Sumário


I. Numa situação em que a esposa do proprietário de um veículo automóvel a entrega numa oficina para realização de inspeção técnica, preparação de IPO e sua realização, a direção efetiva do veículo é da oficina a partir do momento em que a esposa do proprietário entrega as chaves a uma pessoa que é sócia e gerente da mesma oficina.
II. Quando a indicada pessoa, sócia e gerente da oficina, se dirige à viatura para ir buscar documentos lá existentes, fá-lo no interesse da oficina, podendo a situação equiparar-se à relação de comitente-comissário, ainda que não se tenha deslocado com vista a conduzir o veículo.
III. Não se aplica a presunção de culpa prevista no n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil quando a comissária não se deslocou ao veículo com intenção de o conduzir.
IV. A repartição do risco deve fazer-se em 65% para o velocípede e 35% para o veículo automóvel quando pelas circunstâncias do acidente se verifique que, apesar da massa do veículo automóvel ser superior à do velocípede (único fator relevante para atribuir um maior risco à viatura) o risco do velocípede se mostra agravado pela circunstância de estar em circulação, ter embatido apenas na porta do veículo, a viatura estar devidamente estacionada, o local e o tempo permitirem visibilidade, a que acresce a agravante de 10% pelo facto de o condutor do velocípede não usar capacete.
V. Quando o tribunal a quo fixa um valor indemnizatório com recurso à equidade o STJ não deve alterar o valor fixado senão em caso de não utilização dos critérios habituais da jurisprudência para a fixação deste tipo de danos ou de manifesta desrazoabilidade, aferindo se a decisão adotada se conforma com os princípios da igualdade e proporcionalidade, com vista a alcançar uma solução razoável.
VI. De acordo com o DL 291/07, não tendo sido realizado o obrigatório seguro de garagista, mas existindo seguro obrigatório do proprietário do veículo, deve a seguradora deste segundo assumir a responsabilidade civil perante o lesado, ficando com direito de regresso sobre o garagista (artigo 27.º, n.º, 1, f), sem que possa ser responsabilizado o Fundo de Garantia Automóvel.

Texto Integral



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:           



I. Relatório

1. AA intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação da Ré a:

a) Pagar a quantia de €137 500,00 por danos sofridos em resultado de acidente, sendo €70 000,00 a título de danos não patrimoniais e €67 500,00 a título de danos patrimoniais, perda geral de ganho, passado e futuro, tudo acrescido de juros à taxa legal desde a citação e até integral e efetivo pagamento;

b) Suportar os custos de todo o tratamento médico e medicamentoso que, no futuro, venha a necessitar por via do sinistro dos autos, eventuais internamentos que se mostrem necessários e custos decorrentes de eventual acompanhante quando a existência deste se venha a mostrar necessária, cujo valor deve ser liquidado em «execução de sentença».

O Autor alegou, em síntese, que:

- no dia …/07/2014, cerca das 09.00 horas, na ..........., ......., no enfiamento do n.º ,,, daquela via, ocorreu um acidente entre o veículo ligeiro de passageiros marca ........., matrícula ..-..-XS, propriedade de BB, na altura conduzido por CC e o velocípede sem motor, propriedade do Autor e por si conduzido;

- quando o Autor seguia no velocípede a uma velocidade de cerca de 20 Kms/hora pelo lado direito da estrada, próximo da berma direita atento o seu sentido de marcha, no exato momento em que estava a ultrapassar aquele ligeiro de passageiros, que estava parado na berma, é surpreendido com a inesperada e repentina abertura da porta do lado do condutor, sendo que a condutora o fez de modo desatento, violando o disposto nos artigos 3.º, n.º2, 11.º, nºs 2 e 3, 53.º, n.º2, do Código da Estrada;

- com tal abertura, o caminho do Autor foi barrado, vindo a embater na porta;

- essa atuação causou-lhe danos físicos, patrimoniais e não patrimoniais;

- sendo CC quem detinha e conduzia na altura o veículo automóvel, com perfeito conhecimento do seu proprietário e no desempenho de tarefas de que a havia incumbido (vistoria obrigatória da IPO), fazia-o por conta e sob a direção e no interesse do dono do veículo, numa relação de comitente-comissário, assim se presumindo a sua culpa nos termos do artigo 503.º, n.º3, do Código Civil;

- a Ré é a seguradora para quem o dono do veículo transferiu a responsabilidade pelo pagamento de danos provocados a terceiros, por contrato titulado pela apólice n.º.....26.

2. Citada, a Ré veio contestar, alegando em síntese, que:

- aceita a celebração do contrato de seguro com o proprietário do veículo;

- quando ocorreu o acidente, o tomador do seguro não estava na posse do referido automóvel, sendo a oficina Auto Calvário – Comércio e Reparação de Automóveis, Lda. quem a detinha a assim também tinha a direção efetiva do veículo;

- a responsável pelo automóvel, à data do sinistro, era CC, que era quem estava na viatura quando a porta se abriu no momento em que o Autor passava de bicicleta sendo que, em rigor, CC não era a condutora do veículo nem se dirigiu ao mesmo com intenção de o conduzir, só tendo, enquanto trabalhadora da oficina, ido buscar documentos que se encontravam no interior do XS;

- ao manipular a porta, descuidou-se e deixou-a abrir, assim violando regras estradais;

- a culpa pela ocorrência do sinistro, tal como alegado pelo Autor, é de CC, conforme também conclui o perito averiguador;

- não é, assim, a Ré responsável pela reparação do acidente sub judice sendo antes a Auto Calvário nos termos do n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil, devendo ser acionado o seguro de mecânico/garagista, nos termos do n.º 3 do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 29172007;

- não tendo a oficina celebrado esse seguro, tem de ser demandado o Fundo de Garantia Automóvel;

- no mais, deduz impugnação de factos e dos valores peticionados.

Conclui, pedindo a sua absolvição por procedência da exceção perentória alegada ser procedente e a realização de julgamento consoante a prova produzida.

3. O Autor, alegando dúvida fundada sobre o motivo porque a viatura segurada na Ré se encontrava estacionada no local em causa e se outros intervenientes possam ter ou não seguro que proteja a sua atividade, ao abrigo do disposto no artigo 39.º do Código de Processo Civil, deduziu incidente de intervenção principal provocada, tendo sido admitida a intervenção dos chamados, de:

- Auto Calvário – Comércio e Reparação de Automóveis, Lda.;

- CC;

- Fundo de Garantia Automóvel;

- BB.

4. Os intervenientes vieram alegar, em síntese, que:

- Fundo de Garantia Automóvel –

- O direito do autor está prescrito (acidente ocorrido em …/07/2014, com pedido de intervenção em …/10/2017) – artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil;

- a obrigação de celebração de seguro impende sobre o proprietário do veículo automóvel com estacionamento habitual em Portugal, como condição de circulação nas vias públicas bem como sobre os garagistas ou quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a atividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bem funcionamento de veículos;

- nos termos do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, quando, relativamente ao mesmo veículo, existirem vários seguros, responde em primeiro lugar o seguro desportivo ou, em caso de inexistência deste, o seguro de garagista ou, em caso de inexistência destes dois o seguro de automobilista ou, em caso de inexistência destes três, o referido no n.º 2 do artigo 6.º, ou no caso de inexistência destes quatro, o contrato celebrado nos termos do n.º 1 do artigo 6.º;

- assim, o seguro de garagista responde pelos danos do veículo que lhe é entregue para reparação, desempanagem ou controle do bom funcionamento, ficando afastada a responsabilidade do segurador contratado pelo proprietário;

- o Fundo de Garantia Automóvel não é chamado a satisfazer a indemnização em igualdade de circunstâncias com as seguradoras, só o sendo se não for possível, no caso concreto, a indemnização ser satisfeita por seguradoras;

- assim, no caso, existindo contrato válido para o veículo lesante, compete à Ré seguradora, em face da eventual ausência de seguro de garagista e/ou seguro de carta, indemnizar os terceiros lesados, extinguindo-se aí a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel;

- impugna a factualidade alegada, por desconhecimento.

Conclui, pedindo que as exceções invocadas sejam julgadas procedentes e, assim não sendo, a ação seja julgada totalmente improcedente.


- BB –

- a provar-se qualquer das versões, será sempre parte ilegítima.


- CC –

- é parte ilegítima por não ser funcionária de «Auto Calvário, Lda.» mas sua gerente, pelo que os seus atos só vinculam a empresa e a não a si pessoalmente.


- Auto Calvário, Lda. –

- antes da hora acordada para o início do trabalho, a esposa do Réu proprietário deixou estacionado o veículo na indicada berma, deixou as chaves na receção da oficina, indicando o local onde o veículo se encontrava e que quando chegasse a sua vez para a inspeção se o podiam encaminhar para as instalações;

- aquando do evento em causa nos autos, o veículo ainda não tinha entrado na oficina para início dos trabalhos solicitados e a Ré CC dirigiu-se ao veículo para levantar os documentos do veículo;

- só depois do estacionamento é que a «Auto Calvário, Lda.» iria conduzir o veículo até às instalações, pelo que a direção efetiva do veículo pertencia ao proprietário do mesmo que havia transferido a sua responsabilidade civil para a Ré seguradora;

- é, assim, parte ilegítima.


No mais, todos impugnam a factualidade: no sentido de a porta aberta não ter invadido a hemi-faixa;

- quando ali passou o velocípede, a porta já se encontrava entreaberta;

- o Autor conduzia o velocípede sem o uso de qualquer material refletor, luzes e capacete, esta última circunstância agravado os danos físicos.


Concluíram, pedindo a procedência das exceções de ilegitimidade com a consequente absolvição da instância e a improcedência da ação.

5. O Autor veio responder.

6. Foi proferido despacho saneador relegando para a sentença o conhecimento das exceções de ilegitimidade e prescrição.

7. Fixou-se o objeto do litígio e selecionaram-se os factos assentes e os que integravam os temas da prova.

8. Realizou-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença que decidiu:

a) absolver a Ré Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A., dos pedidos deduzidos pelo Autor;

b) condenar solidariamente os chamados FGA, a título de garante, Auto Calvário – Comércio e Reparação de Automóveis, Lda., e CC, a pagar ao autor a quantia global de €5 005,49 a título de indemnização pelo dano patrimonial sofrido, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos desde a respetiva citação de cada um daqueles chamados e até integral e efetivo pagamento;

c) condenar solidariamente os chamados FGA, a título de garante, Auto Calvário – Comércio e Reparação de Automóveis, Lda., e CC, a pagar ao Autor a quantia de €40 000,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa de 4%, contabilizados desde a data da prolação da sentença e até efetivo e integral pagamento;

d) condenar solidariamente os chamados FGA, a título de garante, Auto Calvário – Comércio e Reparação de Automóveis, Lda., e CC, a pagar ao Autor as despesas ocorridas e que vieram a ocorrer, desde a data da propositura da ação e enquanto a necessidade das mesmas se mantiver, com as consultas a que alude o artigo 42.º dos factos provados, relegando-se a sua quantificação para posterior liquidação;

e) Absolver os mencionados chamados do remanescente dos pedidos contra eles deduzidos.

9. Não se conformando com estas decisões, o FGA, Auto-Calvário, Lda., CC e o Autor, subordinadamente, apelaram para o Tribunal da Relação …...

10. O Tribunal da Relação ….. decidiu nos seguintes termos: julgando-se procedentes os recursos interpostos por Fundo de Garantia Automóvel, Auto-Calvário, Lda. e CC e parcialmente procedente o recurso subordinado interposto pelo Autor AA, altera-se a decisão nos seguintes termos:

a). Absolvem-se Fundo de Garantia Automóvel, Auto-Calvário, Lda. e CC dos pedidos contra si formulados.

b). Condena-se a Ré Lusitânia Companhia de Seguros, S. A. a pagar ao Autor as quantias de: 351,92 EUR, 1 400 EUR, 1 750 EUR, 16 100 EUR num total de 19 602 EUR, acrescidas de juros como determinado na sentença recorrida.

b1). A pagar 35% do valor das despesas futuras, que vieram a ocorrer, desde a data da propositura da ação e enquanto a necessidade das mesmas se mantiver, com as consultas a que se refere o facto provado 42, a liquidar no respetivo incidente.

11. Inconformados com tal decisão, o Autor, a Ré Lusitânia e chamada Auto-Calvário, Lda., de forma subordinada, interpuseram o presente recurso de revista (não tendo sido admitido, por despacho do relator, o recurso do Autor quanto ao segmento decisório dos danos morais, por existir dupla conforme, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil), formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

- Autor -

1.ª O termo “conduzir” referido no art. 503º-3, 1ª parte do CC que estabelece a presunção de culpa do comissário, não se restringe ao ocorrido durante a efectiva circulação do veículo, nos momentos em que aquele comissário se encontra a circular com o mesmo, mas deve antes ser interpretada num sentido mais amplo em que abranja todos os actos que aquele comissário pratique com, no, ou sobre o veículo, e por via dos quais o mesmo crie, potencie ou agrave o perigo, o risco, inerente ao referido veículo.

2.ª O acto de abrir a porta do condutor e de se introduzir no veículo deixando a porta aberta, ou o acto de já dentro do carro voltar a abrir a porta, cria ex novo, agrava ou potencia um perigo, um risco para a circulação automóvel, a acrescer ao inerente a qualquer veículo mesmo que correctamente estacionado, e até diferente deste.

3.ª Tal risco, quando criado, agravado ou potenciado pelo comissário, está sujeito à presunção de culpa prevista no art. 503.º-3 1ª parte do CC, independentemente deste ir circular ou de ter circulado ou não com a viatura.

4.ª Foi o que em concreto sucedeu com a D. CC quando, agindo como comissária da auto-calvário, e na posse das chaves do veículo, se dirige ao mesmo, abre a porta do condutor, se introduz no veículo no lugar do condutor e volta a abrir a mesma porta, ou deixa a mesma aberta com o que criou ex novo “um risco de embate por parte do veículo, mesmo estacionado”.

5.ª Ao decidir diferentemente, a decisão recorrida fez uma errada interpretação da norma da 1ª parte do nº 3 do art. 503.º do CC a qual, por isso mesmo, violou.

6.ª Devendo consequentemente reformar-se a mesma, de modo a aplicar a presunção de culpa da D. CC enquanto comissária da Auto-Calvário, na produção do sinistro dos autos.

Para o caso de assim se não vir a entender, o que se não concede:

7.ª A ter de se recorrer à repartição da responsabilidade decorrente do risco, e face a um sinistro entre um ciclista que segue na sua faixa de rodagem, perto da berma (berma essa por onde até lhe era lícito circular nos termos e com as limitações do art. 17.º-2 do CE) e a porta de um carro ali estacionado, que se abriu ou já aberta sobre a estrada, tendo, de um lado uma bicicleta, um dos veículos mais frágeis e com menos risco e, do outro, um carro que, embora sendo uma viatura ligeira, é proporcionalmente enorme comparado com a bicicleta, com a agravante de ter aberto a porta ou estar de porta aberta, uma porta de grandes dimensões, tão grande ou maior do que a própria bicicleta, uma porta que, aberta, aumenta em cerca de 50% a envergadura do carro, assim criando um risco ex novo ou potenciando um risco à circulação,

8.ª Com uma desproporção tal que enquanto, fruto do sinistro dos autos, o autor teve as lesões que teve (de onde se destaca traumatismo craniano e cegueira subsequente ao mesmo) o carro apenas terá danificado... um esticador da porta!...

9.ª Não deverá atribuir-se mais de 15% do risco ao ciclista, atribuindo-se os restantes 85% ao automóvel.

10.ª Devendo por isso, e caso tal se mostre necessário face ao indeferimento do nosso anterior pedido, reformar-se aquela decisão de modo a redistribuir-se o risco nas supra indicadas proporções.

Em qualquer caso e sem prescindir,

11.ª Já, vai sendo tempo de as indemnizações atribuídas em caso de morte ou lesão corporal, ou danos morais delas decorrentes, especialmente quando estas sejam graves, deixarem de se pautar por critérios miserabilistas ou serem meramente simbólicas, dando um valor demasiado diminuto à vida e à saúde física e mental como se acaso tais bens, para cada um de nós, fossem pouco importantes.

12.ª E o mesmo se diga relativamente à valorização das dores morais que invariavelmente acompanham a perda e uma ou de outra e as consequentes mazelas que ficam, as mais das vezes para toda a vida, quando não afectam mesmo as vidas de terceiros.

13.ª O infeliz autor era uma pessoa activa, alegre, divertida, trabalhadora, que vivia com gosto uma vida cheia, rodeado da esposa, filhas e netos, bem como dos vizinhos e amigos. confraternizava com a família e amigos com quem gostava de se reunir, apreciando passeios e festas.

14.ª Após o sinistro, como consequência do mesmo sobrevieram ao autor as sequelas que melhor constam dos autos, das quais se destacam cegueira quase total, défice cognitivo ligeiro a moderado e síndrome pós-comocional, o que tudo diminuiu drasticamente a qualidade de vida do a. ou, dito de outro modo, destruiu completamente a sua vida.

15.ª Acresce que temeu fortemente pela sua vida, padeceu dores físicas intensas durante todo o período de recuperação, e sofre ainda de uma dor de alma que nada consegue apagar.

16.ª Deve por isso, e para além das indemnizações já atribuídas a título de compensação pelos danos patrimoniais e biológico, atribuir-se ao autor a título de indemnização pelos danos morais por ele sofridos um valor nunca inferior ao peticionado, já de si modesto, de € 70.000,00, o qual deverá ser somado aos parciais já atrás referido, num total indemnizatório que, assim, nunca será inferior aos € 80.005,48.

17.ª Donde se entender que, também nessa parte, o douto acórdão recorrido deverá ser alterado, condenando-se a(s) entidade(s) que vier(em) a ser considerada(s) responsável(eis) a pagar ao autor as verbas peticionadas na p.i..

Conclui pela procedência do recurso.


- A Ré Lusitânia Companhia de Seguros, S.A. –

A. O recurso ora interposto do douto acórdão proferido é apresentado na firme convicção de que a matéria de facto apurada nestes autos impunha ao Tribunal a quo a adopção de uma decisão diferente da seguida, designadamente, quanto à obrigação de indemnizar.

B. Desde logo, se reconhece a bondade da decisão proferida na interpretação que fez quanto à direcção efectiva e na conclusão a que chegou de que quem detinha a direção da viatura ligeira de passageiros era a interveniente Auto-Calvário, Lda., bem como na não aplicação da presunção de culpa prevista no n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil e na distribuição do risco por si operada.

C. Todavia, já não concorda a aqui Apelante com a interpretação e solução jurídica dada ao caso concreto, qual seja, na hipótese do garagista que tem a direção efetiva da viatura mas não celebrou o respetivo contrato de seguro, ao invés de ser chamado a responder o Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do artigo 47.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, quem deverá responder será o seguro do veículo celebrado pelo dono/proprietário daquele.

D. O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem natureza pessoal, ex vi n.º 1 do artigo 4.º do DL 291/2007.

E. O n.º 1 do artigo 15.º do DL 291/2007 estabelece as pessoas cuja responsabilidade é garantida, prevendo o n.º 2 a extensão da garantia de satisfação das indemnizações aos casos de furto, roubo, furto de uso do veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados.

F. Acontece que, caso o proprietário do veículo não tenha a direcção efectiva do mesmo – como se verifica in casu – o artigo 15.º já não prevê a possibilidade do contrato garantir a responsabilidade civil desse terceiro considerado responsável pelo sinistro.

G. Com efeito, por força da natureza pessoal do contrato, as regras associadas ao regime do contrato de seguro automóvel não derrogam as regras gerais do regime da responsabilidade civil. E, por aplicação destas, o proprietário do veículo jamais poderia ser responsabilizado, na justa medida em que não tinha a direcção efectiva do veículo lesante.

H. Dito de outro modo, não tendo o proprietário do veículo a sua direcção efectiva ou qualquer relação de comissão com o detentor ou condutor do mesmo, não existe qualquer responsabilidade civil que a seguradora deva garantir.

I. Donde, por o veículo XS se encontrar sob a direcção efectiva da Chamada Auto Calvário o seguro celebrado com a aqui Apelante não garante a satisfação da indemnização – ex vi artigo 15.º DL 291/2007.

J. Significa, portanto, que a Chamada Auto Calvário estava obrigada a segurar a responsabilidade civil. Não tendo cumprido com essa obrigação e detendo a direcção efectiva do veículo, quem deve ser chamada a ressarcir os danos do Apelado Autor é o FGA (artigos 47.º, n.º 1 e 62º, n.º 1 do DL 291/2007).

K. Sem prejuízo, importa, ainda assim, refutar a argumentação explanada no douto acórdão em crise, segundo a qual pela circunstância de agora o artigo 27.º do DL 291/2007 prever a possibilidade que consta da alínea f) tal significa que ocorreu uma alteração da subsidiariedade que faz com que, não existindo seguro de garagista, responde o seguro do proprietário do veículo.

L. Com efeito, esta alteração/introdução no artigo 27.º não derroga as regras gerais do regime da responsabilidade civil pelo que o seguro celebrado pelo proprietário apenas responde se e na medida em que houver responsabilidades que lhe caiba garantir por via do artigo 15.º - o que in casu não se verifica.

M. Note-se que não é por alíneas a) e b) do mesmo artigo 27.º preverem a possibilidade de direito de regresso que se afasta o disposto no número 3 do artigo 15.º e a exclusão de garantir a satisfação das indemnização ali previstas; donde não é por se prever a alínea f) do artigo 27.º que se altera o âmbito e abrangência do n.º 1 e 2 do artigo 15.º.

N. Deste modo, deve o douto acórdão proferido ser revogado e substituído por outro que absolva a aqui Apelante do pedido.

O. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 4.º, 6.º, 15.º, 47.º e 62º, todos do DL 291/2007 de 21 de Agosto.

Conclui pela procedência do recurso.


- A chamada Auto-Calvário, Lda. (recurso subordinado) –

37.ª A aqui recorrente AUTO CALVÁRIO, LDA tem legitimidade para interpor o presente recurso, atento o disposto nos artigos 631, nº 2 e 633 do CPC.

38.ª Muito embora a aqui recorrente tivesse sido absolvida dos pedidos formulados pelo autor e condenado exclusivamente a ré LUSITANIA, o certo é que o recurso aponta para um eventual direito de regresso desta sobre a AUTO CALVÁRIO, LDA e, nessa medida, a decisão recorrida afeta-lhe.

39.ª O douto Acordão recorrido aponta no sentido de quem detinha a direção efetiva do veículo era aqui recorrente AUTO CALVÁRIO, LDA, sustentando, em sumula, que a partir do momento em que o proprietário entrega a viatura à oficina, do que é pressuposto a entrega da chave da mesma (a chave foi entregue), aquele deixa de ter qualquer poder real sobre esse veículo.

40.ª O acto da entrega das chaves não é necessariamente o ato que determina a mudança da titularidade da direção efetiva.

41.ª Conforme resulta provado, o acordado entre proprietário e Interveniente AUTO CALVÁRIO, LDA foi entregar o veículo nas instalações às 14H00; o proprietário, ou a esposa deste, a mando daquele, deixou o veículo de manhã e na berma, por interesse exclusivo daqueles, pois dava jeito, porque a esposa tinha que trabalhar de tarde; tendo esta solicitado à CC que conduzisse o veículo até às instalações quando chegasse a sua vez, tendo a CC, no interesse do dono, e com o conhecimento deste, ou da esposa deste, ido verificar se os documentos se encontravam no veículo.

42.ª O veículo foi estacionado na berma e antes da hora marcada, por livre iniciativa da esposa do proprietário; não tendo a hora e local de estacionamento do veículo sido acordados com a Auto Calvário.

43.ª O veículo foi colocado na berma por interesse do próprio proprietário.

44.ª E à hora do evento em causa nos autos, a Auto Calvário, Lda não tinha dado início aos trabalhos de inspeção técnica.

45.ª O proprietário, através da sua esposa, solicitou à Ré CC que levasse o carro para as instalações quando chegasse a hora combinada, isto é, às 14H00.

46.ª Face a esta factualidade, o domínio sobre o veículo apenas passaria para a AUTO CALVÁRIO, LDA no momento que o mesmo entrasse nas instalações (de acordo aliás com o que havia sido combinado) e no momento em que se iniciassem a execução dos trabalhos da inspeção técnica e era durante o período de reparação que ocorreria o interesse da oficina na dita inspeção e correlativamente era, nesse momento, que passava a ter a verdadeira posse e a direção efetiva.

47.ª O veículo foi deixado na berma segundo instruções do seu proprietário e no seu próprio interesse, porque foi deixado naquele lugar antes da hora marcada e lhe dava mais jeito.

48.ª Da matéria de facto provada resulta que CC não teve culpa na produção do embate, não resultando da matéria assente qualquer ilícito na conduta de CC.

49.ª O veículo encontrava-se bem estacionado na berma, sendo que o estacionamento na berma é permitido, não se tendo assim provado que uma alegada abertura tivesse violado a hemifaixa de rodagem onde seguia o autor/recorrente e que, por via dessa abertura, tivesse cortado a trajetória do velocípede e, consequentemente, tivesse provocado o embate.

50.ª Ao invés, o autor violou o dever de circular pelo lado da via de trânsito, conservando das bermas e passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes – Artigo 90, nº 3 do CE.

51.ª O autor/recorrente não cumpriu com esta regra, tanto mais que foi embater na porta do veículo automóvel.

52.ª É o autor/recorrente que alega na sua petição que circulava próximo da berma direita da via (artigo 7 da petição).

53.ª Também resulta provado que o autor violou o disposto no artigo 3, nº 2 do CE que as pessoas devem de abster-se de atos que comprometam a segurança dos utentes da via.

54.ª É uma regra do mais elementar cuidado que o ciclista deve observar, sabendo se que uma queda ou embate pode causar ferimentos graves e, no caso dos autos, pois que, não fosse a falta de capacete de proteção, o autor não teria sofrido os danos que veio infelizmente a sofrer, tendo a falta de uso de proteção contribuído para as lesões sofrias, designadamente traumatismo Crânio-Encefálico (alienas 23, 29 e 47 dos factos provados).

55.ª No caso presente, a falta de proteção na cabeça (capacete) contribuiu de modo relevante para a produção dos danos sofridos pelo autor.

56.ª Foram estas condutas do Autor que deram causa ao embate, foram estas concretas condutas que influenciaram relevantemente para a produção do dano.

57.ª Não fosse aquele (s) comportamento (s) adoptado (s) pelo autor, o acidente não se daria ou, pelo menos, não se verificariam os danos causados.

58.ª A culpa na responsabilidade civil envolve sempre um juízo de censura e, no presente, foi a violação daquelas normas foram a causa do acidente, existindo assim uma presunção de culpa contra o autor daquelas contravenções.

59.ª Sem prejuízo, entendemos que, em termos de equidade, deve o montante a título de dano moral fixar-se em 30.000 € e o dano patrimonial fixar-se em 5.005,49 €.

60.ª A decisão “à quo” violou por erro de interpretação o disposto nos artigos 483, 500, 503, nº 1, 506 do CC; artigo 3, nº 2 do CE.

Conclui pela procedência do recurso subordinado e, em consequência, deve ser absolvida dos pedidos.

12. Auto Calvário, Lda., Fundo de Garantia Automóvel e o Autor apresentaram contra-alegações.

13. Cumpre apreciar e decidir.


II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelos Recorrentes decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- Recurso de revista do Autor:

- Da direção efetiva do veículo automóvel - do erro de julgamento na interpretação da direção efetiva do veículo, artigo 503.º do Código Civil;

- Da responsabilidade dos intervenientes na ocorrência do evento - do erro de julgamento na repartição da responsabilidade pelo risco.

- Recurso de revista da Ré Lusitânia Companhia de Seguros, S.A.:

- Da responsabilidade pelo pagamento de eventual indemnização - do erro de julgamento na interpretação do artigos 4.º, 6.º, 15.º, 47.º e 62º, todos do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.

- Recurso subordinado da chamada Auto-Calvário, Lda.:

- Da direção efetiva do veículo e da culpa do Autor na produção do evento;

            - Dos montantes indemnizatórios fixados - deve o montante a título de dano moral fixar-se em €30 000 e o dano patrimonial fixar-se em €5 005,49.


III. Fundamentação

1. As instâncias julgaram provados os seguintes factos:

1.1. No dia … de Julho de 2014, entre as 8,30 as 09h00, na ........, da freguesia ......., concelho ..........., e no enfiamento do nº … daquela via, ocorreu um sinistro, no qual foram intervenientes, pelo menos, os seguintes veículos:

a) o veículo ligeiro de passageiros marca ......... com a matrícula ..-..-XS, propriedade de BB, residente na ......, .........., ….-…....; e

b) o velocípede sem motor, propriedade e conduzido pelo Autor.

1.2. Era de dia, fazia bom tempo (não chovia) e era possível avistar a via no local em toda a sua extensão e largura.

1.3. A via em questão é uma rua em patamar e em recta, pavimentada em alcatrão, composta por duas hemi-faixas de sentido oposto e encontrava-se em bom estado.

1.4. Está inserida dentro de localidade, no centro urbano ......., e tem, no local, uma largura exacta não apurada, mas sempre entre 4,93 m e 5 metros.

1.5. Nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, quando o Autor seguia no velocípede melhor identificado em 2, no sentido ……/......., e no momento em que o A. estava a (ultra)passar pelo ligeiro de passageiros melhor identificado na al. a) do mesmo nº 2, que ali estava parado na berma, deu-se o embate entre a “porta do condutor” do veículo ..-..-XS, a qual estava aberta com um ângulo de abertura que, em concreto, não foi possível apurar, e o velocípede, não tendo, de igual modo, sido possível apurar em que momento a abertura da porta foi realizada.

1.6. O que, para além de lhe provocar os ferimentos que infra se descreverão, provocou a queda do Autor, da qual para além do mais resultou traumatismo crânio encefálico, com as consequências que infra melhor se descreverão.

1.7. A Ré Auto Calvário, Lda., foi incumbida pela mulher do proprietário do XS, a mando e com o conhecimento deste, para proceder a uma inspecção técnica à viatura e, em seguida, levar a mesma à vistoria obrigatória da IPO.

1.8. Na data acordada para a inspecção técnica e vistoria obrigatória da IPO, a esposa do proprietário, a mando deste, levou o veículo até à oficina Ré.

1.9. O que fez na data acordada, mas antes da hora agendada para o início do trabalho de inspecção técnica, deixando estacionado o veículo na berma ........., atento o sentido ……/........

1.10. Entregou as chaves à chamada CC na via pública, indicando o local onde o veículo se encontrava estacionado de modo que, como anteriormente combinado, Auto-Calvário procedesse às atividades referidas em 7.

1.11. Seguidamente, a esposa do proprietário do XS abandonou o local, pois não podia ficar à espera da hora agendada para início dos trabalhos da inspecção técnica e não ter tempo a perder.

1.12. Aquando do evento em causa nos autos, o veículo ainda não tinha entrado na oficina e ainda não tinham sido iniciados os trabalhos da inspecção técnica solicitada.

1.13. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1, a Ré CC, sócia-gerente da sociedade Auto Calvário – Comércio e Reparação de Automóveis, Lda., desde 15/08/09, no contexto do que a esposa do proprietário do veículo XS havia solicitado àquela sociedade e na posse das chaves que tinham sido entregues, dirigiu-se ao veículo XS, para levantar os documentos do veículo, que tinham relevância para os serviços que foram solicitados, tendo-se introduzido no mesmo pela porta da frente do lado do condutor que previamente abriu.

1.14. Eliminado.

1.15. No momento referido 5, CC encontrava-se no interior da viatura XS, sentada no lugar do condutor.

1.16. A berma da estrada, atento o sentido ……/......., onde o veículo XS se encontrava estacionado, tem uma largura de 2,90 metros de largura.

1.17. O veículo estava estacionado totalmente dentro da berma e de forma e paralela à estrada.

1.18. Existindo uma linha longitudinal descontinua a separar a berma da estrada/faixa de rodagem.

1.19. A Ré CC não tinha contrato de trabalho com Auto Calvário. (No ac. recorrido é indicado o facto não provado 19, mas em face do teor destes factos, entendemos que queriam remeter para este facto provado)

1.20. Momentos após a Ré CC se ter introduzido no interior do veículo XS nos moldes descritos, passou um camião, tendo, em seguida, a referida Ré sentido um estrondo na porta do lado esquerdo, tendo então reparado que tinha ocorrido o embate supra descrito.

1.21. Numa sequência cronológica em relação aos descritos factos que não foi possível apurar, o referido camião iniciou e concluiu a ultrapassagem do velocípede.

1.22. O acidente dos autos foi participado ao DIAP ................... tendo dado origem ao processo que ali correu termos com o nº 10/15......., que na fase de inquérito foi arquivado por despacho cuja cópia está junta com a contestação da Auto Calvário como DOC.5, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

1.23. O autor conduzia o velocípede sem motor sem o uso de capacete, o que, a par do embate, contribuiu para as lesões infra descritas que aquele sofreu ao nível da cabeça.

1.24. O velocípede não tinha qualquer material reflector e luzes.

1.25. Após a ocorrência do sinistro, o proprietário do veículo XS foi informado que o seu veículo havia sido interveniente no sinistro supra descrito.

1.26. A referida CC não se dirigiu ao veículo com a intenção de o conduzir naquele momento.

1.27. À data do sinistro, a AUTO CALVÁRIO não tinha transferida a responsabilidade civil respeitante aos riscos próprios da actividade de mecânico/garagista.

1.28. À data do sinistro, o proprietário do veículo “XS” tinha transferido para a Ré “LUSITÂNIA” a responsabilidade civil automóvel pelos danos provocados a terceiros pelo referido veículo, por acordo de seguro titulado pela apólice nº .....26, nos termos e condições vertidas no Doc.1 junto com a contestação daquela Ré que se dá aqui por reproduzido para todos os efeitos legais.

1.29. Como consequência do embate, Autor ficou politraumatizado, tendo sofrido Traumatismo Crânio-Encefálico com perda dos sentidos, para o que também contribuiu a falta de uso do capacete de protecção, traumatismo ao nível da face, tórax e escoriações nos membros.

1.30. Foi socorrido no local pela Cruz Vermelha ....... e transportado aos Serviços de Urgência (SU) do Hospital …………. (também designado como Centro Hospitalar do …………), em ……..

1.31. De onde foi reencaminhado para o Hospital …, no …...

1.32. Onde, depois de inúmeros exames, lhe foram detectados, para além do mais, múltiplos focos de contusão hemorrágicos fronto-basais e temporo-polares bilaterais, tal como temporal posterior e occipital à direita, fractura longitudinal da mastoide direita com hemotimpano associado.

1.33. Ficou por isso internado naquele H……., onde foi mantido sedado, em “coma induzido”, desde o dia do sinistro até ao dia 19.07.2014.

1.34. Com ventilação assistida mecanicamente até 20/7/2014.

1.35. Tendo tido alta clínica no dia 21/7/2014.

1.36. Mas onde teve de permanecer até à alta do serviço de Neurocirurgia em 25/7/2014.

1.37. Com retorno para consulta de ambulatório em 7/8/2014.

1.38. Em consequência do embate e das lesões sofridas, o Autor teve de regressar àquele Hospital em episódio de urgência logo a 31.07.2014, onde foi novamente assistido,

1.39. E onde, sempre pelos mesmos motivos, regressou ainda em novo episódio de urgência a 14-08-2014, onde foi outra vez assistido.

1.40. Recorreu ainda, sempre pelos mesmos motivos e em mais um episódio de urgência, ao SU do Centro Hospitalar .........., Hospital ..........., em …….., em 29.08.2014.

1.41. De onde voltou a ser reencaminhado para o Hospital ……..

1.42. E desde então vem sendo sistematicamente acompanhado em consultas externas de Neurologia (com a Dra. DD) e de Psiquiatria (Com o Dr. EE) no Hospital ......... em …….., e Oftalmologia no Hospital da Santa Casa da Misericórdia……..

1.43. A situação pós sinistro do Autor foi uma situação crítica do ponto de vista neurológico, tendo ficado com a sua vida em risco.

1.44. Depois da alta e durante 250 dias, o Autor ficou dependente de terceiros, começando por ser uma dependência quase total para passar a ser uma dependência parcial, até para as mais básicas tarefas da vida diária, desde o banho até vestir-se ou alimentar-se.

1.45. E, não mais voltou a ser a pessoa que era, activa, alegre, divertida, trabalhadora, que vivia com gosto de uma vida cheia, rodeado da esposa, filhas e netos, bem como dos vizinhos e amigos.

1.46. Que confraternizava com a família e amigos com quem gostava de se reunir, apreciando passeios e festas.

1.47. Subsequente ao sinistro, como consequência do mesmo e da falta de uso do capacete de protecção, sobrevieram ao Autor as sequelas seguintes:

a) ao nível do crânio, défice cognitivo ligeiro a moderado/síndrome pós-comocional;

b) diminuição da acuidade visual bilateral com consequente hipovisão bilateral (OD 1/10 OE 1/10).

1.48. Tudo situações que diminuíram a qualidade de vida e a capacidade do Autor, provocando-lhe, como sequela, um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de, pelo menos, 65 pontos, a implicar esforços acrescidos para as actividades gerais e para o trabalho em igual valor.

1.49. Fruto do acidente dos autos e dos danos neurológicos e do ouvido interno por si ali sofridos, o Autor viu diminuída a sua acuidade visual e perdeu o controlo dos movimentos mais finos (impedindo-o por exemplo de fazer a barba ou cortar as unhas).

1.50. Deixou de conseguir ler ou fazer cálculos aritméticos por mais simples que sejam.

1.51. Passou a temer andar pela estrada, principalmente pelo lugar onde o sinistro ocorreu.

1.52. Todas estas limitações e alterações abalaram psicologicamente o Autor, passando o mesmo a ser uma pessoa menos jovial, menos extrovertida, menos trabalhadora e não tão bem resolvido com a vida.

1.53. A consolidação médico-legal das lesões é fixável em 01-04-2015, tendo em conta: o tipo de lesões resultantes e o tipo de tratamentos efetuados.

1.54. O período de incapacidade absoluta coincide com o período em que esteve internado desde a data do embate e internamento até a data da alta hospitalar (de 09/07/2014 a 25/7/2014 - 17 dias).

1.55. O período de défice funcional incapacidade temporário parcial vai desde a data da alta hospitalar até a data da consulta médica de oftalmologia (de 26.07.2014 a 01.04.2015 – 250 dias).

1.56. O quantum doloris sofrido pelo Autor é de, pelo menos, grau 4, numa escala de sete graus de gravidade crescente, em virtude do perigo de vida, estado de inconsciência com sedação e entubação e complicação infecciosa (pneumonia contraída durante o internamento).

1.57. Quanto ao prejuízo de afirmação pessoal, é fixável no grau 3 numa escala de cinco graus de gravidade crescente em virtude da hipovisão bilateral.

1.58. Apesar de reformado, o Autor trabalhava na agricultura, fazendo-o como passatempo em face do prazer que lhe proporcionava, mas também como forma de completar a economia familiar.

1.59. Fazia-o por conta própria, cultivando (com batatas, cebolas, couves, tronchudas, repolhos, alfaces, pepinos, tomates, abóboras, melões e todos os outros produtos que conseguia retirar da terra) num terreno de que é proprietário e num outro que lhe emprestam, com o que retirava mais do que o necessário para alimentar com aqueles géneros alimentícios toda a família, incluindo filhas, genros e netos, que assim não necessitavam de fazer essa despesa.

1.60. De tais actividades, tendo em conta as despesas que deixava de ter de fazer, o Autor obtinha um benefício médio por ano equivalente a um montante nunca inferior a € 1.000,00.

1.61. Benefício que, fruto das incapacidades resultantes do acidente dos autos, não mais logrará obter.

1.62. Muito embora o rebate profissional da incapacidade atribuída se quede pelos 65%, o facto é que fruto das suas limitações físicas e neurológicas não mais o A foi nem será capaz de efectuar os trabalhos que fazia, pelo que, a consequência prática no seu caso é a de uma incapacidade total para manter a actividade até então desenvolvida.

1.63. O autor nasceu a .../05/1948.

1.64. No momento do sinistro, o Autor temeu pela sua vida.

1.65. Nos momentos subsequentes e apesar de ter perdido os sentidos, foi grande o seu estado de dor e sofrimento, o que determinou que tivesse sido sedado, ficando em coma induzido.

1.66. E assim permaneceu até ter deixado de ficar sedado.

1.67. Correu perigo de vida, em face do TCE sofrido.

1.68. Foi com angústia e sofrimento que, quando acordou tomou consciência que perdera parte da visão nos moldes supra descritos.

1.69. Durante os dias da sua incapacidade temporária total e depois parcial, foi com angústia e constrangimento que se via na quase completa e depois parcial dependência de suas filhas até para as tarefas mais simples, como para tomar banho vestir-se e comer.

1.70. Convivia com dores.

1.71. Sentiu vergonha em virtude de sofrer das limitações supra descritas.

2. E julgaram não provados os seguintes factos:

2.1. Na altura do embate, o veículo ..-..-XS estivesse em movimento a ser conduzido por CC.

2.1.1. A interveniente CC fosse funcionária de Auto-Calvário, Lda.

2.2. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas nos factos provados, o velocípede seguisse a uma velocidade de cerca de 20 Kms/hora e pela hemifaixa de rodagem direita, atento o seu apurado sentido de marcha, próximo da berma desse mesmo lado.

2.3. O condutor do velocípede tivesse sido surpreendido com a inesperada e repentina abertura da “porta do condutor” do veículo ..-..-XS no preciso momento em que por ele passava.

2.4. A referida porta se tivesse aberto no momento em que o Autor passava de bicicleta, provocando o apurado embate.

2.5. A condutora do veículo ..-..-XS, completamente desatenta, não tivesse cuidado de verificar se ao abrir tal porta não estaria a pôr em risco os demais utentes da via e, in casu, o Autor, e bem assim que lhe tivesse barrado o caminho.

2.6. O veículo XS se encontrasse encostado ao muro existente no limite direito da berma, atento o sentido ……./........

2.7. No momento em que a Ré CC se introduziu no interior do veículo XS, nos moldes dados como provados, tivesse deixado a porta do veículo entreaberta.

2.8. Ou que, quando abriu a porta para entrar, se tivesse descuidado e a tivesse deixado totalmente aberta.

2.9. A referida porta nunca tivesse chegado a invadir a hemi-faixa direita da via, atento o sentido ......./........

2.10. A Ré CC tivesse, inicialmente, julgado que o camião referido nos factos provados tivesse embatido no velocípede.

2.11. O autor tivesse ou pudesse ter visto que a porta do veículo se encontrava entreaberta.

2.12. Quando o velocípede (ultra) passou o veículo XS, a porta esquerda deste veículo já se encontrasse entreaberta.

2.13. O sinistro se tivesse dado por distracção do autor ou porque este se tivesse atrapalhado com a passagem do camião que o ultrapassou e tivesse sido por causa disso que o embate na porta se tivesse dado.

2.14. O Autor circulasse com o velocípede a invadir, pelo menos, parcialmente a berma.

2.15. A falta de uso de capacete tivesse sido a única causa das lesões sofridas pelo Autor na cabeça.

2.16. Na altura do embate, o veículo XS se encontrasse em movimento a ser conduzido pela CC.

2.17. Em consequência do embate, o autor tivesse ficado com as seguintes sequelas:

a) múltiplas contusões cerebrais, hemorragia subaracnoideia e fractura mastoide direita;

b) Perturbação persistente de humor – perturbação funcional moderada, com uma IPP de 10 pontos.

c) Alterações de personalidade compatíveis transtorno pós-traumático moderado.

2.18. Em consequência do embate, o autor tivesse ficado com dificuldades de equilíbrio que lhe dificultam o andar, e o fazem cair sem causa aparente a qualquer momento.

2.19. Tivesse perdido o sentido de orientação, perdendo-se frequentemente pela vizinhança.

2.20. Tivesse perdido a sua capacidade de se situar no tempo (horas do dia e dias da semana), e em avaliar o decurso do tempo.

2.21. Tivesse passado a efabular cenários e a encará-los como verdadeiros, passando a desconfiar de todos e de tudo.

2.22. Tivesse sofrido disfunções ao nível da capacidade sexual, com danos na sua auto estima e na vida familiar.

2.23. O autor fique a tremer, a transpirar e visivelmente alterado sempre que passa pelo lugar onde o sinistre ocorreu.

2.24. Após o embate e por causa dele, o Autor tivesse passado a ser uma pessoa profundamente depressiva.

2.25. O Autor tivesse passado a dizer, frequentemente, que “se já não trabalha, não merecer sequer comer ou viver”.

2.26. Os produtos retirados da agricultura ainda sobrassem para dar aos amigos e vender a quem precisasse.

2.27. O Autor ajudasse terceiros, prestando serviços remunerados a amigos que lho solicitavam.

2.28. Na agricultura, o Autor retirasse um rendimento anual médio não inferior a € 7.500,00.

2.29. O Autor ainda hoje não se tenha conformado ainda hoje com as perdas que sofreu.

2.30. Foi e é com vergonha e humilhação que lida com a disfunção sexual de que ficou a padecer.

2.31. Tal como é vexado e humilhado que constata que muitas vezes não é capaz de regressar a casa ou que se esquece das horas ou até que incomoda os vizinhos com questões por si imaginadas, mas sem fundamento real.

2.32. Continua a reviver a situação traumática decorrente do evento dos autos e as consequências do mesmo, mormente o seu encontro com a morte iminente, o que agrava a sua angústia, tristeza, revolta e ansiedade.

2.33. Tudo o que o deixa profundamente deprimido e com a sensação de que passou a ser um inútil que não merece aquilo que come, e com vontade de morrer.

2.34. Sempre em consequência do sinistro dos autos, o Autor continua a necessitar de tratamentos de psiquiatria e de neurologia que parecem não ter fim.

2.35. Além disso, toma diariamente medicação e necessita de acompanhamento medicamentoso permanente.

2.36. A necessidade das consultas referidas nos factos provados se irá prolongar ao longo de toda a vida do autor.

2.37. A sua situação de cegueira quase total e de desequilíbrio obrigam a uma assistência quase permanente de terceiro.

2.38. Com a perspectiva de se agravar no futuro e de se tornar premente a contratação de quem o acompanhe.

2.39. A entrega de chaves referida em 10) dos factos provados tenha ocorrido na receção da oficina e que tenha sido referido indicado à chamada CC que, quando chegasse a sua vez para a inspecção se faziam o favor de o reencaminhar para as instalações.


3. Da direção efetiva e da culpa do Autor

Quer o Autor quer a chamada Auto-Calvário, Lda. insurgem-se contra a apreciação que o Acórdão recorrido fez quanto à subsunção do conceito de direção efetiva previsto no artigo 503.º do Código Civil

Por seu lado, o Autor entende que “2. O acto de abrir a porta do condutor e de se introduzir no veículo deixando a porta aberta, ou o acto de já dentro do carro voltar a abrir a porta, cria ex novo, agrava ou potencia um perigo, um risco para a circulação automóvel, a acrescer ao inerente a qualquer veículo mesmo que correctamente estacionado, e até diferente deste.

3. Tal risco, quando criado, agravado ou potenciado pelo comissário, está sujeito à presunção de culpa prevista no art. 503.º-3 1ª parte do CC, independentemente deste ir circular ou de ter circulado ou não com a viatura.” – devendo, desta forma considerar-se a presunção de culpa de CC, enquanto comissária da Auto-Calvário, Lda., prevista no artigo 503.º, n.º 3, 1.ª parte, do Código Civil.

A chamada Auto-Calvário, Lda., por seu lado, entende “40. O acto da entrega das chaves não é necessariamente o ato que determina a mudança da titularidade da direção efetiva. (…)

47. O veículo foi deixado na berma segundo instruções do seu proprietário e no seu próprio interesse, porque foi deixado naquele lugar antes da hora marcada e lhe dava mais jeito.

48. Da matéria de facto provada resulta que CC não teve culpa na produção do embate, não resultando da matéria assente qualquer ilícito na conduta de CC.

49. O veículo encontrava-se bem estacionado na berma, sendo que o estacionamento na berma é permitido, não se tendo assim provado que uma alegada abertura tivesse violado a hemifaixa de rodagem onde seguia o autor/recorrente e que, por via dessa abertura, tivesse cortado a trajetória do velocípede e, consequentemente, tivesse provocado o embate.”.

Neste conspecto, o Acórdão recorrido decidiu que não se mostra possível imputar o embate a título de dolo ou negligência aos intervenientes – Autor e CC – pois que nenhum deles infringiu qualquer norma de condução estradal, nem estão preenchidos os pressupostos da ilicitude, culpa ou nexo de causalidade previstos no artigo 483.º do Código Civil.

Conclui que a partir do momento em que o proprietário entrega a viatura à oficina, em concreto a CC, sua representante legal, do que é pressuposto a entrega da chave da mesma, aquele deixa de ter qualquer poder real sobre esse veículo. Passando, desta forma, a partir do momento da entrega da chave, direção efetiva do veículo a estar a cargo da oficina Auto-Calvário, Lda., que passa a ter total controlo sobre a viatura. Mais conclui que a circunstância de ser representante legal da oficina, não obsta a que possa existir uma relação de comitente-comissário – uma vez que aquela agiu por conta da oficina, sendo irrelevante a circunstância de não se ter iniciado o horário laboral da empresa, cf. artigo 503.º, n.º 1, do Código Civil.

Mais conclui que aqui não pode operar a presunção de culpa estabelecida no artigo 503.º, n.º 3, do Código Civil, uma vez que a viatura não estava a ser conduzida, limitando-se CC a abrir a porta do veículo para ir buscar uns documentos, não praticando qualquer ato de condução, mesmo que inicial.

Mas, entende que a abertura da porta do veículo por CC determinou a criação de um risco de embate por parte do veículo, mesmo que estacionado. E que o velocípede, conduzido pelo Autor, apresenta o risco próprio da sua circulação, pelo menos momentaneamente muito próximo da berma – violação objetiva do artigo 90.º, n.º 3, do C. E. (redação dada pela Lei n.º 72/2013, de 03/09 – C. E./2014) – e a circunstância de conduzir sem capacete, entendeu distribui o risco em termos de 65% para o velocípede (com o aumento de 10% por o Autor não usar proteção na cabeça) e 35% ao veículo automóvel, nos termos do artigo 506.º, n.º 1, do Código Civil.

Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 1987, p. 512 a 515, esclarecem que “Tem a direcção efectiva do veículo aquele que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento (…).

O segundo requisito – utilização no próprio interesse – visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem.

(…)

A responsabilidade objectiva cobre os «danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação».

Dentro desta fórmula legal cabem não só os danos provenientes dos acidentes provocados pelo veículo em circulação (…), como pelo veículo estacionado (… acidente causado pela porta que ficou indevidamente aberta …), sendo irrelevante, por outro lado, que o acidente ocorra nas vias públicas ou fora delas.”.

Também Raul Guichard, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, dezembro 2018, pp. 397 a 410, entende que “A responsabilidade instituída no artigo 503.º configura uma responsabilidade objetiva do «utilizador» ou do «detentor» do veículo (pelo acréscimo de perigo que este representa e como contrapartida dos benefícios auferidos por quem dele tira partido – ubi commodum, ibi incommodum).

(…)

Por exemplo, (…) resultantes da abertura de uma porta do veículo parado (…).

Por não ter a direção (como já alguém observou, o termo pode induzir em erro, visto que numa certa aceção «dirigir» significa «conduzir») efetiva do veículo (embora dele retire proveito), não serão responsáveis, nomeadamente: (…) quem, simplesmente, a deixou na oficina (em princípio, será preciso, para o isentar de responsabilidade e para tornar responsável o depositário, que este preste o serviço onerosamente) para reparação (em sentido contrário, por ex. o Ac. STJ de 28.06.79 – 67596 –, BMJ, 288, p. 394; em sentido afirmativo – como nos parece que deve ser desde que, por ex., a experimentação do carro pelo mecânico se relacione com a reparação e sua verificação – Acs. STJ 21.10.92 – 42817 –, BMJ, n.º 420, p. 531, e 28.09.2004 – 04ª2445) (…).

Conforme se afirma no Acórdão do STJ, de 02-06-2020 (Revista n.º 1629/15.8T8CTB.C2.S1), «Como há muito salienta a doutrina e foi salientado pelo acórdão recorrido, "a fórmula (...) - ter a direcção efectiva do veículo - destina-se a abranger todos aqueles casos em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objectiva, por se tratar das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências para que o veículo funcione sem causar dano a terceiros. A direcção efectiva do veículo é o poder real (de facto) sobre o veículo e constitui o elemento comum a todas as situações referidas [proprietário, usufrutuário, adquirente com reserva de propriedade, comodatário, locatário, o que o furtou, condutor abusivo, possuidor em nome próprio], sendo a falta dele que explica, em alguns dos casos, a exclusão da responsabilidade do proprietário. Tem a direcção efectiva do veículo aquele que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento". Por outro lado, o segundo requisito da lei - utilização no próprio interesse - "visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário, utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem" (As transcrições são de PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, Volume I, (Artigos 1.° a 761°), 4.a ed., com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Coimbra, 1987,artigo 503°, págs. 513-514). Em suma, a cumulação destes dois requisitos não exige, para a responsabilidade objectiva ser decretada, a titularidade jurídica de direito sobre o veículo (proprietário, usufrutuário, comodatário, locatário, beneficiário de aluguer, etc. (ALMEIDA COSTA, Direito das obrigações, 12.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, pág. 630) e, portanto, é alheia aos deveres que sobre tal titular incumbem enquanto refracção jurídica dessa titularidade.».

É de salientar, igualmente, o Acórdão do STJ de 21-04-2009 (Revista n.º 1550/06.0TBMTJ.S1), cujo sumário é o seguinte, “1) A direcção efectiva do veículo traduz-se num poder real (material ou de facto), presumindo-se que o detém o proprietário. 2) O titular da direcção efectiva é solidariamente responsável pelos danos causados pelo condutor desde que demonstrada uma relação de comissão, ou seja, uma inequívoca relação de dependência, ou de mando, em que o comitente pode dar ordens e o comissário lhes deve obediência. 3) Aquando da entrega de um veículo na oficina, para reparação (revisão ou até inspecção) a direcção efectiva transfere-se do proprietário para o garagista durante o período de trabalhos e fases prévias de diagnóstico ou de teste final, fá-lo na qualidade de comissário do garagista. 4) O empregado mecânico da oficina que conduz o veículo nas fases de diagnóstico ou de teste final, fá-lo na qualidade de comissário do garagista. 5) A direcção efectiva pode transferir-se para este, antes da entrada na oficina, se acordada contratualmente com a reparação, a tomada e restituição do veículo, no local indicado pelo dono, tal não acontecendo se tal actividade resultar de mera cortesia ou de solicitação do dono à parte do contrato de reparação. 6) O garagista está obrigatoriamente sujeito à obrigação de segurar (artigo 6.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 291/2007 e do anterior, aqui aplicável) artigo 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro) sendo o seguro de responsabilidade civil para garantir a utilização do veículo enquanto tiver a sua direcção efectiva, isto é, o utilizar por virtude das suas funções e no exercício da sua actividade profissional. 7) A ausência de seguro torna o Fundo de Garantia Automóvel garante da indemnização, que fica subrogado nos direitos do lesado.”.

De acordo com os factos provados, no momento do embate, era CC, sócia-gerente da chamada Auto-Calvário, Lda., quem estava na posse das chaves do veículo automóvel, por lhe terem sido entregues pela esposa do proprietário do veículo, a fim de o veículo ser sujeito, por essa chamada, a inspeção técnica, cf. factos provados 7 a 12. O veículo encontrava-se estacionado na berma, o que foi feito pela esposa do proprietário do veículo, mas foi CC, com vista ao cumprimento das diligências para a inspeção técnica, que se deslocou ao veículo, aí se introduziu e deixou a porta aberta, cf. factos provados 5, 13 e 15 a 17.

Ora destes factos resulta que quem tinha a direção efetiva do veículo seria a chamada Auto-Calvário, Lda., uma vez que a esposa do proprietário já havia entregue as chaves a CC, por ser sua sócia. Esta direção efetiva não pode ser confundida com a condução, uma vez que CC não se deslocou ao veículo para o conduzir; esta direção efetiva, enquanto responsabilidade objetiva pelo risco não pode ser confundida com o ato de conduzir, pois que o artigo 503.º n.º 1 do Código Civil prevê expressamente que o veículo não se encontre em circulação. Aqui, o facto relevante é a porta do veículo estar aberta, pois é aí que o velocípede conduzido pelo Autor vai embater e, por força destes factos provados, dúvidas não restam que quem tinha o poder efetivo sobre aquele veículo, naquele momento, e que determinou a abertura da porta, foi CC. Situação diferente seria, por exemplo, ainda que CC já estivesse na posse das chaves, mas o embate tivesse ocorrido no veículo por estar parado na via pública. Nessa situação, apesar de possuidora das chaves, não teria tido qualquer poder efetivo sobre o veículo. Mas, como também ficou provado, aquela CC não atuou no seu próprio interesse, mas sim no interesse da chamada Auto-Calvário, Lda., enquanto sócia-gerente, o que deve ser equiparado à relação de comitente-comissário, conforme decidido no Ac. do STJ de 10-09-2019 (Revista n.º 5699/11.0TBMAI.P1.S1), “IV - Quando a condução se processe no âmbito do exercício da atividade da sociedade, é de entender que a condução do veículo da sociedade por parte de um gerente se faz em nome e no interesse desta, agindo assim o gerente como comissário para efeitos do n.º 3 do art. 503.º do CC.”. Apesar de neste acórdão se falar em condução na situação de equiparação da atuação do gerente à situação de comissário, entendemos que a situação seja paralela, apesar de não haver condução, pois que a gerente CC, ficou depositária das chaves e do veículo, por ser gerente da sociedade e não noutra qualidade qualquer, sendo que também se deslocou ao interior do veículo e abriu a porta no interesse da sociedade chamada.

A chamada Auto-Calvário, Lda. aceitou ficar responsável pelo veículo antes da abertura das instalações e enquanto a viatura permanecesse no exterior, sendo que, voltamos a realçar, que um dos factos relevantes no embate foi a abertura da porta do veículo, o que não é controlável pelo proprietário, mas sim pela chamada Auto-Calvário, Lda..

Nesta sede, e tal conforme foi decidido no Acórdão recorrido, entende-se ser irrelevante a circunstância de a viatura ter sido entregue antes do horário de laboração da Chamada Auto-Calvário, Lda. e fora das suas instalações, pois que a esposa do proprietário do veículo entregou-o a CC, na qualidade de representante daquela sociedade e para o propósito do exercício da atividade comercial daquela sociedade.

Relativamente à presunção de culpa prevista no n.º 3 do artigo 503.º do Código Civil, em face dos factos provados, relativos à dinâmica do embate, e em especial aos factos provados números 15 e 26, não podemos equiparar a atuação de CC ao ato de conduzir, ela entrou no veículo para dali retirar documentos, o que estava a fazer sentada no lugar do condutor e não entrou para o veículo com o intuito de o conduzir. Esta presunção de culpa só ocorre quando está provada a condução, e nos autos tal não se verifica, pelo que não pode operar esta presunção, conforme pretende o Autor.

Invoca ainda a chamada Auto-Calvário, Lda. que o Autor violou:

- o dever de circular pelo lado da via de trânsito, conservando das bermas e passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes, cf. artigo 90.º, n.º 3, do CE; bem como

- artigo 3.º, n.º 2 do CE, pois com a falta de proteção na cabeça (capacete) contribuiu de modo relevante para a produção dos danos sofridos pelo Autor, e devia ter-se abstido de atos que comprometessem a segurança dos utentes da via.

Também, aqui, não podemos acompanhar a chamada Auto-Calvário, Lda., nem o Acórdão recorrido quando diz que o Autor violou objetivamente o artigo 90.º, n.º 3 do CE, porquanto dos factos provados não resulta que o Autor tivesse violado este normativo. Com efeito, não foi considerado provado qualquer facto relativo a esta circunstância de que o Autor não teria conservado essa distância. Mais, na verdade tais factos foram considerados não provados conforme consta dos factos não provados 2, 11 e 13.

Relativamente à infração do artigo 3.º, n.º 2, do Código da Estrada, a circunstância de o Autor não levar capacete não pode ser considerada uma infração à luz deste normativo, pois que esta norma visa a proteção dos utentes da estrada, não estando o uso do capacete aqui ínsito. É verdade que o uso de capacete nos velocípedes não é obrigatório, tão só nos casos que tenham motor, cf. artigo 82.º, n.º 5, do CE, pelo que não podemos considerar que ocorreu violação de regra estradal. Mas, é verdade e não pode deixar de ser considerado, como o foi no Acórdão recorrido, o risco de cada um dos veículos intervenientes, nos termos do artigo 506.º, n.º 1, do Código Civil.


4. Da responsabilidade dos intervenientes na ocorrência do evento

Entende o Autor que na responsabilidade pelo risco não deverá atribuir-se mais de 15% do risco ao ciclista, atribuindo-se os restantes 85% ao automóvel, face a um sinistro entre um ciclista que segue na sua faixa de rodagem, perto da berma (berma essa por onde até lhe era lícito circular nos termos e com as limitações do art. 17.º-2 do CE) e a porta de um carro ali estacionado, que se abriu ou já aberta sobre a estrada, tendo, de um lado uma bicicleta, um dos veículos mais frágeis e com menos risco e, do outro, um carro que, embora sendo uma viatura ligeira, é proporcionalmente enorme comparado com a bicicleta, com a agravante de ter aberto a porta ou estar de porta aberta, uma porta de grandes dimensões, tão grande ou maior do que a própria bicicleta, uma porta que, aberta, aumenta em cerca de 50% a envergadura do carro, assim criando um risco ex novo ou potenciando um risco à circulação.

O Acórdão recorrido decidiu esta parte nos seguintes termos, “O risco criado por parte do veículo estacionado resulta unicamente da abertura de uma porta, a qual é parte integrante da viatura e que, no caso, desconhecendo-se se houve negligência na sua abertura, acaba por ser uma situação idêntica a se ter aberto uma porta sem intervenção humana.

O risco de circulação do velocípede já nasce de uma efetiva circulação e, pelo menos momentaneamente, muito próximo da berma, pelo que se entende que o risco em causa deve ser colocado com maior peso no velocípede do que no veículo estacionado que, só por ter a porta aberta, é que pode ter criado esse incómodo na circulação.

Acresce ainda ao risco de circulação do velocípede poder criar danos ao próprio condutor a circunstância deste seguir sem uma proteção na sua cabeça (capacete) apesar de legalmente não estar obrigado a fazê-lo. É, para nós, uma regra de cuidado que um ciclista deve observar pois sabe-se que uma queda com embate na cabeça pode causar danos graves, no caso, atenta a idade do ciclista, mais se justificava esse cuidado; no entanto, não sendo uma obrigação legal, esse aumento de risco tem de ser ponderado em termos mínimos.

Distribui-se assim o risco atribuindo-se 65% ao velocípede (com o aumento de 10% por não usar proteção na cabeça) e 35% ao veículo automóvel – artigo 506.º, n.º 1, do C. C.”.

Conforme decidido no Acórdão do STJ de 10-09-2019 (Revista n.º 5699/11.0TBMAI.P1.S1), nos casos de responsabilidade pelo risco, nos termos do artigo 506.º do Código Civil, “A massa, o volume, o peso e a velocidade, são sem dúvida as variáveis que mais deverão influenciar essa repartição. Mas, estando em causa, como está, uma bicicleta, outras variáveis deverão ser levadas em linha que conta, e que, contra o que querem os Autores, têm também significativa relevância (e não uma relevância menor).”.

E o Acórdão do STJ de 06-12-2018 (Revista n.º 1685/15.9T8CBR.C1.S1) refere:

«Assim sendo, como é, para apurar das responsabilidades objectivas de tais intervenientes –“maxime” condutor do veículo ligeiro, vemo-nos sem mais remetidos – como também não suscita controvérsia ‑ para o estatuído no já referenciado art. 506º.

Dispõe este preceito, no seu nº 1, que “se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar.” Por sua vez, o subsequente nº 2 prescreve que “em caso de dúvida, considera-se igual a medida da contribuição de cada um dos veículos para os danos, bem como a contribuição da culpa de cada um dos condutores.”

Tendo em mente, justamente, o ora reproduzido preceito legal, a ora recorrida Relação …, por douto e impressivo Acórdão de 2.12.2003 (cfr. Col., Tomo V, p. 25) decidiu – com o que não podemos estar mais de acordo ‑ , que “a questão da repartição do risco é matéria delicada, sendo certo que não são considerações abstractas que interessam à aplicação prática do art. 506º, mas a proporção em que o risco tenha contribuído no caso concreto para a produção dos danos registados.”

Nestes termos, pois, sendo só em face dos elementos circunstanciais do caso concreto que se quadra possível devidamente aferir e graduar da responsabilidade pelo risco, logo se conclui que não é a simples, redutora, consideração/comparação das características dos veículos envolvidos – peso, potência motriz, envergadura, dificuldade de manobra, instabilidade, etc.‑, que constitui base válida, decisiva, em que fazer assentar esses judicatórios procedimentos.

Consoante escreve o Prof. Antunes Varela (cfr. R.L.J., Ano 101º, pág. 281) “em tese geral, pode com efeito dizer-se que os veículos ligeiros, como as bicicletas motorizadas, os motociclos, são especialmente perigosos, pelas velocidades excessivas que atingem, pela pouca estabilidade que oferecem, etc., ou que o risco das viaturas pesadas se torna particularmente grave, devido à largura, à altura, ao peso e, em certo aspecto, à pouca velocidade do veículo.”

E prosseguindo: “O que interessa, porém, à aplicação prática do artigo 506º não são essas considerações abstractas, mas a proporção em que o risco de cada um dos veículos haja contribuído, em cada caso concreto, para a produção dos danos registados.”

Para concluir: “É, por consequência, na análise das condições em que a colisão se verificou, e no exame das circunstâncias em que os danos se produziram, que o julgador encontrará os principais elementos capazes de o auxiliarem a fixar conscienciosamente a tal proporção a que a lei se refere.”

No mesmo pendor, anota Ana Prata (cfr. Código Civil Anotado, 217, Ana Prata (Coord.), p. 662) que na expressão “riscos próprios do veículo” “[…] se compreendem tanto os riscos da máquina como, numa interpretação extensiva fundada teleologicamente na necessidade que a norma visa de proteger, tão amplamente quanto possível, os lesados por acidentes desta natureza, os riscos do meio em que ela circula e os do respectivo condutor. “

E seguindo: “Esta interpretação não parece justificativa de dúvidas, porquanto um veículo de circulação terrestre não pode ser utilizado sem um piso em que se mova e um condutor que dirija o seu movimento; mesmo que não se encontre em circulação, em algum local está parado e alguém o parou onde se encontra. Tudo quanto é indispensável à utilização do veículo integra os seus “riscos próprios.”

Para findar: “Daí que um piso escorregadio constitua um risco de um veículo em circulação rodoviária como um acidente vascular ou cardíaco do condutor o seja também.

Este mesmo douto entendimento, tem sido também o perfilhado por este Tribunal Supremo, podendo citar-se, entre outros, o Ac. de 10.04.2014 (proferido no Proc. n.º 443/12, e acessível in Sumários, 2014, p. 244) – no sumário do qual consta que “na apreciação da repartição do risco haverá que atender às condições intrínsecas dos veículos intervenientes – designadamente, massa física, dinâmica do veículo, características de funcionamento e composição mecânica –, por outro lado, às condições próprias do tempo e da via em que o concreto veículo circulava e, finalmente, à aptidão, perícia e destreza de condução do próprio tripulante do veículo:”

Também o Ac. de 11.04.2013 (proferido no Proc. n.º 546/06, e acessível in Sumários, 2013, p. 249) – em cujo sumário, começando por se ler: “O capacete constitui um equipamento necessário à condução, que tem como objectivo evitar danos graves em caso de acidente, sendo – por isso mesmo – um meio atinente à condução.”; mais de refere: ”Por essa mesma razão deve integrar o conceito de veículo para efeitos do n.º 1 do art. 506.º do CC, ou seja, para efeitos dos riscos que cada um dos veículos trouxe para a produção dos danos.”

Por fim, ainda o Ac. de 11.04.2011 (proferido no Proc. n.º 212/04, e acessível in Sumários, 2011, p. 311) – de cuja síntese conclusiva consta que “não merece censura o acórdão da Relação que, perante o não apuramento da culpa de qualquer dos condutores, graduou a responsabilidade pelo risco na proporção de 75% para o condutor do veículo automóvel ligeiro de passageiros e de 25% para o condutor do motociclo, depois de ter ponderado que a incidência espacial do local do sinistro – designadamente a largura da faixa de rodagem (que se mostrava reduzida em face a situações de normalidade) e o traçado da mesma (em curva) –, sendo propiciadora da colisão (do ligeiro no motociclo) e conjugada com a desproporção física dos veículos, sustentava um factor agravador dos danos por parte do ligeiro face ao motociclo.».

Ora, em face dos factos provados e de todos os supra referidos circunstancialismos, ou seja, considerando que por um lado temos o condutor do velocípede que seguia sem capacete, o que agravou significativamente as lesões que sofreu, a massa deste velocípede, bem como a massa do veículo automóvel, muito superior, tendo o embate ocorrido apenas na porta e não em todo o veículo, as características do local e o tempo, que permitia ao velocípede, pelo menos em teoria, ter visibilidade do local, a circunstância de o veículo estar estacionado totalmente dentro da berma e de forma paralela à via, e bem assim à circunstância de apenas o velocípede estar em circulação e o veículo automóvel imobilizado, concordamos com a repartição do risco fixada no Acórdão recorrido. Na verdade, apesar da massa do veículo automóvel ser superior à do velocípede, único fator relevante para atribuir um maior risco à viatura, não podemos olvidar que o risco do velocípede se mostra agravado pela circunstância de estar em circulação, ter embatido apenas na porta, a viatura estar devidamente estacionada, o local e o tempo permitirem visibilidade e a agravante de 10% pelo facto de não usar capacete, isto é a fixação da repartição do risco em 65% para o velocípede e 35% para o veículo automóvel.


5. Dos montantes indemnizatórios

A chamada Auto-Calvário, Lda. entende que os montantes indemnizatórios devem ser fixados em €30 000,00 para os danos morais e €5 005,49 para o dano patrimonial, porque, em termos de equidade, ambos se relevam elevados.

O Acórdão recorrido relativamente ao dano patrimonial reconheceu ao Autor o direito a mais €5 000,00 respeitante a perda de capacidade para as atividades gerais, ao passo que na 1.ª instância havia tão só sido fixados €1 045,49 correspondente a perda de rendimento sofrido pelo Autor desde a data do acidente até à data da consolidação médico-legal (01/04/2015), e €4 000,00 correspondente a perda total de capacidade para a sua atividade profissional de agricultura. Entendeu-se no Acórdão recorrido que a sentença não considerou que por força do “défice funcional permanente de 65 pontos, que implica esforço acrescido para as atividades gerais e para o trabalho em igual valor, o Autor sofreu um dano no seu corpo com que viverá até ao fim da sua vida e que deve ser indemnizado até esse previsível momento (tendo por base a esperança de vida) e que, à falta de outros elementos, tem como base o seu rendimento anual.”.

No que toca aos danos morais, o Acórdão recorrido aumentou de €40 000,00 para €46 000,00 a indemnização a atribuir ao Autor.

A Relação, na fixação da indemnização devida ao Autor pelo dano patrimonial relativo à perda de rendimento do trabalho, bem como na fixação da indemnização destinada a ressarcir o dano não patrimonial, recorreu à equidade, sendo certo que, nesta matéria, o STJ tem entendido, como consta do Acórdão do STJ, de 29-01-2019 (Revista n.º 1382/16.8T8VRL.G1.S1), que “No caso em que, em sede de responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação, o acórdão da Relação fixou os montantes indemnizatórios com recurso à equidade, o STJ não deve sindicar os valores arbitrados, cingindo-se a controlar os pressupostos normativos e limites do recurso à equidade, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado.”.

O STJ tem, também, considerado que a fiscalização a operar em sede de revista, quando ocorre recurso à equidade, estejam em causa danos patrimoniais ou não patrimoniais, deve conformar-se com os princípios da igualdade e proporcionalidade, com vista a alcançar uma decisão razoável

 - cfr. neste sentido os Acs. do STJ de 20-11-2019, proc. n.º 107/17.5T8MMV.C1.S1, de 08-02-2018, proc. n.º 245/12.0TAGMT.G1.S1, de 17-05-2018, proc. n.º 952/12.8TVPRT.P1.S1, de 18-10-2018, proc. n.º 3643/13.9TBSTB.E1.S1; de 06-12-2018, proc. n.º 652/16.0T8GMR.G1.S2; e de 14-03-2019, proc. n.º 9913/15.4T8LSB.L1.S1 -.

Conforme se afirma no Acórdão do STJ de 20-11-2019 (proc. n.º 107/17.5T8MMV.C1.S1), “Em primeiro lugar, o Supremo Tribunal de Justiça deve averiguar se estavam preenchidos os pressupostos do recurso à equidade. Em segundo lugar, se foram considerados as categorias ou os tipos de danos cuja relevância é admitida e reconhecida. Em terceiro lugar, deve averiguar se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram considerados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser considerados — se, p. ex., no caso da indemnização por danos não patrimoniais, foram considerados o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesante e a situação económica do lesado. Em quarto lugar, o Supremo deve averiguar se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram respeitados os limites que, de acordo com a legislação e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados.”.

Quanto ao dano biológico, devemos lançar mão dos critérios previstos nos artigos 562.º e ss. do Código Civil e por fim fazer operar a equidade, uma vez que não é possível apurar o valor exato dos danos.

O Acórdão recorrido relativamente ao dano biológico decidiu da seguinte forma: “Não se está a analisar que, por força de um défice funcional permanente de 65 pontos, que implica esforço acrescido para as atividades gerais e para o trabalho em igual valor, o Autor sofreu um dano no seu corpo com que viverá até ao fim da sua vida e que deve ser indemnizado até esse previsível momento (tendo por base a esperança de vida) e que, à falta de outros elementos, tem como base o seu rendimento anual.

Ou seja, este dano biológico não foi alvo de compensação na decisão proferida pelo tribunal pois, para além de perder aquele rendimento de quatro anos (4 000 EUR), o Autor tem ainda uma lesão que o afeta enquanto pessoa e que por isso é indemnizável.

Assim, é necessário aferir em termos equitativos qual pode ser a indemnização justa a atribuir a uma pessoa que tinha sessenta e seis anos de idade quando sofre o acidente e se vê diminuída em 65 pontos dos 100 que são o total da sua funcionalidade.

Atualmente, a esperança média de vida está fixada em cerca de setenta e oito anos para o sexo masculino pelo que, tendo nascido em 1948, já tendo certamente ultrapassado a esperança média de vida para quem nasceu nesse ano (para quem nasce na década de 1960 tinha uma esperança média de vida de sessenta anos), mas atendendo a que pode beneficiar dos cuidados que a medicina atualmente proporciona e não sendo conhecida qualquer doença ao mesmo recorrente, pensamos que se pode fixar como tendo a possibilidade de viver até perfazer os indicados setenta e oito anos.

E, como o único rendimento que está provado que o recorrente auferia eram os 1 000 EUR/ano que se referiu (não tendo sido alegado qualquer outro incluindo a título de reforma), temos que, em doze anos, até perfazer setenta e oito anos, iria auferir 12 000 EUR.

Sofrendo uma diminuição na sua capacidade de 65 pontos, em termos aritméticos, essa redução significava patrimonialmente 7 800 EUR.

Ora, ponderando que já foi atribuída uma compensação pela perda total de rendimentos até aos setenta anos (4 000 EUR), em termos estritamente de capacidade de ganho estariam em causa 5 200 EUR (1 000 EUR x 8 anos x 65%).

Atendendo que o Autor recebe esta compensação de uma só vez mas que se trata de um valor muito baixo, bastante inferior à retribuição mínima mensal de um trabalhador que tivesse um acidente em 2014, sem qualquer perspetiva concreta e provada de, no futuro, vir a auferir qualquer rendimento laboral, e que ainda se tem de ponderar a vertente pessoal do dano de que padece e impedirá de exercer outras atividades, remuneradas ou não, sem esforço, pensamos que se deve fixar em 5 000 EUR a indemnização por este dano biológico.

Assim, o Autor, em termos genéricos, tem direito a receber aqueles valores patrimoniais de 1 005,49 EUR, 4 000 EUR a que acrescem os agora referidos 5 000 EUR.”.

O Acórdão recorrido socorreu-se de cálculos matemáticos, tendo em consideração a idade do Autor, o seu rendimento anual bruto, o limite de 78 anos para a esperança média de vida, e bem assim o défice funcional de 65 pontos que lhe foi fixado. Procedeu igualmente ao desconto da quantia já fixada em sede de primeira instância, sem qualquer outra diminuição, por se tratarem de quantias muito baixas, tendo alcançado o montante de €5 000,00, através da equidade.

Ao proceder conforme descrito, o Acórdão recorrido cumpriu os parâmetros supra indicados (cfr., ainda, Acs. de 29-10-2019, proc. n.º 683/11.6TBPDL.L1.S2, e de 08-01-2019, proc. n.º 4378/16.6T8VVT.G1S1), lançando, igualmente, mão da equidade.

Mais, ao realizar este juízo de equidade, o Acórdão recorrido julgou com base nos critérios e orientações seguidas pela jurisprudência deste Tribunal, não fazendo um qualquer juízo discricionário ou arbitrário, conseguindo alcançar uma solução que respeita os princípios da igualdade e proporcionalidade.

E, entendemos deste modo, bem andou o Tribunal da Relação ao fixar a indemnização por dano biológico, na vertente patrimonial, na quantia de €10 005,49 (dez mil e cinco euros e quarenta e nove cêntimos), não sendo um montante elevado– sem prejuízo da redução a operar por força da repartição do risco.

- cfr. Acórdão do STJ de 19-06-2019 (Revista n.º 80/11.3TBMNC.G2.S1), “I - No cálculo da indemnização pelos danos patrimoniais futuros os rendimentos a que deve atender-se são os rendimentos líquidos, sejam tais rendimentos comprovados fiscalmente ou por outra forma. II - A indemnização pelo dano estético é parte integrante da indemnização pelos danos não patrimoniais, não se justificando a sua autonomização excepto quando aquele dano se repercute na actividade profissional do lesado. III - Observados os ditames de ordem legal e jurisprudencial aplicáveis, considera-se adequado fixar em € 195 000,00 a indemnização pelo dano do défice funcional permanente, estando provado que, (i) à data do acidente, o lesado tinha 45 anos, (ii) era trolha, (iii) no ano de 2009, auferiu o rendimento ilíquido fiscalmente comprovado de € 4 748,40, (iv) aos fins de semana, exercia a actividade agrícola, e (v) auferia por esta uma quantia mensal não concretamente apurada, e que, em resultado do acidente, (vi) é portador de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 65 pontos e (vii) padece de sequelas que, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, são impeditivas de qualquer actividade profissional. IV - Observados os ditames de ordem legal e jurisprudencial aplicáveis, considera-se adequado fixar em € 15 000,00 a indemnização pelo dano estético enquanto parte integrante dos danos não patrimoniais, estando provado que o lesado sofreu um dano estético permanente fixável no grau 4/7.”, disponível em https://blook.pt/caselaw/PT/STJ/568003/.

E o Ac. do STJ de 17-11-2015, (Revista n.º 3352/10.0TBVCD.P1.S1), “I - Os danos não patrimoniais de pessoas próximas do lesado e que tiveram uma interferência directa e imediata, ou na eclosão de um sinistro – o irmão da lesada – e/ou nos momentos posteriores, notadamente naqueles em que tiveram que sofrer com a angústia da perda de vida e com as sequelas que o sinistro ocasionou na pessoa lesada, são indemnizáveis. II - O STJ só deverá intervir nos casos em que as indemnizações arbitradas pelo tribunal recorrido se mostrem desajustadas. III - O dano biológico tem valoração autónoma em relação aos restantes danos – casuisticamente o seu cariz poderá oscilar entre dano patrimonial ou dano moral – e visa reparar a perda de capacidade de trabalho e de ganho, de forma a que se reconstitua a situação patrimonial que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. V - O cálculo da indemnização por danos futuros deve começar por ser procurado com recurso a processos objectivos – através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros ou aplicação de tabelas – não dispensando a intervenção do prudente arbítrio do julgador com recurso à equidade. VI - Deve ser fixado em € 400 000 (tendo a Relação fixado o valor de € 300 000) a indemnização por perda de capacidade de ganho futura devida à lesada em acidente de viação que, na data, tinha 20 anos de idade e sofreu défice permanente da integridade físico-psíquica de 65 pontos, impeditivo do exercício de qualquer actividade profissional remunerada, na prognose de que o salário mínimo irá pautar-se por um incremento de cerca de 20% por cada década e na consideração do grau de culpa para a produção do evento danoso (40%), operando com os factores de reforma e de rendimento de capital.”

Relativamente aos danos não patrimoniais, para além das considerações já supra tecidas acerca dos critérios gerais para a fixação das indemnizações, importa considerar o disposto no artigo 496.º do Código Civil, que nos remete para a equidade.

O Acórdão recorrido, na fixação deste montante, atendeu aos seguintes danos:

- ficou politraumatizado ao nível da face, torax e escoriações nos membros;

- sofreu múltiplos focos de contusão hemorrágicos fronto-basais e temporo-polares bilaterais;

- esteve internado dezassete dias, ficando em coma induzido entre 09/07 e 19/07 de 2014, com ventilação assistida mecanicamente até 20/07/2014;

- teve de regressar ao Hospital em episódios de urgência em 31/07/2014, 14/08/2014, 29/08/2014;

- vem sendo acompanhado em consultas externas de neurologia, psiquiatria;

- teve a vida em risco;

- depois da alta, e durante duzentos e cinquenta dias, ficou dependente de terceiros, começando por ser uma dependência quase total para passar a ser uma dependência parcial, até para as mais básicas tarefas da vida diária, desde o banho até vestir-se ou alimentar-se;

- não mais voltou a ser ativo, alegre, divertida, trabalhador, a viver com gosto;

- o défice funcional de que padece deriva na esmagadora contabilização da incapacidade de visão, perdendo o controlo dos movimentos mais finos;

- deixou de conseguir ler ou fazer cálculos aritméticos por mais simples que sejam;

- passou a temer andar pela estrada, principalmente pelo lugar onde o sinistro ocorreu;

- sofreu um quantum doloris de grau 4 numa escala crescente de sete;

- padece de um prejuízo de afirmação pessoal no grau 3 numa escala crescente de cinco;

- no momento do sinistro, temeu pela sua vida.

- sentiu vergonha em virtude de sofrer das indicadas limitações.

O Acórdão recorrido, lançando mão da equidade, e após citar varia jurisprudência deste STJ, entendeu que “(…) se por um lado se tem um défice funcional permanente elevado e que afeta a visão com elevada limitação da vida diária, com igualmente elevada necessidade de adaptação a essa nova realidade, tem-se a idade do lesado que é superior à de um jovem, sendo que este pode ver frustrada a longa vida com a qualidade que legitimamente esperava.

No entanto, esse défice afetou bastante o Autor em concreto pois era uma pessoa ativa e que nutria gosto pela vida que ainda podia esperar usufruir com tal qualidade por mais de uma década.

As dores que sofreu foram bastante relevantes e o sentimento não só de eventual perda de vida como de perspetiva de mudança radical no futuro é igualmente de ponderar com relevo.

Daí que, podendo considerar-se ajustada a quantia fixada pelo tribunal recorrido, na nossa sensibilidade pensamos que o valor de 46 000 EUR será porventura mais adequado para este tipo de danos.”.

Também nesta parte, afigura-se-nos que o Acórdão recorrido obedeceu aos critérios supra descritos, pois enformou os factos provados com base na equidade, por se tratarem de danos não patrimoniais com gravidade tutelável pelo direito e conforme com os critérios da jurisprudência, ainda que não muito elevados.

Demonstrativo desta circunstância é o Acórdão do STJ de 5-11-2019 (Revista n.º 7053/15.5T8PRT.P1.S1), no qual se decidiu “(…) III - O valor de € 38 000,00 arbitrado pelo tribunal da Relação, a título de indemnização por danos não patrimoniais, deve ser mantido na consideração do seguinte quadro factual: (i) a sinistrada, à data do acidente com 65 anos, teve quantum doloris de 5 numa escala até 7, prejuízo estético de 2 numa escala até 7 e tem défice permanente da integridade físico-funcional de 9 numa escala até 100; (ii) em consequência do acidente e das lesões, sente-se fisicamente diminuída, incapaz de andar normalmente com os seus amigos e conhecidos, introvertida, deprimida, sem vontade de sair, frustrada e psicologicamente abatida; (iii) abandonou o desporto e a pintura; (iv) sente medo pela própria vida.”. Aqui a idade era semelhante, mas o défice permanente muito inferior, pelo que a indemnização fixada nos autos poderá pecar por défice e não por excesso.

- Demonstrativo desta circunstância é também o Ac. do STJ de 24-10-2017 (Revista n.º 262/13.3T2AVR.S1), “Mostram-se adequados os valores de € 130 000 e de € 65 000, fixados com recurso à equidade, para indemnizar o dano biológico/dano patrimonial futuro e os danos patrimoniais sofridos pela autora em consequência de acidente de viação, na consideração do seguinte quadro provado: (i) a autora tinha 21 anos, cursava Engenharia Biotecnológica e não auferia salário; (ii) por força do acidente em que interveio como passageira, ficou com um défice funcional permanente de 39 pontos, compatível com o exercício da actividade escolar; (iv) esteve sujeita a intervenções cirúrgicas, tratamentos dolorosos, internamento hospitalar e a medicamentação que se prolongaram por 7 anos; (v) no futuro, vai ter necessidade de continuar a frequentar consultas de especialidades dentária e de estomatologia; (vi) antes do acidente, era saudável e esbelta; (vii) depois do acidente, padeceu de sofrimentos psicológico, abalo moral, depressão, mágoa, desgosto, desânimo e trauma em virtude da diminuição funcional.”


6. Da responsabilidade da Ré Lusitânia Companhia de Seguros, S.A.

Por fim, insurge-se a Ré Lusitânia Companhia de Seguros, S.A. contra o Acórdão recorrido, na parte em que condena a seguradora, por considerar que será responsável do seguro do proprietário do veículo, quando o garagista que tem a direção efetiva do veículo não celebrou o respetivo contrato de seguro, devendo, ao invés, ser condenado o FGA, nos termos do artigo 47.º, n.º 1 do DL 291/2007.

O Acórdão recorrido decidiu quanto a esta matéria que, ao contrário do que sucedia no anterior regime da Lei de seguro automóvel obrigatório, DL 522/85, de 31-12, o atual regime, previsto no DL 291/2007 de 21-08, nas situações em que um terceiro, que não o proprietário, é quem tem a direção efetiva da viatura, mas não celebrou o competente seguro, deve ser o seguro celebrado por aquele (proprietário) a responder pelos danos causados.

As normas específicas que nos respondem à questão serão o artigo 21.º, n.º 1, al. b), do DL n.º 522/85 ou 47.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, pois que à luz do anterior regime de seguro obrigatório, “(…) vinha(-se) entendendo maioritariamente que, não tendo o proprietário do veículo a direção efetiva da viatura quando a entregava ao garagista, não podia estender-se a proteção do seguro celebrado por si, proprietário, à atuação do garagista.” – cfr. neste sentido o Acórdão do STJ, de 15-02-2018 (Revista n.º 36/08.3TBSTS.P2.S2), “I - O DL n.º 522/85, de 31-12, no seu art. 2.º, equiparou o trânsito do veículo, quando utilizado no desempenho das atividades profissionais contempladas no n.º 3 deste mesmo artigo, ao da circulação em circunstâncias normais, obrigando o pontual detentor da direção efetiva do veículo ao mesmo regime de seguro obrigatório do proprietário. II - A direção efetiva do veículo traduz-se no poder real, material ou de facto, sobre o veículo. III - Tem a direção efetiva do veículo a pessoa que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento. IV - O proprietário de um veículo automóvel que o entrega a um garagista com a finalidade de este promover a sua venda, deixa de ter a direção efetiva do veículo, que se transfere para o garagista. V - O garagista está, nos termos do disposto no art. 2.º, n.º 3, do DL n.º 522/85, de 31-12, obrigatoriamente sujeito à obrigação de segurar a responsabilidade civil para ele decorrente da utilização das viaturas de que é detentor por virtude das suas funções e no âmbito da sua atividade profissional. VI - A ausência deste seguro torna o FGA garante do pagamento das indemnizações devidas a terceiro pelo garagista.”.

- Cfr. no mesmo sentido e aplicando o regime do DL 522/85 o Ac. do STJ de 21-10-1992 (Revista n.º 042817), “I - A responsabilidade civil emergente de acidente de viação causado por veículo automóvel entregue ou confiado a um garagista para reparação e conduzido por um seu empregado, cabe à seguradora do garagista, caso possua seguro válido, e, se tal se não verificar, mas possuir o empregado do garagista o chamado seguro de "carta", recairá sobre a seguradora desta aquela responsabilidade. Não existindo qualquer desses seguros e não obstante existir um seguro válido do veículo feito pelo respectivo proprietário, a responsabilidade pela indemnização recairá sobre o Fundo de Garantia Automóvel, sem prejuízo do direito de regresso que a este é conferido em relação ao condutor e ao garagista. II - O acidente de viação causado por condutor não encartado e que não tenha sido expressa ou tacitamente autorizado a conduzir o veículo pelo seu proprietário, é devido a uma causa estranha à vontade deste, representando uma modalidade de circulação que se não efectua no interesse do mencionado proprietário, pelo que se encontra excluída a sua responsabilidade civil e a da sua seguradora.”, cujo sumário está disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/04e049cc94af3e3f802568fc003a2369?OpenDocument&Highlight=0,seguro,autom%C3%B3vel,seguro,garagista.


Entendeu o Acórdão recorrido que “Houve esta alteração de subsidiariedade que faz com que, não existindo seguro de garagista nem de automobilista, responde o seguro do proprietário do veículo.

Daí que esta seguradora tem direito de regresso sobre o garagista – artigo 27.º, n.º, 1, f), do citado Decreto-Lei n.º 291/2007 - «satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o incumpridor da obrigação prevista no n.º 3 do artigo 6.º».

E só se não existir este seguro obrigatório celebrado pelo proprietário, é que tem de ser demandado o Fundo de Garantia Automóvel. (…)

Também no Ac. do S. T. J. de 05/11/2009, www. dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, se aborda este novo regime.

Na realidade, este Acórdão relatando uma situação em que já existia caso julgado sobre a decisão condenatória da seguradora celebrado pelo proprietário do veículo em assumir a responsabilidade por danos causados quando o veículo estava na direção efetiva da viatura e se indagava se aquela seguradora tinha direito de regresso sobre o garagista, menciona-se que « … esta questão de direito mostra-se actualmente resolvida por via legislativa, tendo o DL 291/07 optado por perspectivar o direito ao reembolso da seguradora do proprietário do veículo sobre a empresa de reparação de veículos que omitiu a feitura do seguro obrigatório especial da sua responsabilidade civil como mais uma das situações, tipicamente previstas, que se consubstanciam na figura do «direito de regresso» da seguradora (art.27º, nº1, alínea f);»

Ou seja, por força da alteração do sucessivo encadeamento de responsabilidades em que surge, em último lugar, o seguro celebrado pelo proprietário, se esta seguradora assumir a qualidade de garante da indemnização perante o lesado, tem direito de regresso sobre o efetivo responsável, no caso o garagista.”.

Como refere Maria Manuela Chichorro (In O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, Coimbra Editora, Dezembro 2010, pp. 215 e 216), “Se o sinistro for causado por garagista e este não tenha cumprido a sua obrigação de segurar prevista no art. 6.º, n.º 3, do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, o segurador de um contrato de seguro subsidiário daquele, através do qual seja paga indemnização ao lesado, tem direito de regresso contra o referido garagista”

-Vide art. 27.º, 1, alínea f), do Sistema do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, reproduzido pela Cláusula 31.º, alínea f), da Parte Uniforme da Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel.” -

Igualmente, Adriano Garção Soares e de Maria José Rangel de Mesquita (In Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Anotado e Comentado, 2008, Almedina, pp. 21 a 41, 89 a 92, 133 a 165, 203 a 205 e 251 e 253), referem que a nova alínea f) do artigo 27.º prevê expressamente o direito de regresso contra os garagistas ou equiparados que não hajam efetuado o seguro previsto no n.º 3 do artigo 6.º (134).

De igual modo, José António França Pitão (In Seguro Automóvel Obrigatório Anotado, Outubro 2019, Quid Juris?, p. 15 a 38, 72 a 78, 108 a 129, 204 a 207 e 257 a 263), acompanha esta posição que resulta da introdução da alínea f) ao artigo 27.º do Regime do Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel (p. 111 e 112).


Desta forma, também nesta parte deverá ser mantido o Acórdão recorrido, nos termos em que considerou a Ré Lusitânia Companhia de Seguros S.A. responsável pelo pagamento da indemnização ao Autor, sem prejuízo de posterior direito de regresso sobre a chamada Auto-Calvário, Lda., enquanto garagista, que não procedeu à celebração do respetivo seguro.


Por todo o exposto, os recursos do Autor, da Ré Lusitânia Companhia de Seguros, S.A. e da chamada Auto-Calvário, Lda. terão de improceder.


IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em negar as revistas, confirmando-se o Acórdão recorrido.

As custas ficarão a cargo dos Recorrentes.



Lisboa, 7 de outubro de 2021



Pedro de Lima Gonçalves (relator)    

Fátima Gomes           

Fernando Samões