde a uma exigência de «justiça distributiva» – de distribuição do sacrifício, de comunhão no risco ou de comunhão de perdas”, in Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, 2021, Almedina, pág. 136. [iii] Após a prolação da sentença declaratória da insolvência inicia-se a fase de verificação e graduação de créditos sobre a insolvência, a qual assume extrema relevância face à previsão do artigo 173.º - “O pagamento dos créditos sobre a insolvência apenas contempla os que estiverem verificados por sentença transitada em julgado”. [iv] Nesse sentido, vide acórdão do STJ de 05/06/2003 (Processo n.º 03B1466, relatado por Oliveira Barros), in www.dgsi.pt. [v] Como escreveu INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, “no caso de garantia autónoma, o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia. Ele assegura ao beneficiário determinado resultado, o recebimento de certa quantia em dinheiro e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que o beneficiário diga que não o obteve da outra parte, sem que o garante possa entrar a apreciar o bem ou mal fundado desta alegação” – estudo “Garantia Bancária Autónoma”, in O Direito, Ano 120, 1988, III-IV (Julho – Dezembro), pág. 283. [vi] Nesse sentido, veja-se, VASCO SOARES DA VEIGA, Direito Bancário, 2.ª edição, Almedina, 1997, pág. 359, e FRANCISCO CORTEZ, Revista da Ordem dos Advogados, ano 52, Vol. II, Julho de 1992, pág. 530; bem como o acórdão do STJ de 25/11/2014 (Processo n.º 526/12.3TBPVZ-A.P1.S1, relatado por Fonseca Ramos), segundo o qual o contrato de garantia autónoma corresponde a “um negócio atípico, inominado, que o princípio da liberdade contratual – art. 405º do Código Civil – admite, porque não violador das normas abertas dos arts. 280º e 294º do Código Civil”, disponível in www.dgsi.pt. [vii] Por contraposição às chamadas garantias reais, tais como o penhor, a hipoteca, o direito de retenção, a consignação de rendimentos ou os privilégios creditórios. [viii] PAULO PIMENTA, in Processo Civil Declarativo, 2.ª edição, pág. 89 e ss. [ix] Acórdão proferido no âmbito do Processo n.º 673/13.4TTLSB.L1.S1, relatado por Ferreira Pinto e disponível in www.dgsi.pt. [x] Nos termos previstos pelo artigo 50.º, n.º 1, do CIRE, “Para efeitos deste Código consideram-se créditos sob condição suspensiva e resolutiva, respetivamente, aqueles cuja constituição ou subsistência se encontrem sujeitos à verificação ou à não verificação de um acontecimento futuro e incerto, por força da lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico.”.
Para além dos créditos sob condição suspensiva existem, ainda, os “créditos condicionalmente verificados” que, nas palavras de Catarina Serra, “correspondem aos créditos em apreciação no recurso da sentença de verificação e graduação de créditos ou no protesto por acção pendente”, obra citada, pág. 295. [xi] Como sumariado no acórdão da Relação de Coimbra de 18/03/2014 (Proc. n.º 472/11.8TBTMR-L.C1, relatado por Fonte Ramos), “A lei permite àqueles que pela apreensão se sintam lesados na sua posse ou propriedade obter a restituição ou a separação de bens que tenham sido indevidamente apreendidos para a massa insolvente por via do procedimento a que aludem os artsªs 141º e seguintes, do CIRE, defendendo-se e acautelando-se, dessa forma, os direitos do reclamante e o procedimento de apreensão para a massa insolvente e a sua (adequada) repercussão na fase da liquidação”, in www.dgsi.pt. [xii]A Garantia Autónoma, Coimbra, Almedina, 2002, págs. 180/181.