EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
INDEMNIZAÇÃO CIVIL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CONDENAÇÃO
Sumário

I - O tribunal deu como provado o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de injúrias e por duas vezes e só não avançou para a condenação criminal por ausência de acusação particular.
II - O ilícito extracontratual está demonstrado, justificando-se a condenação cível do arguido pelas injúrias proferidas contra a assistente.
(Sumário elaborado pelo relator, com numeração da nossa autoria)

Texto Integral

Processo n º 465/20.4PDVNG.P1

Acórdão, julgado em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório.
B…, arguido nos autos, ora recorrente, foi absolvido da prática do crime de violência doméstica, em autoria imediata e na forma consumada, de que vem acusado no processo comum singular a correr termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia-J2;
Convalidou o Tribunal “a quo” o crime de violência doméstica em dois crimes de injúria e, consequentemente, declarou a ilegitimidade do MP para promover o procedimento criminal contra o arguido pela prática, a 12 de março de 2019 e a de novembro de 2020, de dois crimes de injúria, em autoria imediata na forma consumada, declarando extinto o procedimento criminal.
Todavia, relativamente ao pedido de indemnização civil, decidiu condenar o arguido no pagamento, à assistente, no valor de 400 EUR (quatrocentos euros) a título de danos não patrimoniais, não se conformando com tal decisão interpôs o arguido recurso.
Alega em síntese que:
“44. Nesta conformidade, estabelece o art. 377.º, n.º 1 do CPP: “ “1- A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 82.º
45. No caso em análise, vislumbra-se que o Tribunal recorrido atentou o n.º 1 do citado artigo 377.º, pois o que resulta da sentença é que foi entendido que, absolvido o arguido quanto aos ilícitos criminais que lhe foram imputados, havia mais a fazer, nomeadamente, proferir a condenação quanto ao pedido civil.
46. O que se extrai da sentença é essa conclusão, pois mais não se diz do que:
“(...) absolver o arguido B… da prática do crime de violência doméstica, em autoria imediata e na forma consumada, de que vem acusado. Declarar a ilegitimidade do MP para promover procedimento criminal contra o arguido pela prática de dois crimes de injúria (...) declarando extinto o procedimento criminal. Condenar o arguido no pagamento, à assistente, do valor de 400,00 EUR (quatrocentos euros) a título de danos não patrimoniais;
47. Ora, é certo que o referido artigo 377.º n.º 1, não consente de que a absolvição criminal tenha como consequência necessária a absolvição quanto ao pedido civil, pois preceitua que a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado.
48. Esse juízo – sobre revelar-se ou não fundado o pedido de indemnização civil deduzido – foi totalmente omitido pelo Tribunal recorrido.
49. De acordo com o princípio da adesão que vigora no nosso sistema de processo penal, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o Tribunal Civil, nos casos previstos na lei (art. 71.º do CPP).
50. Assim, a causa de pedir na ação cível conexa com a criminalidade é sempre a responsabilidade civil extracontratual (pois que fundada na prática de um crime e não no incumprimento contratual) e não qualquer outra fonte de obrigações, como a responsabilidade civil contratual ou o enriquecimento sem causa.
51. Todavia, não significa que no caso de absolvição penal, não possa ocorrer condenação no processo com base em responsabilidade pelo risco.
52. Daqui resulta que o pedido cível foi deduzido pela demandante contra o arguido, ao abrigo do princípio da adesão previsto no artigo 71.º do CPP, com fundamento no cometimento de um ilícito (criminal) pelo segundo.
53. Conforme estabelecido no Assento n.º 7/99, do STJ, de 17 de junho de 1999 – atualmente com valor de Ac. Uniformizador de Jurisprudência – no âmbito do processo penal, a condenação em indemnização civil só pode ser sustentada em responsabilidade extracontratual ou aquiliana do demandado.
54. Ora, sendo o aqui arguido e demandado absolvido do crime por que vinha acusado, por não se ter demonstrado que o mesmo tivesse protagonizado a atuação ilícita que lhe era assacada, também não estão verificados os pressupostos do direito à indemnização exercido pela Demandante Cível, fundado na responsabilidade de tal natureza, nos termos previstos nos artigos 483.º e ss do CC.
55. Assim, e porque falecem os pressupostos da responsabilidade civil extra contratual, de acordo com o princípio geral plasmado no artigo 483.º, n.º 1 do CC – a prática de um facto ilícito
56. Ou seja, por se ter considerado que o demandado/arguido não praticou qualquer acto ilícito e culposo que fosse causa adequada dos danos alegadamente sofridos, não estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito – impõe-se a revogação da sentença recorrida, também na parte em que condenou o arguido a pagar à assistente a importância 400 EUR a título de indemnização por danos não patrimoniais, devendo o arguido ser absolvido do pedido cível formulado.
57. Como se diz no Ac. do STJ, de 11-07-2019, processo n.º 1203/16.1T9VNG.P1.S1 : «(…) no plano do artigo 377.°, n.º 1, do CPP, pedido fundado significará pedido que tem a base, que pode ter por fundamento ilícito civil gerador de dano, fora do quadro de responsabilidade criminal, derivando de ilícito civil extracontratual ou de caso de responsabilidade objectiva. Enquanto o artigo 71.° pressupõe sempre a prática e condenação por um crime, no artigo 377.°, sendo caso de absolvição, prescindindo o facto gerador de responsabilidade de enquadramento criminal, o pedido continuará a ancorar-se noutro quadro de responsabilidade, em fundamento que poderá ser ilícito civil - responsabilidade extra contratual ou aquiliana - ou responsabilidade objectiva.»
58. Veja-se, também, o acórdão do S.T.J., de 10-07-2008, proferido no processo n.º 1410/08 - 3.ª Secção (08P1410) seguido de perto no acórdão do mesmo Relator, de 14-07-2010, no processo n.º 203/99.9TBVRL.P1.S1-A: «Deste modo, se o arguido for absolvido de um crime, e se subsistir, apesar da absolvição, uma base factual com autonomia que suscite, ou permita suscitar, outros níveis de apreciação da normatividade como pressuposto ou fonte de indemnização civil (autonomia qualitativa dos pressupostos), haverá que considerar o pedido de reparação civil (dependência ou adesão especificamente processual) que se possa fundamentar nos mesmos factos – seja responsabilidade por facto ilícito, seja responsabilidade pelo risco (cfr., v. g., Acs. do STJ de 25/1/96. CJ (STJ), IV, t. 1, p. 89; de 2/4/98, CJ (STJ), VI, t. 2, p. 179).»
59. Nessa ordem de considerações e de hipóteses extensivas da ação penal, se aceita, associadamente a uma razão de justiça e de economia processual, que, em caso de absolvição, o tribunal, no enxerto cível deduzido, possa conhecer da responsabilidade civil por facto ilícito extra-contratual ou pelo risco – art. 377.º, n.º1 do CPP (como se decidiu no Ac. do STJ de 14-04-2002, in CJSTJ, XI, T II, pág. 171.
60. Conclui-se e reitera-se que o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Sendo o arguido absolvido desse crime, o pedido de indemnização civil formulado só poderá ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco.
61. In casu, como já foi referido, a sentença recorrida absolve o arguido do crime pela qual vem acusado, extinguindo o procedimento criminal quanto ao crime de injúria, pelo que não sendo o arguido acusado de qualquer ilícito criminal, deveria o Tribunal a quo absolver o arguido do pedido de indemnização civil.
62. Relativamente à quantificação de 400€ de indemnização tida por excessiva, verifica-se que a sentença recorrida se monstra não fundamentada na lei e nos padrões seguidos pela jurisprudência. Assim, o valor atribuído merece censura.
63. Atento à situação de vida do demandado, com dois filhos menores, com um rendimento escasso e exíguo (186EUR-RSI), “condenar” o arguido a pagar 400 EUR de indemnização é colocá-lo a si e ao seu agregado familiar em situação de maior e poderá mesmo não ser passível de ser pago.
64. Assim e tendo em consideração os valores que vêm a ser fixados pela jurisprudência, tendo em consideração o teor das expressões proferidas que o Tribunal a quo deu como provado (pese embora, saliente-se que o mesmo Tribunal considerou extinto o aludido procedimento criminal, logo, não crime de injuria) considera-se exagerado o valor peticionado a título de danos não patrimoniais, considerando-se como um valor justo e adequado à situação concreta condenar o arguido a pagar ao demandante a quantia de quantia, de 200,00€ (duzentos euros). - Cfr. Ac. da R.C. de 22.04.93, CJ, t.2, pág. 69».
65. Ora, mercê da redução do objecto do crime com a carga desvaliosa ético- jurídica supra assinalada, na sensibilidade sócio-jurídica, afigura-se impor-se redução de 400 para 100€ do capital compensatório por danos não patrimoniais.
Nestes termos e nos melhores de direito, quer vossas excelências doutamente suprirão, se requer a v. exas. Se dignem:
A) Julgar procedente o presente recurso e, consequentemente,
B) Se dignem revogar a douta sentença no que se refere à condenação do arguido ao pagamento da quantia indemnizatória fixada a favor da ofendida no valor de €400 (quatrocentos),
C) Ainda, se dignem a substituir, em caso de condenação ao pagamento de indemnização, um valor inferior àquele que foi determinado pelo Tribunal a quo.

O M.P. a quo não respondeu assim como o Sr. PGA.

Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.
Assim:
A sentença recorrida absolve o arguido do crime pela qual vem acusado, extinguindo o procedimento criminal quanto ao crime de injúria, pelo que não sendo o arguido acusado de qualquer ilícito criminal, se deveria o Tribunal a quo absolver o arguido do pedido de indemnização civil.
Subsidiariamente, relativamente à quantificação de 400 € de indemnização é tida por excessiva.

Do enquadramento dos factos.
Factos dados como provados.
Da audiência de julgamento, e com interesse para a decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria factual:
1. O arguido B… e a assistente C… iniciaram uma relação de namoro no ano de 1995.
2. Casaram no dia 17 de Abril de 1999 e estabeleceram residência na cidade de Vila Nova de Gaia, sendo a última na Rua …, n.ᵒ …, união das freguesias de … …, em Vila Nova de Gaia.
3. Dessa união nasceu a:
- 04 de Junho de 1997, D…;
- 12 de Março de 2005, E…; e
- 27 de Setembro de 2011, F….
4. No dia 12 de Março de 2019, data de aniversário da sua filha E…, no interior da casa morada de família, o arguido proferiu contra a assistente as palavras: «Sua filha da puta».
5. Numa discussão ocorrida no dia 17 de Junho de 2020 no interior da casa morada de família, em frente aos filhos menores, quando a assistente manifestou a intenção de abandonar o lar conjugal, o arguido disse-lhe: «Se não estivessem aqui as crianças nem sei o que te fazia».
6. No momento em que a mesma se preparava para pegar no telefone fixo para chamar a polícia, o arguido escondeu-lho.
7. Aproveitando o facto do arguido se ter ausentado momentaneamente de casa, a assistente abandonou a habitação conjugal com os dois filhos menores de idade, passando a residir com os seus pais na Travessa …, n.ᵒ .., em Vila Nova de Gaia.
8. Ainda no mesmo dia, o arguido dirigiu-se para as imediações da casa dos pais da assistente, situada na Travessa …, n.ᵒ .., em …, Vila Nova de Gaia e ali se manteve algum tempo.
9. Alguns dias depois o arguido deixou um dos canídeos pertencentes a ambos na residência dos pais da assistente, apesar de saber que a referida residência não tinha condições para o acolher.
10. No dia 28 de Agosto de 2020, às 19H05, quando a assistente se deslocou à antiga casa morada de família para levantar os seus bens, o arguido apenas lhe permitiu levar um cachecol dizendo-lhe que deitara as restantes peças de roupa no lixo.
11. Em um dia não concretamente apurado, mas no mês de Setembro de 2020, quando a assistente, através do filho mais velho, pediu ao arguido o seu certificado do 9.ᵒ ano para dar início a uma formação, o mesmo recusou-se a entregar-lho com a alegação de que o deitara no lixo.
12. No dia 30 de Setembro de 2020, às 09H00, na altura em que a assistente tinha acabado de deixar o filho na escola primária do …, situada em Vila Nova de Gaia, o arguido abordou-a.
13. Quando a assistente lhe disse: «Já que estás aqui, entrega-me o certificado», o arguido esfregou a sua garganta com a mão.
14. No dia 10 de Outubro de 2020, às 18H30, quando a assistente caminhava na Avenida …, em Vila Nova de Gaia, em direcção à sua residência, situada na Travessa …, n.ᵒ .., em Vila Nova de Gaia, que arrendara no mês de Agosto de 2020, o arguido seguiu-a.
15. Quando aquela atravessou a estrada para fugir dele, o arguido disse-lhe: «Para a semana, no Tribunal, vou-te tirar os filhos».
16. No dia 23 de Outubro de 2020, às 17H50, quando a assistente saiu da camioneta na paragem da Avenida …, em …, Vila Nova de Gaia, o arguido, que a esperava, abordou-a.
17. Com medo do arguido, a assistente correu em direcção ao posto de abastecimento de combustíveis da «Galp», ali existente.
18. Nesse momento, o arguido puxou-a pelos braços.
19. Apesar da assistente ter gritado e fugido para o exterior do posto da «Galp», o arguido não lhe largou os braços.
20. Não obstante, a mesma conseguiu soltar-se e refugiar-se no interior da loja de conveniência do referido posto.
21. O arguido manteve-se no exterior da loja a olhar para a assistente só abandonando o local quando ela lhe disse que iria chamar a polícia.
22. No dia 02 de Novembro de 2020, o arguido esperou que a assistente levasse o filho menor de idade à escola primária do …, em …, Vila Nova de Gaia.
23. Quando a mesma caminhava na Avenida …, em …, Vila Nova de Gaia, o arguido abordou-a e disse-lhe que queria falar com ela.
24. A assistente respondeu-lhe: «não quero falar contigo. Deixa-me. Para de andar atrás de mim» e atravessou a estrada para o outro lado da rua.
25. O arguido seguiu-a e quando ela chegava ao parque de estacionamento do supermercado «G…», situado na Avenida …, em …, Vila Nova de Gaia, colocou-se à sua frente, impedindo-a de avançar, voltando a dizer-lhe que queria falar com ela.
26. Perante a recusa em aceder à sua pretensão, o arguido agarrou-lhe os braços.
27. A assistente conseguiu libertar-se e fugir para o interior do supermercado «G…».
28. O arguido manteve-se no exterior do supermercado à sua espera.
29. Com medo do arguido, a assistente telefonou ao seu irmão H… e só saiu do supermercado quando o mesmo a foi buscar.
30. De seguida a assistente dirigiu-se com o irmão ao posto policial da Polícia de Segurança Pública, situado em …, Vila Nova de Gaia, tendo sido seguida pelo arguido, acabando por ser, já no posto policial, interceptado pelo agente da Polícia de Segurança Pública.
31. No dia 07 de Novembro de 2020, às 11H15, o arguido abordou a assistente na paragem do metro da Estação …, em …., Vila Nova de Gaia e disse-lhe que ela «não tinha vergonha na cara porque não lhe deixava ver os filhos de ambos», que «era uma porca, uma badalhoca» e que «parecia uma múmia», exibindo-lhe ainda o dedo médio da mão direita, simulando o órgão genital masculino.
32. A assistente vive com um medo profundo do arguido, temendo que este atente contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida.
33. Os factos supra referidos afectaram-na, directa e necessariamente, no seu sentimento de segurança e amedrontaram-na, fazendo com que se sentisse desvalorizada e triste e vivesse em permanente desassossego, causando-lhe sentimento de insegurança, ofendendo-a na sua dignidade pessoal.
34. Ao praticar os factos descritos, o denunciado agiu com a intenção alcançada de maltratar, física e psicologicamente, a assistente e aproveitar, em alguns casos, a intimidade proporcionada pela casa morada de família, apesar de conhecer os especiais deveres de respeito que tinha para com ela devido ao projecto de vida comum que espontaneamente elegeu e ao facto de ser mãe dos seus filhos.
35. O denunciado sabia que, ao agir como descrito, atingiria a assistente na sua integridade física e psicológica.
36. O arguido quis, como conseguiu, afectar a tranquilidade e o sentimento de segurança da assistente.
37. A sua actuação foi idónea a causar na assistente, tal como causou e como o denunciado pretendeu, medo e inquietação e a limitar a sua liberdade de determinação.
38. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente e embora soubesse que praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis, não se inibiu de os concretizar.


*
Provou-se ainda que:
39. Em dias não concretamente apurados, a assistente, na sequência das discussões havidas com o arguido, dirigiu-se a este dizendo-lhe: «vai para o caralho, não me chateies».
40. Em dia não concretamente apurado, a assistente, na sequência de uma discussão com o arguido, atirou para o chão um número não concretamente apurado de pratos, partindo-os.
*
Mais se provou que o arguido:
41. Desenvolveu o seu processo de socialização no agregado familiar dos seus pais, até perfazer 20 (vinte) anos de idade, na freguesia de …, em Vila Nova de Gaia, em um ambiente de estabilidade.
42. Aos 20 (vinte) anos passou a viver com C… e com o filho mais velho do casal, D…, actualmente com 24 (vinte e quatro) anos, mantendo-se na freguesia de origem. Do casamento nasceram mais dois filhos, E… de 16 (dezasseis) anos e F… 10 (dez) anos, ambos estudantes.
43. Actualmente vive sozinho na freguesia de …, mantendo uma boa relação com os seus familiares.
44. Vive do Rendimento Social de Inserção (RSI), no valor de 189,79 EUR (cento e oitenta e nove euros e setenta e nove cêntimos), e do montante variável que aufere, fruto dos «biscates» realizados na área da construção civil.
45. É descrito como sendo um indivíduo com hábitos de trabalho, humilde e responsável, apesar de apresentar dificuldade em integrar uma ocupação profissional com carácter estável.
46. Tem o 7.ᵒ ano de escolaridade, concluído na Escola Básica … …, apresentando um percurso escolar marcado pela significativa desmotivação pelas actividades académicas, com reflexos no baixo desempenho escolar.
47. A integração no mercado de trabalho aconteceu aos 18 (dezoito) anos, na área da construção civil, em regime de economia informal. Esta situação mantém-se, encontrando-se actualmente a trabalhar com o irmão, I….
48. Há cinco meses iniciou um relacionamento afectivo com J….
49. Não possui antecedentes criminais.
Com interesse para a decisão a proferir, são os seguintes os factos não provados:
1. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no facto 5 provado, o arguido proferiu ainda as seguintes palavras em frente aos pais da assistente: «Vai para o caralho».
2. Após o abandono, pela assistente, da casa morada de família, referido no facto 7 provado, o arguido telefonou ao filho mais velho, D…, que se manteve a morar com ele e disse-lhe para avisar a mãe de que «estava mortinho por a apanhar na rua e que se a apanhasse, nem sabia o que lhe faria».
3. Mais lhe disse que iria entregar os dois canídeos, pertencentes a ambos, no canil e acusar a assistente de os ter abandonado.
4. No dia 07 de Julho de 2020 o arguido seguiu a assistente quando ela se deslocou a um supermercado situado em Vila Nova de Gaia.
5. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no facto 12 provado, o arguido disse várias vezes à assistente: «Otária. Vai-te ficar bem caro».
6. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no facto 15 provado, o arguido disse à assistente: «És uma valente merda. Não vales nada».

Conhecendo.
Relativamente a eventuais vícios de conhecimento oficioso nada há que determinar.

Enquadramento jurídico dos factos.
O tribunal a quo a propósito do objeto do presente recurso refere a certa altura Os factos 4 e 31 provados (4 – No dia 12 de Março de 2019, data de aniversário da sua filha E…, no interior da casa morada de família, o arguido proferiu contra a assistente as palavras: «Sua filha da puta»; 31 – No dia 07 de Novembro de 2020, às 11H15, o arguido abordou a assistente na paragem do metro da Estação …, em …, Vila Nova de Gaia e disse-lhe que ela «não tinha vergonha na cara porque não lhe deixava ver os filhos de ambos», que «era uma porca, uma badalhoca» e que «parecia uma múmia», exibindo-lhe ainda o dedo médio da mão direita, simulando o órgão genital masculino) integram, individualmente, a previsão normativa do artigo 181.ᵒ, n.ᵒ 1, do Código Penal, como seja a injúria, sendo punido por este crime quem, na parte importante para o caso concreto, «injuriar outra pessoa, dirigindo-lhe palavras ofensivas da sua honra ou consideração».
É um crime de dano quanto ao grau de lesão do bem jurídico e de mera actividade quanto à forma de lesão desse bem, sendo punido apenas dolosamente, porquanto a negligência não se encontra especialmente prevista (cf. o artigo 13.ᵒ do Código Penal).
Comecemos pelo facto 4 provado.
A expressão «sua filha da puta» tem, bem se percebe, uma carga injuriosa, não podendo ser considerada «apenas» como uma expressão grosseira ou de falta de civismo, ainda que proferida no âmbito de uma discussão.
É certo que existem expressões comunitariamente aceites, ou geograficamente aceites se preferirmos, contudo, a não ser que se demonstre que quem as ouve as recebe sem qualquer carga de ofensividade, é de concluir que as mesmas atingem a honra e consideração do visado.
Ora, atentos os factos provados, é seguro afirmar que o arguido, sabendo dirigir-se à assistente, lhe disse «sua filha da puta», assim atingindo «o património pessoal» desta, enxovalhando-a, bem sabendo que tal expressão comporta uma carga pejorativa para a comunidade em geral por se lhe atribuir o significado de que a mãe da visada tem comportamentos opostos ao pudor sexual.
Já no que respeita ao facto 31 provado, é igualmente seguro afirmar que as expressões «porca», «badalhoca» e «múmia», são idóneas a ofender a honra e dignidade da pessoa a quem as mesmas são dirigidas, afastando-se da «simples» falta de educação ou «expressões de mau gosto».
Por conseguinte, pode afirmar-se que o arguido, sabendo dirigir-se à assistente, lhe disse «és uma porca, uma badalhoca» e que «parecia uma múmia», assim a atingindo na sua honra, dignidade e bom nome.
Conclui-se, pois, estarem verificados os elementos do dolo do tipo: o elemento intelectual (o conhecimento das circunstâncias de facto) e o elemento volitivo (a decisão de praticar esse facto). Dito de outra maneira: o arguido conhecia e queria os elementos da factualidade típica.
Donde, uma vez não verificadas quaisquer causas de exclusão de ilicitude ou da culpa, dúvidas não restam de que o arguido, consciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei, praticou, em autoria material e na forma consumada (cf. os artigos 10.ᵒ, n.ᵒ 1, 13.ᵒ, 14.ᵒ, n.ᵒ 1, e 26.ᵒ, primeira parte, do Código Penal), dois crimes de injúria, previstos e punidos pelo artigo 181.ᵒ, n.ᵒ 1, do Código Penal.
Conclui pois, que foram cometidos dois ilícitos que tendo natureza criminal também têm natureza de ilícitos civis, pois trata-se de injúrias que ofendem os direitos de personalidade da visada ofendida e portanto não tendo origem contratual, têm origem extracontratual.
Depois mais à frente explica que só por razões de procedibilidade e legitimidade é que não procede à condenação crime referindo A falta de acusação particular e a consequente ilegitimidade do Ministério Público.
Do que resulta acima, o arguido praticou dois crimes de injúria.
O crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.ᵒ, n.ᵒ 1, do Código Penal, depende de acusação particular, nos termos conjugados dos artigos 181.ᵒ, n.ᵒ 1, e 188.ᵒ, n.ᵒ 1, do mesmo diploma, motivo pelo qual o Ministério Público não tem legitimidade para proceder criminalmente contra o arguido (cf. os artigos 48.ᵒ e 50.ᵒ, n.ᵒ 1, do Código de Processo Penal).
Compulsados os autos, constata-se que a assistente não deduziu acusação particular contra o arguido, assim devendo o procedimento criminal ser declarado extinto.
Portanto, a extinção do procedimento criminal não resulta da ausência da prática do ilícito, que se deu como provado e que tem também natureza cível extracontratual mas sim do facto de não ter existido acusação particular, constatada já após se ter convolado o crime de violência doméstica, de natureza pública, para dois crimes de natureza particular, os crimes de injúria.
Em face disto o tribunal a quo determinou:
Pedido de indemnização civil
Sob a égide do princípio da adesão e nos termos do artigo 71.ᵒ do Código de Processo Penal, a assistente deduziu pedido de indemnização civil relativamente aos danos patrimoniais e não patrimoniais que alega ter sofrido, contabilizando aqueles em 1.000,00 EUR (mil euros) e estes em 10.000,00 EUR (dez mil euros).
Ora, para se verificar a responsabilidade civil do arguido/ demandado pela prática de determinado facto ilícito típico, onde está em causa a denominada responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artigo 483.ᵒ, n.ᵒ 1, e seguintes, do Código Civil (aplicável por força do artigo 129.ᵒ do Código Penal), é necessária a verificação dos pressupostos previstos na lei civil, como seja o facto voluntário do lesante, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Também a propósito, diz o artigo 377.ᵒ, n.ᵒ 1, do Código de Processo Penal, que «A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado (…)».
Compulsados os factos provados, e ainda que o arguido deva ser absolvido dos crimes de injúria que se mostram preenchidos nos seus elementos objectivos e subjectivos, constatam-se verificados os pressupostos de que depende a responsabilização civil daquele, assim devendo o mesmo ser condenado no pagamento de uma compensação à assistente.
Na verdade, constata-se que o arguido, ao dirigir-se à assistente dizendo-lhe «sua filha da puta», mais lhe tendo dito que «é uma porca, uma badalhoca» e que «parecia uma múmia», ofendeu-a, com intenção de o fazer, na sua honra e dignidade, assim violando os direitos de personalidade da assistente.
Ora, mostrando-se causal o nexo entre tais expressões e o sentimento de desvalorização e tristeza que as mesmas expressões causaram na assistente, cabe arbitrar à mesma, ao abrigo do artigo 496.ᵒ, n.ᵒ 1, do Código Civil, uma compensação no valor de 400,00 EUR (quatrocentos euros) a título de danos não patrimoniais.
Relativamente aos danos patrimoniais, inexistindo qualquer crime que os sustente, vão os mesmos indeferidos.
Portanto, decidiu bem o tribunal a quo, não tendo razão o recorrente.
Efetivamente, com bem refere o recorrente o art. 377.º, n.º 1 do CPP estabelece: “1- A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 82.º”.
No caso em análise, vislumbra-se que o Tribunal recorrido atentou o n.º 1 do citado artigo 377.º, pois o que resulta da sentença é que foi entendido que, absolvido o arguido quanto aos ilícitos criminais que lhe foram imputados, havia mais a fazer, nomeadamente, proferir a condenação quanto ao pedido civil.
Ora, é certo que o referido artigo 377.º n.º 1, não consente de que a absolvição criminal tenha como consequência necessária a absolvição quanto ao pedido civil, pois preceitua que a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado.
Esse juízo – sobre revelar-se ou não fundado o pedido de indemnização civil deduzido não foi omitido pelo Tribunal recorrido. O tribunal a quo analisou todos os pressupostos da responsabilidade aquiliana.
De acordo com o princípio da adesão que vigora no nosso sistema de processo penal, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o Tribunal Civil, nos casos previstos na lei (art. 71.º do CPP).
Assim, a causa de pedir na ação cível conexa com a criminalidade é sempre a responsabilidade civil extracontratual (pois que fundada na prática de um crime e não no incumprimento contratual) e não qualquer outra fonte de obrigações, como a responsabilidade civil contratual ou o enriquecimento sem causa.
Todavia, não significa que no caso de absolvição penal, não possa ocorrer condenação no processo com base em responsabilidade pelo risco.
Daqui resulta que o pedido cível foi deduzido pela demandante contra o arguido, ao abrigo do princípio da adesão previsto no artigo 71.º do CPP, com fundamento no cometimento de um ilícito (criminal) pelo segundo.
Conforme estabelecido no Assento n.º 7/99, do STJ, de 17 de junho de 1999 –atualmente com valor de Ac. Uniformizador de Jurisprudência – no âmbito do processo penal, a condenação em indemnização civil só pode ser sustentada em responsabilidade extracontratual ou aquiliana do demandado.
E foi o que ocorreu. O tribunal deu como provado o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do crime de injúrias e por duas vezes e só não avançou para a condenação criminal por ausência de acusação particular. O ilícito extracontratual está demonstrado.
Bem andou o tribunal a quo.
Montante da indemnização.
Do pedido cível.
Entende o recorrente que o montante fixado e em que foi condenado de €400,00 é exagerado.

O Artigo 400.º estipula quanto ao pedido cível:
Decisões que não admitem recurso

1 - Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo;
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g) Nos demais casos previstos na lei.
2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.

Os nºs 2 e 3 regulamentam a interposição do recurso em matéria civil, expondo a regra da cisão do campo penal e civil, com eliminação do princípio da adesão, art. 403º, n 2 do CPP, mas limitando o recurso em matéria civil em função da alçada e da sucumbência. Donde resulta que não é admissível recurso da parte civil, quando o valor do pedido, não é superior à alçada do tribunal de que se recorre, ou sendo o pedido superior, o decaimento não é desfavorável em valor superior a metade da alçada.
A sucumbência (ou decaimento) é o prejuízo ou desvantagem que a decisão implica para a parte e que, por isso, se designa parte vencida; esta é, portanto, aquela a quem a decisão prejudica, que com ela sofreu gravame ou a quem ela foi desfavorável, em suma, quem perdeu...Ac STJ de fixação de jurisprudência n º 10/2015 de 14.05.2015, in DR de 26.06.2015.
Assim, atento o valor da alçada do tribunal de 1ª instância, para haver recurso para a Relação na parte cível, o pedido cível terá de ser superior a €5000,00, o que é o caso, e o decaimento/sucumbência terá de ser superior a €2.500,00, o que já não é o caso, uma vez que o arguido recorrente foi apenas condenado em 400,00€.
Em face do exposto, não pode este tribunal conhecer do pedido cível e sua quantificação por eventual excesso. Não obstante, sempre se dirá que o montante fixado se mostra equilibrado, já que o arguido não subsiste apenas do RSI.
Não estão preenchidos os requisitos, logo o recurso nesta parte em matéria cível não é de admitir e portanto de se conhecer.

Termos em que, improcede o recurso.

Decisão.
Acordam em conferência na Primeira Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido B…, mantendo a decisão revidenda.
Custas a cargo do arguido que fixo em 4 Ucs – artigo 513.º, n.º 1 do CPP.
Notifique.

Sumário:
(Da exclusiva responsabilidade do relator)
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Porto, 22 de setembro de 2021.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico