I. A impugnação da matéria de facto – provada e não provada – obedece ao disposto no art.º 640.º do CPC, que indica os ónus a cumprir pelo impugnante.
II. Ainda que não constitua uma impugnação de matéria de facto, no sentido típico, pode o recorrente entender que a matéria de facto provada e não provada não está completa, para a boa decisão da causa, invocando essa desconformidade em recurso. Com essa pretensão o recorrente quer ver incluídos factos alegados e sobre os quais versou o julgamento na matéria de facto, a partir de alegações e meios de prova, o que significa que o tribunal de recurso carece de ter elementos concretos sobre a indicada pretensão – quais os factos a aditar e porquê; quais os meios de prova que sustentam o aditamento.
III. Quando o recorrente impugna a matéria de facto não provada cumprindo os ónus do art.º 640.º apenas para tais factos e alude, genericamente, a outros constantes da contestação, sem cumprir relativamente a estes semelhantes ónus, não pode deixar de se considerar que não respeitou as exigências legais.
IV. A indicação efectuada pela recorrente relativa à ligação entre os factos a dar como provados a partir da contestação não aparece como meio inadmissível de se reportar aos factos não provados apurados, quando se consegue fazer uma associação clara entre uns e outros.
V. Se a não reapreciação da matéria de facto se fundou, para além do não cumprimento dos ónus do art.º 640.º do CPC, ainda no argumento de que a reapreciação constituiria acto inútil, cuja prática está vedada, deve verificar-se a sua procedência, que pode inutilizar o argumento anterior; não o inutilizando, deve aquele prevalecer e revogar-se a decisão recorrida na medida da violação legal.
VI. Se o tribunal recorrido reaprecia a matéria de facto e não a altera, o STJ não pode sindicar a não alteração senão nas circunstâncias indicadas na lei (art.º 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3 do CPC).
I. RELATÓRIO
1. NEMEAU, S.A.R.L., Sociedade Anónima de Responsabilidade Limitada de direito francês, instaurou acção declarativa, com processo comum, contra ALEXANDRE BARBOSA BORGES, S.A. pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de €224.400,00, a título de remuneração convencionada e despesas suportadas com a obra que lhe foi adjudicada pela ré, ou, subsidiariamente, a quantia de €141.000,00, a título de indemnização pelas despesas suportadas pela autora no âmbito da execução dos trabalhos entre 9 de Maio e 14 de Junho de 2017, quantias estas, em qualquer dos casos, acrescidas de juros moratórios, vencidos e vincendos, desde 14 de Junho de 2017 (data de conclusão e entrega dos trabalhos), até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que celebrou com a ré um contrato de subempreitada para a execução da dragagem da lagoa , obra que se enquadrava no âmbito da empreitada para requalificação e valorização do sítio da Barrinha de Esmoriz, que havia sido adjudicada à ré pela sociedade Polis Litoral Ria de Aveiro - Sociedade para a Requalificação e Valorização da Ria de Aveiro, S.A.. Iniciada a execução da obra, a autora constatou que a informação técnica fornecida pela ré continha erros graves, que comprometeram o plano de execução dos trabalhos e impediram, que, no prazo acordado, tivessem sido dragados mais de 10% do sedimento previsto, sendo necessária uma nova proposta de trabalhos e de custos que a ré rejeitou, prescindido de seguida dos serviços da autora.
Com a execução da obra a autora suportou custos e prestou serviços no valor de €141.000,00, deixando de receber €224.400,00 respeitantes ao valor da subempreitada.
2. A ré contestou, impugnando a versão dos factos relatada pela autora na petição inicial, sustentando que a informação técnica que forneceu estava correcta e que autora teve oportunidade de verificar no local, através de amostras por si recolhidas, o material que era suposto dragar.
Alega que a autora foi incapaz de executar os trabalhos contratados, tendo apenas dragado 6,93% daquilo a que se havia obrigado, incumprindo desta forma o contrato, nem sequer prestando os serviços cujo pagamento reclama.
Deduziu reconvenção, alegando ter suportado custos no valor de €20.745,07 e que pagou à autora, a título de adiantamento, mais €21.304,80 do que o valor correspondente aos trabalhos efectivamente realizados. Pediu a condenação da reconvinda no pagamento da quantia global de €42.049,87, sem prejuízo dos danos futuros que venha a sofrer em resultado das penalidades contratuais que lhe forem aplicadas pelo dono da obra.
3. A autora replicou à matéria da reconvenção, mantendo o já alegado na petição, donde conclui que foi a errada informação pré-contratual prestada pela ré que impossibilitou a autora de realizar a prestação que lhe incumbia. Impugnou, ainda, os custos invocados pela ré e a sua responsabilidade por eventuais sanções contratuais aplicadas pelo dono da obra.
4. As partes foram convocadas para a audiência prévia (25-2-2019), na qual, frustrada a tentativa de conciliação, se proferiu despacho saneador, decidindo-se pela validade e regularidade da instância e do processado.
Admitiu-se a reconvenção e fixou-se o valor da causa em € 284.567,86.
Identificou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Sob requerimento das partes, solicitou-se a realização de perícia à Universidade de ...., Departamento de Engenharia Civil, cujo relatório foi junto aos autos em 25-9-2019, sob a forma de “Parecer”.
5. Realizou-se audiência de discussão e julgamento e proferiu-se sentença em que se decidiu:
«a) julgar parcialmente procedente a acção e, em consequência:
1. condenar a Ré a pagar à Autora a quantia de € 224.400,00, acrescida de juros de mora às taxas legais em cada momento em vigor para as operações comerciais, contados desde 1 de Julho de 2017 até integral pagamento.
2. absolver a Ré do restante pedido;
b) julgar totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência, absolver a A. do pedido reconvencional.
Custas da acção por Autora e Ré, na proporção da respectivo decaimento e da reconvenção integralmente pela Ré (art. 527º nºs 1 e 2 do C.P.C.).
Considerando que a conduta das partes foi correcta, sempre pautada por critérios de normalidade e de conciliação e dado que a causa não se revestiu de especial complexidade, entendemos que se encontram verificados os pressupostos previstos no art. 6º nº 7 do R.C.P..
Assim, decide-se dispensar todas as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça.»
6. Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação, admitido, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
7. Conhecido o recurso de apelação, em que houve conhecimento da questão relativa à impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação veio a proferir acórdão em que diz:
“Pelo exposto, não se apreciando a impugnação da decisão da matéria de facto no que respeita à matéria das alíneas a), c), d), e), f) e g), por tal matéria, nos termos supra expostos, ser indiferente à sorte do pleito, e improcedendo tal impugnação no tocante à matéria das alíneas h), i) e j), como a sentença, no que tange à aplicação do direito aos factos, não foi objecto de impugnação, concluímos pela improcedência do presente recurso e consequente confirmação da sentença recorrida.”
8. Não conformada, a ré apresentou recurso de revista, o que faz nos seguintes moldes: “nos termos do artigo 671.º, n.º 1, do Código do Processo Civil (CPC), oferecer RECURSO DE REVISTA para o Supremo Tribunal de Justiça, com efeito meramente devolutivo e subida nos próprios autos, nos termos das disposições normativas vertidas nos artigos 675.º, n.º 1 e 676.º, n.º 1, do CPC.” e que, no requerimento e motivação, vem ainda a indicar ser de revista excepcional, mas sem que alguma vez se indique que pretende igualmente interpor recurso por essa via e quais os fundamentos que justificariam a sua admissão (art.º 672.º CPC).
9. No Tribunal da Relação o recurso veio admitido nos seguintes termos:
“Alexandre Barbosa Borges, S.A, notificada que foi do nosso Acórdão proferido em 28.05.2021, que julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida, sem voto de vencido e com fundamentação essencialmente idêntica, veio, ao abrigo do disposto no art.º 671.º, n.º 1, do CPC, interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, com efeito meramente devolutivo e subida nos termos das disposições normativas vertidas nos artigos 675.º, n.º 1 e 676.º, n.º 1, do CPC.
Instruiu o recurso com as pertinentes alegações em que formula conclusões, pedindo a anulação do nosso acórdão por violação de regras de direito, designadamente o disposto nos artºs. 640º n.º 1 al. a) e 662º do CPC.
A recorrente tem legitimidade, está em tempo e o valor da causa comporta recurso para o STJ.
Nos casos de dupla conforme, como entendemos existir, o acórdão apenas admite recurso de revista excepcional, invocados que sejam os seus fundamentos, cuja verificação e consequente admissão ou rejeição do recurso, compete exclusivamente ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art.º 672º nº 3 do CPC.
Contudo, o presente recurso, na parte em que impugna a nossa decisão de não conhecer da apelação referente à impugnação da matéria de facto constante das alíneas a), c), d), e), f) e g), [já que a impugnação referente à matéria das alíneas h) e i) acabou por ser cautelarmente reapreciada] e com esta restrição do seu âmbito, é por nós admitido – seguindo-se a interpretação que do nº 1 do art.º 670º do CPC vem sendo feita por esse Supremo Tribunal, v. g. no acórdão de 9.6.2016, proferido no processo 6617/07.5TBCSC.L1.S1 e no aí citado, ambos publicados em dgsi.pt) – subindo de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo (artºs 675º e 676ª do CPC).
Na parte em que nas alegações da revista se exorbita o supracitado âmbito, compete à formação do STJ (art.º 672º nº 3 do CPC) decidir da sua eventual admissão.
Notifique e remeta os autos ao STJ.”
10. Nas conclusões do recurso de revista constam as seguintes conclusões (transcrição):
“1. A Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação ...... e, vem da mesma recorrer, devendo o presente recurso de revista ser admitido, nos termos do artigo 671.º, n.º 1, do CPC.
2. Com o presente recurso de revista normal, pretende a Recorrente sindicar o Acórdão recorrido no que concerne à não apreciação da impugnação da decisão de matéria de facto no que respeita às alíneas a), c), d), e), f) e g), dos factos dados como não provados na sentença recorrida, por alegado incumprimento do ónus de impugnação e, por a eventual procedência de tal impugnação ser insuscetível de reverter o decidido, constituindo prática de ato inútil. E, bem assim, pretende, ainda, a Recorrente sindicar a improcedência da impugnação das alíneas h), i) e j) da matéria dada como não provada em sentença, no que tange à aplicação do direito aos factos, por, alegadamente, também não ter sido objeto de impugnação.
3. O recurso de revista normal é o mecanismo processual adequado para sindicar a alegada inobservância do ónus de impugnação da matéria de facto, sendo, portanto, fundamento do presente recurso a violação ou errada aplicação das regras ou normas processuais, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea b), do CPC.
4. Neste sentido, sempre se considerará que não se verifica dupla conformidade de decisões, sendo, portanto, admissível o recurso de revista normal – cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça proferidos no âmbito do processo n.º 3046/16.3T8MAI.P1.S1 (de 16.06.2020), n.º 4081/17.0T8VIS.C1-A.S1 (de 08.07.2020) e n.º 1519/18.2T8FAR.E1.S1 (de 04.06.2020).
5. No caso subjudice, as questões em análise são:
A) Por um lado, o cumprimento do ónus de impugnação, em termos abstratos e concretos;
B) Por outro lado, a utilidade e (possíveis) efeitos jurídicos da apreciação da matéria de facto alvo de impugnação.
6. O Venerando Tribunal da Relação ...... considerou que o ónus de impugnação não foi cumprido pela Recorrente dado que, e uma vez que a matéria de facto está integrada na sentença, a especificação da matéria de facto que a Recorrente considera incorretamente julgada deve ser feita por referência aos números ou alíneas que constam da sentença e não sobre os factos alegados nos articulados.
7. Não pode a Recorrente concordar com o Venerando Tribunal da Relação ...... quando afirma que o ónus de impugnação, mais concretamente, a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não foi cumprido.
8. Compulsadas as conclusões apresentadas, resulta claro e evidente que a Recorrente, para além de mencionar os pontos dos factos alegados nos articulados que pretendia ver dados como provados (e que não o foram), identifica com precisão as alíneas da sentença da matéria de facto dada como não provada, e que pretendia, através da interposição de recurso, ver dada como provada.
9. O mesmo é dizer que, a Recorrente identifica os pontos de facto da matéria dada como não provada que, no seu entendimento, estão incorretamente julgados e, ainda, numa lógica de complementaridade e para melhor perceção e explanação, identifica os pontos do articulado contestação que a eles se ligam.
10. Ainda, discorre o Venerando Tribunal da Relação ...... que o ónus de impugnação dos concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorretamente julgados não se encontra cumprido porque “a remissão para artigos dos articulados, no caso da contestação, para que tal decisão da matéria de facto não remete, só é admissível quando se entende que da sentença não constam todos os factos que interessam à decisão da causa e se pugna pelo aditamento de outros factos oportunamente alegados. No caso a apelante não pugna pelo aditamento de quaisquer factos que tenha alegado na sua contestação e que não tenham sido objeto de decisão (incluídos nos factos provados e não provados da sentença)”.
11. Sucede que, para além de a Recorrente mencionar os factos vertidos no articulado contestação por uma lógica de complementaridade do raciocínio expositivo, em boa verdade, sempre existiria necessidade de fazer menção aos factos descritos no articulado contestação, pois que é entendimento da Recorrente que a sentença não discorre sobre os factos vertidos na contestação e por si identificados em sede recursiva de forma a que lhe seja possível (ou a um qualquer destinatário normal) conhecer o iter decisório que levou o Tribunal de 1.ª instância a considerar a matéria de facto dada como não provada, atento a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
12. Ademais, a respeito do ónus de impugnação da matéria de facto, tem sido jurisprudência reiterada do Colendo Supremo Tribunal de Justiça que a verificação do cumprimento da impugnação da matéria de facto convoca a observância dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08.07.2020, processo n.º 4081/17.0T8VIS.C1-A.S1,
13. Assim como, o cumprimento do ónus de impugnação deve ser sindicado mas sem que tal se transmute num excesso de formalismo que redunde na denegação da reapreciação da decisão da matéria de facto.
14. Neste sentido, é consensual na jurisprudência do Colendo Supremo Tribunal de Justiça que deverá ser feita uma leitura concertada da alegação e das conclusões para averiguar se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade – cfr. acórdão de 04.06.2020, no âmbito do processo n.º 1519/18.2T8FAR.E1.S1.
15. Ainda, sempre se terá de referir que para efeitos de cumprimento do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC, tanto é válida a indicação do artigo da base instrutória em que o facto foi inserido, quando houver lugar a ela, como a indicação do ponto da sentença que o contemple, ou, ainda, a própria transcrição do respetivo enunciado fáctico – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.02.2020, proferido no âmbito do processo n.º 333/17.7T8EPS.G1.S1.
16. Em suma, o essencial é que o enunciado fáctico impugnado seja percetível e inteligível, o que, de facto, se sucede in casu, tal como é possível intuir das contra-alegações apresentadas pela Recorrida e, bem assim, da fundamentação apresentada pelo Tribunal da Relação .......
17. Por tudo o quanto ficou exposto, o ónus de impugnação da matéria de facto, mais precisamente, a identificação dos concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorretamente julgados, foi cumprido.
18. Isto posto, impõe-se a anulação da decisão recorrida que rejeitou a apelação, em virtude de violação de regras de direito processual, designadamente, o artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC, com a consequente baixa do processo ao tribunal da Relação a fim de que este conheça da impugnação da decisão de facto e, em conformidade com o que vier a ser julgado nessa sede, decida da questão de direito, oque desde já se requer.
19. Já no que respeita à questão da utilidade da eventual procedência da impugnação da matéria de facto, entendeu o Venerando Tribunal da Relação ...... que, uma vez que não foi impugnada a fundamentação jurídica da sentença, ou seja, a aplicação do Direito aos factos provados, a procedência da impugnação da matéria de facto levada a efeito era insuscetível de reverter o decidido na sentença, constituindo prática de ato inútil.
20. Sucede que com o recurso interposto, era pretensão da Recorrente que se desse como provada toda a matéria de facto discutida nos autos que foi dada como não provada e, sobre a qual, naturalmente, não houve qualquer fundamentação jurídica por parte do Tribunal da 1.ª instância.
21. Assim, dando-se como provada toda a matéria de facto dada como não provada na 1.ª instância, ter-se-ia como resultado, consequente e lógico, uma reversão total da decisão, o que engloba também a fundamentação jurídica.
22. Isto posto, a apreciação da matéria impugnada e a sua eventual procedência seria sempre útil, por ter como resultado, necessariamente, a reversão total da decisão, pois que a matéria de facto não provada é contrária e naturalmente contendente com a matéria de facto considerada provada.
23. Desta feita, mesmo que a Recorrente não tenha operado impugnação expressa da matéria dada como provada e, bem assim, do Direito aplicável a esses factos, sempre se teria de concluir pela sua impugnação implícita, porquanto que tal se retira do sentido recursivo expresso que imprimiu à apelação.
24. De resto, este entendimento foi perfilhado no acórdão proferido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, de 19.05.2020, no âmbito do processo n.º 55/16.6T8RGR.L1.S1, que:
“II - Tal limitação, não significa, nem nunca poderia significar, que na reapreciação da prova, o tribunal da Relação não possa, nem deva ajustar outros pontos de facto, mesmo que não impugnados, se tal se impuser, por forma a evitar contradições, fazendo aplicar aqui o preceituado no art. 662.º, n.º 1, do CPC.
III - Quer dizer, embora a lei imponha limites à actuação do segundo grau em sede de apreciação da materialidade factual, esses limites terão obrigatoriamente que ser «desprezados» se o tribunal, confrontado com a impugnação recursiva expressa, à qual irá atender, se vir confrontado com outra, não especificamente posta em causa, mas cuja manutenção poderá afrontar aquela que foi contraditada e alterada.”
25. Neste sentido, a título meramente exemplificativo refira-se que, por hipótese, a dar-se como provada a matéria de facto vertida na alínea a) dos factos não provados da sentença, tal teria como influência e convocaria a alteração da matéria de facto dada como provada vertida nos pontos 16 (no que respeita ao que foi discutido na referida visita ao local), 19 (no que respeita a “prevendo-se aí expressamente que a Taxa de Matéria Sólida da lagoa era 25%”), 32 (no que respeita a “como a Ré informou a Autora”), 33 e 36, da sentença
E, bem assim, a dar-se como provada a matéria de facto vertida na alínea c) dos factos não provados da sentença, tal teria como influência e convocaria a alteração da matéria de facto dada como provada vertida nospontos16, 19, 32, 33, 37, da sentença. Ainda, a dar-se como provada a matéria de facto vertida nas alíneas d), f) e g), dos factos não provados na sentença, tal teria influência e convocaria a alteração da matéria de facto dada como provada vertida nos pontos 16, 19, 32, 33, 36, 37 (no sentido de explicar a necessidade de recolha de amostras por parte da Autora), da sentença. Do mesmo modo, a dar-se como provada a matéria de facto vertida nas alíneas h) e i) dos factos não provados na sentença, tal convocaria a alteração da matéria de facto dada como provada no ponto 28 da sentença (no que concerne a “prescindiu dos serviços da Autora” – porquanto que não teve outra opção em face da resolução do contrato com o Dono de Obra, verificando-se uma impossibilidade superveniente).
26. Por tudo quanto foi exposto, entende a Recorrente que a decisão do Venerando Tribunal da Relação ...... é violadora das regras processuais, designadamente, dos poderes de cognição que cabem àquela instância em sede de recurso de apelação com vista à impugnação da matéria de facto, mais precisamente, o disposto nos artigos 640.º e 662.º do Código do Processo Civil.
TERMOS EM QUE, e nos melhores de Direito que V.ªs Ex.ªs certamente suprirão, deverá: o presente Recurso de Revista ser admitido e, consequentemente, o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação ….. ser anulado, por violação de regras de Direito, designadamente, o artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC, e o artigo 662.º do CPC, E ser decretada a baixa do processo ao Tribunal da Relação a fim de que este conheça da impugnação da decisão de facto, Sendo que, ao decidir-se assim, farão V.ªs Ex.ªs a tão acostumada JUSTIÇA!”
11. Foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, com envio das peças principais por via electrónica aos adjuntos, cumpre analisar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
DE FACTO
12. Factos julgados provados nas instâncias
«1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à construção de redes de fluídos, sendo especializada na dragagem de sedimentos.
2. Por seu turno, a Ré é uma sociedade comercial que se dedica à indústria da construção civil, empreitadas de obras públicas, terraplanagens, transporte rodoviário, nacional e internacional de mercadorias, compra e venda de imóveis, comércio, exportação e importação de materiais, máquinas e equipamentos para a construção civil, fabricação e fornecimento de betão pronto, de argamassas e de massas betuminosas, sua comercialização e transporte, extração de saibro, areia e pedra britada.
3. No dia 28 de janeiro de 2016, entre a sociedade Polis Litoral Ria de Aveiro – Sociedade para a Requalificação e Valorização da Ria de Aveiro S.A., – sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, na qualidade de dono de obra, e a Ré, enquanto empreiteira, foi celebrado um contrato de empreitada para requalificação e valorização do “sítio” da Barrinha de Esmoriz.
4. A Barrinha de Esmoriz, também designada por lagoa ......, é uma lagoa costeira de água salobra, com cerca de 1500 m de cumprimento e 1000 m de largura máxima, localizada no distrito ..., nos concelhos ... (freguesia ...) e de ... (freguesia ...).
5. Com o referido projeto pretendeu-se desenvolver um conjunto de ações, enquadradas no programa Polis Litoral Ria de Aveiro, que visaram a melhoria do estado ambiental desta zona de valor ecológico e a promoção da sua vivência pela população.
6. As intervenções previstas no projeto foram de dois tipos: intervenções no meio aquático e intervenções no meio envolvente.
7. Por sua vez, as intervenções no meio aquático foram divididas em dois tipos de ações: execução de ações de dragagem (remoção de sedimentos do fundo) da lagoa para promover a recuperação e melhoria do sistema aquático; e reabilitação do dique de forma a condicionar a ligação da barrinha ao mar, não permitindo o “esvaziamento” da lagoa rapidamente e permitindo uma renovação gradual da água interior, minimizando a variação de salinidade no interior da lagoa aquando da abertura do dique no final da época balnear.
8. No âmbito das respectivas atividades comerciais, em abril de 2017, a Autora e a Ré celebraram um contrato de subempreitada, figurando a Ré como empreiteira e a Autora como subempreiteira, o qual teve por base parte do objecto da empreitada adjudicada à Ré para requalificação e valorização do Sítio da Barrinha de Esmoriz, em concreto e numa primeira fase, a dragagem de 80,000 m3 da Lagoa de Esmoriz, a qual seria realizada de 9 de maio de 2017 a 14 de junho de 2017.
9. Para a realização de trabalhos de dragagem é essencial conhecer-se a Taxa de Matéria Sólida, correspondente ao volume de matérias sólidas por unidade de matéria líquida.
10. A Taxa de Matéria Sólida tem influência direta no tempo ou duração da dragagem, ou, alternativamente, no tipo e/ou quantidade dos equipamentos a ser utilizados.
11. Assim, quanto maior for a Taxa de Matéria Sólida, mais difícil e lento é o processo de bombeamento da matéria a dragar, pelo que, sob pena de se alongar o período de dragagem, deverá adaptar-se o equipamento utilizado.
12. O primeiro contacto entre a Autora e a Ré aconteceu no dia 23 de março de 2017, por mensagem de correio eletrónico, com a seguinte proposta de trabalho apresentada pela ABB:
“Bom dia, no contexto de uma obra localizada no norte de Portugal, que a nossa empresa está a fazer como um empreiteiro geral, gostaríamos de saber se está interessado em apresentar uma proposta para o trabalho de dragagem a ser feito. Aqui estão alguns elementos do projeto para informação: Volume a ser dragado: aproximadamente 250.000 m3; Distância a ser bombeada: 1,2 km; Início do trabalho: 18 de abril de 2017; Prazo: 2,5 meses; Localização em anexo; Obs: A principal restrição resulta do baixo nível de água (cerca de 1,50m); Pedimos que você confirme em resposta a este e-mail, se estiver interessado, para lhe enviar o Arquivo de Consulta Empresarial.
Permanecendo à sua disposição para qualquer informação. Sinceramente, AA”.
13. No mesmo dia, a Autora respondeu à Ré, manifestando o seu interesse e questionando-a desde logo sobre vários aspetos técnicos do material a dragar, da seguinte forma: “Bom dia, agradeço que informe sobre o seguinte: Tipo de materiais; Taxa de matéria seca dos vasos; Destino dos sedimentos dragados: descarga no mar? desidratação no local?; Profundidade total do corpo d'água?; Calado mínimo de água atual; Cordialmente, BB”.
14. A Ré, por intermédio da Sra. CC, respondeu à Autora no mesmo dia através da seguinte mensagem de correio eletrónico: “Boa tarde, no pressuposto base: Dragagem de areias (sable), onde se prevê 25% de sólidos (sólide); Destino é a 1200m da zona de dragagem (zone de dragage), quer para zona norte (nord) como sul (sud); A profundidade neste momento do local é a 1m (niveau d'eau); Dragar mais 1m (plus dragage 1m); Obrigada (merci); Cumprimentos, CC”.
15. No dia 23 de março de 2017, a Autora solicitou à Ré que esta lhe enviasse o caderno de encargos das obras a realizar, o qual veio a ser-lhe enviado pela Ré, apenas em parte e através de dois documentos, por mensagem de correio eletrónico datada de 24 de março de 2017, sendo que a parte enviada, em lugar algum, referia que a Taxa de Matéria Sólida era diferente dos 25% anteriormente indicados.
16. Em seguida, as partes tiveram uma reunião presencial no dia 28 de março, dia no qual o representante da Autora se deslocou ao local de execução da obra para ver o tipo de trabalho a realizar.
17. Na sequência da referida reunião e após o ajuste de alguns detalhes, no dia 5 de abril de 2017 a Ré enviou um e-mail para a Autora com uma proposta final sobre os trabalhos a realizar e no qual se comprometeu nos seguintes termos: assume o encargo relativo à barimetria; assume o encargo relativo ao alojamento de 3 colaboradores da Autora; assume os encargos de instalação das condutas;
18. Deixando em aberto a questão do fornecimento do combustível, a Ré acabou por propor à Autora uma remuneração de 3,30 €/m3 de volume dragado, o que significa que, para um volume total dragado de 80.000 m3, a Ré pagaria à Autora um total de € 264.000,00.
19. Em seguida, no dia 6 de abril de 2017, as partes chegaram a um acordo final e a Autora apresentou à Ré um orçamento para dragagem de 80.000 m3, a realizar até 15 de junho, prevendo-se aí expressamente que a Taxa de Matéria Sólida da lagoa era 25%.
20. Tendo ficado estabelecidas as seguintes especificações técnicas em relação aos trabalhos a realizar: A Autora assumiu-se responsável por: O fornecimento e retirada de equipamentos; Dragagem de sedimentos; Descarga no solo através do tubo instalado pela ABB; Controle de fluxo na saída de descarga; A Ré assumiu-se responsável por: Instalação da linha de tubagem de descarga terrestre e boosters (propulsores); Batimetria antes e após os trabalhos; Alojamento do pessoal da NEMEAU; Presença de 1 ou 2 pessoas equipadas com rádio VHF 24/24 para a monitorização do bom funcionamento dos boosters (propulsores);
21. Tal documento viria a ser assinado pela Ré, com a menção “bom para acordo”.
22. Em 12 de abril de 2017, a Autora emitiu em nome da Ré uma fatura no valor de € 79.200,00, correspondente a 30% dos € 264.000,00 previstos pelo trabalho total.
23. Não obstante a emissão da referida fatura, a Ré apenas pagou à Autora € 39.600,00.
24. Não obstante a Autora ter estado em obra entre 9 de maio de 2017 e 14 de junho de 2017, não logrou dragar nem 10% do que se comprometeu dragar nesse período.
25. Verificando as partes que o volume de sedimentos dragado havia sido muito menor do que aquele que estava previsto, representantes da Autora (Sr. BB) e da Ré (Sr. DD e Sr. EE) agendaram uma reunião, que viria a realizar-se no dia 18 de junho de 2017.
26. No decurso desta reunião foi apresentado pelo sr. DD, em representação da Ré, um documento que continha o resultado de 46 amostras/ensaios à lagoa e dos quais resultava, entre outras informações, a Taxa de Matéria Sólida da lagoa de 75,71%.
27. No final do mês junho de 2017, a Autora enviou para a Ré uma apresentação em formato PowerPoint, na qual, fazendo um balanço dos problemas verificados, apresentou uma nova proposta de trabalhos, que deveriam decorrer de 15 de setembro a 31 de dezembro de 2017.
28. Proposta essa que viria a ser rejeitada pela Ré, que prescindiu dos serviços da Autora.
29. A A. contratou os seguintes serviços às seguintes entidades, num total de € 136.137,16:
Aluguer de equipamentos, durante 45 dias, à sociedade francesa “LA CHARENTE MARITIME”, pelo valor de € 28.799,82; Transporte de equipamentos, pela sociedade portuguesa “LASO”, pelo valor de € 7.000,00; Transporte de equipamentos, pela sociedade francesa “I-TO”, pelo valor de € 10.100,00; Transporte de equipamentos, pela sociedade “AUTAA”, pelo valor de € 2.850,00; Transporte de equipamentos, pela sociedade francesa “I-TO”, pelo valor de € 8.000,00; Aluguer de equipamentos à sociedade francesa “CUBISYSTEM”, pelo valor de 904,00; Batimetria e consumíveis à sociedade francesa “SOPHYE”, pelo valor de € 10.157,84; Transporte de equipamentos à sociedade francesa “XYLEM”, pelo valor de € 5.000,00; Aluguer e transporte de equipamentos a sociedade francesa “XYLEM”, pelo valor de € 34.296,52; Aluguer e transporte de equipamentos a sociedade francesa “XYLEM”, pelo valor de € 18.776,12; Mão-de-obra externa, contratada à empresa francesa “TPM ENVIRONNEMENT”, pelo valor de € 10.252,86.
30. A Autora mobilizou os meios humanos necessários, de França para Portugal, em relação aos quais teve uma despesa a título de salários no valor de € 4.862,84.
31. A Autora começou os trabalhos no dia 9 de maio de 2017 e cessou os trabalhos no dia 14 de junho de 2017, tendo trabalhado um total de 240 horas.
32. Se a lagoa tivesse efetivamente uma Taxa de Matéria Sólida de 25%, como a Ré informou a Autora, na normalidade das circunstâncias, esta teria logrado dragar os 80.000 m3 a que se obrigou, no prazo convencionado.
33. Se a Ré tivesse informado a Autora que a Taxa de Matéria Sólida era de 75%, na normalidade das circunstâncias, esta igualmente teria logrado dragar os 80.000 m3 com que se comprometeu, no prazo convencionado, na certeza, porém, de que, o valor do orçamento que, nesse caso, seria apresentado, teria em consideração os meios técnicos e humanos adequados a essa Taxa de Matéria Sólida e seria, inevitavelmente, superior. ao nível dos equipamentos e meios humanos selecionados, contratados e mobilizados para proceder à dragagem.
34. A Autora emitiu em nome da Ré uma fatura no valor de € 141.000,00, ao qual foi descontado o valor já pago pela Ré com a adjudicação dos trabalhos, no montante de € 39.600,00 com a seguinte discriminação de serviços: Tubagens e acessórios de apoio: Aluguer; Transporte; Prestações; Dragas: Aluguer; Transporte; Batimetria; Bandeja flutuante; Salários de empregados da Autora; Contratação externa de mão-de-obra.
35. A Autora investiu em diversos meios, materiais e humanos, no planeamento e projeção das obras a realizar na 1.ª fase, investiu em diversos meios, materiais e humanos, na execução dos trabalhos da 1.ª fase, mobilizou de França, onde tem instalada a sua sede e onde exerce maioritariamente a sua atividade, diversos desses meios, materiais e humanos, comprometeu-se com entidades terceiras com vista ao aluguer de equipamentos de que não dispunha, em função da natural limitação dos meios materiais e humanos que tem ao seu dispor deixou de contratar outras obras ou projetos, enquanto empreiteira ou subempreiteira, dos quais obteria rendimentos ou lucros.
36. Antes da Autora, a Ré havia contratado a Amorasub para a execução dos trabalhos de dragagem, empresa que não conseguiu executar a totalidade dos trabalhos previstos.
37. A Autora recolheu amostras de material a dragar.
38. A Ré contratou a equipa de arqueologia que teria de acompanhar os trabalhos de dragagem, assumindo os respetivos custos, mobilizou para a obra as gruas necessárias a colocar a draga em posição de executar os trabalhos, colocou a tubagem da sua responsabilidade e forneceu à Autora combustível, com o que despendeu o montante global de € 20.745,07, dos quais € 10.319,00 correspondem a combustível.»
13. Factos julgados não provados nas instâncias
a) Na ocasião referida em 16º foi explicado ao representante da Autora a necessidade de reforço dos meios em obra, que se relacionava com a incapacidade dos meios em obra (fornecidos pela dita Amorasub) em virtude do material a dragar ser diferente do previsto no Caderno de Encargos e ter sido detetado o erro de projeto na qualificação do material a dragar.
b) Antes da data a que se reportam os factos 25º e 26º, a Ré forneceu à Autora estudos que mostram claramente que a percentagem de matéria seca ronda os 75%, nomeadamente os aludidos em 26º.
c) Antes da conclusão do contrato, a Autora verificou no local o material que estava a ser dragado e tomou conhecimento, nessa altura, que os elementos de projeto fornecidos pelo Dono de Obra estavam errados (mas não quanto à percentagem de matéria seca).
d) A Ré explicou detalhadamente à Autora as dificuldades que encontrara em obra e que a referida Amorasub não conseguia executar a totalidade dos trabalhos previstos face às diferenças de composição da matéria dragada em relação às previstas em projeto, esta empresa.
e) Já nessa data a Ré deparava-se com essa discussão junto do Dono de Obra e que ainda hoje subsiste.
f) Toda esta informação foi expressamente transmitida, presenciada e apreciada pela Autora, que sabia e sempre soube que tinha sido contratada para resolver o problema da incapacidade da Amorasub de resolver as dificuldades causadas pelo erro de projeto.
g) A Autora sabia que havia um erro de projecto e deu o seu preço assumindo esse erro.
h) Mercê do incumprimento pela Autora do contrato celebrado, o Dono de Obra resolveu o contrato celebrado com a Ré e aplicou sanções contratuais à Ré no montante global de € 549.971,54.
i) O fundamento da resolução do contrato foi a alegada incapacidade da Ré de executar os trabalhos de dragagem e, por via disso, o incumprimento dos prazos contratuais, sustentando ainda o Dono de Obra a inexistência de qualquer erro nos projetos apresentados.
j) O referido em 38º não se encontrava dentro das obrigações assumidas pela Ré.
De Direito
14. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
As questões que a recorrente coloca na revista são as seguintes:
a) Impugnação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação ...... no sentido de não admitir o recurso da matéria de facto no que concerne às alíneas a), c), d), e), f) e g), dos factos dados como não provados, por incumprimento do ónus de impugnação;
b) Impugnação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação ...... no sentido de não admitir o recurso da matéria de facto no que concerne às alíneas a), c), d), e), f) e g), dos factos dados como não provados, em razão da circunstância de a procedência de tal impugnação ser insusceptível de reverter o decidido, constituindo prática de acto inútil;
c) Impugnação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação ...... no sentido de julgar improcedente a impugnação das alíneas h), i) e j) da matéria dada como não provada em sentença.
15. Assim, quanto à primeira questão objecto do recurso, é claro que a Recorrente não concorda com o Tribunal da Relação ...... quando aquele afirma que o ónus de impugnação, mais concretamente, a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, não foi cumprido.
15.1. Na sua posição a recorrente entende ter dado cumprimento a todos os ónus relativos à impugnação da matéria de facto do art.º 640.º do CPC, nomeadamente:
- Recorrente para além de mencionar os pontos dos factos alegados nos articulados que pretendia ver dados como provados (e que não o foram), identifica com precisão as alíneas da sentença da matéria de facto dada como não provada, e que pretendia, através da interposição de recurso, ver dada como provada;
- A Recorrente identifica os pontos de facto da matéria dada como não provada que, no seu entendimento, estão incorretamente julgados e, ainda, numa lógica de complementaridade e para melhor perceção e explanação, identifica os pontos do articulado contestação que a eles se ligam;
Para sustentar a sua posição apoia-se em jurisprudência do STJ, em especial, na resultante do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 18.02.2020, no âmbito do processo n.º 333/17.7T8EPS.G1.S1, que afirma: “em sede de impugnação da decisão de facto, a especificação dos pontos que o impugnante tem por incorrectamente julgados, nos termos e para os efeitos do art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC, tanto pode consistir na indicação do artigo da base instrutória em que o facto foi inserido, quando houver lugar a ela, ou do ponto da sentença que o contemple, como ainda na própria transcrição do respectivo enunciado fáctico”(destacado nosso).
15.2. Contra-alega o recorrido dizendo que a decisão recorrida deve ser mantida, porquanto a recorrente: i) não impugnou, de qualquer modo, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à matéria de facto dada como provada; ii) não impugnou, de qualquer modo, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto aos fundamentos jurídicos da decisão; iii) não requereu, de qualquer modo, a ampliação da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à matéria de facto julgada como provada e não provada; iv) não indicou os factos cuja reapreciação pretendeu ver realizada tendo por referência os factos dados como provados e não provados na sentença recorrida, mas sim, tendo por referência os artigos alegados na respetiva contestação; v) Os pontos da matéria de facto impugnados pela Ré Recorrente tendo por referência os artigos da respetiva contestação ultrapassam, em muito, o âmbito da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à matéria de facto dada como não provada. Isto significaria que houve incumprimento do ónus de impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto. Também indica que sobre factos não constantes nem na matéria provada nem na não provada não poder haver reapreciação, mas primeiro julgamento, já que a recorrente Recorrente indicou que pretendia recorrer da matéria de facto relativa aos artigos 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 36, 37, 49, 50, 51, 52, 53, 59, 68, 73, 77, 78, 79, 80, 83 a 86 da sua Contestação, num total de 28 artigos, os quais se contrapõem aos 10 pontos da matéria de facto dada como provada. E porque não haveria correspondência entre os pontos 21, 36, 37, 49, 50, 51, 52, 53, 59, 73, 78, 80 e 84 da contestação da Recorrente e os 10 pontos da matéria de facto dada como não provada, isso só poderia significar que não houve verdadeira impugnação da matéria de facto; não se acompanha a defesa da recorrente no sentido de a referência à contestação ter um sentido meramente auxiliar.
15.3. No acórdão recorrido disse o tribunal:
“A apelante impugnou a decisão da matéria de facto, na parte em que julgou não provada a matéria dos artigos 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 36, 37, 49, 50, 51, 52, 53, 59, 68, 73, 77, 79, 80, 83 a 86 da Contestação.
A impugnação da decisão da matéria de facto, atento o disposto no art.º 640º do CPC, deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
Uma vez que actualmente a decisão da matéria de facto está integrada na sentença, tal especificação é efectuada por referência aos factos que constam da sentença, sejam os factos nela julgados provados, sejam os não provados, indicando-se os números ou alíneas que a tais factos se reportam. Efectivamente, há muito que deixou de existir base instrutória ou questionário e decisão da matéria de facto em separado da sentença, versando sobre os quesitos ou, na sua ausência, sobre os factos alegados nos articulados.
Assim, a remissão para artigos dos articulados, no caso da contestação, para que tal decisão da matéria de facto não remete, só é admissível quando se entende que da sentença não constam todos os factos que interessam à decisão da causa e se pugna pelo aditamento de outros factos oportunamente alegados.
No caso a apelante não pugna pelo aditamento de quaisquer factos que tenha alegado na sua contestação e que não tenham sido objecto de decisão (incluídos nos factos provados e não provados da sentença). (sublinhado nosso)
Consequentemente, a apelante só cumpriria o ónus que lhe é imposto indicando com precisão quais os pontos da decisão da matéria de facto, provados ou não provados, cuja decisão em seu entender é errónea, indicando aquela que pretende seja proferida, atentos os meios de prova que discrimina, e que, pelas razões que expende, importariam decisão diversa.
Percorrendo as conclusões da apelante, já que a supra referida indicação, por emissão para a contestação, em nosso entender não cumpre o assinalado ónus, depreendemos, atento o teor das conclusões VI, VII, IX, XIII e XVI, que a apelante impugna decisão na parte em que julgou não provada a factualidade vertida nas alíneas a), c), d), e), f), g), h), i) e j) do elenco dos factos não provados da sentença, concretamente: (…)”
15.4. Conhecendo.
A impugnação da matéria de facto – provada e não provada – obedece ao disposto no art.º 640.º do CPC, que indica os ónus a cumprir pelo impugnante.
Ainda que não constitua uma impugnação de matéria de facto, no sentido típico, pode o recorrente entender que a matéria de facto provada e não provada não está completa, para a boa decisão da causa, invocando essa desconformidade em recurso.
Com essa pretensão o recorrente quer ver incluídos factos alegados e sobre os quais versou o julgamento na matéria de facto, a partir de alegações e meios de prova, o que significa que o tribunal de recurso carece de ter elementos concretos sobre a indicada pretensão – quais os factos a aditar e porquê; quais os meios de prova que sustentam o aditamento.
Quando o recorrente impugna a matéria de facto não provada cumprindo os ónus do art.º 640.º apenas para tais factos e alude, genericamente, a outros constantes da contestação, sem cumprir relativamente a estes semelhantes ónus, não pode deixar de se considerar que o tribunal recorrido tinha razão. Dizer que a referência à contestação é um elemento auxiliar é apenas aceitável na exacta medida de os elementos referenciados terem correspondência com os factos correctamente impugnados, provados ou não provados.
Mas será que, no caso, foi isso que aconteceu?
Vejamos a apelação (transcrição parcial):
“13. Neste seguimento, entende a Recorrente que, em face da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, deveriam ter-se dado como provados os itens 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 36, 37, 49, 50, 51, 52, 53, 59, 68, 73, 77, 79, 80, 83 a 86 da Contestação, concluindo-se, portanto, em sentido contrário ao proferido na Douta decisão, isto é, no sentido de que o incumprimento do contrato de subempreitada é imputável à Recorrida, em virtude da violação dos deveres contratuais a que esta se encontrava adstrita, e consequentemente, de que a Recorrente não deve qualquer valor à Recorrida.
14. Posto isto, pretende a Recorrente alterar os itens 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 36, 49, 50, 51, 59, 68, 77, 78, 80, 83 a 86 da Contestação de “não provados” para “provados”.
15. Cumprindo o ónus estatuído na alínea a) do n.º 1 do art.º 640.º do C.P.Civ., os concretos pontos da factualidade não provada que a Recorrente entende que devem ser alterados para PROVADOS são os seguintes:
“a) Na ocasião referida em 16º foi explicado ao representante da Autora a necessidade de reforço dos meios em obra, que se relacionava com a incapacidade dos meios em obra (fornecidos pela dita Amorasub) em virtude do material a dragar ser diferente do previsto no Caderno de Encargos e ter sido detetado o erro de projeto na qualificação do material a dragar. (…)
c) Antes da conclusão do contrato, a Autora verificou no local o material que estava a ser dragado e tomou conhecimento, nessa altura, que os elementos de projeto fornecidos pelo Dono de Obra estavam errados (mas não quanto à percentagem de matéria seca).
d) A Ré explicou detalhadamente à Autora as dificuldades que encontrara em obra e que a referida Amorasub não conseguia executar a totalidade dos trabalhos previstos face às diferenças de composição da matéria dragada em relação às previstas.
e) Já nessa data a Ré deparava-se com essa discussão junto do Dono de Obra e que ainda hoje subsiste.
f) Toda esta informação foi expressamente transmitida, presenciada e apreciada pela Autora, que sabia e sempre soube que tinha sido contratada para resolver o problema da incapacidade da Amorasub de resolver as dificuldades causadas pelo erro de projeto.
g) A Autora sabia que havia um erro de projeto e deu o seu preço assumindo esse erro.
h) Mercê do incumprimento pela Autora do contrato celebrado, o Dono de Obra resolveu o contrato celebrado com a Ré e aplicou sanções contratuais à Ré no montante global de € 549.971,54.
(fim de transcrição da apelação)
E adiante, diz:
(transcrição da apelação)
“II.a – DA CONTRATAÇÃO DA RECORRIDA – ITENS 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 36 DA CONTESTAÇÃO:
19. A Recorrida conhecia os motivos que levaram a Recorrente a procurar os seus serviços, nomeadamente, o facto de a empresa que se encontrava a laborar antes – Amorasub – ter tido dificuldades em levar a cabo os trabalhos de dragagem, como resultado das informações do caderno de encargos não corresponderem ao que se encontrava no terreno, e por isso, haver a necessidade de adaptar os procedimentos de execução dos referidos trabalhos.
20. Assim, cumprindo o ónus imposto pela alínea b) do n.º 1 do art.º 640.º do C.P.Civ., os concretos meios probatórios, constantes no registo de gravação que impunham decisão inversa sobre os referidos factos dados como não provados – da contestação 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 36 - são:
Ficheiro áudio ......, dia 29-09-2020, tempo de áudio:01:30:21,declarações de parte da Autora, representante legal Sr. BB, designado(a) como Intérprete/BB: (…)
21. Assim, das declarações de parte retira-se que a Recorrida sabia que tinha sido contratada uma outra empresa para realizar os trabalhos de dragagem, que se encontrava a laborar antes, e que havia um problema que essa empresa não conseguia resolver.
Ainda, Ficheiro áudio ......., dia 29-09-2020, tempo de áudio 00:44:04, testemunha FF, gerente da Amorasub, designado(a) como FF: (…)
22. Ora, do depoimento da Sr. Testemunha retira-se que: a empresa que se encontrava a laborar antes da Recorrida não teve a rentabilidade esperada, o que levou à necessidade de a Recorrente contratar os serviços da Recorrida. a empresa em causa informou a Recorrente das dificuldades que enfrentou provocadas pela diferença das características da matéria a dragar. a draga escolhida pela Recorrida era distinta da draga da empresa que se encontrava a laborar antes e, segundo a testemunha, mais forte, apesar de ser outra a recomendação que resultava no caderno de encargos.
23. Assim, deverá concluir-se que a Recorrente informou a Recorrida das dificuldades sentidas e da desadequação dos instrumentos indicados no caderno de encargos, o que levou, inclusive, a Recorrida a escolher outros instrumentos para laborar, instrumentos esses mais fortes.
Ainda,
Ficheiro áudio ........, dia 10-11-2020, tempo de áudio 00:59:39, depoimento da testemunha DD, Diretor de Obra da Recorrente, designado(a) como DD:
(…)
24. Ora, do depoimento da Sr. Testemunha, em concordância com o que resultou do depoimento supra transcrito, retira-se que:
(…)
25. Assim, deverá ser dado como provado que a Recorrente informou a Recorrida das dificuldades sentidas nos trabalhos de dragagem, de que as características do material a dragar seriam diferentes das que resultavam do caderno de encargos e da desadequação dos instrumentos indicados no caderno de encargos, o que levou, inclusive, a Recorrida a escolher outros instrumentos para laborar, dado que tal se dá por assente na prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
26.Posto isto, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quando entendeu que “Em face destes depoimentos, o tribunal concluiu que a Autora não foi informada pela Ré sobre a natureza do solo e a real taxa de matéria sólida previamente à reunião de junho de 2017, tendo considerados como não provados os respetivos factos, nomeadamente e em suma que a Autora sabia que havia um erro de projeto e deu o seu preço assumindo esse erro”,
27. Devendo dar-se como provados os itens a), c), d), f) da Douta decisão, erroneamente dados como não provados.
(…)
(fim de transcrição)
Mas a recorrente também pretendia a alteração de outros factos não provados, com vista a que o tribunal os desse por demonstrados, pelo que passou a discorrer sobre os mesmos, nos seguintes termos:
(transcrição da apelação)
“II.b. – DOS ERROS DO PROJETO E RECOLHA DE AMOSTRAS – ITENS 16, 17, 21, 36, 37, 59, 68, DA CONTESTAÇÃO:
28. Como arguido, a Recorrida procedeu à recolha de amostras, tendo oportunidade para conferir os erros do projeto que lhe foi apresentado, pelo que só não obteve a informação de que necessitava para laborar porque assim não logrou – referente aos pontos c), g), da Douta decisão, dados como não provados.
29. Assim, cumprindo o ónus imposto pela alínea b) do n.º 1 do art.º 640.º do C.P.Civ., os concretos meios probatórios, constantes no registo de gravação que impunham decisão inversa sobre os referidos factos dados como não provados – 16, 17, 21, 36, 37, 59, 68, da contestação - são:
Ficheiro áudio …., dia 29-09-2020, tempo de áudio: 01:30:21, declarações de parte da Autora, representante legal Sr. BB, designado(a) como Intérprete/BB:
(…)
30.Ora, relativamente à questão em análise, do presente excerto das declarações de parte da Recorrida retira-se que:
Há contradição entre a recolha (ou não) de amostras do material a dragar, o que afeta a credibilidade das suas declarações, as quais foram essenciais para a fundamentação da Douta decisão;
Ainda assim, acaba por confirmar que houve recolha de amostras do material a dragar, mas que não procederam à sua análise, ainda que reconheça este seja um dado fundamental para a correta execução dos trabalhos.
Também no mesmo sentido, veja-se:
Ficheiro áudio ........, dia10/11/2020, tempo de áudio 00:59:28, depoimento da testemunha GG, colaborador da Recorrida, designado(a) como Intérprete/GG:
(…)
Ademais, no sentido de que a recolha de amostras do material a dragar seria para conhecer as suas verdadeiras características e, assim, adaptar o procedimento para execução dos trabalhos de dragagem, refira-se os seguintes depoimentos:
Ficheiro áudio ........, dia 10/11/2020, tempo de áudio 00:27:06, depoimento da testemunha AA, antigo funcionário da Recorrente, designado(a) como:
(…)
Por fim,
Ficheiro áudio ......., dia 10/11/2020, tempo de áudio: 00:24:04, depoimento da testemunha HH, diretor de produção da Recorrente, designado(a) como HH:
(…)
31.Em face do exposto, retira-se que:
A Recorrida recolheu amostras do local a dragar;
A Recorrida foi ao local e verificou, por si, as características do local a dragar, inclusive, a existência de gravilha, embora no caderno de encargos houvesse referência somente a areias finas;
A Recorrida não analisou as amostras que retirou do local a dragar para verificação dos pressupostos que constavam do caderno de encargos;
A Recorrida escolheu os instrumentos a utilizar na execução dos trabalhos em função das características do local, e não de acordo com o que constava no caderno de encargos;
A Recorrida verificou o local a dragar antes de apresentar orçamento para os trabalhos.
32. Posto isto, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quando entendeu que: “também foi relevante, para se aferir das dificuldades encontradas no local e das desconformidades entre o que foi comunicado aos subempreiteiros e a realidade existente na lagoa a dragar, o depoimento genuíno e espontâneo prestado por FF, gerente da firma “Amorasub”, que foi inicialmente contratada pela Ré para os trabalhos de dragagem, o qual deu conta que o terreno era muito mais duro do que o previsto no caderno de encargos (que referia ser constituído por areias e finos, enquanto que na realidade constatou que se tratava de argila muito rija), do que foi dado conta à Ré ainda antes da entrada em obra da aqui Autora. Não obstante esse conhecimento, não resulta de nenhuma das comunicações escritas mantidas entre A. e R. que esta tenha informado aquelas dessas discrepâncias. A verdadeira natureza dos resíduos a dragar foi, coincidentemente, descrita também pela testemunha GG (condutor da draga ao serviço da Autora), acrescentando que teriam levado para a obra outra máquina, se fosse do seu conhecimento o real tipo de terreno existente no local.” (destacado nosso)
33. Contrariamente, deverá ser dado como provado, atento o que resulta da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, que a Recorrida procedeu à recolha de amostras, tendo oportunidade para conferir os erros do projeto que lhe foi apresentado, - e devendo fazê-lo -, que constatou por si que as características do local a dragar, e que estas eram distintas das que resultavam do caderno de encargos e que deu o orçamento dos trabalhos e escolheu os instrumentos para executar os trabalhos com base na análise que fez às características do local.
34. Posto isto, devem dar-se como provados os itens c), g), da Douta decisão, erroneamente dados como não provados.
(fim de transcrição)
A recorrente pretendia igualmente que se alterassem factos não provados que permitisse uma diferente solução jurídica do caso, pelo que elenca um terceiro grupo de factos a serem considerados, o que fez nos seguintes termos:
(transcrição da apelação)
“II.c. – DA RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE EMPREITADA POR ATRASOS NA EXECUÇÃO DOS TRABALHOS DE DRAGAGEM – ITENS 22, 83 A 86 DA CONTESTAÇÃO
35. Ora, houve resolução do contrato de empreitada por parte do Dono de Obra, como consequência dos atrasos verificados nos trabalhos de dragagem, embora entendimento diferente tivesse sido perfilhado na Douta decisão. Vejamos,
36. Cumprindo o ónus imposto pela alínea b) do n.º 1 do art.º 640.º do C.P.Civ., os concretos meios probatórios, constantes no registo de gravação que impunham decisão inversa sobre os referidos factos dados como não provados– 22, 83 a 86 da contestação - são:
Ficheiro áudio ......, dia 10-11-2020, tempo de áudio: 00:11:20, depoimento da testemunha II, Presidente do Conselho do Dono de Obra até 2018, designado(a) como II:
(…)
37. Do depoimento da Sr. Testemunha retira-se que o Dono de Obra resolveu o contrato com a Recorrente com fundamento nos atrasos verificados nos trabalhos de dragagem.
Ainda, no mesmo sentido, menciona-se o seguinte depoimento:
Ficheiro áudio ........, dia 10-11-2020, tempo de áudio: 00:59:39, depoimento da testemunha DD, Diretor de Obra da Recorrente, designado(a) como DD:
(…)
38. Posto isto, de acordo com o que resulta da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, dúvidas não podem restar de que a resolução do contrato de empreitada por parte do Dono de Obra se deveu aos atrasos nas execuções dos trabalhos de dragagem.
39. Assim, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quando discorreu que: “os restantes factos dados como não provados (nomeadamente que o Dono de Obra tenha resolvido o contrato de empreitada e aplicado sanções contratuais mercê do incumprimento pela Autora) resultaram da ausência de prova segura e suficiente quanto aos mesmos e, ainda, da circunstância de se encontrarem em contradição com os factos provados.”
40. Posto isto, devem dar-se como provados os itens e), h), i), da Douta decisão, erroneamente dados como não provados.
(fim de transcrição)
A recorrente ainda pretendia que se efectuasse a análise dos factos não provados correspondentes à inexecução dos trabalhos acordados com a A., pelo que formula o pedido de reapreciação nos seguintes moldes:
(transcrição da apelação)
“II.d. - DA (IN)EXECUÇÃO DOS TRABALHOS – ITENS 49, 50, 51 DA CONTESTAÇÃO:
41. Ademais, a Recorrida não informou a Recorrente de que estava a ter dificuldades em laborar e de que o rendimento estaria a ser consideravelmente abaixo do que havia sido contratualizado, e, portanto, nessa sequência, de que não iria conseguir cumprir o que havia sido acordado no prazo estipulado.
42. Assim, viu-se a Recorrente completamente surpreendida com o resultado dos trabalhos de dragagens levados a cabo pela Recorrida, e perante uma situação com a qual não podia razoavelmente contar.
43. Cumprindo o ónus imposto pela alínea b) do n.º 1 do art.º 640.º do C.P.Civ., os concretos meios probatórios, constantes no registo de gravação que impunham decisão inversa sobre os referidos factos dados como não provados – 49, 50, 51 da contestação - são:
Ficheiro áudio ........, dia 10/11/2020, tempo de áudio 00:27:06, depoimento da testemunha AA, antigo funcionário da Recorrente, designado(a) como
(…)
44. Ora, do depoimento da Sr. Testemunha retira-se que:
Ao longo da execução dos trabalhos, não houve reclamações por parte da Recorrida de que estariam a ter dificuldades na execução da dragagem;
Ao longo da execução dos trabalhos, a Recorrida não alertou a Recorrente de que não iria cumprir com o que havia sido contratualizado.
As primeiras reclamações da Recorrida surgem já após a medição dos trabalhos.
No mesmo sentido, Ficheiro áudio ........, dia 10-11-2020, tempo de áudio: 00:59:39, depoimento da testemunha DD, Diretor de Obra da Recorrente, designado(a) como DD:
(…)
45. Assim, dos depoimentos supra transcritos resulta, de forma concatenada, que ao longo da execução dos trabalhos, não houve reclamações por parte da Recorrida de que estariam a ter dificuldades na execução da dragagem, que a Recorrida não alertou a Recorrente de que não iria cumprir com o que havia sido contratualizado e, que as primeiras reclamações da Recorrida surgem já após a medição dos trabalhos
(…)
47. Posto isto, do que resulta da prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, devem dar-se como provados os itens 49, 50, 51, da contestação, erroneamente dados como não provados.
(fim de transcrição)
A recorrente pretendia igualmente que se efectuasse a análise dos factos não provados correspondentes ao fornecimento de combustíveis, pelo que formula o pedido de reapreciação nos seguintes moldes:
(transcrição da apelação)
II.e. – DO FORNECIMENTO DE COMBUSTÍVEL– ITENS 77, 78 DA CONTESTAÇÃO:
48. Ademais, o fornecimento de combustível não era obrigação da Recorrente, pelo que a Recorrida encontra-se em dívida relativamente aos custos suportados com o fornecimento de combustível.
49. Assim, cumprindo o ónus imposto pela alínea b) do n.º 1 do art.º 640.º do C.P.Civ., os concretos meios probatórios, constantes no registo de gravação que impunham decisão inversa sobre os referidos factos dados como não provados – 77, 78 da contestação - são:
Ficheiro áudio ........, dia 10-11-2020, tempo de áudio: 00:59:39, depoimento da testemunha DD, Diretor de Obra da Recorrente, designado(a) como DD:
(…)
50.Ora, a Sr. Testemunha explicou de forma convincente que:
(…)
52. Vale por isto dizer que os pressupostos em que a decisão recorrida se fundamenta para dar como não provada a matéria alegada nos itens11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 36, 49, 50, 51, 59, 68, 77, 78, 80, 83 a 86 da Contestação são errados, não correspondem à realidade e resultam de conclusões precipitadas e contrárias a todos os elementos de prova constantes dos autos, assim como viola claramente as disposições legais aplicáveis.
53. De resto, em sede de audiência de discussão e julgamento não foi produzida qualquer prova que permitisse ao Tribunal a quo ter concluído aquilo que consta da sentença recorrida, bem pelo contrário, como foi possível demonstrar através dos depoimentos de várias testemunhas.
54. Em face do exposto não pode deixar de se concluir que existe manifesto erro de julgamento, em específico, erro na apreciação da prova e, por via disso, deve ser alterada a resposta dada à matéria de facto, dando-se como provada a matéria constante dositens11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 36, 49, 50, 51, 59, 68, 77, 78, 80, 83 a 86 da Contestação.
(fim de transcrição)
Nas conclusões da apelação a recorrente utiliza uma técnica equivalente, sem transcrição da prova gravada, cuja apreciação pede, indicando os factos não provados que pretende ver alterados, no sentido de serem dados por demonstrados.
O cumprimento dos ónus indicados no art.º 640.º do CPC está, por força da leitura conjugada da alegação e das conclusões, respeitado.
Assim, da apreciação que se efectuou não se conseguiu concluir no sentido proposto pelo acórdão recorrido, nem pela contra-alegação da recorrida.
A indicação efectuada pela recorrente relativa à ligação entre os factos a dar como provados a partir da contestação não aparece, a nosso ver, como meio inadmissível de se reportar aos factos não provados apurados.
Esta convicção resulta ainda do confronto que se efectuou entre os indicados artigos da contestação e os factos não provados, conforme se explicita em seguida.
Os indicados artigos da contestação tinham a seguinte versão – podendo identificar-se a sua correspondência por relação aos factos não provados, senão em todos, na sua maioria, nos termos que se indicam:
“11. Nessa ocasião, foi explicado ao representante da Autora a necessidade de reforço dos meios em obra, - (facto não provado a))
12. Que se relacionava com a incapacidade dos meios em obra (fornecidos pela dita Amorasub) em virtude do material a dragar ser diferente do previsto no Caderno de Encargos. - (facto não provado a))
13. Com efeito, após o início dos trabalhos pela Amorasub, foi detetado o erro de projeto na qualificação do material a dragar, designadamente a existência de mais lodo daquele que inicialmente estava previsto. (facto não provado a))
16. De todo o modo, antes da conclusão do contrato, a Autora verificou no local o material que estava a ser dragado. - (facto não provado c))
17. E tomou conhecimento, nessa altura, que os elementos de projeto fornecidos pelo Dono de Obra estavam errados (mas não quanto à percentagem de matéria seca). - (facto não provado c))
18. A Ré explicou detalhadamente à Autora as dificuldades que encontrara em obra, - (facto não provado d))
19. E que inicialmente havia contratado a Amorasub para a execução da totalidade dos trabalhos de dragagem, (facto não provado f))
20. Mas que face às diferenças de composição da matéria dragada em relação às previstas em projeto, esta empresa não conseguia executar a totalidade dos trabalhos previstos. - (facto não provado d))
21. Por esse motivo, dois dias depois, a Autora apresentou-se em obra e recolheu ela própria amostras do material que estava a ser dragado e ainda daquele que era suposto vir a dragar.
23. Toda esta informação foi expressamente transmitida, presenciada e apreciada pela Autora, - (facto não provado f))
24. Que sabia e sempre soube que tinha sido contratada para resolver o problema da incapacidade da Amorasub de resolver as dificuldades causadas pelo erro de projeto. (facto não provado f))
36. Antes da fixação das condições contratuais, a Autora quis vir conhecer e analisar as condições de execução dos trabalhos. (facto não provado f))
Com efeito,
37. No dia 10 de Abril a Autora apresentou-se, novamente, em obra reunindo com os funcionários da Ré, para verificar as condições de execução dos trabalhos. (facto não provado f))
49. Entre esse dia 9 de Maio e o dia 14 de junho, a Autora não apresentou qualquer reclamação à Ré, (facto não provado f))
50. Nem tão pouco referiu ter alguma vez encontrado condições diferentes às esperadas… (facto não provado f))
51. Nem invocou qualquer erro dos elementos fornecidos! (facto não provado f))
52. No dia 14 de junho, o Dono de Obra ordenou a paragem de dragagem, tal como previsto. (facto não provado f))
53. De resto, esta era uma condição imposta pelo Caderno de Encargos e que era do inteiro conhecimento da Autora. (facto não provado f))
59. A Autora revelou-se manifestamente incapaz de executar os trabalhos contratados.
68. A Autora sabia, pois, que havia um erro no projeto e deu o seu preço assumindo esse erro! (facto não provado g))
79. A esse valor terá ainda de ser somado o valor de 21.304,80€, correspondente à diferença entre o pagamento efetuado pela Ré (39.6000,00€) e o valor dos trabalhos executados pela Autora e medidos em obra (18.295,20€).
80. Assim, deve a Autora à Ré a quantia global de 42.049,87€.
83. Mercê do incumprimento pela Autora do contrato celebrado, o Dono de Obra resolveu o contrato celebrado com a Ré e aplicou sanções contratuais à Ré no montante global de € 549.971,54 (quinhentos e quarenta e nove mil novecentos e setenta e um euros e cinquenta e quatro cêntimos). (facto não provado i))
84. A Ré impugnou as penalidades contratuais, encontrando-se a correr termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal ...... o processo 377/18.... no montante de 225.488,33 € e pelo Tribunal Administrativo e Fiscal ....... os processos 1224/17.... e 1100/17...., respetivamente nos montantes de 60.496,87 €, 263.986,34 €
85. O fundamento da resolução do contrato foi a alegada incapacidade da Ré de executar os trabalhos de dragagem e, por via disso, o incumprimento dos prazos contratuais. (facto não provado i))
86. Sustenta ainda o Dono de Obra a inexistência de qualquer erro nos projetos apresentados.
16. Pelas considerações efectuadas é de concluir que não existiam motivos para que a apreciação da matéria de facto não provada não tivesse sido reapreciada pelo Tribunal recorrido, com este fundamento, o que determina a necessidade de se anular o acórdão recorrido, nessa parte, determinando que se proceda à reapreciação omitida.
Ainda assim, porque este não foi o único fundamento invocado pelo tribunal recorrido para não proceder à reapreciação da matéria de facto relativa às indicadas alíneas dos factos não provados, porquanto, mais adiante, se vem a perceber que, no entender do tribunal, a reapreciação em causa seria inútil, por não poder reverter a solução jurídica que devesse ser dada ao caso, cumpre analisar a questão, o que vamos ver no ponto seguinte, que se prende com a segunda questão do recurso.
17. No que se reporta à segunda questão, diz a recorrente que a decisão recorrida parte de um pressuposto que não pode ser tido por válido, porquanto com a impugnação da matéria de facto suscitada no recurso era pretensão da Recorrente que se desse como provada toda a matéria de facto discutida nos autos que foi dada como não provada e, sobre a qual, naturalmente, não houve qualquer fundamentação jurídica por parte do Tribunal da 1.ª instância, o que significaria uma reanálise do direito aplicado, não se podendo considerar, em absoluto, que a decisão jurídica seria a mesma e que não foi impugnada.
17.1. Contra-alega o recorrido a decisão do Tribunal da Relação está certa porque: i) quanto à parte da matéria de facto não impugnada, a mesma transitou em julgado, já não podendo ser modificada; ii) os fundamentos jurídicos da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância não foram igualmente impugnados; iii) os fundamentos jurídicos da decisão proferida em 1.ª Instância não se encontram de alguma forma dependentes da decisão proferida quanto aos factos dados como não provados; iv) impugnação da decisão da matéria de facto constitui um ato totalmente inútil à reversão do sentido da decisão proferida em 1.ª Instância.
17.2. No acórdão recorrido disse o tribunal:
“Pugna sim pela alteração da matéria de facto, julgando-se provados factos que na sentença foram julgados não provados e, em face dessa alteração, se conclua que “o incumprimento do contrato de subempreitada é imputável à Recorrida, em virtude da violação dos deveres contratuais a que esta se encontrava adstrita”, com a consequente revogação da sentença, pois que nada deve à recorrida, esta é que deve à recorrente, a quantia que pretende seja condenada a pagar-lhe.
Na sentença, em primeira linha, entendeu-se:
“Esta conduta adoptada pela Ré configura uma verdadeira resolução unilateral do contrato de empreitada, sem precedência da interpelação admonitória prevista no art. 808º do Cód. Civil.
Assim, para que a resolução unilateral dispense a necessidade do recurso ao mecanismo da interpelação admonitória e, mesmo assim, possa considerar-se lícita mostra-se necessária a existência de:
a) impossibilidade culposa de cumprimento da obrigação; ou
b) justa causa capaz de justificar a extinção do contrato com efeitos imediatos, convertendo a simples mora em incumprimento definitivo por perda objectiva de interesse.
No caso concreto, não ocorreu, como resulta claro da simples análise da matéria de facto, qualquer impossibilidade de cumprimento da prestação de qualquer das partes, culposa ou não (nos termos dos arts. 801º, nº 1, e 790º, nº 1, do C.C.).
Cada uma das partes, A. e R., partiu do princípio de que existia incumprimento contratual da parte contrária, reclamando a R. a não conclusão dos trabalhos no prazo estipulado e a A. a falta de informação técnica relevante.
Quanto à eventual perda objectiva de interesse na prestação, a verdade é que a própria R. não a invoca, nem alega factos que a pudessem sustentar.
Efectivamente, o facto da Autora não ter conseguido dragar até 14 de Junho nem 10% do que estava acordado não é objectivamente um motivo suficiente para a perda de interesse da R. na prestação a cargo da A..
Assim, a única possibilidade da R. poder operar a resolução contratual com justa causa seria, apenas, mediante a formalização de uma intimação para o cumprimento em prazo razoavelmente fixado para o efeito e com a devida cominação, o que, como vimos, não foi feito.
Pelo que a eventual mora da A. invocada pela R. não se converteu em incumprimento definitivo, não assistindo a esta última o direito de resolver o contrato de empreitada em causa.»
(…) Voltando ao caminho que nos encontrávamos a trilhar, nos factos provados e, mesmo, da própria alegação da Ré não resulta que a resolução contratual operada unilateralmente pela Ré (que decidiu pura e simplesmente prescindir dos serviços da Autora) tivesse justa causa, sendo por isso ilícita.
Ora, perante esta conduta, a R. manifestou de forma inequívoca não ter intenção de cumprir de forma definitiva o contrato.
E, atento tudo quanto se expôs, não restam dúvidas de que este incumprimento se tem de considerar imputável à R. e culposo, já que não foi ilidida a presunção do art. 799º, do Cód. Civil.
Donde, é de concluir que a responsabilidade pelo incumprimento contratual é de imputar exclusivamente à Ré, assistindo à Autora o direito a ser indemnizada pelos prejuízos por si sofridos, improcedendo ao invés a reconvenção na parte respeitante aos alegados prejuízos decorrentes do invocado incumprimento da Autora.» (sublinhado nosso)
Do exposto resulta que a pretendida alteração da matéria de facto [excepto no tocante ao facto da al. j)], em nada colide com a solução jurídica do pleito, pois as demais questões jurídicas abordadas na sentença (existência de mora ou qualquer outro incumprimento das obrigações decorrentes do contrato imputáveis à autora) apenas o são subsidiariamente ou acessoriamente como decorre da seguinte texto: “Acresce, ainda, que ao contrário do que defende a Ré nem a simples mora no cumprimento contratual pode ser imputada à Autora”…).
Assim, a factualidade que se pretende ver provada [excepto a da já referida al. j)] em nada contende com o decidido em matéria de direito (decisão que a apelante não impugna de “per se”).
O que torna inútil a reapreciação da prova no tocante aos pontos da decisão da matéria de facto constantes das a), c), d), e), f) e g), pois, mesmo que provados, apenas implicariam que a autora se encontrasse em mora no cumprimento da obrigação contratualmente assumida, por facto a ela imputável, mas não tinha a virtualidade, de transformar tal mora em incumprimento definitivo, como bem se explana na sentença e decorre do disposto no art.º 808º do CC. Não contendendo assim com a decisão da acção e da reconvenção.
Efectivamente, a resolução do contrato, só é admissível quando assim tenha sido convencionado pelas partes ou quando ocorra um fundamento legal, correspondendo, nessa medida, ao exercício de um direito potestativo vinculado (art.º 432º n.º 1 do CC).
É fundamento legal de resolução do contrato, nos termos dos artºs. 801º n.ºs 1 e 2, 802º nº 1 e 808º do CC, a impossibilidade de cumprimento da prestação, quando geradora de incumprimento definitivo.
Considera-se existir incumprimento definitivo quando ocorre um facto que torna impossível a prestação originariamente possível (artºs 790º, 791º e 801º do CC), ou quando resultar da conversão da mora em incumprimento através da perda do interesse do credor (art.º 808º nº 1, 1ª parte), ou do facto de o devedor em mora não cumprir após interpelação admonitória em que o credor lhe fixou um prazo razoável para o cumprimento (808º nº 1, 2ª parte).
A perda do interesse do credor deve ser apreciada objectivamente, ou seja, em função das utilidades que a prestação teria para o credor. No caso em apreço a ré, ora recorrente, não invocou tal perda de interesse na prestação, muito menos o demonstrou.
Não alegada nem demonstrada a perda de interesse na prestação, deve entender- se que o contrato continua a ter interesse para as partes e, então, a mora só pode converter-se em incumprimento definitivo se a prestação não vier a ser realizada em prazo razoavelmente fixado pelo credor, mediante interpelação admonitória para o efeito.
Inexistindo interpelação para cumprir, num prazo razoavelmente fixado, a mora da subempreiteira, a ter existido, não se converteu em incumprimento definitivo.
Consequentemente, resolução do contrato (facto nº 28) sem prévia interpelação para cumprir, implica que a ré não possa exigir indemnização da subempreiteira, com fundamento em incumprimento do contrato, mantendo-se a obrigação da empreiteira de cumprir o que havia acordado no âmbito da subempreitada1.
Assim sendo, também a factualidade não provada das alíneas h) e i) do elenco dos factos não provados na sentença carece de qualquer interesse, porquanto, como já vimos, a ilicitude da resolução do contrato de subempreitada operada pela ré/reconvinte, impede-a de exigir à autora/reconvinda indemnização pelos danos decorrentes de eventual incumprimento (mora), mormente os decorrentes da indemnização que lhe venha a ser exigida pela dona da obra na sequência da resolução do contrato de empreitada a que se alude nessas alíneas.
Pelo exposto não se conhece do presente recurso, no que tange à impugnação da matéria de facto constante das alíneas a), c), d), e), f) e g), h) e i), uma vez que a eventual procedência de tal impugnação seria insusceptível de reverter o decidido na sentença, constituindo a prática de acto inútil.
De qualquer forma e, face ao alegado pela recorrente na conclusão XXIV (embora na respectiva contestação não tenha referido que essa foi a causa de cessação do contrato de subempreitada e já esteja assente sob o nº 28 que “a ré dispensou os serviços da autora”), para o caso de se entender que a matéria das alíneas h) e i), teria eventual interesse para a decisão deste recurso, sempre diremos que a ré/reconvinte não fez prova, quer da pendência dos processos a que alude no art.º 84º da contestação, quer da resolução do contrato de empreitada pela dona da obra. Efectivamente, tratando-se de contrato celebrado com “Pólis Litoral Ria de Aveiro” estava obrigatoriamente submetido à forma escrita – quer se tratasse de empreitada civil (atento o seu valor), quer, como se nos afigura, empreitada de obras públicas – cfr. artºs 26º da Lei 41/2015, de 03 de Junho, 467º e 468º do DL n.º 18/2008).
Assim sendo, é nosso entendimento que também a resolução do contrato deveria obedecer à mesma forma, quer por força do disposto no Código Civil (artigos 221º e 223º) e na Lei 41/2015 (artºs 405º e 468º nº 2), quer por assim ter sido convencionado no contrato (cláusula 17ª, a fls. 23 verso), pelo que a alegada resolução operada pela dona da obra só
por documento escrito se provaria, não sendo admissível a prova por testemunhas (art.º 393º nº 1 do CC)
Ora a recorrente não apresentou qualquer prova documental da alegada resolução.
Assim como não juntou certidão, ou mesmo cópia, referente aos processos pendentes ou que correram termos nos TAF de Aveiro e de Braga (art.º 84º da contestação).
Ainda que a prova testemunhal fosse admissível, também nesta sede a prova produzida é insuficiente.
Neste conspecto a apelante indica o depoimento de II, presidente do Conselho de Administração da dona da obra, que referiu: “Os atrasos decorreram de várias circunstâncias, recordo-me que (a draga?) tinha que estar numa determinada data na Barrinha de Esmoriz e só passados, creio eu, 3 meses é que foi lá colocada. Depois, houve realmente nos relatórios da fiscalização que nos eram… que eram … em sede de conselho de administração, de facto havia várias dificuldades no arranque da obra. E recordo-me que a ABB tinha realmente grandes dificuldades para conseguir executar as dragagens, quer por falta de dragas apropriadas, enfim, houve realmente ali muitos atrasos, de tal forma que em sede de conselho de administração, mais tarde, a ABB depois acabou por…acabámos por rescindir o contrato.”
Da leitura do decidido decorre que o tribunal entendeu não haver utilidade em reapreciar a matéria de facto relativamente às seguintes alíneas dos factos não provados: alíneas a), c), d), e), f) e g), h) e i).
Isto significa que no tocante às alíneas a), c), d), e), f) e g) houve um outro fundamento para o não conhecimento da questão suscitada no recurso que, a ser válido, pode justificar a decisão recorrida e deixar sem efeito a possibilidade do argumento relativo ao incumprimento dos ónus do art.º 640.º sem campo de aplicação.
No entender do tribunal recorrido os motivos para a não reapreciação prendem-se com a inutilidade da reapreciação face à solução jurídica possível da acção mesmo na hipótese de os factos serem dados por provados. É que o tribunal entende que a solução jurídica não poderia ser outra.
Sabendo que a recorrente pretende ver legitimada a resolução do contrato unilateralmente efectuada por si, a admitir-se que a mesma pudesse fundar-se no incumprimento do contrato pela A., seria possível considerar-se lícita a resolução?
A resposta do Tribunal foi negativa.
O eventual incumprimento pelo A. não facultaria à recorrente a possibilidade de colocar termo ao contrato nos termos em que o fez. O eventual incumprimento das obrigações da A., a existir, configuraria uma mora contratual. E a mora não equivale a incumprimento definitivo, nem o mesmo se pode ter por demonstrado a partir daquela. A possibilidade da mora se converter em incumprimento definitivo, imputável à A., e que facultasse à recorrente a resolução do contrato envolveria ou a interpelação admonitória – que não houve – ou a perda do interesse objectivo na prestação – que não vem alegado, nem se encontram nos autos elementos objectivos dos quais se possa deduzir.
Ainda que este raciocínio não possa ser completamente afastado, não se pode deixar de equacionar a resolução do caso submetido ao tribunal em todas as vertentes jurídicas potenciais, à luz dos factos alegados, e das soluções plausíveis à luz do Direito.
É de admitir que a consideração dos factos não provados como passando a ser provados pudesse redundar num diverso enquadramento jurídico, legitimador da actuação da recorrente, ao resolver o contrato, nomeadamente por ser pensável a aplicação do fundamento da justa causa para a resolução aplicável ao contrato dos autos, como reacção lícita à inexigibilidade da subsistência da relação contratual, situação que tem merecido apoio jurisprudencial no STJ (vide, p. ex., os acórdãos do STJ de 19 de Junho de 2008 — processo n.º 08B1079 —, de 11 de Fevereiro de 2015 — processo n.º 2434/12.9T2AVR.C1.S1 —, de 12 de Janeiro de 2017 — processo n.º 40/13.0TBBBR.C1.S1 —, de 17 de Maio de 2018 — processo n.º 567/11.8TVLSB.L1.S2 — ou de 17 de Outubro de 2019 — processo n.º 25097/17.0T8PRT.P1.S1) e que não se desenvolvem na mesma linha de solução jurídica da decisão recorrida.
Não é assim inequívoca a inutilidade, o que justifica que se deva considerar que o anterior argumento no sentido da necessidade de anular o acórdão recorrido deva ser decretada.
18. Quanto à terceira questão objecto do recurso: impugnação da decisão proferida pelo Tribunal da Relação ...... no sentido de julgar improcedente a impugnação das alíneas h), i) e j) da matéria dada como não provada em sentença.
O recorrente entende que a decisão proferida está eivada de erro de julgamento e aplicação de lei.
18.1. Contra-alega o recorrido que, nesta parte, o recurso nem deve ser admitido, porque com a sua alegação a recorrente pretende que o STJ altere a matéria de facto quando a lei não permite que este tribunal conheça deste tipo de questões e, nas situações específicas em que pode analisar a matéria de facto, faltarão os pressupostos legalmente exigidos: a Recorrente não indicou nenhum meio de prova cuja força probatória, imposta por lei, tivesse sido alegadamente violada pelo Venerando Tribunal recorrido.
18.2. A questão em análise envolve um olhar autónomo sobre os factos das alíneas h) e i) dos factos não provados.
Quanto a estes, como já se deixou transcrito, o acórdão recorrido entrou na análise da questão suscitada, procedendo à reapreciação da matéria.
Mas o resultado foi: não há que alterar os factos não provados, porque: i) alegada resolução operada pela dona da obra só por documento escrito se provaria, não sendo admissível a prova por testemunhas; ii) a recorrente não apresentou qualquer prova documental da alegada resolução; iii) não juntou certidão, ou mesmo cópia, referente aos processos pendentes ou que correram termos nos TAF de Aveiro e de Braga; iv) Ainda que a prova testemunhal fosse admissível, também nesta sede a prova produzida é insuficiente.
Tendo ocorrido reapreciação da matéria de facto, não pode o STJ imiscuir-se na avaliação realizada pelo tribunal recorrido senão nas situações previstas na lei (art.º 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3 do CPC) – se o tribunal deu como provado facto que não podia ser provado senão por meio de prova com força probatória fixada sem esse meio; se o tribunal deixou de respeitar a força probatória específica de algum meio de prova com força legal.
Nenhuma das duas situações está em causa, pelo que não pode o STJ alterar a decisão do tribunal recorrido, com a fundamentação que este apresentou para não alterar a matéria não provada.
18.3. Já quanto ao facto da alínea j), a decisão recorrida diz:
(transcrição)
“A única matéria de facto, objecto de impugnação, que, em nosso entender tem interesse é a da alínea J): “O referido em 38º não se encontrava dentro das obrigações assumidas pela Ré”.
Efectivamente, tendo-se provado (facto nº 38) que a ré forneceu à autora combustível, com o que despendeu o montante €10.319,00, se não lhe incumbia tal fornecimento, então tem um crédito sobre a autora nesse exacto valor.
Para a prova desta matéria a apelante indica o depoimento de DD, Director de Obra da recorrente, que referiu ter a ré fornecido gasóleo, cerca de 10.000L e, que a testemunha saiba, não pagou.
Não indica a apelante qualquer outro meio de prova, sendo certo que, se o fornecimento do gasóleo não era obrigação da ré e apenas o fez para facilitar a questão do abastecimento, então deveria ter emitido e enviado à autora as pertinentes facturas.
Ora, nenhuma factura relativa ao combustível foi emitida pela ré e enviada à autora.
Nem foi apresentado qualquer registo das quantidades fornecidas, que, pelo menos, indicie que esse fornecimento entraria nas contas entre a autora e a ré, sendo lançado a débito na conta daquela.
Por outro lado, a testemunha FF (sócio gerente da anterior subempreiteira) disse: “… porque eles, no nosso contrato, o combustível era da responsabilidade deles e eles disseram que não forneciam mais combustível nem nada”.
Assim, sendo o contrato omisso nesta matéria, inexistindo qualquer factura ou registo da ré relativamente às quantidades e preços do combustível que forneceu à autora e tendo em conta o que já fora praticado com a anterior subempreiteira, entendemos que a ré não logrou provar que era sobre a autora que recaía esta obrigação.”
18.3.1. A decisão recorrida envolveu a reapreciação da matéria de facto não provada, sustentando a sua manutenção como não provada, porque os meios de prova existentes não permitiram ao tribunal concluir noutro sentido.
Valem aqui as mesmas considerações expostas sobre a reapreciação dos factos das alíneas h) e i) - não pode o STJ imiscuir-se na avaliação realizada pelo tribunal recorrido senão nas situações previstas na lei – se o tribunal deu como provado facto que não podia ser provado senão por meio de prova com força probatória fixada; se o tribunal deixou de respeitar a força probatória específica de algum meio de prova com força legal. Nenhuma das duas situações está em causa, pelo que não pode o STJ alterar a decisão do tribunal recorrido, com a fundamentação que este apresentou para não alterar a matéria não provada.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, anula-se a decisão recorrida, na parte em que a mesma recusou a reapreciação da matéria de facto respeitante às alíneas a), c), d), e), f) e g), e não se conhece do objecto do recurso na parte em que ocorreu reapreciação dos factos não provados relativos às alíneas h), i) e j).
Custas pela recorrente e pelo recorrido, na proporção de 1/3 para a primeira e 2/3 para o segundo, atento o decaimento parcial, com dispensa do remanescente da taxa de justiça, fundado na não complexidade do recurso analisado e no comportamento das partes.
Lisboa, 19 de Outubro de 2021
Fátima Gomes (relatora)
Oliveira Abreu
Nuno Pinto Oliveira