I. Incidindo uma hipoteca sobre a propriedade plena de um imóvel, aí também fica abrangido o usufruto posterior ao registo daquela hipoteca. Sendo, em processo de insolvência, apreendida e vendida apenas a nua propriedade desse imóvel, permanece o usufruto, sobre o qual continua a recair a hipoteca.
II. O cancelamento do registo da hipoteca, em tais circunstâncias, deve restringir-se à nua propriedade, como acabou por se verificar, no caso, após a correcção oficiosa do cancelamento total que havia sido, num primeiro momento, feito.
III. A limitação da hipoteca ao usufruto, após a venda da nua propriedade não atinge o princípio da indivisibilidade da hipoteca; pelo contrário, respeita-o, já que a hipoteca resiste a divisões da coisa objecto do registo, passando apenas a estar confinada ao usufruto, o que legitima o titular deste a ser executado pelo crédito que remanesça.
IV. O título executivo, que a princípio compreendia a hipoteca sobre a propriedade plena do imóvel, não perde a sua natureza pelo facto de ter havido uma compressão da hipoteca ao usufruto, face à venda da nua propriedade do imóvel. A execução pode prosseguir pelas forças daquele título, ainda que se tenha verificado tal limitação.
V. Não há ofensa do princípio da segurança jurídica por se extraírem os efeitos de uma certidão predial junta, sem oposição da contraparte, com as alegações da apelação e da qual ressalta a aludida correcção oficiosa do cancelamento da hipoteca.
I
Foi celebrado um contrato de mútuo com a sociedade Frutas Sobrinho, S.A..
Para garantia do bom e pontual pagamento de todas e quaisquer responsabilidades assumidas, BB constituiu uma hipoteca voluntária sobre o prédio misto, sito em ….........., n.º…..., descrito na CRP ..... sob o n.º ….23.
A mutuária Frutas Sobrinho S.A. foi declarada insolvente no âmbito do processo n.º 10557/16........
A Caixa Económica Montepio Geral, detentora dos créditos à data, aí reclamou o seu crédito, que foi reconhecido pelo administrador da insolvência.
No mesmo sentido, em 15/12/2015, os proprietários do imóvel anteriormente referido foram declarados insolventes no âmbito do processo n.º 7031/15......., a correr termos no Juízo de Comércio ......
A Exequente, detentora dos créditos à data, reclamou o seu crédito, que foi reconhecido pelo administrador da insolvência.
A mesma Exequente apresentou proposta de adjudicação do referido bem, no valor de €552.500,00, que efectivamente lhe foi adjudicado.
A venda foi formalizada por escritura pública de compra e venda outorgada a 08/07/2019.
Ora, tendo o credor hipotecário reclamado nesse processo de insolvência o seu crédito, visando obter o pagamento com o tratamento preferencial que lhe assiste, e adquirido o referido bem, viu extinguir-se a garantia com a venda do mesmo.
A sua preferência transferiu-se para a aquisição do produto da venda, razão pela qual não pode agora a Exequente arrogar-se a titularidade da garantia já extinta, para afectar um direito da Executada, terceira em relação à obrigação exequenda.
Concluiu, pedindo a extinção da execução.
Contestou a Exequente, alegando, em resumo, que:
A hipoteca voluntária registada a favor da Exequente sobre o prédio misto, sito em ....., descrito na Conservatória do Registo Predial ..... sob o nº …23, foi constituída por BB e por CC, ambos insolventes no âmbito do processo nº 7031/15........
A hipoteca foi registada sobre a propriedade plena desse imóvel, inicialmente a favor do Finibanco, S.A. e, posteriormente, após 3 cessões, a favor da ora Exequente, EAM, S.A..
A Exequente apresentou, nos ditos autos de insolvência nº 7031/15......., proposta para adjudicação do imóvel aqui em causa, quanto à nua propriedade.
Nunca poderia ter adquirido a propriedade plena do imóvel, dado só ter sido apreendida a favor daqueles autos a nua propriedade desse imóvel.
O direito de usufruto foi constituído a favor da aqui Executada, AA.
Daí que a penhora registada nos presentes autos tenha incidido, única e exclusivamente, sobre esse direito de usufruto.
A posição jurídica conferida à Exequente pela garantia hipotecária continua a subsistir, quanto ao direito de usufruto, visto a adjudicação efectuada pela ora Exequente nos autos de insolvência nº 7031/15....... ter sido somente quanto à nua propriedade.
Concluiu pela improcedência dos embargos.
Considerando o Tribunal que os autos reuniam os elementos necessários ao conhecimento do mérito, proferiu saneador-sentença, julgando a oposição procedente.
Inconformada, recorreu a Exequente/embargada.
No Tribunal da Relação …, foi proferido acórdão em que se julgou a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e, consequentemente, julgando improcedentes os embargos.
Inconformada, desta vez, a Embargante, recorreu para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:
«1. Não estamos perante o registo de duas hipotecas, uma quanto à nua propriedade e outra quanto ao usufruto, mas sim perante o registo de uma única hipoteca que incidiu sobre a totalidade do prédio – AP. 76, de 2006.02.10.
2. Havendo um único registo de hipoteca e, posteriormente, o cancelamento desse mesmo registo, dúvidas não podem restar de que não se mantém qualquer garantia eficaz sobre o imóvel, nem mesmo sobre o usufruto do mesmo.
3. É evidente que a hipoteca não se pode dividir como se refere na tese acolhida pelo Tribunal a quo, pois aqui passamos a encarar uma hipoteca sobre a nua propriedade, e outra hipoteca sobre o usufruto, tendo a primeira sido extinta com a venda do imóvel em sede de processo de insolvência, e mantendo-se a segunda.
4. É justamente esta a premissa erada do Tribunal a quo que, apesar de invocar o princípio da indivisibilidade da hipoteca, acolhe uma tese que acaba por violar de forma expressa.
5. A Caixa Económica Montepio Geral, detentora dos créditos à data da insolvência, aí reclamou o seu crédito, tendo o mesmo sido reconhecido pelo Administrador da Insolvência.
6. Apesar de a recorrente/exequente inicialmente ter informado que não tinha interesse na adjudicação, posteriormente apresentou proposta de adjudicação pelo referido bem, no valor de 552.500,00 €, pelo que o mesmo lhe foi adjudicado.
7. Tendo o credor hipotecário reclamado nesse processo de insolvência o seu crédito, visando obter o pagamento com o tratamento preferencial que lhe assiste, e adquirido o referido bem, viu extinguir-se esta sua garantia com a venda do mesmo – artigo 824.º n.º 2 do Código Civil.
8. A sua preferência transferiu-se para a aquisição do produto da venda.
9. Havendo razões para cancelar o registo de hipoteca em virtude da venda em sede de processo de insolvência, é evidente que tal leva à obrigatoriedade de cancelamento também quanto ao usufruto, pois trata-se da mesma hipoteca, por sinal, indivisível.
10. Não pode a recorrente arrogar-se à titularidade da garantia já extinta (e que não pode ser dividida, como o Tribunal a quo faz crer ao considerar que passa a incidir apenas quanto ao usufruto), para afetar um direito da recorrida, terceira em relação à obrigação exequenda.
11. Ainda que assim não se entendesse, não se poderia aceitar a rectificação ao título executivo como pretende a recorrente, na medida em que (i) não há dúvidas de que não havia título aquando da entrada da presente execução e (ii) aceitar tal alteração registral e consequentemente revogar a decisão recorrida com fundamento na mesma consistiria numa clara violação do princípio constitucional da segurança jurídica, que expressamente se invoca.»
Termina, dizendo que deve ser revogado o acórdão, considerando-se procedentes os embargos.
Contra-alegou a Recorrida, pugnando pela manutenção da decisão impugnada.
- diversamente do decidido pela Relação, se deve entender que foi cancelada a hipoteca (desde logo, por força do princípio da indivisibilidade que a caracteriza) sobre o imóvel identificado, incluindo nesse cancelamento o usufruto de que beneficia a Recorrente/embargante, o que lhe retira legitimidade para ser demandada na execução, ao abrigo do disposto no art. 54º, nº 2, do CPC;
- se deve considerar que há uma “rectificação ao título executivo” que consubstancia uma clara violação do princípio constitucional da segurança jurídica.
II.1. Matéria elencada na sentença:
«1. Por Contrato de Cessão de Créditos, assinado em 02 de Novembro de 2017, a CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL cedeu, entre outros, o crédito identificado com a referência .........672, que detinha sobre a mutuária Frutas Sobrinho, S.A. (entretanto, insolvente), incluindo todas as garantias acessórias, à HEFESTO STC S.A. (NIPC 507450531).
2. A referida cessão incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes ao crédito cedido, designadamente a hipoteca constituída sobre o imóvel dado de garantia, no caso, o imóvel descrito na CRP ..... sob o nº ….23.
3. Por Contrato de Cessão de Créditos, assinado em 02 de Novembro de 2017, a HEFESTO STC S.A. vendeu, entre outros, o crédito identificado com a referência .........672, que detinha sobre a referida mutuária e todas as garantias acessórias a ele inerente, à EAM – ÉVORA ASSET MANAGEMENT, S.A.
4. A referida cessão incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes ao crédito cedido, designadamente a hipoteca constituída sobre o imóvel dado de garantia, no caso, o imóvel descrito na CRP ..... sob o nº ….23
5. No dia 02 de Novembro de 2009, a mutuária Frutas Sobrinho, S.A., NIPC 502095504, no âmbito da sua insolvência que correu com o nº 28648/09......., requereu junto do IAPMEI um procedimento extra judicial de conciliação.
6. Nesse momento, foi proposto um plano genérico de pagamento em 8 anos, após período de carência de 18 meses.
7. Relativamente ao credor Finibanco S.A., foram reconhecidos como fazendo parte do plano Processo: 8263/19.1T8SNT-A.L1 de pagamentos, os seguintes valores em dívida: - € 10.082,95, peticionado no processo executivo nº 21061/10.......; - €34.908,96, peticionado no processo executivo nº 23735/10.......; - €688.200,21, peticionado no processo executivo nº 23733/10.......; - € 92.047,69, peticionado no processo executivo nº 21078/10.......;
8. O plano de pagamentos apresentado pela mutuária Frutas Sobrinho. S.A. foi homologado, por sentença, conclusa a 14 de Julho de 2011.
9. Por escritura outorgada no Cartório Notarial ….. a cargo da Notária DD, exarada de fls. 33 a 38 do Livro 130-B, o Finibanco, S.A. trespassou à CEMG o “estabelecimento comercial que constitui a universalidade de activos (intangíveis e fixos tangíveis) e passivos, nomeadamente contratos de depósito, contratos de mútuo, e, de uma forma geral, a totalidade dos direitos e obrigações de que é titular o trespassante no âmbito da sua actividade bancária”.
10. De entre as obrigações transmitidas do Finibanco à CE Montepio Geral, e segundo a referida escritura, “estão incluídos neste contrato de trespasse, nomeadamente, (…) os créditos sobre mutuários, devedores e restante clientela a ele afecta, acompanhados de todas as respectivas garantias e acessórios…”.
11. A mutuária não cumpriu o acordo de pagamento celebrado, não liquidando qualquer montante ao Finibanco/CE Montepio Geral.
12. Deste modo, a 26 de Agosto de 2016, foi publicado novo anúncio de insolvência da mutuária Frutas Sobrinho, S.A., à qual foi atribuído o nº 10557/16........
13. A CEMG reclamou os seus créditos, tendo sido reconhecido pelo Sr. Administrador de Insolvência o valor total de € 1.146.012,99.
14. A 20 de Janeiro de 2017 foi encerrado o processo de insolvência por insuficiência da massa.
15. Para garantia do capital em dívida, respectivos juros e despesas, foi constituída por BB, com autorização expressa do seu marido CC, escritura de hipoteca voluntária, registada pela Ap. 76 de 2006/02/10, sobre o prédio misto, sito em ........, nº .., freguesia ….., descrito na CRP ..... sob o n.º …23 e inscrito na matriz urbana sob o art.º ….17 (antigo …68) e na matriz rústica sob o art.º ….30, Secção nº...
16. A hipoteca unilateral constituída a favor do Finibanco, para garantia do bom e pontual pagamento de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir pelas Frutas Sobrinho, S.A., garantia os seguintes montantes:
a) Capital no valor de € 1.000.000,00;
b) Juro anual de 6%, acrescido de 4% em caso de mora, a título de cláusula penal; despesas de € 40.000,00;
c) Montante máximo assegurado no valor de € 1.340.000,00;
17. No âmbito da transmissão de créditos ocorrida houve uma transmissão da hipoteca constituída a favor do Finibanco para o nome da CE Montepio Geral - AP. 4193 de 2011/05/27.
18. Hipoteca essa que, posteriormente, foi transmitida da CE Montepio Geral para o nome da Hefesto STC, S.A. – AP. 3514 de 2017/12/04 (cfr. Doc. 2).
19. A Hefesto STC, S.A., viria a transmitir a hipoteca para o nome da EAM – Évora Asset Management, S.A. – AP. 2252 de 2018/03/19 (cfr. Doc. 2)
20. Os proprietários do imóvel melhor descrito no ponto 15 foram declarados insolventes no dia 15 de Dezembro de 2015 – processo 7031/15......., Juiz .. do Juízo do Comércio ......
21. Tendo sido apreendida, a favor da Massa Insolvente, a nua propriedade do imóvel aqui em causa – AP. 1872 de 2016/05/24.
22. A exequente adquiriu, no âmbito do processo de insolvência n.º 7031/15....... – insolventes BB e CC – a nua propriedade do imóvel descrito em 15 (AP.314 de 2019/09/02).
23. Na sequência da aquisição da nua propriedade do imóvel descrito em 15, referida no ponto 22, foi cancelado o registo da hipoteca constituída a favor do exequente: “AVERB. - AP. 314 de 2019/09/02 14:31:04 UTC – Cancelamento Registado no Sistema em: 2019/09/04 14:31:04 UTC DA APRESENT. 76 de 2006/02/10 - Hipoteca Voluntária”.
24. No dia 15 de Maio de 2013, os proprietários do imóvel – os insolventes BB e CC – celebraram com AA uma escritura de doação de usufruto vitalício do imóvel em causa – inscrita na CRP do imóvel sob a AP. …72 de 2013/05/27.
25. O direito de usufruto foi penhorado na execução de que dependem estes autos (AP. 3215 de 2019/06/19).»
II.2.
Matéria acrescentada pela Relação:
«a) a execução foi instaurada em 18/05/2019;
b) a petição de embargos foi apresentada em 09/10/2019;
c) a aquisição mencionada no ponto 22 supra foi formalizada mediante escritura de compra e venda outorgada em 08/07/2019;
d) o averbamento oficioso da Ap. 314, descrito no facto provado nº 23, foi retificado, nos seguintes termos:
“AVERB. - AP. 1192 de 2020/11/13 12:18:58 UTC - Rectificação
Registado no Sistema em: 2020/11/13 12:18:58 UTC
DA APRESENT. 314 de 2019/09/02 - Cancelamento
CANCELADO O AVERB. OFICIOSO - AP. 314 DE 2019/09/02 14:31:04 UTC –
Cancelamento
AVERB. - AP. 1192 de 2020/11/13 13:50:23 UTC - Rectificação
Registado no Sistema em: 2020/11/13 13:50:23 UTC
DA APRESENT. 314 de 2019/09/02 - Cancelamento
Processo: 8263/19.1T8SNT-A.L1
Referência: 16638502
CANCELADO O AVERB. OFICIOSO - AP. 314 DE 2019/09/02 14:31:46 UTC –
Cancelamento
AVERB. - AP. 1192 de 2020/11/13 13:52:46 UTC - Cancelamento
Registado no Sistema em: 2020/11/13 13:52:46 UTC
DA APRESENT. 76 de 2006/02/10 - Hipoteca Voluntária
Cancelada quanto à nua propriedade.”»
Na verdade, para garantia do capital em dívida, respectivos juros e despesas, foi constituída, por escritura, por BB, com autorização expressa do seu marido, CC, hipoteca voluntária, então a favor do Finibanco, registada pela Ap. 76 de 2006/02/10, sobre o prédio misto, sito em ....., descrito na CRP de ..... sob o n.º …23 e inscrito na matriz urbana sob o art.º ….17 (antigo …68) e na matriz rústica sob o art.º ..30, Secção nº... (cf. pontos 15 e 16).
Frutas, Sobrinho, S.A. foi declarada insolvente, sendo encerrado o processo por insuficiência da massa.
Também foram declarados insolventes, no dia 15-12-2015, os proprietários do imóvel descrito no ponto 15, tendo sido apreendida a favor da massa a nua propriedade do imóvel em causa.
No dia 15 de Maio de 2013, os proprietários do imóvel, os insolventes BB e CC, haviam celebrado com AA (ora Executada/Embargante) uma escritura de doação de usufruto vitalício do imóvel em causa, inscrita na CRP do imóvel sob a AP. …. de 2013/05/27 (ponto 24 dos factos provados).
O direito de usufruto foi penhorado na execução (Ap. 3215 de 2019/06/19) (ponto 25 dos factos provados).
Conforme vem referido no Acórdão recorrido, após a instauração da execução, sucedeu o seguinte:
- no âmbito do processo de insolvência n° 7031/15....... foi adjudicada ao credor reclamante, ora exequente, a nua propriedade do imóvel, aquisição formalizada mediante escritura de compra e venda outorgada em 08/07/2019, e registada em 02/09/2019 (Ap. 314);
- a Conservatória do Registo Predial, oficiosamente, em 02/09/2019, lavrou averbamento à Ap. 314, de cancelamento do registo da hipoteca (Ap. 76 de 10/02/2006);
- a CRP lavrou averbamento de rectificação à Ap. 314 - de cancelamento da Ap. 76 de 10/02/2006 - inscrevendo o cancelamento do averbamento oficioso anteriormente efectuado à Ap. 314 e inscrevendo quanto à Ap. 76 "cancelada quanto à nua propriedade".
Defende a Recorrente que não estamos perante o registo de duas hipotecas, uma quanto à nua propriedade e outra quanto ao usufruto, mas sim perante o registo de uma única hipoteca que incidiu sobre a totalidade do prédio, e, havendo um único registo de hipoteca e, posteriormente, o cancelamento desse mesmo registo, dúvidas não podem restar de que não se mantém qualquer garantia eficaz sobre o imóvel, nem sobre o referido usufruto.
Considera que o Tribunal recorrido acolhe uma tese que viola o princípio da indivisibilidade da hipoteca e que, tendo o credor hipotecário reclamado o seu crédito no processo de insolvência, visando obter o pagamento com o tratamento preferencial que lhe assiste, tendo adquirido o referido bem, que lhe foi adjudicado por €552.500,00, viu extinguir-se a sua garantia com a venda do mesmo, nos termos do art. 824.º, n.º 2 do Código Civil, transferindo-se a sua preferência para a aquisição do produto da venda.
Acrescenta que, havendo razões para cancelar o registo da hipoteca, em virtude da venda em sede de processo de insolvência, é evidente que tal leva à obrigatoriedade de cancelamento também quanto ao usufruto, pois trata-se da mesma hipoteca, indivisível, não podendo a recorrente arrogar-se a titularidade de uma garantia já extinta.
Vejamos:
Como se refere no acórdão recorrido, as partes não discutem a existência do direito de crédito na titularidade da Exequente, sobre a sociedade Frutas Sobrinho, S.A., por força de sucessivas cessões, nem que esse crédito foi garantido por hipoteca voluntária sobre o identificado prédio, em relação aos qual os proprietários, BB e CC, celebraram, com a ora Executada/Embargante, uma escritura de doação de usufruto vitalício.
Dispõe o art. 54º, nº 2 do CPC:
«A execução por dívida provida de garantia real sobre bens de terceiro segue diretamente contra este se o exequente pretender fazer valer a garantia, sem prejuízo de poder desde logo ser também demandado o devedor.»
Anotam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[1]:
«O nº 2 tem aplicação tanto nos casos em que a garantia real foi prestada por terceiro (v.g. hipoteca constituída por terceiro para garantia do devedor), como naqueles em que, tendo a garantia sido constituída sobre um bem que, na ocasião, era do devedor, esse bem foi entretanto transferido para terceiro, como reflexo do direito de sequela que caracteriza os direitos reais (RC 12-9-17,1922/15).»
Maria Isabel Hebbling Menéres Campos, depois de referir que o direito preferencial do credor hipotecário pode ser exercido contra terceiros, significando o direito de sequela que a garantia é inerente ao bem, acompanhando-o em posteriores alienações ou onerações, explica que:
«A garantia acompanha a coisa em todas as suas vicissitudes, até à sua extinção por qualquer causa. O terceiro adquirente terá que suportar a afectação real que representa a hipoteca constituída sobre a coisa adquirida. O devedor alienante continua a ser o responsável pela dívida, mas o terceiro adquirente, dentro dos limites da coisa hipotecada, pode ter de abrir mão do adquirido, se a coisa for executada.»[2]
Preceitua o art. 696º do C. Civil:
«Salvo convenção em contrário, a hipoteca é indivisível, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que as constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito.»
A citada autora, Maria Menéres Campos, escreve, a propósito deste princípio, que:
«Na opinião de Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro349, da simples leitura do preceito contido no artigo 696.° poderão inferir-se as seguintes conclusões, que nos parece importante enumerar: quando uma hipoteca seja constituída sobre várias coisas, o credor hipotecário pode executá-la, na sua totalidade sobre qualquer delas; quando a hipoteca seja constituída sobre várias partes da coisa (com autonomia jurídica), o credor hipotecário pode, de igual forma, executá-la na sua totalidade, sobre qualquer das partes em causa; quando uma hipoteca seja constituída sobre uma única coisa que, posteriormente, se divide ou fracciona em várias ou partes autónomas, o credor pode executá-la, na sua totalidade, sobre qualquer uma das novas coisas surgidas ou das partes de coisa autonomizadas; quando a hipoteca seja constituída para garantia de um crédito e este se venha a dividir, qualquer dos credores pode executá-la, na sua totalidade, para satisfação do seu débito; quando uma hipoteca seja constituída para garantia de um crédito de certo montante, e haja cumprimento parcial, o credor hipotecário pode executá-la, na sua totalidade, para satisfação do remanescente em dívida».[3]
No acórdão recorrido, considerou-se que é inquestionável que, à data da instauração da execução (18-05-2019), se mostravam verificados os requisitos exigidos pelo art. 54º, nº 2, do CPC para que a Executada fosse demandada com vista ao pagamento da quantia exequenda.
Isso mesmo se concluíra já na sentença proferida em 1ª Instância, na qual se reconheceu que o registo da hipoteca (sobre a totalidade do prédio), a favor da Exequente foi feito em data anterior à do registo do usufruto e que «muito embora a garantia hipotecária do exequente não tenha incidido formalmente sobre o usufruto (o que nem podia acontecer, uma vez que este ainda não havia sido constituído), - que foi, entretanto, objeto de penhora –, ao incidir, desde data anterior à do registo do usufruto, sobre a propriedade plena, é manifesto que a garantia hipotecária do exequente também incide sobre o usufruto posteriormente constituído e que foi objeto de penhora». E ponderou-se ainda (com destaque nosso):
«No caso, se aquando da instauração da execução, o exequente apresentou título material de constituição da garantia no património do dito terceiro – constituição e registo da hipoteca sobre a propriedade plena do imóvel –, a partir de 2019/09/02 (data do registo do cancelamento da hipoteca) deixou de ter essa garantia.»
Assim, entendeu-se, na sentença, que, sendo necessário, para a sua eficácia, o registo da hipoteca[4], com o cancelamento deste, na sequência da aquisição, pela Exequente, da nua propriedade, no processo de insolvência nº 7031/15, deixou a mesma Exequente de poder demandar a Executada, nos termos do disposto no artigo 54.º, n.º 2, do CPC, por impossibilidade superveniente.
No acórdão recorrido, para além de se entender que, no momento da instauração da execução, não havia dúvidas sobre o preenchimento, relativamente à Executada, dos requisitos do art. 54º, nº 2, do CPC, não se deixou de ter em conta o que se passou depois disso (e até depois da sentença), levando em consideração a factualidade que se aditou, maxime a que a emana do documento (certidão do Registo Predial) que foi junto pela Exequente com as alegações da apelação e que diz respeito à rectificação oficiosa operada em matéria de registo predial e que restringiu o cancelamento da hipoteca à nua propriedade.
No acórdão, considerou-se que a certidão do registo predial, emitida em 17/11/2020, se destinava «a provar averbamentos inscritos em 13/11/2020, decorrentes de retificação do cancelamento do registo de hipoteca - fundamento essencial da sentença sob recurso, proferida em 20/10/2020», tratando-se de documento relevante e objectivamente superveniente, pelo que, ao abrigo dos art°s 651° e 425° do C.P.C., se admitiu a sua junção.
A ora Recorrente não se opôs à junção daquele documento nem se vê que tenha questionado o aditamento, pelo Tribunal da Relação, da factualidade acima mencionada (II.2.), o que se fez invocando o disposto no art. 607º do CPC.
Da admissão da junção de documento superveniente, por se entender que interessava à decisão da causa, era lógico esperar-se (de outro modo, aquela junção traduzir-se-ia num acto inútil) a alteração – no caso, através de aditamento – da matéria de facto, nos termos do art. 662º, nº 1, do CPC, com consequências ao nível da aplicação do direito.
O Tribunal da Relação entendeu que:
«(…) decorrente da retificação efetuada se mantém o registo da hipoteca sobre o usufruto. E de outro modo não poderia ser, pois a aquisição da nua propriedade, no processo de insolvência, não podia ter como consequência, como, por lapso, teve, o cancelamento da hipoteca, na sua plenitude. Da constituição do usufruto e respetivo registo em data posterior ao registo da hipoteca não pode resultar perda de garantia para o credor hipotecário, que foi constituída sobre a propriedade plena, atentos os princípios da indivisibilidade da hipoteca (art° 686° do CC.) e da anterioridade do registo (art° 6°, n° 1 do CRP).
E que ao invés do defendido pela apelada na petição de embargos e nas contra-alegações, o que se extingue com a venda em execução, por força do disposto no art° 824°, n° 2 do CC, aplicável às insolvências por efeito do art° 165° do CIRE, é a hipoteca incidente sobre o bem adquirido. E dúvidas não existem de que, tendo sido apreendida na insolvência apenas a nua propriedade, apenas esta foi adquirida pelo ali credor reclamante e aqui exequente. Com a venda da nua propriedade no processo de insolvência ao credor reclamante extinguiu-se a hipoteca incidente sobre a parte do objeto da venda - a nua propriedade - isto é, subsiste a hipoteca sobre o usufruto. Não podia, pois, a hipoteca sobre o usufruto extinguir-se, uma vez que não foi objeto de apreensão e venda no processo de insolvência e, consequentemente, foi incorretamente lavrado o cancelamento (oficioso) da hipoteca registada sob a Ap. 76 de 10/02/2006 (sublinhe-se, sobre a propriedade plena).»
Está provado que, na insolvência, foi apreendida apenas a nua propriedade do imóvel em causa e que a Exequente adquiriu, no âmbito desse processo, precisamente a nua propriedade, não a propriedade plena (pontos 21 e 22 dos factos provados). Caso tivesse ocorrido a apreensão e venda da propriedade plena, o que poderia ter acontecido, dada a amplitude da hipoteca, então o usufruto, posterior ao registo da hipoteca, teria caducado, transferindo-se o direito da executada para o produto da venda, à luz do art. 824º, nºs 2 e 3, do C. Civil, tal como se considera no acórdão, citando-se, sobre a matéria e nesse sentido, Pires de Lima e A. Varela[5].
Tendo sido apenas apreendida e vendida a nua propriedade, a caducidade não pode reportar-se à propriedade plena, subsistindo o usufruto. Mas daí não será de retirar, como faz a Recorrente, que se extinga a hipoteca.
Concorda-se com o Tribunal recorrido ao entender que se mantém a hipoteca sobre o usufruto.
Defende a Recorrente que o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação do princípio da indivisibilidade da hipoteca. Mas, com todo o respeito, discordamos dessa crítica e entendemos que a interpretação constante do acórdão é a ajustada.
A posição da Relação não equivale a que se dêem por existentes duas hipotecas. A hipoteca é só uma, subsistindo por inteiro sobre cada uma das coisas oneradas e sobre cada uma das partes que a constituam, ainda que a coisa ou o crédito seja dividido ou este se encontre parcialmente satisfeito (art. 696º do C. Civil). Assim, em caso de divisão de uma coisa, a hipoteca subsiste sobre cada coisa saída da divisão[6]. E, na mesma linha, a alienação apenas da nua propriedade não significa que o subsistente usufruto não continue, como estava até aí, onerado pela hipoteca, relativamente ao remanescente. Como se refere no acórdão, pela venda da nua propriedade, o que sucedeu foi que a hipoteca ficou limitada ao direito do usufruto, por força da compressão decorrente da caducidade do direito real de garantia sobre a nua propriedade.
A tese da Recorrente, no sentido da caducidade da hipoteca, coaduna-se, como já foi dito, com a alienação da propriedade plena. Mas, nesse quadro, caducaria também o usufruto, por ser posterior ao registo da hipoteca.
Conforme se ponderou no acórdão:
«A vingar a tese da apelada — extinção da hipoteca, tal como constituída, sobre a propriedade plena, ou seja, abrangendo o usufruto, passando o ora exequente a gozar de preferência sobre o produto da venda - sairia este lesado no seu direito, uma vez que o produto daquela venda incidiu apenas sobre a nua propriedade, ficando assim impossibilitado de exercer o seu direito na sua plenitude. Esta tese atenta manifestamente contra o princípio da prioridade do registo consagrado no artº 6o, n° 1 do Código de Registo Predial e o princípio da indivisibilidade da hipoteca.»
Entende-se, pelo exposto, que não assiste razão à Recorrente quando defende que houve uma interpretação errada por parte do Tribunal a quo quanto ao princípio da indivisibilidade.
Por outro lado, considera a Recorrente que não se poderia aceitar a rectificação ao título executivo, na medida em que: (i) não há dúvidas de que não havia título aquando da entrada da presente execução e (ii) aceitar tal alteração registral e consequentemente revogar a decisão recorrida com fundamento na mesma consistiria numa clara violação do princípio constitucional da segurança jurídica, que expressamente se invoca.
Exarou-se no acórdão recorrido, a respeito da violação do princípio da segurança jurídica, o seguinte:
«Só por lapso da Conservatória do Registo Predial foi efetuado averbamento oficioso de cancelamento da hipoteca (sem distinção) - lapso que foi determinante na prolação da decisão recorrida e que veio a ser corrigido. Retificação esta permitida pelo art° 121° do C.R.P., que se impunha pela transparência e verdade material, e que não contende com o princípio da segurança jurídica, ao invés do defendido pela apelada. Saliente-se que, diversamente do teor da conclusão 1a das contra-alegações, à data da instauração da execução a exequente dispunha de título, como acima vimos.»
Vejamos:
No que se refere a não haver título aquando da entrada da execução, é afirmação que a Recorrente, salvo o devido respeito, não demonstra. Trata-se, aliás, de um aspecto, em que a 1ª Instância e a Relação não divergiram, pois, como se viu, mesmo na sentença se entendeu que a legitimidade da Executada deixou de existir apenas a partir do cancelamento do registo da hipoteca (já no decurso do processo).
No que concerne à alteração registal, que o Tribunal da Relação aceitou, importará, de novo, referir que a Recorrente, que teve oportunidade de exercer o contraditório, não se opôs à junção, com as alegações da apelação, da certidão do Registo Predial, da qual se extrai a correcção, oficiosa, do cancelamento da hipoteca que, também oficiosamente, havia sido feito, restringindo esse cancelamento à nua propriedade, ou seja, deixando como subsistente a hipoteca sobre o usufruto, o que, aliás, está de acordo com aquilo que se julga legalmente ajustado, conforme se deixou expresso.
Não há um novo título executivo ou uma desfiguração deste que o inabilite para a execução. O que há é uma limitação das forças do título ao usufruto (e a penhora efectuada nos autos a este se ateve), na sequência da venda da nua propriedade e do cancelamento do registo da hipoteca quanto a esse segmento, sendo certo que a hipoteca persiste, mesmo havendo alterações (nos termos referidos) da coisa sobre que incide ou o crédito inicial se encontre parcialmente satisfeito (art. 696º do C. Civil).
Entende-se, assim, que não se violou o princípio da segurança jurídica, sendo de manter a decisão também nesse aspecto.
Pelo que se deixou dito, improcede a revista.
1. Incidindo uma hipoteca sobre a propriedade plena de um imóvel, aí também fica abrangido o usufruto posterior ao registo daquela hipoteca. Sendo, em processo de insolvência, apreendida e vendida apenas a nua propriedade desse imóvel, permanece o usufruto, sobre o qual continua a recair a hipoteca.
2. O cancelamento do registo da hipoteca, em tais circunstâncias, deve restringir-se à nua propriedade, como acabou por se verificar, no caso, após a correcção oficiosa do cancelamento total que havia sido, num primeiro momento, feito.
3. A limitação da hipoteca ao usufruto, após a venda da nua propriedade não atinge o princípio da indivisibilidade da hipoteca; pelo contrário, respeita-o, já que a hipoteca resiste a divisões da coisa objecto do registo, passando apenas a estar confinada ao usufruto, o que legitima o titular deste a ser executado pelo crédito que remanesça.
4. O título executivo, que a princípio compreendia a hipoteca sobre a propriedade plena do imóvel, não perde a sua natureza pelo facto de ter havido uma compressão da hipoteca ao usufruto, face à venda da nua propriedade do imóvel. A execução pode prosseguir pelas forças daquele título, ainda que se tenha verificado tal limitação.
5. Não há ofensa do princípio da segurança jurídica por se extraírem os efeitos de uma certidão predial junta, sem oposição da contraparte, com as alegações da apelação e da qual ressalta a aludida correcção oficiosa do cancelamento da hipoteca.
Custas pela Recorrente.
Tibério Nunes da Silva (relator)
Maria dos Prazeres Beleza
Oliveira Abreu
Nos termos do art. 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL nº 20/2020 de 01.05, o relator declara que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes Juízes Conselheiros que integram este colectivo.
Tibério Nunes da Silva
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[1] Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Almedina, Coimbra, 2018, p. 86.
[2] Da Hipoteca: Caracterização, Constituição e Efeitos, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 38-39.
[3] Op. cit., p. 117.
[4] Citou-se, a propósito da exigibilidade do registo da hipoteca, o Ac. do STJ de 01-04-2014, Rel. Alves Velho, Proc. 3204/12.0YYLSB-A.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt e no qual, entre o mais, se concluiu que: «I - A eficácia da hipoteca depende do registo dos respectivos factos constitutivos, mesmo em relação às partes outorgantes no contrato. II - O seu registo, funcionando como condição verdadeira da eficácia absoluta do acto/negócio de constituição, acaba por assumir também verdadeiros efeitos constitutivos, como verdadeiro registo constitutivo.»
[5] Em comentário ao art. 824º, observam: "Imaginemos que há um usufruto registado depois duma hipoteca ou do registo da penhora. O usufruto caduca, mas transferem-se para o remanescente, pagos os credores, os direitos do usufrutuário." (Código Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, Coimbra Editora, 2010, p. 97).
[6] Ana Prata (Coord.) e Outros, Código Civil Anotado, vol. I, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, p. 917 (anotação de Rui Pinto Duarte ao art. 696º).