REVISTA EXCECIONAL
Sumário


I- Não se verifica, ao nível da nossa jurisprudência controvérsia que justifique a intervenção deste Tribunal a propósito de determinar se a obrigatoriedade de subsídio de férias e subsídio de Natal e a duração mínima de 22 dias de férias anuais integram as normas inderrogáveis por acordo que devem aplicar-se a uma relação de trabalho executada habitualmente em Portugal, por força do artigo 8.º n.º 1 do Regulamento Roma 1.
II- Tão-pouco estão em causa interesses de particular relevância social, não ocorrendo qualquer perturbação da consciência social em decidir-se, como se decidiu, que uma trabalhadora que executa o seu contrato em Portugal, tem direito, em regra, como mínimo legal a 22 dias de férias por ano e a receber subsídio de Natal e subsídio de férias.
III- Quem invoque a alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º, tem o ónus de indicar um Acórdão de qualquer uma das Relações ou do Supremo, já transitado em julgado e proferido no domínio da mesma legislação, que esteja em contradição com o Acórdão recorrido e de enunciar os aspetos de identidade que determinam a contradição alegada.

Texto Integral




Processo n.º 19733/19.1T8LSB.L1.S2 (revista excecional)

Acordam na Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do CPC junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,


Crewlink Ireland, Ltd., Recorrente nos presentes autos, em que é Recorrida AA, notificada do acórdão proferido pela Relação de Lisboa no âmbito deste processo, e não se conformando com o mesmo, veio, “nos termos do disposto no artigo 79.º e s. do CPT, e no artigo 671.º, n.º 1 e 672.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPC, do mesmo interpor recurso excecional de revista, com subida imediata nos próprios autos”.
A Recorrida respondeu, defendendo que a revista excecional agora interposta não é admissível, mas que, caso venha a ser admitida, não deverá proceder.
Nas suas alegações o Recorrente invoca, como já foi referido, as três alíneas do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.
A alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC prevê a admissibilidade da revista excecional quando esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Neste caso a questão com que estamos confrontados é a determinação da lei aplicável a um contrato de trabalho em que as partes acordaram na aplicação de uma lei estrangeira – a lei irlandesa – como resulta da cláusula 37.º do contrato de trabalho, mas em que a trabalhadora, enquanto tripulante de bordo, “desde 26 de outubro de 2014, que (…) está afeta à base de Lisboa por conta da Crewlink Ireland, devendo prestar a sua atividade para a Ryanair” (facto 22) e “é a partir de Lisboa que a A. efetua o seu trabalho de tripulante, iniciando habitualmente o seu período de trabalho e aqui voltando para pernoitar” (facto 38).
O Acórdão recorrido, por aplicação do artigo 8.º do Regulamento Roma I concluiu que “tendo as partes escolhido a Lei irlandesa para regular as relações contratuais entre as partes, mas verificando-se que as normas imperativas da Lei portuguesa que atribuem o direito aos subsídios de férias e de Natal conferem à trabalhadora maior proteção que a Lei irlandesa, dever-se-á aplicar a Lei portuguesa, nos termos previstos no art. 8.o, n.° l do Regulamento Roma I (CE) n.° 593/2008” (n.º 2 do sumário do Acórdão).

Para o Recorrente esta solução assentou em uma “argumentação que contraria, de forma séria e inequívoca, o disposto no Regulamento CE n.º 593/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (“Regulamento Roma I”)” (Conclusão I), uma desconsideração da natureza plurilocalizada da relação laboral em causa (Conclusão III), consubstanciando um entendimento vetusto, desligado da realidade, e contrário aos princípios do mercado europeu e de circulação de bens e pessoas e à própria regulamentação europeia, promovendo esta decisão do Tribunal a quo a desarmonização entre as diferentes jurisdições europeias e a exclusão e esvaziamento do Direito Europeu do Trabalho” (Conclusão V) e “criando um óbice à movimentação de trabalhadores de outros ordenamentos para Portugal” (Conclusão VII).

Começando por apreciar este fundamento importa ter presente que a própria letra da lei sugere inequivocamente a excecionalidade desta revista. Com efeito, terá que tratar-se de “uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”. Antes de mais, sublinhe-se que consta da matéria dada como provada nas instâncias que “em 28 de novembro de 2018 a Entidade Empregadora Crewlink Ireland, Ltd., e o SNPVAC celebraram um Acordo que veio prever a transição e futura aplicação da legislação laborai portuguesa às relações laborais entre a Entidade Empregadora e os seus trabalhadores a desempenhar funções em Portugal, como era o caso da Autora” (facto 52) e que “a partir de 01 de fevereiro de 2019 passou, efetivamente, a aplicar-se à relação laboral entre as partes a legislação laboral portuguesa” (facto 53), o que logo evidencia o interesse temporalmente circunscrito da questão.

Relativamente à aplicação do artigo 8.º n.º 1 do Regulamento Roma I, não só a doutrina tem sublinhado que o artigo 8.º do Regulamento Roma I não consagra soluções muito inovadoras relativamente ao que já resultava anteriormente do artigo 6.º da Convenção de Roma[1], como não se verifica, ao nível da nossa jurisprudência controvérsia que justifique a intervenção deste Tribunal a propósito das normas inderrogáveis por acordo que devem aplicar-se, tanto mais que sendo “a partir de Lisboa que a A. efetua o seu trabalho de tripulante, iniciando habitualmente o seu período de trabalho e aqui voltando para pernoitar” (facto 38), não subsistem dúvidas, face à jurisprudência do Tribunal de Justiça (veja-se o Acórdão de 14 de setembro de 2017, processos apensos C-168/16 e C-169/16, em que se decidiu que o conceito de base de afetação constitui um indício significativo para determinar o lugar onde o trabalhador efetua habitualmente o seu trabalho) quanto à aplicabilidade ao caso dos autos da legislação laboral portuguesa.

Relativamente à alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º não vemos que estejam em jogo, no caso concreto dos autos, interesses de particular relevância social. Também esta alínea deve ser interpretada de modo a não vulgarizar a revista excecional. Não se vê porque é que a decisão recorrida suscitaria um especial alarme ou contribuiria para descredibilizar a justiça, não havendo qualquer perturbação da consciência social em decidir, como se decidiu, que uma trabalhadora a cujo contrato ou relação de trabalho é aplicável a lei portuguesa tem direito, em regra, como mínimo legal a 22 dias de férias por ano e a receber subsídio de Natal e subsídio de férias. Sublinhe-se que também não se cria, assim, qualquer óbice à circulação de trabalhadores (Conclusão VII), tendo apenas o empregador interesse em acordar com o trabalhador, contratado inicialmente para trabalhar no estrangeiro, antes da mudança do local de trabalho habitual para Portugal, por exemplo, a distribuição da retribuição anual de modo a cumprir a norma imperativa da lei portuguesa que obriga todos os empregadores a pagar aos seus trabalhadores subsídio de férias e subsídio de Natal.

Quanto à alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º, ainda que a invoque o Recorrente não indica e tão-pouco enuncia os aspetos de identidade que determinam a contradição alegada. Com efeito, a questão sobre a qual o Tribunal recorrido se pronunciou – ou melhor, uma delas, discutindo-se também a duração legal mínima das férias – não foi a natureza jurídica dos subsídios de férias e subsídios de Natal (questão relativamente à qual o Recorrente cita jurisprudência vária), mas a imperatividade dos mesmos. E o Recorrente não invoca qualquer Acórdão, das Relações ou do Supremo, que se tenha pronunciado no sentido de serem derrogáveis por acordo as normas legais que preveem o subsídio de férias e o subsídio de Natal.

Decisão: Acorda-se em não se admitir a presente revista excecional.

Custas pelo Recorrente

Lisboa, 27 de outubro de 2021

Júlio Manuel Vieira Gomes (Relator)

Joaquim António Chambel Mourisco

Maria Paula Sá Fernandes

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[1] Cfr., por todos, PETER MANKOWSKI, Employment Contracts under Artcle 8 of the Rome I Regulation, in FRANCO FERRARI/STEFAN LEIBLE, Rome I Regulation, The Law Applicable to Contractual Obligations in Europe, sellier, European Law Publishers, Munich, 2009, p. 171: “employment contracts are definetely not the área where the Rome I Regulation brought about the most importante changes”.