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VIOLAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL
INTERESSE EM AGIR
Sumário
1. Corresponde a uma conclusão lógico-normativa que é suportada por todos os critérios inscritos nos três números do art.º 9º do Código Civil, interpretar o disposto nos artºs 2º e 3º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, com a redação que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de setembro, com o sentido de que a publicação de um simples pedido de autorização de introdução no mercado de um medicamento protegido por patente e/ou CCP titulada, como directa detentora do correspondente registo ou por via de licença, por uma entidade que interage no comércio jurídico, é suficiente para reconhecer que esta pessoa jurídica tem um efectivo e genuíno interesse em agir na acção especial destinada a impedir a violação daquele direito de propriedade intelectual. 2. E essa interpretação não apenas consubstancia a solução ético-socialmente mais acertada no que concerne à interpretação dos normativos legais reguladores dessa situação conflitual submetida ao julgamento do Tribunal, como é também aquela da qual melhor resulta a salvaguarda da segurança e a confiança jurídicas e bem assim, aquela que é mais conforme com a ética da responsabilidade que tem de ser apanágio de todos os que interagem no comércio jurídico - e que a eles tem de ser exigida porque a mesma lhes é exigível à luz dos Valores e Princípios estruturantes das Comunidades que se organizam segundo o modelo social do Estado de Direito - e com os ditames do Princípio da Proporcionalidade igualmente consagrado tanto no Ordenamento Jurídico nacional português, como no da União Europeia. 3. É ontologicamente inconcebível configurar que o Legislador, ao produzir normas legais, age levianamente e que ignora os debates existentes na Sociedade (que não apenas na Comunidade Jurídica) a propósito das questões sociais relevantes acerca das quais está a legislar. 4. Uma tal absurda e inaceitável posição viola, de uma forma ostensiva e eticamente reprovável, o ensinamento consubstanciado no n.º 3 do art.º 9º do Código Civil, no qual está escrito, como aqui se recorda aos mais desatentos, que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. 5. Consequentemente, é no mínimo ilógico (para ser brando com as palavras) entender que o Legislador concedeu expressamente ao interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior (art.º 2º da Lei n.º 62/2011, com a redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 110/2018), a possibilidade de intentar uma acção para defender esse seu direito no prazo de 30 dias a contar da publicitação na página eletrónica do INFARMED, de todos os pedidos de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamentos genéricos, mas que esse direito seria ao mesmo retirado por ser considerado que esse interessado não tem interesse em agir. 6. E o carácter incongruente do um tal entendimento torna-se ainda mais patente e evidente perante a fixação de uma tão intensa cominação contra o requerente de uma AIM como a estabelecida no n.º 2 do art.º 3º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, caso o mesmo não deduza contestação nessa acção. 7. Na verdade, só a posição sustentada por este Tribunal Superior mantida nesta deliberação traduz, com fidelidade, a vontade do Legislador expressa e inequivocamente manifestada através dos normativos que estão consubstanciados no art.º 2º e nos nºs 1 e 2 do art.º 3º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro.
Texto Integral
ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA 10ª SECÇÃO (PICRS) DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
1. Na acção declarativa com processo comum que, sob o n.º 83/20.7YHLSB, corre termos pelo actualmente designado 1º Juízo do Tribunal da Propriedade Intelectual, as Autoras pediram a condenação das Rés a:
a) Abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contenham Sitagliptina como substância activa, como única substância activa ou em associação com outras substâncias activas, incluindo, mas não apenas, os que são objecto dos pedidos de AIM melhor identificados no art. 140 da presente petição inicial, enquanto a EP 142357 e/ou o CCP 278 se encontrarem em vigor.
b) Abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contenham Sitagliptina como substância activa, como única substância activa ou em associação com outras substâncias activas, incluindo, mas não apenas, os que são objecto dos pedidos de AIM melhor identificados no art. 140 da presente petição inicial, até ao termo da vigência do CCP 339.
c) Abster-se de, em território português ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro, importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que compreendam a associação de substâncias activas Sitagliptina e Metformina, até ao termo da vigência do CCP 339.
2. Devidamente citadas as Rés contestaram a acção, invocando, nomeadamente, a falta de interesse em agir das autoras, pois os pedidos de AIM’s não traduzem violação ou ameaça de violação de qualquer patente ou CCP, e, em reconvenção, pedem a revogação da concessão do registo do CCP 339, tendo as Autoras replicado alegando nessa sua peça processual que o Ministério Público tem de ser citado nos termos do art.º 34º n.º 3 do CPI, que inexiste a excepção da falta de interesse em agir e que o CCP 339 é válido.
3. Finda a fase dos articulados, foi nessa acção proferido em 26/11/2020 o despacho saneador que tem a referência 418522, no qual, para o que releva quanto ao que a este Tribunal Superior cumpre dirimir na presente instância recursória, foi decretado o seguinte: “... É do meu conhecimento funcional que as autora intentaram uma outra acção contra as mesmas rés em que pediram que o tribunal condenasse as rés a absterem-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contenham Sitagliptina como substância activa, como única substância activa ou em associação com outras substâncias activas, incluindo, mas não apenas, os que são objecto dos pedidos de AIM, enquanto a EP 142357 e/ou o CCP 278 se encontrarem em vigor. Tal acção corre termos neste juízo sob o nº 40/20.3YHLSB, tendo sido proferida decisão em 29/10/2020 e ainda não tendo transitado em julgado. ... A excepção de litispendência importa obstar à repetição de causas e visa garantir a não prolação de decisões contraditórias sobre a mesma matéria. Por outro lado, a excepção de litispendência deve ser conhecida na acção proposta em segundo lugar, sendo critério de aferição da anterioridade o momento da citação do R para a acção. Ora, a litispendência constitui uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, conforme resulta da aplicação conjugada do disposto nos artigos 576º, 2, 577º, i), 578º, 278º, 1, e), todos do Código de Processo Civil. Pelo exposto, absolvo todas as rés da presente instância quanto ao pedido formulado na alínea a) da petição inicial e referente ao CCP 278. Registe e notifique. Custas pelo A., cfr. art. 527º do CPC.. ** Questão a decidir. Considerando a excepção supra apreciada, cumpre analisar e decidir se os pedidos de AIM com vista à introdução no mercado de medicamentos genéricos contendo as substâncias activas de “SITAGLIPTINA” e “Metformina” violam ou estão na iminência de violar a patente ou CCP das AA., concretamente a EP 11412357 e respectivo CCP e 339. * Por todo o exposto, atenta a verificação da excepção inominada de falta de interesse em agir por parte da autora, absolvem-se as rés da instância, nos termos do disposto nos arts. 278º, 1, e), e 577º do CPC. De harmonia com o disposto no art. 527º, 1, do CPC, condeno as autoras no pagamento das custas processuais. Valor da acção: € 30.000,01 (Trinta mil euros e um cêntimo). Valor do pedido reconvencional: € 30.000,01 (Trinta mil euros e um cêntimo). Registe e notifique. * Notifique as rés para, em 10 dias, esclarecerem se pretendem o prosseguimento dos autos para apreciar da eventual invalidade do CCP 339, invocada no seu pedido reconvencional.” (sic).
4. Inconformadas com essas duas decisões, as Autoras intentaram contra elas o presente recurso, pedindo que seja “... a Decisão Recorrida ... revogada e substituída por outra que, com os corretos pressupostos de facto e respetiva fundamentação, e sem os vícios de Direito nesta sede alegados, julgue improcedentes a exceção dilatória de litispendência em relação ao primeiro pedido formulado na Petição Inicial e a exceção de falta de interesse em agir em relação ao segundo e ao terceiro pedidos formulados na Petição Inicial, ordenando-se o prosseguimento dos autos quanto a todo os pedidos formulados na Petição Inicial no Tribunal a quo” (sic), formulando para sustentar essa pretensão as seguintes conclusões:
“A. O presente recurso vem interposto da Decisão Recorrida quanto (i) ao julgamento do ponto da matéria de facto seguidamente identificado, (ii) na parte em que julgou improcedente a ação absolvendo as Recorridas da instância relativamente ao primeiro pedido formulado na petição inicial por alegada verificação da exceção dilatória de litispendência e (iii) na parte em que julgou improcedente a ação absolvendo as Recorridas da instância relativamente aos segundos e terceiros pedidos formulados na petição inicial por alegada falta de interesse em agir das Recorrentes.
B. Quanto à matéria de facto: ao abrigo do disposto no artigo 662.º do CPC, deve ser retirado da lista de factos dados como não provados o facto elencado sob a letra i), porque ser absolutamente irrelevante para a decisão da causa, uma vez que a ação prevista no artigo 3.º, n.º 1 da Lei 62/2011 não tem como pressupostos a infração, ou iminência de infração, dos direitos de propriedade industrial invocados pelas Autoras.
C. Quanto à exceção dilatória de litispendência: a causa de pedir nos presentes autos decorre, nomeadamente, dos concretos pedidos de AIM publicitados no dia 6 de novembro de 2019, na página oficial do INFARMED, para medicamentos genéricos compreendo sitagliptina e metformina como substâncias ativas, ao passo que a causa de pedir na da ação que corre termos sob o n.º 40/20.3YHLSB decorre, nomeadamente, da publicitação, na página oficial do INFARMED no dia 17 de agosto de 2019, de pedidos de AIM para medicamentos genéricos compreendendo sitagliptina como substância ativa, pelo que não se encontram verificados todos os requisitos previstos no artigo 581.º, n.º 1 do CPC.
D. Ao ter julgado procedente a exceção dilatória de litispendência relativamente ao primeiro pedido formulado na petição inicial, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 581.º, n.º 1 do CPC e ainda o disposto no artigo 20.º, n.º 4 da CRP, uma vez que, ao fazê-lo, está a negar o direito de as Autoras verem apreciado o primeiro pedido formulado nos presentes autos
E. Quanto à exceção dilatória de falta de interesse em agir: o Tribunal a quo não compreendeu a natureza e os pressupostos específicos da ação preventiva consagrada no artigo 3.º da Lei 62/2011 e, em especial, que em causa não está uma providência cautelar ou uma ação de condenação reativa (pressupondo a violação de um direito), nos termos gerais do Código de Propriedade Industrial e do Código de Processo Civil.
F. A Lei 62/2011 não só permite como impõe que os titulares de direitos de propriedade industrial recorram à via judicial no prazo de trinta dias a partir da publicitação, na página oficial do INFARMED, de um pedido de AIM de um medicamento genérico, quando pretendam invocar judicialmente os referidos direitos em relação a esse medicamento.
G. A Lei 62/2011 consagra uma ação eminentemente preventiva destinada, nos próprios termos da lei, a ser proposta numa fase necessariamente anterior a qualquer violação ou ameaça iminente de violação da patente, pelo que o “interesse em agir” dos titulares de direitos de propriedade industrial deriva da simples publicitação, na página oficial do INFARMED, de um pedido de AIM de um medicamento genérico, a qual, nos termos da mesma lei, constitui a circunstância determinante do impulso processual ativo.
H. A oportunidade do impulso gerador da propositura da ação deriva de uma norma legal imperativa, a qual determina que o titular de direitos de propriedade industrial que queira invocar os seus direitos relativamente a um medicamento genérico para o qual tenha sido pedida uma AIM o deve fazer no prazo de trinta dias a contar da publicitação desse pedido na página oficial do INFARMED.
I. Foi o próprio legislador que desconsiderou a violação (atual ou iminente) dos direitos invocados como pressuposto processual, bastando-se com a publicitação de um pedido de AIM para um medicamento genérico na página oficial do INFARMED, que, assim, justifica/funda a necessidade de os titulares de patentes/certificados complementares de proteção recorrerem aos meios judiciais.
J. O pedido de AIM, formulado enquanto os direitos de propriedade industrias exercidos se encontrem em vigor, constitui prova inequívoca de que o requerente dessa AIM pretende lançar o seu medicamento no mercado e dele decorre a possibilidade de que tal lançamento se venha a fazer antes da caducidade dos referidos direitos.
K. O primeiro vício do Tribunal a quo ocorreu, de facto, logo na identificação da “questão a decidir”, uma vez que, para efeitos da ação especial prevista no artigo 3.º, n.º 1 da Lei 62/2011, não está em causa saber se os pedidos de AIM que foram publicitados na página oficial do INFARMED violam ou estão na iminência de violar os direitos de propriedade industrial das Autoras.
L. A presente ação não foi fundada na ilegalidade dos pedidos de AIM tal como apresentados pela Primeira Ré e não visa impedir as empresas de medicamentos genéricos de iniciar os procedimentos tendentes à obtenção de uma AIM, nem dificultar ou impedir concedida concessão da mesma ou a fixação do preço de venda ao público do medicamento em causa, em devido tempo.
M. O carácter iminente da ameaça de lesão do direito de patente apenas constitui pressuposto processual nas providências cautelares, nos termos das normas especiais constantes do artigo 345.º do CPI. Quanto às ações declarativas preventivas, tal requisito não existe, uma vez que ao artigo 10.º nº 3, alínea b) in fine do CPC, que delas trata, apenas exige que a sua finalidade seja a de prevenção da violação de um direito, nada aí se dizendo sobre a iminência dessa violação.
N. A referência ao artigo 103.º, n.º 1, alínea c) do CPI, que consagra a chamada ”Cláusula Bolar”, plasmada no artigo 19.º n.º 8 do Decreto-Lei n.º 176/2006, com a redação dada pelo artigo 4.º da Lei 62/2011, não passa senão de um mero lapso, porque nada tem a ver com este processo, uma vez que não se imputa às Recorridas a prática de quaisquer dos atos previstos nessas normas, nomeadamente de estudos ou ensaios necessários à obtenção de uma AIM.
O. A posição tomada pela Decisão Recorrida de que o jus prohibendi conferido pela patente às Recorrentes pelo artigo 102.º do CPI tornaria desnecessária a prolação de uma sentença que condenasse a demandada a não levar a cabo as condutas que esse titular tem o direito de impedir ignora que, no direito português, a possibilidade de recurso à ação direta é verdadeiramente excecional, apenas a ela se podendo recorrer em casos extremos, quando o recurso à via judicial for impraticável.
P. São irrelevantes e insuscetíveis de fundamentar a Decisão Recorrida todas considerações tecidas pelo Tribunal a quo a propósito da “relevância” ou da “necessidade” da ação prevista no artigo 3.º, n.º 1 da Lei 62/2011, uma vez que aos Tribunais cabe apenas julgar segundo a lei.
Q. Nos presentes autos, as Recorridas apresentaram contestação e colocaram em causa a validade do CCP 339, antecipando que não irão respeitar os direitos de propriedade industrial das Recorrentes emergentes do CCP 339 e que pretendem comercializar os seus medicamentos genéricos durante a vigência do CCP 339, o que torna ainda mais evidente a verificação do pressuposto processual em causa.
R. Ao ter absolvido as Rés da instância por alegada falta de interesse em agir das Autoras relativamente ao segundo e ao terceiro pedido, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 3.º, n.º 1 da Lei 62/2011 e ainda o disposto no artigo 203.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, no artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º 3/99 e no artigo 8.º, n.º 2 do Código Civil.
S. Quanto à caducidade de direito de ação: ao Tribunal está vedado o conhecimento da tempestividade da presente ação e do cumprimento do prazo de 30 dias previsto na Lei 62/2011, por a caducidade do direito de ação não configurar uma matéria de conhecimento oficioso e por a mesma não ter sido suscitada no decurso do processo, sob pena de violação do disposto no artigo 330.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Civil.” (sic).
5. Devidamente notificadas, as Rés/apeladas contra-alegaram, rematando essa sua peça processual, na qual não formularam quaisquer conclusões, nos seguintes termos:
“Face ao exposto, não podem restar quaisquer dúvidas que a sentença recorrida interpretou e aplicou corretamente a lei, devendo ser mantido em conformidade.
Nestes termos, resta concluir que todas as conclusões do recurso de apelação deverão ser julgadas improcedentes.
Termos em que deve o recurso interposto pelas Recorrentes ser julgado totalmente improcedente.” (sic).
6. Distribuído o recurso, o relator destes autos proferiu em 21/07/2021 decisão, que tem a referência 17129264, elaborada ao abrigo do estatuído nos artºs 652º n.º 1 c) e 656º CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho - adiante designado apenas por CPC 2013 -, cujo decreto judicial tem o seguinte teor:
“9.1. Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados nos pontos 8.1. e 8.2. da presente decisão liminar do relator, julga-seapenas muito parcialmente procedente a apelação e, consequentemente:
6.1. Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados nos pontos 3.1. e 3.2. da presente decisão do relator, julga-se procedente a apelação e, consequentemente: i)elimina-se todo o segmento do despacho saneador com valor de sentença recorrido através do qual foram elencados os factos declarados não provados na acção à qual em 1ª instância foi atribuído o n.º 83/20.7YHLSB; ii)confirma-se o despacho saneador recorrido na parte em que por referência ao processo n.º 40/20.3YHLSB, declara verificada, relativamente ao pedido formulado sob a alínea a) que remata a petição inicial dessa acção identificada em i), a excepção de litispendência e, por essa razão, absolve as Rés da instância; e iii)revoga-se o despacho saneador recorrido na parte em que absolveu as Rés da instância no que respeita aos pedidos formulados sob as alíneas b) e c) que rematam a petição inicial da acção identificada em i), decretando-se em sua substituição que nesse processo, as Autoras têm um efectivo e genuíno interesse em agir, e que, por essa razão, deverá prosseguir a tramitação desses autos para apreciação dos pedidos formulados sob as essas duas alíneas que rematam a petição inicial.
6.2. Custas pelas partes, na proporção de 3/5 para as apeladas e 2/5 para as apelantes.” (sic).
7. Por se considerarem prejudicadas com essa decisão, tanto as apelantes (Autoras da acção) como as apeladas (Rés na acção), ainda que relativamente a distintos segmentos desse julgamento criticado, reclamaram para a Conferência, tendo as segundas, que foram as que em primeiro lugar apresentaram essa pretensão, requerido que “... seja a Decisão Singular reclamada revogada e substituída por Acórdão que julgue improcedente o recurso interposto pelas Reclamadas”, tendo, por sua vez, as primeiras peticionado que seja “... julgada procedente a presente Reclamação, e, em consequência, ... (seja) a Decisão Singular parcialmente revogada, julgando-se procedente o recurso, condenando-se, em consequência, as Recorridas no pedido formulado na alínea a) da Petição Inicial”.
8. Foi dado cumprimento ao devido contraditório no que respeita a ambas as reclamações e foram colhidos os Vistos dos Ex.mos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos.
9. E são estes os contornos da lide que a este Tribunal Superior cumpre aqui e agora dirimir, desta vez em Conferência, cabendo, todavia, clarificar que, como decorre do estatuído nos nºs 3 e 4 do art.º 652º do CPC 2013, até porque, salvo nos casos previstos no art.º 678º do mesmo Código, só pode recorrer-se de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância (idem, art.º 671º n.º 1 - v. também os artºs 672º n.º 1 e 673º), quando a decisão singular reclamada é proferida ao abrigo do disposto nos artºs 652º n.º 1 c) e 656º ainda desse CPC, em termos ontológicos, o acórdão proferido em Conferência, substitui integralmente esse julgamento, com todas consequências que dessa situação decorrem, incluindo em termos de tributação pela actividade até aí realizada na instância de recurso, sendo que, o que se sublinha, a principal dessas consequências é a de que é inadmissível, através da reclamação, o alargamento da compreensão/extensão lógica do objecto do recurso.
10. Considerando o conteúdo das alegações apresentadas em Juízo pelas recorrentes, que, como é sabido, balizam/limitam o poder de cognição do Tribunal de recurso (pese embora, como nunca poderá ser esquecido, por força do disposto no n.º 3 do art.º 5º do CPC 2013, nenhum juiz esteja sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito), as questões de que, em termos lógicos e ontológicos, este Tribunal Superior tem de conhecer são as seguintes e por esta ordem: - pode ou não ser eliminado o segmento da decisão recorrida através do qual foram elencados os factos declarados não provados? - na decisão recorrida procedeu-se ou não a uma correcta interpretação e aplicação do disposto nos artºs 3º n.º 1 da Lei n.º 62/2011, 203º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, 4º n.º 1 da Lei n.º 3/99 e 8º n.º 2 e 330º nºs 1 e 2 do Código Civil?
11. E sendo esta a matéria que nesta instância recursória compete julgar, a tanto se procederá de imediato, por nada obstar a esse conhecimento e por estarem cumpridas as formalidades legalmente prescritas (artºs 652º a 670º do CPC 2013), tendo sido, repete-se, oportunamente colhidos os Vistos dos Ex.mos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos.
12. Na decisão recorrida foram declarados provados e não provados os seguintes factos:
A) Factos provados (motivação: “Atentos os documentos juntos e a não contestação dos mesmos por parte das RR, consideram-se assentes os seguintes factos com relevância para a decisão da causa”):
1 - A 1ª autora é titular da EP 1412357, com a epígrafe “beta-amino-tetrahidroimidazo (1,2-A) pirazinas e beta-aminatetra-hidrotriazolo (4,3-A) pirazinas como inibidores da dipeptidil-peptidase para o tratamento ou prevenção de diabetes”, sendo as demais autoras licenciadas da 1ª autora.
2 - A EP 1412357 foi pedida ao Instituto Europeu de Patentes em 05/07/2002.
3 - A EP 1412357 reivindica a prioridade da patente norte-americana US 303474 P, de 06/07/2001.
4 - Em Portugal foi apresentada no INPI a tradução em portuguesa do fascículo da Patente em 17/06/2006.
5 - A EP 1412357 vigorará até 05/07/2022 e tem 30 reivindicações.
6 - A Sitagliptina é o ingrediente activo que está protegida na EP 1412357.
7 - A 1ª autora é titular do CCP 278, sendo as demais autoras suas licenciadas, e o produto abrangido por este CCP é a Sitagliptina.
8 - O CCP 278 indica a EP 1412357 como a “patente base”.
9 - Do CCP 278 consta que a primeira autorização de introdução no mercado europeu de um medicamento contendo Sitagliptina como substância activa ocorreu em 21/03/2007.
10 - O CCP 278 tem uma duração inferior à patente base, pelo que não chegará a vigorar.
11 – A primeira autora é ainda titular, sendo as demais autoras suas licenciadas, do CCP nº 339, que refere que o produto abrangido é SITAGLIPTINA/(CLORIDRATO) METFORMINA, o qual se encontra protegido na patente base nº 1412357;
12 - A primeira autorização de introdução no mercado europeu de um medicamento compreendendo a associação de substâncias activas Sitagliptina e Metformina ocorreu em 08/04/2008, na Suiça, a qual produzirá efeitos a partir do dia 06/07/2022 e a sua vigência terminará em 08/04/2023;
13 - Acresce que ainda poderá vir a ser concedida às autoras uma extensão pediátrica;
14 - No mercado português os medicamentos de referência que contêm Sitagliptina como única substância activa encontram-se disponíveis na forma farmacêutica de comprimido revestido por película nas dosagens de 25mg, 50 mg e de 100mg e são comercializados sob as marcas Januvia e Xelevia;
15 - Também se encontram disponíveis no mercado português medicamentos que contêm como substâncias activas Sitagliptina em associação com Metformina, os quais são comercializados na forma farmacêutica de comprimido revestido por película, nas dosagens de 1000 mg+50 mg e 850 mg+ 50 mg sob as marcas comerciais Janumet Efficib e Velmetia;
16 - A 3ª autora é a titular das autorizações de introdução no mercado de todos os medicamentos de referência contendo Sitagliptina como substância activa (em monoterapia ou em combinação com Metformina) que são comercializados em Portugal pela filial do grupo MSD, a MSD, Lda, entre os quais se encontra o medicamento de referência Januvia (Sitagliptina) e o medicamento Janumet (Sitagliptina e Metformina);
17 - De acordo com as listas publicitadas no dia 0611/2019, na pagina electrónica do INFARMED, a 1ª ré requereu em 30/09/2019 as Autorizações de Introdução no Mercado dos medicamentos que contêm as substâncias activas «Sitagliptina» e «Metformina» cloridrato, sob a forma farmacêutica de comprimido revestido a pelicula, nas dosagens de 50mg/850 mg e 50mg/1000mg, tendo por medicamento de referência o «Janumet» das autoras;
18 - A segunda ré foi indicada como futura titular das AIM’s;
19 - As rés nunca solicitaram autorização para explorar, por qualquer meio, as invenções protegidas pela patente e pelo CCP 339;
B) Factos não provados (motivação: “Este facto é dado como não provado, pois nem sequer alegado foi pelas AA., tendo estas se limitado a dizer que «uma vez concedidas as AIM’s constituirão uma ameaça de violação dos direitos de propriedade industrial de que as Autoras são titulares».”):
i) Que as RR. tenham iniciado ou estejam em iminência de proceder ao fabrico, comercialização, armazenamento, exportação ou qualquer tipo de cedência de medicamentos que contenham a substância activa “Sitagliptina” e “Metformina”.
13. DISCUSSÃO JURÍDICA DO PLEITO.
13.1. Pode ou não ser eliminado o segmento da decisão recorrida através do qual foram elencados os factos declarados não provados?
13.1.1. Nos termos legais, a admissão de um pedido de alteração da matéria de facto declarada provada e não provada numa acção está dependente da verificação dos pressupostos estabelecidos no n.º 1 do art.º 640º do CPC 2013, no qual se estatui que:
Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
13.1.2. Todavia, na situação em apreço, o que está em causa é algo ontologicamente distinto, a saber: ter sido mencionado que um dado facto não está provado, mas, para além disso, ter sido declarado pelo próprio Julgador - ou melhor, estar por ele reconhecida essa efectiva e indesmentível realidade - que esse facto não foi sequer alegado.
13.1.3. Ora, pese embora no n.º 3 do art.º 5º do CPC 2013 esteja bem clarificado que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, menos verdadeiro não é que, de acordo com o previsto nos nºs 1 e 2 desse comando normativo, no seu julgamento, o Juiz apenas se pode servir dos factos articulados pelas partes, e bem assim tão só, dos factos instrumentais que resultem da instrução da causa, dos factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar, e dos factos notórios e daqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
13.1.4. Nestas condições, é, já de si, verdadeiramente incompreensível ser feita referência na motivação do segmento da decisão recorrida que neste momento se sindica a factos não alegados, mas, tudo isso, para depois se declarar que esses factos não estão provados.
13.1.5. Declaração essa que, realmente, nunca poderia ser proferida.
13.1.6. E, efectivamente, a ocorrência agora relatada é tão bizarra e tão desconforme ao estatuído naqueles nºs 1 e 2 do art.º 5º do CPC 2013, que só pode ser qualificada como uma inexistência jurídica, e, como tal, tendo esse segmento do texto da decisão recorrida de ser totalmente eliminado/apagado do elenco de factos a considerar na construção da solução jurídica do pleito.
13.1.7. Isto porque, repete-se, à luz do disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 5º do CPC 2013, tais palavras nunca por nunca deveriam sequer ter sido escritas.
13.1.8. E tanto basta para justificar o agora decretado, sendo dispensável a apresentação de uma mais extensa argumentação fundamentadora porque a função institucional e social dos Juízes é a de dirimir os conflitos que realmente existam e sejam submetidos ao seu julgamento e na exacta medida do que é necessário e indispensável à resolução desses conflitos ou litígios (art.º 608º n.º 2 do CPC 2013, que corresponde ao n.º 2 do art.º 660º do entretanto revogado CPC 1961), sendo sua obrigação não só não praticar como, ao mesmo tempo, impedir a prática nos processos de actos inúteis, impertinentes e dilatórios [artºs 6º n.º 1 e 130º do CPC 2013].
13.1.9. Ou seja e dito de outro modo, no exercício dessa sua actividade estatutária, devem os Juízes, no mínimo, ter sempre presente o Princípio da Parcimónia ou Navalha de Occam (ou de Ockham), postulado lógico atribuído ao frade franciscano inglês William de Ockham, que viveu entre 1287 e 1347 dC, que enuncia que “as entidades não devem ser multiplicadas além da necessidade”, sendo, neste caso, as “entidades” os passos lógicos do silogismo judicial através dos quais se opera a subsunção dos factos provados na previsão das normas que regulam a concreta relação material controvertida.
13.1.10. O que significa que nas decisões e deliberações judiciais deve ser evitado tudo o que não seja necessário ao julgamento do real e efectivo objecto do litígio submetido ao julgamento do Tribunal em qualquer das suas instâncias, mais devendo, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do art.º 8º do Código Civil, ter-se, sobremaneira, em conta o exacto conteúdo dos textos legais reguladores aplicáveis à construção da solução jurídica do pleito.
13.1.11. Portanto e em conclusão, com os fundamentos agora expostos, agora em Conferência, julga-se, no que é verdadeiramente essencial, procedente a conclusão B. das alegações de recurso das apelantes (sendo que a conclusão A. é meramente declaratória) e, consequentemente, elimina-se todo o segmento da decisão recorrida através do qual foram elencados os factos declarados não provados na acção.
13.1.12. O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.
13.2. Na decisão recorrida procedeu-se ou não a uma correcta interpretação e aplicação do disposto nos artºs 3º n.º 1 da Lei n.º 62/2011, 203º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, 4º n.º 1 da Lei n.º 3/99 e 8º n.º 2 e 330º nºs 1 e 2 do Código Civil?
13.2.1. Estabilizada que está a matéria de facto que pode servir de sustentação (e só ela o pode) à construção da solução jurídica do pleito submetido ao poder de cognição, em sede de recurso, a este Tribunal Superior, importa, então, proceder à análise crítica da fundamentação em matéria de Direito da decisão apelada (aliás, dos dois decretos judiciais transcritos no ponto 2.3. deste despacho do relator), ou melhor e mais exactamente, proceder ao escrutínio do mérito das objecções apresentadas pelas Autoras contra esse julgamento proferido em 1ª instância.
13.2.2. No cumprimento desse desiderato, é indispensável começar por sublinhar que, como tem mesmo que ser sabido (ou melhor, não pode ser ignorado - art.º 6º do Código Civil), a delimitação dos contornos da compreensão/extensão lógica da previsão/estatuição de uma qualquer norma jurídica, seja qual for a sua natureza (substantiva ou adjectiva), tem forçosamente de ser feita em conformidade com as regras interpretativas definidas no art.º 9º do Código Civil, sendo, de igual modo, inquestionável que as palavras têm um peso e um valor ontológico - razão pela qual no n.º 2 desse mesmo normativo se escreve que «Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.».
13.2.3. Postulado esse que, o que aqui vincadamente se sublinha, tem uma essencial relevância na construção da solução jurídica a dar ao conflito que deu origem aos presentes autos.
13.2.4. Acresce que, é igualmente incontroverso que, como se encontra inequivocamente estabelecido no n.º 3 do já citado art.º 9º do Código Civil, « … (na) fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados», sendo que, para a construção do conceito “solução mais acertada” - de facto e mais exactamente, a solução ética e socialmente mais acertada -, porquanto não podem ser esquecidas as exigências inscritas nos artºs 335º (proporcionalidade assente na posição que o valor ético que valida a norma e a torna em verdadeiro Direito ocupa na Hierarquia de Valores que enforma e dá consistênciaao tecido social comunitário) e 334º do mesmo Código, destacando-se neste último e sem prejuízo de haver de atender também às finalidades económicase sociais dos direitos em causa, a atenção que é dada, em primeira linha, à boa-fé e aos bons costumes (isto é, novamente e sempre, aos valores éticos que constituem os pilares estruturantes da Comunidade, que validam as normas legais produzidas pela forma prevista na Constituição e que servem de padrão aferidor quando está em causa apreciar a adequação das condutas individuais aos padrões comportamentais reputados exigíveis à vivência em Sociedade, sendo que esses padrões não podem - ou, pelo menos, não devem -, em geral, ser outros que não os que são típicos de um qualquer diligente bom pai (ou boa mãe) de família - art.º 487º n.º 2 do Código Civil -, mas também, e nesta específica área económica da denominada economia baseada no conhecimento, os que são típicos de um/a perito/a da especialidade).
13.2.5. E, finalmente, nunca será demais sublinhar que litigar em Juízo é uma actividade não apenas de considerável intensidade ética mas também de imensa responsabilidade social, motivo pelo qual a dedução de pretensões (incluindo a apresentação de reclamações) ou de defesas contra estas perante os Tribunais deve ser antecedida de um estudo cuidadoso da Lei aplicável e da Doutrina e da Jurisprudência conhecidas acerca da matéria em disputa (refere-se “conhecidas” porque, como é bem sabido, nem todas as decisões e deliberações judiciais proferidas pelos vários Tribunais, em todas as instâncias, são publicadas, circunstância que pode permitir a conclusão que poderão existir desconhecidas opiniões jurídicas diversas dessas maioritárias).
13.2.6. Em contrapartida e como também nunca será demais acentuar, seja qual for a instância em que se encontram colocados, mercê da muito especial natureza da função institucional e constitucional que por eles é exercida, e por argumentos lógicos de maioria de razão - como é, crê-se, por demais evidente e dispensa qualquer argumentação justificativa (art.º 412º n.º 1 do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, adiante designado apenas por CPC 2013) -, esse elevado patamar de exigência ético-social na actuação em Tribunal, impõe-se sobremaneira a esses Julgadores.
13.2.7. Na verdade, o que se exige a cada concreto Juiz, em todas as circunstâncias, é que escalpelize muito cuidadosamente todos os aspectos do litígio espelhado nos autos e que o faça (para usar um conceito originário da cultura jurídica francesa) sem paixão, ódio ou rancor e também (para usar uma expressão muito querida da cultura jurídica anglo-saxónica) sem preconceitos ou ideias pré-concebidas, tudo isto para esse julgamento nunca assente em outras motivações que não as jurídicas, comportamento esse que é essencial para a salvaguarda do prestígio dos Tribunais, sem o qual será posta em causa, de maneira grave (e sendo de difícil reparação - ou quiçá irreparáveis - os danos institucionais e sociais que desse facto resultarão), a tutela da segurança e da confiança jurídicas (legal certainty) que sãoValores estruturantes das Comunidades que se organizam segundo o modelo social do Estado de Direito.
13.2.8. E como nunca será demais repetir, o direito a ver integralmente cumprido o ritual processual legalmente estabelecido [o chamado due process of law, para usar a mundialmente conhecida expressão em língua inglesa, sendo que foi nesse ambiente cultural/jurídico que o conceito foi construído e apresentado pela primeira vez], constitui um pilar estruturante fundamental para assegurar, na prática quotidiana (Law in action), que não apenas na proclamação que consta de inúmeros diplomas legislativos (Law in books), o direito a um julgamento leal, não preconceituoso e mediante processo equitativo, que, esse sim, dá corpo a um Princípio Ético sem cuja efectiva consagração não existe verdadeiramente um normal funcionamento das instituições do Estado de Direito.
13.2.9. Daí que, ao exercer o poder de julgar (ou, para usar as palavras dos nºs 1 e 2 do art.º 202º da Constituição da República, a competência para administrar a justiça em nome do Povo e assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos) que, por via dessa Lei Maior, lhe é atribuído pela Comunidade, tenha cada um dos Juízes que exerce funções nos Tribunais portugueses, seja qual for a instância em que o faz, que cumprir integral e escrupulosamente esse dever de assegurar a todos os que interagem no comércio jurídico esse direito a um julgamento leal, não preconceituoso, e mediante processo equitativo que está tutelado e salvaguardado, com força obrigatória directa e geral (art.º 18º n.º 1 da Constituição da República), através do estabelecido nos artºs 20º n.º 4 da Constituição da República, 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas através da sua Resolução 217A (III), de 10 de Dezembro de 1948, 6º n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950, e 47º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Anexa ao Tratado de Lisboa.
13.2.10. Para além do já adiantado, no cumprimento dessa obrigação institucional, aqueles que têm como função (e querem) buscar e administrar a Justiça nos casos concretos, têm sempre de contar com a natureza de certas coisas (v. Pedro Pais de Vasconcelos in “Última lição: A Natureza das Coisas” - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 16 de maio de 2016), exactamente porque“a realidade das coisas” (ou seja, a realidade material das situações submetidas ao julgamento do Tribunal), não pode ser ignorada ou desprezada já que essa materialidade objectiva se impõe a todos, mesmo àqueles que fingem que ela não existe, e também porque, quando tal acontece, é a tutela da certeza e da segurança jurídicas que é posta em perigo e, no final, com uma tal descuidada visão dos factos, é a protecção dos direitos de todos aqueles que interagem no comércio jurídico que está a ser desconsiderada.
13.2.11. Outrossim, a antes referida necessidade de, para aquilatar qual será, no concreto caso submetido ao seu julgamento, a solução mais acertada, tem obrigatoriamente o Intérprete/Juiz, seja qual for a instância em que exerce funções, de fazer apelo ao que se encontra estipulado no art.º 334º do Código Civil e no art.º 335º desse mesmo Código tem uma importância que muitas vezes é negligenciada porque no n.º 2 desse último dispositivo está clara e incontornavelmente consagrado o Princípio da Proporcionalidade, para o qual esse Julgador é remetido.
13.2.12. Princípio esse que, incontornavelmente, apesar de não existir uma norma constitucional que, em termos expressos, a ele se refira [contudo, são várias as manifestações do mesmo que estão subjacentes a vários dos comandos jurídicos que constam dessa Lei Maior - a título de mero exemplo, mencionam-se aqui os três números do art.º 26º e o n.º 2 do art.º 18º da Constituição da República e, de certa forma, ao fazer referência ao conceito de “justa indemnização”, também o n.º 2 do art.º 62º desse mesmo Diploma Fundamental], constitui um dos pilares fundamentais não apenas do Estado de Direito e do normal funcionamento da Sociedade, mas sim de toda a Civilização Ocidental [embora, curiosamente, tenha sido historicamente registado pela primeira vez no várias vezes milenar Código de Hamurábi, com o reconhecimento nele feito da demasiadas vezes imerecidamente vilipendiada Lei (ou Princípio) de Talião através da(o) qual se estabelece a correlação sancionatória “olho por olho, dente por dente”].
13.2.13. O que significa que, em todas as áreas do Direito, incluindo esta, tudo tem de ser feito para manter a “justa medida”, ou, para usar as palavras do Legislador é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334º do Código Civil).
13.2.14. E, clarificados que estão os pressupostos ontológicos a que irá obedecer o julgamento do pleito, agora a realizar em Conferência, cumpre, finalmente, proceder ao escrutínio do mérito das objecções apresentadas pelas Autoras contra os dois decretos judiciais proferidos na decisão recorrida, começando pelo primeiro deles, isto é, o que declarou verificada uma situação de litispendência entre os processos nºs 40/20.3YHLSB e 83/20.7YHLSB.
13.2.15. Tudo isto exactamente porque as reclamações apresentadas pelas partes não são idóneas para alterar os contornos do objecto da apelação, o que aqui se clarifica, uma vez mais, para que dúvidas não se suscitem.
13.2.16. E, no cumprimento do desiderato antes enunciado, e considerando que, realmente, a causa de pedir nas duas acções é a mesma (e isso é, de facto, inquestionável, por muito que as Autoras não se cansem de afirmar o contrário, já que nos dois casos a argumentação fundamental invocada para justificar o pedido formulado é construída em torno da existência na titularidade das demandantes do registo da EP 1412357 e do CCP 278), e que a excepção de litispendência é, como evidenciado na decisão recorrida, de conhecimento oficioso, e conduz, quando ocorre a sua verificação, à absolvição da instância das demandadas, é indispensável recordar o que foi exactamente peticionado naquela acção à qual, em 1ª instância, foi atribuído o n.º 40/20.3YHLSB, o que foi o seguinte: “Deverão as Rés ser condenadas a abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contenham Sitagliptina como substância ativa, como única substância ativa ou em associação com outras substâncias ativas, incluindo, mas não apenas, os que são objeto dos pedidos de AIM melhor identificados no artigo 128.º da presente petição inicial, enquanto a EP 1 412 357 e/ou o CCP 278 se encontrarem em vigor.” (sublinhado que não consta do texto original).
13.2.17. Ora, a pretensão deduzida sob a alínea a) do petitório que culmina o articulado inicial do processo n.º 83/20.7YHLSB [Abster-se de, em território português, ou tendo em vista a comercialização nesse território, por si ou por terceiro importar, fabricar, armazenar, introduzir no comércio, vender ou oferecer quaisquer medicamentos que contenham Sitagliptina como substância activa, como única substância activa ou em associação com outras substâncias activas, incluindo, mas não apenas, os que são objecto dos pedidos de AIM melhor identificados no art. 140 da presente petição inicial, enquanto a EP 142357 e/ou o CCP 278 se encontrarem em vigor] está, novamente de forma que não permite dúvidas, não apenas compreendido na muito alargada extensão/compreensão lógica do pedido transcrito no antecedente ponto 3.2.16. desta deliberação, como reproduz, palavra por palavra, o texto que remata a petição inicial da acção que tem o n.º 40/20.3YHLSB.
13.2.18. É realmente assaz temerária - sendo-se muito brando com as palavras - a litigância das Autoras no que tange à matéria que neste momento se sindica, só não sendo aqui formalizada a condenação prevista no art.º 531º do CPC 2013 porque a essas apelantes não foi dada a oportunidade de exercer o devido contraditório estabelecido no n.º 3 do art.º 3º desse mesmo Código.
13.2.19. E este Tribunal Superior apenas não procedeu a essa notificação porque, estando ciente que este recurso foi apresentado contra uma decisão interlocutória proferida num processo que está pendente em 1ª instância, não pretende introduzir uma ainda maior perturbação à tramitação desses autos e assim criar obstáculos indesejáveis (e indesejados) ao cumprimento do dever consagrado no n.º 4 do art.º 20º da Constituição da República e no n.º 1 do art.º 2º do CPC 2013, qual seja, o de assegurar a satisfação do direito das partes (e de todos os que interagem no comércio jurídico) a obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar.
13.2.20. Em suma e por estas singelas razões, impõe-se, com grande naturalidade, julgar totalmente improcedentes as conclusões C. e D. das alegações de recurso das apelantes e sufragar e manter o segmento da decisão recorrida através do qual se declarou estar verificada, quanto à alínea a) do petitório das Autoras na acção que em 1ª instância tem o n.º 83/20.7YHLSB e por referência àquele outro processo ao qual foi atribuído o n.º 40/20.3YHLSB, a excepção de litispendência e, com esse fundamento, se absolveu as Rés desse concreto pedido.
13.2.21. O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.
13.2.22. Passando, então, à análise crítica da segunda objecção deduzida pelas Autoras, reputa-se essencial sublinhar que a “falta de interesse em agir” constitui uma construção, em primeira linha, doutrinal, mas depois acompanhada por alguma jurisprudência, que não tem uma consagração formal em qualquer disposição do Ordenamento Jurídico - daí ser apodada de “excepção inominada” -, mais importando destacar que a mesma assumiu uma particular relevância no julgamento de acções com um objecto do processo similar (ou mesmo, em termos conceptuais, idêntico) àquele que aqui se dirime, e que se traduz num ressuscitar de uma velha querela que ficou definitivamente resolvida com o texto do n.º 3 do art.º 26º do CPC dito de 1961, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 129, de 28 de dezembro de 1961, e revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho - comando normativo que actualmente corresponde ao art.º 30º do CPC em vigor.
13.2.22. E, realmente, até há pouco tempo, a tendência dominante era a que considerava, como aconteceu na decisão recorrida, que “... o interesse em agir é um pressuposto processual autónomo que se exprime pela necessidade da tutela jurisdicional e que, faltando, pode determinar genericamente a verificação de uma excepção dilatória inominada, pois não se encontra elencada a título exemplificativo nas referidas no art. 577.º do Código de Processo Civil e que, a proceder, conduz à absolvição da instância do Réu, nos termos do artigo 278.º, n.º 1, al. e), do mesmo Código” e bem assim que “... a concessão de autorização de introdução no mercado prevista no art.º 14º do DL. nº 176/2006, de 30/08 não é contrária «aos direitos relativos a patentes ou certificados complementares de protecção de medicamentos» - art.º 19º, 8, do citado DL. Quer isto dizer que a concessão de tal autorização nunca seria suficiente para preencher, por si só, o conceito de risco referido na alínea b), do nº 3, do art.º 10º do Código de Processo Civil ... invocada” (sic).
13.2.23. E, pese embora na decisão recorrida se reconheça que “... o facto de a lei referir 30 dias, a contar da publicitação pelo Infarmed dos pedidos de AIM, para que os titulares das patente instaurem as acções a que se reporta a Lei 62/2011, não preclude o direito de estes, em caso de se verificar a infracção ou em caso de a mesma estar iminente, de proporem as respectivas acções de condenação e procedimentos cautelares nos termos do CPI e CPC. A caducidade de tal prazo de 30 dias, não afecta este direito geral. Aliás, se assim fosse, desde já se diria que esta acção improcederia, desde logo, por não ter sido respeitado esse prazo de 30 dias, já que a publicação do pedido das AIM’s ocorreu a 17/08/2019 e esta acção deu entrada em 31/01/2020”, de acordo com a posição sustentada nesse despacho saneador criticado, como o aludido no antecedente ponto 13.2.22. do presente acórdão não fosse, por si só bastante, no caso em apreço nem sequer esse pedido de AIM foi ainda deferido (ou, pelo menos, não o havia sido à data da propositura da acção que em 1ª instância tem o n.º 83/20.7YHLSB).
13.2.24. Acontece, porém, que essa visão jurisprudencial está a ser progressivamente abandonada e substituída por outra em sentido inverso, que, como se escreve no Acórdão do STJ proferido em 8 de abril de 2021 no processo n.º 219/19.0YHLSB.L1.S1, sustenta que “... o processo previsto no art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, deverá representar-se (continuar a representar-se) como um “‘processo especial’ de acertamento de direitos: i) susceptível de ser desencadeado em face da publicitação de um simples pedido de autorização de introdução no mercado (altura em que não haverá, via de regra, qualquer infracção ou ameaça iminente de infração de direitos de propriedade industrial); ii) que os titulares de direitos podem instaurar ou não, consoante o interesse que vejam nele; iii) que apenas pode ser instaurado dentro do prazo de um mês a contar dessa publicitação, porque isso se enquadra na lógica de um processo rápido, destinado a concluir-se idealmente antes de haver uma decisão do Infarmed sobre o pedido de autorização de introdução no mercado; e iv) com uma única instância de recurso. [Evaristo Mendes, “Patentes de medicamentos. Arbitragem necessária. Comentário de jurisprudência. Súmula da Lei nº 62/2011”, in: Propriedades Intelectuais, n.º 4 - 2015, págs. 26-40.]”,
aresto esse em cujo sumário se pode ler que “Os titulares dos direitos de propriedade intelectual podem propor a ação especial prevista no art. 3.º da Lei n.º 6272011, de 12 de Dezembro, na redação do Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de setembro, em face da publicação de um simples pedido de autorização de introdução no mercado”.
13.2.25. Como, aliás, não pode deixar de ser sob pena de violação do estatuído nos artºs 101º nºs 1 e 2 do CPI, 20º n.º 1 da Constituição da República e 2º n.º 2 do CPC 2013, comandos legislativos esses que, de outro modo, passariam a constituir apenas meras proclamações, destituídas (ou vazias) de qualquer consagração prática no quotidiano comércio jurídico.
13.2.26. E o sinal evidente da consolidação dessa inversão é facilmente encontrado na recente prolação por esta Secção Especializada do Tribunal da Relação de Lisboa de mais três acórdãos proferidos nos processos nºs 346/20.1YHLSB.L1, 40/20.3YHLSB.L1 e 438/21.0YHLSB.L1, os dois últimos datados de 07/10/2021 (relatora Ana Mascarenhas Pessoa) e o primeiro de 23/09/2021 (relator Eurico Marques dos Reis).
13.2.27. Na verdade, o pedido de concessão, como acontece no caso dos autos, de uma autorização para introdução de mercado de medicamentos protegidos pela patente EP 1412357 [com a epígrafe “beta-amino-tetrahidroimidazo (1,2-A) pirazinas e beta-aminatetra-hidrotriazolo (4,3-A) pirazinas como inibidores da dipeptidil-peptidase para o tratamento ou prevenção de diabetes”, de que a 1ª Autora é titular da sendo as demais autoras licenciadas da 1ª Autora, patente essa que vigorará até 05/07/2022 e tem 30 reivindicações, sendo que a Sitagliptina é o ingrediente activo que está protegida por essa EP], situação a que acresce o facto de aquela 1ª Autora ser ainda a titular dos CCP 278 e 339, sendo as demais autoras suas licenciadas, torna possível, a qualquer momento, que as Rés, de modo autónomo (isto é, sem intervenção ou controle dessas demandantes aqui apelantes), façam uso dessa autorização, logo que concedida.
13.2.28. Ou seja, porque assim é, está clara e suficientemente alegado o risco/perigo de violação dos direitos de propriedade industrial titulados pelas Autoras (embora neste momento apenas releve a factualidade respeitante ao CCP 339, o que basta para considerar demonstra inequivocamente que, na presente acção, estas demandantes têm um efectivo e genuíno interesse em agir.
13.2.29. E se as Rés, como por elas é afirmado, realmente não têm intenção de fazer introduzir no mercado os medicamentos genéricos produzidos em conformidade com o que se encontra descrito na patente que originou a protecção concedida pelo CCP 278 enquanto esse título permanecer em vigor e que peticionaram no aludido processo, em reconvenção, a declaração de nulidade do CCP 339, invocando que o mesmo não cumpre os requisitos de concessão previstos no Regulamento CCP, pois tanto melhor, mas é perfeitamente plausível, justificado e proporcionado que as Autoras se pretendam precaver contra a possibilidade/risco/perigo de essa declaração poder não ser, afinal, cumprida, sendo que, até que se verifique o trânsito em julgado de uma eventual decisão ou deliberação que declare a nulidade do CCP 339, este título permanece integralmente válido, operativo e vinculativo.
13.2.30. O que significa que, com estes exactos fundamentos, se impõe decretar que, na acção que tem o n.º 83/20.7YHLSB, as Autoras têm um inequívoco interesse em agir, mas, naturalmente, apenas e tão só no que respeita às substâncias compreendidas no objecto das AIM identificadas no artigo 140 da petição inicial da acção.
13.2.31. E esta constatação/conclusão lógico-normativa é suportada não apenas pelos factos considerados provados na acção, como também por todos os critérios inscritos nos três números do art.º 9º do Código Civil, sendo, para além disso, para este Tribunal Superior, esta não apenas a solução ético-socialmente mais acertada no que concerne à interpretação dos normativos legais reguladores da situação conflitual aqui dirimida, como também aquela da qual melhor resulta a salvaguarda da segurança e a confiança jurídicas (legal certainty) e bem assim, aquela que é mais conforme com a ética da responsabilidade que deveria ser apanágio de todos os que interagem no comércio jurídico - e que a eles tem de ser exigida porque a mesma lhes é exigível à luz dos Valores e Princípios estruturantes das Comunidades que se organizam segundo o modelo social do Estado de Direito - e com os ditames do Princípio da Proporcionalidade a que antes, de igual modo, se fez referência.
13.2.32. Efectivamente, é ontologicamente inconcebível configurar que o Legislador, ao produzir normas legais, age levianamente e que ignora os debates existentes na Sociedade (que não apenas na Comunidade Jurídica) a propósito das questões sociais relevantes acerca das quais está a legislar.
13.2.32. Uma tal absurda e inaceitável posição viola, de uma forma ostensiva e eticamente reprovável, o ensinamento consubstanciado no n.º 3 do art.º 9º do Código Civil, no qual está escrito, como aqui se recorda aos mais desatentos, que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
13.2.33. Deste modo, se o Legislador, ao produzir o DL n.º 110/2018, de 10 de dezembro, deu ao n.º 1 do art.º 3º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, a sua actual redacção («No prazo de 30 dias a contar da publicitação na página eletrónica do INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I. P. (INFARMED, I. P.), de todos os pedidos de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamentos genéricos, o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior deve fazê-lo junto do Tribunal da Propriedade Intelectual ou, em caso de acordo entre as partes junto do tribunal arbitral institucionalizado ou efetuar pedido de submissão do litígio a arbitragem não institucionalizada.»), e, mais do que isso, estabeleceu no n.º 2 desse mesmo normativo uma tão forte cominação para a não apresentação de contestação por parte do titular da AIM («A não dedução de contestação, no prazo de 30 dias após citação na ação intentada no Tribunal da Propriedade Intelectual ou da notificação para o efeito pelo tribunal arbitral, implica que o requerente de autorização, ou registo, de introdução no mercado do medicamento genérico não pode iniciar a sua exploração industrial ou comercial na vigência dos direitos de propriedade industrial invocados nos termos do número anterior.»), torna-se não apenas incompreensível como também indefensável a posição jurídica sustentada pelas Rés reclamantes.
13.2.34. De facto, é no mínimo ilógico (para ser brando com as palavras) entender que o Legislador concedeu expressamente ao interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior (art.º 2º da já referida Lei n.º 62/2011, com a redacção que lhe foi dada pelo igualmente citado DL n.º 110/2018), a possibilidade de intentar uma acção para defender esse seu direito no prazo de 30 dias a contar da publicitação na página eletrónica do INFARMED, de todos os pedidos de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamentos genéricos, mas que esse direito seria ao mesmo retirado por ser considerado que esse interessado não tem interesse em agir.
13.2.35. E o carácter incongruente do entendimento das Rés torna-se ainda mais patente e evidente perante a fixação de uma tão intensa cominação contra o requerente de uma AIM como a estabelecida no n.º 2 do aludido art.º 3º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, caso o mesmo não deduza contestação nessa acção.
13.2.36. Portanto e na verdade, só a posição sustentada por este Tribunal Superior na reclamada decisão do relator, que agora é sufragada e mantida nesta deliberação em Conferência, traduz, com fidelidade, a vontade do Legislador expressa e inequivocamente manifestada através desses normativos que estão consubstanciados no art.º 2º e nos nºs 1 e 2 do art.º 3º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro.
13.2.37. Vontade legislativa essa que não é destituída de utilidade social e legal - aliás, bem pelo contrário -, uma vez que aponta um caminho para clarificar que o detentor da patente tem direito a que, até ao último momento da vigência do monopólio que lhe é assegurado por esse instrumento jurídico, não sejam fabricados e armazenados medicamentos produzidos com os ensinamentos trazidos ao conhecimento comum da Humanidade por meio da actividade inventiva consubstanciada nessa patente.
13.2.38. Circunstância que, tendo em atenção a natureza das coisas assume uma relevância essencial, nomeadamente em termos de mercado.
13.2.39. Deste modo e em conclusão, agora em Conferência e com os fundamentos expostos no presente acórdão, em linha com a reclamada decisão liminar do relator, julgam-se globalmente procedentes as conclusões B. a X. das alegações de recurso das apelantes e, consequentemente, revoga-se apenas parcialmente o despacho saneador recorrido na parte em que absolveu as Rés, decretando-se, em sua substituição, mas mantendo-se tudo o mais que foi decidido nessa decisão recorrida, que na acção que tem o n.º 83/20.7YHLSB, as Autoras têm um efectivo e genuíno interesse em agir e que, por essa razão, deverá prosseguir a tramitação desses autos para apreciação dos pedidos formulados sob as alíneas b) e c) que rematam a petição inicial desse processo, mas, naturalmente, apenas e tão só no que respeita às substâncias compreendidas no objecto das AIM identificadas no artigo 140 da petição inicial da acção.
13.2.40. O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta.
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14.1. Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados nos pontos 13.1. e 13.2. do presente acórdão, agora em Conferência e em linha com o decretado na reclamada decisão liminar do relator, julga-se parcialmente procedente a apelação e, consequentemente: i)elimina-se todo o segmento do despacho saneador com valor de sentença recorrido através do qual foram elencados os factos declarados não provados na acção à qual em 1ª instância foi atribuído o n.º 83/20.7YHLSB; ii)confirma-se o despacho saneador recorrido na parte em que por referência ao processo n.º 40/20.3YHLSB, declara verificada, relativamente ao pedido formulado sob a alínea a) que remata a petição inicial dessa acção identificada em i), a excepção de litispendência e, por essa razão, absolve as Rés da instância; e iii)revoga-se o despacho saneador recorrido na parte em que absolveu as Rés da instância no que respeita aos pedidos formulados sob as alíneas b) e c) que rematam a petição inicial da acção identificada em i), decretando-se em sua substituição que nesse processo, as Autoras têm um efectivo e genuíno interesse em agir, e que, por essa razão, deverá prosseguir a tramitação desses autos para apreciação dos pedidos formulados sob as essas duas alíneas que rematam a petição inicial, mas, naturalmente, apenas e tão só no que respeita às substâncias compreendidas no objecto das AIM identificadas no artigo 140 da petição inicial da acção.
14.2. Custas pelas partes, na proporção de 3/5 para as apeladas e 2/5 para as apelantes, clarificando-se que esta tributação é unitária e que a mesma se reporta a toda a tramitação realizada por este Tribunal Superior no âmbito da presente instância recursiva, ou seja, a operada nesta Relação desde a distribuição dos autos ao relator até à publicação do presente acórdão, que, em termos lógicos e ontológicos, substitui integralmente a reclamada decisão subscrita apenas por esse mesmo Julgador.
Lisboa, 21/10/2021
Eurico José Marques dos Reis
Ana Isabel de Matos Mascarenhas Pessoa
Carlos Manuel Gonçalves de Melo Marinho - vencido conforme declaração de voto que segue junta
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VOTO DE VENCIDO
Voto vencido a decisão por referência à qual esta declaração emerge, pelas seguintes razões:
1. O interesse em agir corresponde à tensão que existe entre o gesto e o seu destino, à pulsão instalada entre a necessidade e a sua satisfação ou, em síntese de radical histórico e etimológico, ao latino quod interest.
Apodado, no domínio da doutrina incidente sobre o Direito adjectivo civil de «Interesse processual» (CALAMANDREI, Piero, La Relatività del Concetto di Azione, Rivista di Diritto Processuale Civile, Padova, 1939, Cedam, Volume XVI, Parte I, págs. 22 a 46, ANDRADE, Manuel de, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, pág. 79, VARELA, Antunes e OUTROS, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pág. 179 – definindo-o, estes, de forma feliz, como necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção – e FERREIRA PINTO, Fernando, Lições de Processo Civil, Porto, ELCLA Editora, 1992, pág. 61), «interesse em agir» (CARNELUTTI, Francesco. Saggio di una Teoria Integrale dell’Azione, Rivista di Diritto Processuale, Padova, 1946 Cedam, vol. I, págs. 5 a 18 – renunciando mesmo a considerar o interesse em agir como condição da acção –, LIEBMAN, Enrico Tullio, Corso di Diritto Processuale Civile, Milano, Dott. A. Giuffrè Editore, 1952 – considerando serem apenas a legitimidade e o interesse em agir as veras condições para o exercício da acção –, DE CASTRO MENDES, João, Direito Processual Civil, Lisboa, AAFDL, 1980, vol. II, pág. 187, ANSELMO DE CASTRO, Artur, Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra, Almedina, 1982, vol. II, pág. 251 e ATTARDI, Aldo, L’interesse ad agire, Padova, Cedam, 1955), ou «necessidade de protecção legal» (Rechtsschutzbedürfnis), cujo relevo foi defendido na doutrina alemã enquanto elemento pressuponente da intervenção do Tribunal («wenn hingegen ein solches Rechtsschutzbedürfnis nicht vorliegt, darf das Gericht nicht in Anspruch genommen werden»), assente numa noção de interesse-adequação, de elemento de gestão processual orientado para economizar o tempo e a energia dos serviços de administração da Justiça (vd. SCHÖNKE, Adolf, Lehrbuch des Zivilprozessrechts, Karlsruhe: C.F. Müller, 7.ª Edição, 1951, pág.167).
2. Ao nível do Direito nacional constituído, as consequências mais visíveis da falta de interesse em agir situam-se no âmbito das custas, sendo que o conceito em apreço não surge integrado, de forma verbalizada, entre os pressupostos processuais – cf. art.s 278.º, 535, n.º 2, al. c), e 610.º, n.ºs 2 e 3, todos do Código de Processo Civil.
Porém, não se diga que as mesmas se circunscrevem a um mero nível «tributário», já que se encontra no n.º 2 do art. 557.º do mesmo encadeado normativo, mediante uma leitura a contrario sensu, um afloramento da concessão de relevo estritamente processual à falta de interesse em agir – se é possível pedir «a condenação em prestações futuras quando se pretenda obter o despejo de um prédio no momento em que findar o arrendamento e nos casos semelhantes em que a falta de título executivo na data do vencimento da prestação possa causar grave prejuízo ao credor», tem que se concluir que não é possível fazê-lo quando o risco de produção de grave prejuízo não se desenhe.
Este afloramento do reconhecimento normativo do relevo do interesse em agir enquanto pressuposto não especificado tem claras consequências na análise doutrinal do sistema – vd. neste sentido, CASTRO MENDES, João, ibidem, pág. 191, ou ANTUNES VARELA, João de Matos, e OUTROS, ibidem, págs. 188 e 189 – levando estes autores a concluir que a sua falta conduz a consequência semelhante à da falta de outros pressupostos processuais cristalizados no Direito positivo, a saber, a absolvição da instância (ou, segundo FERREIRA PINTO, Fernando, ibidem, pág. 63, à absolvição do pedido).
3. Não se extrai da petição inicial inequívoca referência a concretas razões determinantes da existência de um receio justificativo do pedido de condenação.
A este nível, mostra-se ajustada ao Direito constituído, particularmente à teleologia da alínea b) Apelação n.º 83/20.7YHLSB-A.L1 2/9 do n.º 3 do art. 10.º do Código de Processo Civil, a referência lançada em FERREIRA PINTO, Fernando, ibidem, pág 63, no sentido de que se deve «com boas razões», prever que venha a ocorrer a violação de um Direito.
Ora, não se invocam quaisquer «boas razões» que permitam entrever um efectivo risco de violação de um direito. A menos que a mera apresentação de pedido de AIM represente um risco automático e invariável.
Será que assim é?
4. A este respeito, importa referir que, a ser assim, o legislador sempre deveria deixar indícios ou, melhor, referências expressas nesse sentido. Só assim seria possível realizar uma interpretação conforme à regra vertida no n.º 2 do art. 9.º do Código Civil.
Mais, sempre deveria assumir que o mero pedido de AIM envolveria, inelutavelmente, a necessidade de instauração de acção com vista à tutela dos direitos protegidos pela patente.
Porém, não o fez.
5. Atentas as noções e finalidades da figura sob referência, é inaceitável que transforme a «necessidade de protecção legal» («Rechtsschutzbedürfnis») num mero convencimento dessa necessidade, o que sempre tornaria existente o interesse em agir (excepto em casos de flagrante má-fé), determinaria o desaparecimento prático da figura e frustração das suas finalidades e geraria a necessidade de o julgador realizar uma complexa e eventualmente falível avaliação ou prognose de focagem subjectiva sobre a ciência, convencimento e vontade do Demandante.
Na tese oposta à que se defende, haverá interesse em agir sempre que o autor esteja convencido de que ele existe ou, ao menos, quando o desconhecimento do Direito ou a novidade da norma tornem compreensível a vontade de instauração da acção.
Tal representaria, porém, crê-se, a contemporização com uma avaliação assente na cedência à realidade e abstracção da técnica e finalidades do conceito que conteria, em si, verdadeiro fermento da implosão da figura.
6. Tomemos, a título de elemento de teste da concepção que não se aceita o exemplo dado pelo Pf. Castro Mendes, na obra indicada (pág. 192), com o seguinte teor: «Assim, suponhamos que A pede contra B a declaração da nulidade do contrato x, por simulação; e ganha, transitando em julgado a sentença. E suponhamos que, em seguida, pede contra o mesmo B a declaração de nulidade do mesmo contrato, por impossibilidade do objecto. A mudança de causa de pedir impede a dedução no segundo processo da excepção de caso julgado (cfr. art. 498º).
No entanto, repugna-nos a solução segundo a qual seja possível pedir de novo a declaração de nulidade; vemos aqui um caso excepcional de falta de interesse em agir».
Nesta situação, à luz da tese que se rejeita, não haveria falta de interesse em agir e condições de absolvição da instância sempre que fosse possível compreender, face a regulação normativa, que o Demandante tivesse interposto a acção por entender estar a tal obrigado.
Porém, além de outros escolhos, como se demonstraria este entendimento?
Recomendar-se-ia uma avaliação objectiva da subjectividade?
7. Importa ter presente o disposto no n.º 8 do art. 19.º do DL n.º 176/2006, de 30 de Agosto (que contém o regime jurídico dos medicamentos de uso humano) segundo o qual, a «concessão de autorização prevista no artigo 14.º» (autorização de introdução no mercado) não é contrária «aos direitos relativos a patentes ou a certificados complementares de proteção de medicamentos».
Quer isto dizer que a concessão de tal autorização nunca seria suficiente, segundo o legislador, para preencher, por si só, o conceito de risco referido na alínea do art. 10.º do Código de Processo Civil acima invocada.
8. Estamos situados, face ao conteúdo dos pedidos de condenação formulados na petição inicial, claramente à margem da simples invocação do Direito de Propriedade Industrial com vista ao seu reconhecimento no quadro da previsão constante do n.º 1 do art. 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12.12). Não se pediu uma mera apreciação da existência de direitos, mas uma vera condenação com várias e marcadas vertentes.
9. De qualquer forma, a condenação solicitada na petição inicial, ainda que concedida, não tem a susceptibilidade de conferir maior protecção ao direito do que a resulta da própria patente, o que constitui relevante elemento de aferição da existência do interesse em demandar.
10. Nenhum sentido tem que use agora uma palavra que, de forma sacramental, ritual, e quase mística, se vem tentando introduzir neste filão de debate (aparentando estarmos perante uma nova realidade, face a algo dotado de esoterismo jurídico de que o sistema luso ainda não dispunha).
Tal termo é «acertamento» e a expressão gerada com a sua integração é «acertamento (preventivo)». Esse vocábulo existia já no léxico nacional, mas com um sentido totalmente distinto do que se quer agora introduzir (entre muitos outros, significava «harmonizar» ou «pôr certo», semântica que não é possível associar à presente acção).
Uma vez desprovida a palavra deste carácter ritual e da aparência de chegada, «ainda quente», dos laboratórios universitários, descobrimos, afinal, que estamos, apenas, perante uma tradução menos feliz de um vocábulo integrado numa expressão processual civil italiana que apenas refere um processo bem conhecido do Direito nacional e que, de tão claro e bem instituído, dispensa subsídios do Direito comparado.
O que se fez foi, unicamente, importar regime externo que significa o mesmo que o nacional, mas sob a capa de uma má tradução.
Com efeito, desritualizando e traduzindo da forma mais fiel possível, temos que a chamada «tutela di accertamento» ou «azione di mero acertamento» é um tipo de «processo di cognizione» (regulado no Livro Segundo, arts. 163.º e seguintes do Código de Processo Civil Italiano) que surge a par da tutela «di condanna» – de condenação – e da tutela «costitutiva» – constitutiva – visando esclarecer uma incerteza quanto a um direito [«accertamento di un proprio diritto» («accertamento» positivo) ou «accertamento dell’inesistenza di un diritto altrui» (accertamento negativo)].
Daqui brota que, quando se refere, na língua italiana, «azione di mero accertamento» está-se a referir, em língua portuguesa, «acção de simples apreciação». E acções de «simples apreciação» já nós tínhamos e temos no nosso Processo Civil – cf. o número 2 do art. 10.º do Código de Processo Civil. Não necessitamos, consequentemente, do neologismo ritual e, menos, de o fazer para introduzir a inusitada dispensa do interesse em agir, transversal a toda a iniciativa processual e justificar uma acção condenatória [até porque é vedada a prática de actos inúteis ou ociosos no Direito adjectivo e porque tal se extrai, a fortiori, do art. 130.º do Código de Processo Civil].
Pois se o legislador proscreve actos inúteis, como se pode admitir que aceite acções que o sejam? Dando como reconhecido que não estamos perante pressuposto processual como tal assumido em termos normativos claros e precisos, temos como segura, face à arquitectura do sistema nacional de acesso à tutela jurisdicional efectiva, a bondade da construção do Professor Manuel de Andrade (in «Noções Elementares de Processo Civil», Coimbra, 1979, página 81) ao sustentar que só se justifica a acção de simples apreciação quando «se verifica um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência do direito a apreciar», mais exigindo que essa incerteza fosse, aliás, objectiva, grave e emergente de facto exterior.
Como interpretar diferentemente o n.º 2 do art. 202.º da Constituição da República Portuguesa que impõe que os Tribunais cumpram a função de «assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados» («bens» individuais fortes e correspondentes a flagrantes necessidades que clamam por tutela), se se considerar que as partes podem fazer meras incursões diletantes e injustificadas no sistema judicial e suas prestações?
Se assim é no Direito luso, não é também diferente no Direito italiano (cujo subsídio não se deixou patente no processo de tradução) já que este não prescinde do aludido interesse em acorrer a juízo e antes o erige em princípio constitucional.
Não necessitávamos, assim (nem necessitamos), da importação onomástica dissimulada por uma deficiente tradução. E, menos, de invocar, com menor congruência, o «accertamento» para sustentar a «condanna»;
11. Não teria qualquer sentido defender-se (e assumiria clara contradição interna) que, desta vez, neste caso especial, o legislador (fazendo uso de duvidosa técnica) foi mais longe do que nunca e prescindiu do interesse em agir e que, concomitantemente se buscasse localizar uma causa justificativa da acção à margem dos interesses em litígio, ficcionada a partir de uma determinada leitura da vontade do legislador. Ou se entende que se suprimiu a exigência de interesse em agir e, então, tem que se considerar que o legislador criou preceitos ao arrepio do sistema em que se movimentou, ou se considera que ele se mantém e, nesse quadro, tem que se admitir a submissão da análise dos contornos do pleito às efectivas exigências associadas a esse pressuposto processual inominado decisivo para o equilíbrio e sustentação do sistema de administração de Justiça.
Neste âmbito, não pode haver alívio ou contentamento por via da mera colagem da vontade legislativa a esse interesse, não tendo adequação que se tente entrever interesses abstractos detectados unicamente em função duma aparência de vontade do criador da norma.
Neste âmbito, brandir-se com a mera possibilidade de uso da autorização constitui artificialismo situado nos antípodas da figura que se analisa. Sobretudo, tal artificialismo, por óbvia falta de suporte na realidade, acaba por confluir numa decisão inútil, «para emoldurar», que não oferece mais tutela do que a garantida pela própria patente e cuja utilidade não se conseguiu ainda evidenciar em todo o debate sobre esta questão;
12. Menos adequação e susceptibilidade de compreensão assumiria que se afirmasse que, se os Réus não têm intenção de violar a patente, então deixem-se lá condenar porque não lhes faz mal nenhum e sempre se respeita o que parece ser a vontade do legislador;
13. Quanto a esta vontade, importa referir que não é a tese de aceitação incondicional de uma aparência de intervenção legislativa para a qual não se encontre sentido e utilidade a que dá cumprimento ao disposto no art. 9.º do Código Civil.
Ao invés, antes assim se viola a norma e seus critérios subjacentes porquanto o n.º 3 de tal artigo impõe que, na «fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».
Ora, não se vê como uma leitura que considere que o legislador prescindiu de princípio axilar do sistema para produzir coisa nenhuma, ou seja, decisão sem utilidade prática e relevo na «vida» dos cidadãos e das empresas possa corresponder à conclusão pela consagração da solução mais acertada (imaginando, para confortar os que teimem em achar que o interesse em agir é imprescindível, pulsões e utilidades abstractas e não referenciados a um processo concreto ou pedindo aos condenados mera conformação porque a decisão não lhes faz mal se não querem violar a patente);
14. Antes a única forma de respeitar o referido princípio interpretativo estrutural corresponde à que aqui se sustenta, ou seja, a que postula que o legislador conhecia o sistema de administração de justiça em que actuava, que o mesmo quis criar uma acção útil, necessária para os titulares dos interesses a brandir e para economia e sociedade, que usou a técnica legislativa adequada e que não ignorou os pressupostos processuais nominados e inominados exigíveis, pelo que essa acção merecerá ser activada quando puder ser útil para algum titular de direitos e concorram os demais pressupostos, como sempre deve acontecer.
E é justamente a verificação de todos esses elementos pressuponentes que cabe ao julgador realizar em concreto e com inteiro rigor sem derrogações emergentes de leitura da norma não conforme com o estabelecido no referido n.º 3 do art. 9.º do mencionado encadeado normativo;
15. Também não se salvaria a tese que se rejeita caso se apelasse à natureza cautelar da dita acção porquanto nem em sede geral se prescinde, na ponderação da necessidade da tutela cautelar, do «periculum in mora», nem no domínio específico da propriedade industrial tal ocorre – cfr. a exigência da materialização de risco de produção de «lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade industrial ou de segredo comercial» consagrada no n.º 1 do art. 345.º do Código da Propriedade Industrial.
Este risco é, como bem se sabe, uma possibilidade de ocorrência a avaliar casuisticamente que pode até suportar-se em factores indiciadores mas nunca ser alijado ou entrevisto com assento em abstracções. Tal possibilidade deve ser, invariavelmente, apreciada em concreto e em função das circunstâncias de cada caso submetido a ponderação jurisdicional.
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Crê-se, pois, face ao ora consignado, dever-se concluir pelo acerto da decisão impugnada não merecendo provimento o recurso ao nível da questão apreciada nesta declaração de voto.
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21.10.2021
Carlos M. G. de Melo Marinho