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TUTELA DA PERSONALIDADE
DIREITO DE PROPRIEDADE
RELAÇÕES DE VIZINHANÇA
INDÚSTRIA DOMÉSTICA
FALTA DE LICENCIAMENTO
Sumário
I - A relação jurídica entre autores e réus, enquanto titulares de direitos reais, concretamente, proprietários de prédios confinantes, no que toca à edificação nos respectivos prédios e actividades neles exercidas, rege-se pelas normas do Código Civil, nomeadamente nos artºs art.º 1346º e 1347º, e não pelo disposto no RGEU, no PDM ou no RJUE ou nas normas referentes ao licenciamento industrial. II - O escopo desses diplomas (RGEU, PDM e RJUE e outras normas de direito administrativo), não é a concessão ou o reconhecimento de direitos subjectivos a particulares. A relação jurídica emergente de tais normas estabelece-se entre a administração e os seus destinatários – é uma relação jurídico-administrativa. III - Tais normas não conferem directamente a terceiros, no caso aos aqui autores o direito de exigirem dos réus a cessação da actividade industrial que desenvolvem no respectivo prédio. IV - Só a ofensa de um direito subjectivo dos autores (real ou de personalidade) lhes confere o direito de exigirem as medidas necessárias à reposição do direito violado, nelas se compreendendo a cessação da actividade exercida pelos réus no respectivo prédio. V – Assim, não é pelo facto de a construção (pavilhão) estar ou não licenciada, cumprir ou não o projecto de licenciamento e ser ou não susceptível de ser utilizada para aquela actividade (artefactos de betão), que deixaremos de ponderar os direitos que assistem aos réus, enquanto proprietários do prédio onde se realiza tal actividade – quer os que dimanam do seu direito de propriedade, quer os que a Constituição também lhes confere, como o direito ao trabalho e à iniciativa económica privada – no confronto com os direitos dos autores – direito de propriedade, direito à habitação, ao trabalho, à saúde, ao descanso e a um ambiente saudável. VI - O direito ao trabalho e a trabalhar é uma emanação (e o sustentáculo) do direito à vida e à existência, pois, para quase todos nós, sem trabalho não há meios de sobrevivência. E é tão importante o trabalho manual ou material, como o trabalho intelectual. Contanto que o ruído não exceda em tempo e intensidade os limites legais e esteja assegurado o direito dos autores ao descanso e a um ambiente saudável, não tem o trabalhador manual de parar a sua actividade para que o trabalhador intelectual tenha condições óptimas para realizar o seu. VII - Com a solução encontrada pelo Tribunal “a quo” e expressa no dispositivo da sentença recorrida, os direitos fundamentais dos autores (o direito ao repouso, descanso e saúde, enquanto direitos de personalidade), ainda que gozando de primazia sobre o direito de propriedade dos réus (mas já não sobre o seu igual direito ao trabalho e à obtenção dos meios económicos necessários à sua sobrevivência), mostram-se conciliados.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
I – RELATÓRIO
M. C. e M. M., instauraram acção especial de tutela da personalidade, nos termos dos artigos 878.º e seguintes do Código de Processo Civil contra A. S. e mulher M. G., pedindo que:
a) A acção seja julgada procedente, por provada, condenando-se os Requeridos a absterem-se de desenvolver qualquer actividade industrial nomeadamente a não licenciada actividade de construção de artefactos em betão, gesso e cimento na habitação, logradouro e mais concretamente no coberto (pavilhão industrial) edificado de modo ilegal, com todas as demais consequências. b) Os Requeridos sejam condenados, a título de sanção pecuniária compulsória, a pagar aos Requerentes a quantia de 1.000,00 € por cada dia que não cumpram a decisão que vier a ser proferida.
Os requerentes alegam, em síntese, que são proprietários de uma habitação unifamiliar, na qual há muitos anos têm instalada a sua casa de morada de família e onde vivem juntamente com os três filhos, um deles ainda menor.
De acordo com o PDM de ..., a zona envolvente da habitação dos requerentes está classificada como «solo urbanizado, espaço residencial nível II» e de acordo com o Regulamento do PDM, são incompatíveis todos os usos do solo que provoquem dano nas condições ambientais e urbanísticas.
Por seu turno, os requeridos são proprietários de uma habitação que confronta a norte e poente com a propriedade dos requerentes, no logradouro da qual existia uma cobertura precária, feita em madeira, distanciada do muro divisório dos requerentes e com altura inferior a tal muro, supostamente destinada à guarda de alfaias agrícolas. Os requeridos também utilizavam essa cobertura para ocasionalmente produzirem artefactos em betão, mas sem que fosse visível uma actividade assinalável, pelo que, não obstante a falta de licenciamento, os requerentes foram tolerando a situação.
Posteriormente, o requerido A. S. solicitou junto do Município, a legalização de um coberto de apoio à habitação, destinado à guarda de utensílios agrícolas, pequenas máquinas e alfaias, sendo que a solução construtiva seria uma estrutura em madeira revestida a chapa simples de cor cinza, permanecendo o chão em terreno compacto. Contudo, tal estrutura foi executada em pilares maciços, directamente apoiada no muro de vedação dos requerentes, numa altura que o ultrapassa e incluiu, cobrindo todo o pavimento, que revestiram com cimento.
Tal construção passou a ser utilizada como «pavilhão industrial» para acolher a incrementada actividade de construção de artefactos em betão, gesso e cimento, em contínua laboração.
Tal actividade inicia-se todos os dias úteis e alguns feriados por volta das 7.30/8.00 horas, com utilização de diversas máquinas industriais, que produzem intenso ruído, trepidações, emitindo poeiras, que atingem a residência dos requerentes e ainda resíduos industriais líquidos que são libertados para o sistema de águas pluviais existente no prédio dos requerentes.
Assim como passou a implicar o constante movimento de veículos pesados para carga e descarga de materiais.
As poeiras produzidas por tal actividade impedem os requerentes de, todos os dias da semana, abrirem as janelas e arejar a casa, de estender roupa a secar no exterior e de deixarem os seus veículos estacionados ao ar livre.
Do exposto resulta que os requeridos violam os direitos à saúde, à integridade física e psicológica, ao bem estar, ao descanso, a um ambiente sadio e equilibrado e à habitação condigna dos requerentes e do seu agregado familiar, bem como o gozo pleno do seu direito de propriedade.
A continuação da actividade ilegal dos requeridos causa grande perturbação na vida dos requerentes, impedindo os filhos de estudarem, de descansarem e de usufruírem da habitação, tal como impede os requerentes de levarem a cabo as suas actividades profissionais, ainda mais na actual conjuntura.
O degradar da qualidade de vida dos requerentes, tem-lhes provocados ansiedade, angústia, nervosismo, irritação e desgosto, sendo que a requerente mulher tem sido acompanhada por patologias de ansiedade generalizada e insónia, estando sujeita a medicação.
Nos últimos anos, os requerentes apresentaram diversas queixas no Município de ..., o qual fez diversas notificações aos requeridos, mas a obra não foi demolida e a actividade industrial prossegue, mantendo-se inalterada a situação.
Com este processo pretendem os requerentes ver tutelados os seus direitos fundamentais à saúde, integridade física e psicológica, ao bem estar, ao descanso, a um sono tranquilo, a um ambiente sadio e equilibrado, à habitação condigna e ainda ao pleno exercício do direito de propriedade.
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Por despacho de fls. 27 a 28, foram admitidos os meios de prova arrolados pelos requerentes e foi designada data para a realização da audiência final, nos termos do art.º 879.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
No mesmo despacho foi ordenada a citação dos requeridos nos termos dos arts. 897.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
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Os requeridos foram citados e, no dia designado para a realização da audiência final, apresentaram a contestação, alegando, em síntese:
O requerido marido exerce a actividade de produção de artefactos em cimento há, pelo menos, 36 anos naquele local, sendo que há cerca de 10 anos com a ajuda de seu filho e de um trabalhador contratado.
Por volta do ano de 2017, os requeridos remodelaram o referido espaço, através da implantação de pilares em ferro, instalação de cobertura em chapa e revestimento das paredes em chapa. O piso continua em terra e o pé direito aumentou porque o piso foi rebaixado. Tal obra não mudou a actividade dos requeridos, e não aumentou o nível de ruido, trepidação, poeiras ou outros. Pelo contrário, até diminuiu.
Os requeridos apenas têm uma rebarbadora pequena, uma betoneira eléctrica e um empilhador, sendo que a betoneira pouco ruido faz e apenas é usada no máximo 20 minutos por dia, em períodos de 5 minutos cada. A rebarbadora há dias que nem trabalha e é usada apenas em trabalhos de bricolage. Por isso os ruídos são diminutos e por períodos muito curtos. O ruido que fazem não é mais elevado que o de uma viatura a passar na estrada em frente da casa dos requerentes.
Quanto ao pó, a actividade apenas levanta pó, no máximo 4 vezes ao dia, quando se esvazia o saco de cimento na betoneira, que é um acto que dura um minuto, sendo que a betoneira se encontra afastada do terreno dos requerentes. O que causa poeiras são os tractores agrícolas e camiões de madeira que passam na estrada junto à casa dos requerentes, pois os prédios ficam numa zona rural, com muita agricultura.
Os requeridos não produzem qualquer resíduo industrial líquido, não possuem qualquer vibrador e a betoneira não causa vibrações. As vibrações que os requerentes podem sentir são as dos camiões e tractores que passam na rua.
Os requeridos apenas fazem uso do empilhador uma ou duas vezes por mês e o barulho “BIP” que o mesmo produz, apenas se verifica quando o empilhador anda em marcha atrás, no máximo duas vezes por mês, sendo que até nem faz há muito tempo, pois o requerido desligou tal função.
As viaturas pesadas apenas se deslocam às instalações dos requeridos 3 a 4 vezes por mês.
Quanto à impossibilidade de os requerentes abrirem as janelas, os requeridos padecem do mesmo problema, mas tal não se deve à actividade dos requeridos.
Não assiste razão aos requerentes quando referem que os requeridos violam os seus direitos à saúde, integridade física, psicológica, bem estar, descanso dos requerentes e seus familiares.
Os requerentes quando decidiram fixar ali a sua residência, já os requeridos ali trabalhavam há muitos anos.
Os requeridos encontram-se a concluir a legalização do espaço no qual trabalha o requerido marido e o filho, espaço esse que é legalizável.
Terminam pedindo que a acção seja julgada improcedente, por não provada, sendo os requeridos absolvidos do pedido formulado, tudo com as legais consequências.
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Realizou-se a audiência de julgamento. No decurso desta audiência foi oficiosamente ordenada a realização de uma perícia ao ruido produzido pela actividade dos requeridos (acta de fls. 70 e ampliação a fls. 81 dos autos).
Os requerentes, a fls. 72 dos autos, vieram alegar que os requeridos estavam a proceder a obras no interior do pavilhão, com o objectivo de falsearem os resultados da perícia que entretanto fora ordenada. Segundo os requerentes tal constitui manifesta má fé processual, devendo esta actuação dos requeridos ser ponderada e censurada.
Encerrada a audiência, foi proferida sentença em que se decidiu:
«Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente e ao abrigo do disposto no art. 897.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, decide-se:
A) Limitar a actividade de produção de artefactos em betão pelos Requeridos aos dias úteis das 8.30 horas (oito e trinta) às 17.30 horas (dezassete e trinta). B) Impor aos Requeridos que a betoneira e a rebarbadora sejam utilizadas apenas no interior do pavilhão identificado em 16) dos factos provados. C) Proibir os requeridos de utilizar na actividade de produção de artefactos em betão vibrador de mesa e/ou vibrador de agulha para realizar a vibração do betão. D) Condenar os Requeridos numa sanção pecuniária compulsória de €.200,00 (duzentos euros) por cada infração do supra decidido em VI. A), B) ou C). E) Absolver os Requeridos do pedido de condenação como litigantes de má fé. Custas a cargo de Requerentes e Requeridos e partes iguais, nos termos do art. 527.º do Código de Processo Civil.«
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Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso, que instruíram com as pertinentes alegações, em que formulam as seguintes conclusões:
«Primeira: Foi carreada para o processo factualidade reveladora de inegável e clamorosa violação dos direitos de personalidade dos Recorrentes, factualidade igualmente reveladora de violação clamorosa e muito para lá do suportável do seu direito de propriedade.
Com relevância para a fundamentação da decisão final, ficou provado, resultando claro e por demais evidente, a relação de vizinhança entre as partes e o uso que dessas contíguas propriedades – ambas constituídas por habitações unifamiliares - cada uma das partes faz do seu direito: - os Requerentes e os restantes membros do seu agregado familiar vivem, estudam, trabalham, confecionam e tomam as suas refeições, convivem, descansam, dormem, recebem amigos e familiares na habitação de que são proprietários; - os Requeridos, quer na construção levada a cabo, quer na atividade depois desenvolvida num anexo, agiram e continuam a agir de forma ilícita e ilegal, levada a cabo com desrespeito pelos direitos alheios e pelas normas que regem a vida em sociedade. Segunda: Foi igualmente provada utilização diária de betoneira, vibradores de cimento, o uso de um empilhador, na carga e descarga de materiais feitas por viaturas pesadas, camiões de transporte, provocando nuvens de resíduos sob a forma de poeiras e resíduos industriais (nomeadamente cimentos e tintas) despejados na rede de águas pluviais, tudo concorrendo para a evidente degradação da qualidade de vida dos Recorrentes, através do grosseiro, reiterado e quotidiano desrespeito pelos seus direitos fundamentais, provocando-lhes ansiedade e angústia, nervosismo, irritação e desgosto, tudo vindo a contribuir para a crescente degradação de um ambiente familiar salutar. Terceira: Foi carreada para o processo - e nele ficou provada - factualidade reveladora de inegável e clamorosa violação dos direitos de personalidade e do direito de propriedade dos Recorrentes, muito para além do razoavelmente suportável. Quarta: Tal violação em tudo decorre da utilização anormal do prédio feita pelos Recorridos, através de inúmeras, reiteradas e impunes ilegalidades cometidas, quer na construção de um pavilhão no logradouro, quer na posterior utilização do mesmo para o exercício de atividade industrial. Quinta: A proporcionalidade – enquanto princípio instrumental de aplicação da Justiça - só pode ser aferida e aplicável em função do sopesar de interesses juridicamente legítimos. Tal significa que o grosseiro atropelo das regras que regem a vida em sociedade e a selvagem e desordenada ocupação de território e utilização sem freio de um alegado direito de propriedade não pode ser invocável nem é susceptível de ponderação em relação a quaisquer direitos existentes. O pressuposto no qual a sentença recorrida assenta – o eventual direito dos Recorridos – não se verifica. Sexta: Os instrumentos jurídicos de regulamentação do território assumem caracter imperativo, erga omnes, nomeadamente ferindo de nulidade qualquer decisão administrativa que não seja com os mesmos conforme. Este regime legal tem de ser chamado à colação sempre que se analise qualquer eventual direito deles potencialmente emergente. Em consequência desse regime, a violação dos ditames legais correspondentes não pode sustentara pretensão de quaisquer direitos, uma vez que a ordem jurídica define a sua materialidade como juridicamente inexistente. Sétima: A questão que nestes autos se revela pode ser encarada sob a tríplice óptica do direito do ambiente, da clássica tutela do direito de propriedade no domínio das relações jurídicas-reais de vizinhança e ainda da protecção dos direitos de personalidade, envolvendo uma exigência positiva de actuação dos poderes públicos no sentido de assegurar a sua efectiva tutela material. Os direitos de personalidade são direitos absolutos, prevalecendo, por serem de espécie dominante, sobre os demais direitos, em caso de conflito, sendo protegidos contra qualquer ofensa ilícita e não sendo necessária a culpa nem a intenção de prejudicar o ofendido, pois decisiva é a ofensa em si. Oitava: A não utilização normal de um imóvel (mais ainda quando é contrária ao seu fim económico) só por si, é fundamento para a oposição por parte dos confinantes. Nona: Para existir um interesse juridicamente tutelado tem de haver, enquanto pressuposto, o cumprimento das regras jurídicas nas quais esse interesse se fundamenta, correspondendo tal afirmação a um afloramento e à aplicação em concreto do genérico princípio da boa-fé. Sendo o putativo direito baseado no incumprimento das normas legais aplicáveis, não há sequer lugar ao seu confronto com direitos legítimos, com ele eventualmente conflituantes. De outra forma, estaria aberto o caminho para desconsiderar o Estado de Direito, sacrificando-o a meros interesses de oportunidade, casuísticos e com ele geneticamente contraditórios. Os princípios estruturantes do Direito não podem ser comparados ou sopesados com interesses resultantes da sua negação. Décima: No caso que os presentes autos analisam são os Recorrentes que se apresentam perante o poder judicial, pretendendo dele obter a garantia de pleno exercício do seu direito, de acordo com os limites da boa-fé, dos bons costumes e do fim económico e social de que o mesmo se reveste. Já os Requeridos pretendem (e o tribunal a quo parece dar-lhes guarida, desde que sujeitos a “horário de trabalho”) continuar a exercer a sua atividade fora do quadro legal imperativo que os obriga a licenciamento. A atividade confessadamente exercida pelo Requeridos encontra-se à margem da lei, que não lhes confere nenhum direito susceptível de ser tutelado, de acordo com o regime do artigo 335º do Código Civil, Décima Primeira: A figura da colisão de direitos prevista no art.º 335º do Código Civil pressupõe a existência em concreto de pelo menos duas situações jurídicas ativas de que dois diferentes sujeitos jurídicos são titulares num dado momento e deixa de poder aplicar-se quando se conclua que, na realidade, só um direito existe. O pretenso direito dos Recorridos ao livre exercício da iniciativa económica privada, reconhecido no art.º 61º da Constituição, é meramente aparente, e não real porque exercido sem a necessária licença, não está a ser exercido qualquer direito de natureza económica protegido por lei, mormente o previsto no art.º 61º da CRP. Estando perante um único direito, o dos Recorrentes, deixa de poder falar-se em colisão real de direitos: tratar-se-á, em tal caso, duma colisão meramente aparente, sem correspondência na realidade. Décima Segunda: Há erro de julgamento ao entender-se que há lugar a uma ponderação de proporcionalidade da compressão da livre iniciativa económica dos Recorridos, necessária para a compaginar com os direitos dos Recorrentes, pois a colisão de direitos pressupõe a efetiva existência de dois direitos. As limitações ao exercício do direito determinando, no fundo, como ele deve ser exercido, pressupõem a sua existência, validade e eficácia, que, o mesmo é dizer, um direito em concreto que os Recorridos não têm. Décima Terceira: O Tribunal a quo bem faria ao limitar-se a “dizer o direito”, a ser a “bouche de la Loi”: sem licença não se pode exercer a atividade económica em causa, não havendo que procurar equilíbrio entre um direito absoluto e um direito inexistente. Bem ao contrário, o Tribunal a quo cobriu com o manto da legalidade, conferindo foros de interesse juridicamente protegido, ao que não passa de uma construção clandestina e de uma atividade industrial sem qualquer benefício de adequado licenciamento. Julgando como julgou, o Tribunal a quo fez má interpretação do direito e errónea interpretação da Lei, violando, nomeadamente, artigos 18º, 25º, 26º, 61º, 62º, 64, 66º da Constituição da República, os artigos 70º, 335º e 1346º do Código Civil, a Lei de Bases da Política do Ambiente e o PDM de ... publicado no Diário da República, 2ª série, nº134, a 13 de Julho de 2015. Nestes termos, revogando a decisão sob censura e julgando plenamente procedente, por provado, o pedido formulado pelos Recorrentes.»
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O recurso foi admitido na 1ª instância a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o havia sido na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos apelantes, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que assim se sintetizam:
– Se, pelo facto do pavilhão ou coberto onde os réus exercem a sua actividade não obedecer ao respectivo projecto de licenciamento e de tal actividade também não estar licenciada pelas autoridades competentes, o direito de propriedade dos réus, traduzido na utilização do seu prédio para exploração de uma pequena indústria doméstica, corresponde a um uso anormal (contrário ao seu fim) e não pode ser sopesado no confronto com os direitos dos autores.
III - FUNDAMENTOS DE FACTO
A) Factos julgados provados na sentença recorrida:
«1) Esta inscrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …/19920312, da freguesia de ..., o prédio urbano situado em …, com a área total de 2661m2, sendo 341m2 de área coberta e 2320m2 de área descoberta, e composto por casa de rés do chão e andar com 306m2, varandão ao norte com 35m2, logradouro com 2320m2, que confronta de norte e nascente com caminhos, de sul com estrada e de poente com A. L.. (fls. 15 a 16)
2) Tal prédio está inscrito a favor do Requerente M. C. pela apresentação n.º 37 de 995/09/28, por aquisição e a favor da Requerente M. M., pela apresentação n.º 3165 de 2017/10/11, por doação de ½ por M. C.. (fls. 15 a 16)
3) O referido prédio situa-se na Rua ..., n.º …, União das Freguesias de …, ..., … e …, concelho de Barcelos.
4) Por si e antepossuidores os Requerentes estão na posse do prédio supra descrito, habitando-o, zelando pela sua conservação, há mais de 10, 15 e 20 anos, agindo como proprietários e na convicção de terem essa qualidade e não lesarem direito alheio, ininterruptamente, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.
5) O imóvel em questão é constituído por uma habitação unifamiliar na qual há mais de 20 anos, os Requerentes têm localizada a sua casa de morada de família, sendo o seu agregado familiar composto por ambos e por três filhos, que com eles coabitam, sendo um deles ainda menor.
6) É nessa sua habitação que os Requerentes e os restantes membros do seu agregado familiar vivem, estudam, trabalham, confecionam e tomam as suas refeições, convivem, descansam, dormem, recebem amigos e familiares.
7) Os Requeridos são proprietários de uma habitação, confrontante a norte e poente com o prédio dos Requerentes referido em 1) a 6).
8) A zona envolvente da habitação dos Requerentes está classificada de acordo com o Plano Diretor Municipal de … publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 134, em 13.07.2015, como «solo urbanizado - espaço residencial nível II». (fls. 88)
9) No logradouro do prédio dos Requeridos existia, até cerca do ano de 2017, uma estrutura precária, feita em madeira sob o solo natural, que ia até ao muro de pedra divisório do prédio dos Requerentes, mas não assentava no mesmo, com uma altura inferior ao referido muro e vedação dos Requerentes.
10) O Requerido A. S. utilizava essa estrutura precária para produzir artefactos em betão.
11) Os Requerentes toleraram o referido em 10).
12) O Requerido A. S. tem 78 anos e há cerca de 36 anos que se dedica à actividade de construção de artefactos em betão no logradouro do seu prédio referido em 7) e na estrutura referida em 9) e 10).
13) Através do processo n.º 698/91-R, o Requerido A. S. solicitou junto da Câmara Municipal de … o licenciamento de obras de legalização de reconstrução de um edifício licenciado para «coberto de apoio à habitação». (fls. 21 e 88)
14) Da memória descritiva e justificativa junta ao processo n.º 698/91-R constava que os materiais a aplicar na construção a legalizar em 13) seriam pilares em betão e estrutura da cobertura e vigas em madeira. (fls. 21)
15) Na sequência do pedido formulado pelo Requerido A. S. em 13), o Município de ... licenciou (alvará de licenciamento de obras de legalização n.º 21117) uma construção com aplicação de materiais de estrutura em betão e cobertura com vigas em madeira. (fls. 21 e 83)
16) Não obstante o referido em 13) a 15), a construção existente e descrita em 9) foi demolida e foi edificado no mesmo local um edifício que assenta em pilares de ferro tipo I, estrutura da cobertura em perfis de ferro, sendo as paredes revestidas em chapa metálica e a cobertura em painéis de cobertura tipo «sandwich».
17) A chapa metálica que serve de revestimento da parede, do lado dos Requerentes, assenta no muro de pedra referido em 9).
18) A altura da construção referida em 16) ultrapassa agora o muro e vedação da propriedade dos Requerentes na zona confrontante.
19) O piso manteve-se em terra, mas foi rebaixado.
20) Na construção referida em 16), o Requerido continua a dedicar-se à construção de artefactos em betão, gesso e cimento, nomeadamente tanques, casotas para cães e pias.
21) A actividade de construção de artefactos em betão referida em 20) não está licenciada. (fls. 21, 61, 88v, 123 e 123v e 189).
22) A actividade de construção de artefactos em betão é levada a cabo pelo Requerido A. S. e apenas por um funcionário, seu filho, pelo menos, há cerca de 10 anos.
23) A actividade de construção de artefactos em betão desenvolve-se todos os dias úteis e alguns feriados não religiosos, a partir das 07.30 horas e termina por volta das 17.30 horas, com intervalo para almoço, sendo que em alguns dias se inicia ainda antes das 7.30horas.
24) A actividade de construção de artefactos em betão pelo Requerido implica a utilização, pelo menos, de uma betoneira eléctrica, um empilhador e uma rebarbadora, bem como de uma ferramenta que não foi concretamente apurada para a vibração do cimento.
25) A betoneira é utilizada, normalmente todos os dias, um número de vezes não concretamente apurado durante o dia, mas nunca inferior a 4 ou 5 vezes, por períodos de cerca de 5 minutos de cada vez.
26) O empilhador quando é utilizado, para além do ruído inerente ao seu uso, produz um sinal avisador de segurança, intermitente, de “BIP”, nomeadamente quando se desloca em marcha atrás.
27) Com frequência irregular, mas pelo menos 3 a 4 vezes num mês, verificam-se movimentos de viaturas pesadas – camiões de transporte – que efetuam a descarga de areias e de cimento ou a carga dos artefactos ali produzidos, sendo que, por vezes, a carga é levada a cabo através de um camião com grua.
28) A actividade de construção de artefactos em betão levada a cabo pelo requerido marido e pelo funcionário produz ruído, nomeadamente aquando da utilização das máquinas supra referidas, na realização das cargas e descargas, bem como na desmoldagem das peças.
29) O ruído produzido pela actividade de construção de artefactos em betão está dentro dos limites legais permitidos para o local.
30) A utilização das máquinas e viaturas supra referidas na actividade de construção de artefactos em betão levada a cabo pelo requerido marido e pelo funcionário produz eco, reverberação, trepidações e vibrações, os quais não são, actualmente, perfeitamente percetíveis na habitação dos Requerentes.
31) E provoca a emissão de nuvens de poeiras nas zonas envolventes que atingem diretamente a residência dos Requerentes, nomeadamente quando é feito cimento e são descarregados os camiões com a areia.
32) E produz ainda resíduos industriais líquidos (nomeadamente cimentos e tintas) que foram libertados através do sistema de canalização das águas pluviais existente no subsolo do prédio dos Requerentes.
33) Por causa das nuvens de poeiras, a habitação e quintal dos Requerentes, ficam pequenas partículas de pó de cimento, nomeadamente na fachada, vidros e telhado.
34) Por causa das nuvens de poeiras, os Requerentes evitam abrir as janelas de sua casa.
35) O Requerente marido é professor na faculdade de Ciências do … e é em casa que prepara as suas aulas e leva a cabo o trabalho de estudo e pesquisa inerente à sua actividade, sendo que, desde Março de 2020, é a partir de sua casa que tem ministrado por videoconferência em sistema síncrono a maioria das aulas, reuniões e contactos, quer com alunos, quer com os seus pares.
36) A Requerente mulher trabalha como gestora imobiliária, sendo na sua residência que leva a cabo a maior parte dos contactos e diligências necessárias ao exercício da sua profissão.
37) Por vezes, os requerentes, por causa do ruído, já terminaram ou suspenderam as telefónicas profissionais assim como aulas e reuniões on line.
38) Uma das filhas dos Requerentes, terminada a sua licenciatura em engenharia mecânica, ingressou num estágio na … com uma forte componente on line e que tem visto a sua tarefa dificultada pelo intenso e continuo ruido emitido, vendo-se obrigada a “saltar de divisão em divisão” à procura daquela onde o ruído perturbe menos.
39) A actividade de construção de artefactos em betão causa perturbação na vida quotidiana dos Requerentes e dos filhos, limitando-os nas suas actividades profissionais e no estudo dos filhos, bem como no descanso de todos.
40) O referido provoca nos requerentes ansiedade, angústia, nervosismo e irritação.
41) O ruído produzido pela actividade de construção de artefactos em betão causa desconforto e ansiedade nos requerentes e demais familiares, nomeadamente por ser imprevisível quando é que o mesmo se iniciará e respectiva duração.
42) A Requerente M. M. tem vindo a ser acompanhada na respectiva Unidade de Saúde tendo-lhe sido diagnosticadas patologias de ansiedade generalizada e insónia e foi sujeita a medicação.
43) A requerente M. M. foi sujeita a avaliação psicológica que concluiu que a mesma padece de «Perturbação de Ansiedade com Outra Especificação, nomeadamente a que ocorre diretamente relacionada com a situação vivencial da M. M. (ruídos advindos de atividade industrial próxima da sua habitação permanente…». (fls. 60 e 60v)
44) Os Requerentes apresentaram diversas exposições/queixas na Câmara Municipal de … e nos respectivos serviços de fiscalização.
45) Com data de 9 de Janeiro de 2018, por missiva subscrita pela sr.ª Vereadora Dr.ª A. R., a Câmara Municipal de … comunicou aos Requerentes, na sequência das diversas participações que estes haviam feito, que: «(…) foram diligenciar ao local (…) os serviços desta Fiscalização Municipal/Polícia Municipal tendo instruído à data de 3/1/2018 a informação fiscal (…) «verificámos que as obras denunciadas, estão a ser efetuadas ao abrigo do processo de obras nº 98/91-R (…). Muito embora o projeto de arquitetura esteja a ser cumprido no que diz respeito à sua configuração, os materiais utilizados, estrutura de pilares em ferro I e estrutura da cobertura em perfis de ferro, contrariam a memória descritiva e justificativa anexa ao processo de obras (…). (…) na valeta do caminho, junto à confrontação norte/nascente, existe uma sarjeta, e segundo o senhor A. S., a água ou outros efluentes por ela recebida, são encaminhados através de um tubo colocado sob o pavimento do anexo (…) sendo posteriormente encaminhados por outro tubo colocado no subsolo do terreno dos expoentes que desagua na estrada municipal nº 505-3 (Rua ...). Aquando da nossa última visita ao local, apurámos que no interior do imóvel já se exercia uma atividade industrial, construção de artefactos de cimento, tanques, casotas de cães, pias, etc., contrariando o uso para que o mesmo foi legalizado. (…) (…) Foi efectuada uma NOTIFICAÇÃO ao infrator Sr. A. S., residente em ..., no prazo de 30 dias, diligenciar (…) pela VIABILIDADE da legalização dos materiais da estrutura (…) e da alteração de USO do anexo em virtude de exercer ilegalmente no mesmo actividade industrial, e ainda, o TUBO colocado sob o pavimento do anexo que recolhe a água e outros efluentes da sarjeta do caminho assim como da cobertura do anexo e que as lança na EM 505-3 – Rua ....» (fls. 21 e 21v)
46) Em 23 de Outubro de 2018, os Requerentes receberam nova missiva da Camara Municipal de …, assinada pela mesma sr.ª Vereadora, comunicando-lhes que «É INTENÇÃO DESTA CÂMARA MUNICIPAL PROCEDER À DEMOLIÇÃO DAS OBRAS E TRABALHOS executados em desconformidade com o processo de licenciamento 698/91-R, onde se exerce uma atividade/industrial de construção de artefactos de cimento, sem o necessário alvará de utilização para o efeito, em virtude de não ter diligenciado pela sua viabilidade de legalização.» (fls. 25)
47) Em 2 de Janeiro de 2019, em sede do processo fiscal FIS.2318 e através do ofício nº FM/PM-4 do Município de ..., Fiscalização Municipal, Polícia Municipal, foi comunicado aos Requerentes que: «(…) Em diligência ao local … verificou-se que: 1.1 – De facto encontra-se a ser desenvolvida uma atividade no local, sem a devida licença de utilização; 1.2 – Relativamente às desconformidades verificadas em obra com o projeto aprovado, reitera-se o referido na informação jurídica constante do registo n.º 12282/18; 1.3 – Foram ainda verificadas as condutas de águas pluviais, no entanto, não se confirmam escorrências de resíduos com cimento recentes. Assim, nessa conformidade (…) dispõe o infractor, de 10 dias para querendo, se pronunciar a esta Autarquia do que tiver por conveniente a dizer sobre a “INTENÇÃO DESTA CÂMARA MUNICIPAL PROCEDER AO ENCERRAMENTO DA ACTIVIDADE INDUSTRIAL” em funcionamento sem Alvará de Autorização de Utilização para o efeito, no edifício em causa, licenciado para uso de anexo.» (fls. 25v)
48) Em 28 de Fevereiro de 2019, a mesma entidade, no âmbito do mesmo processo fez saber aos Requerentes que «foi efetuada uma notificação ao Sr. A. S. e outro, para no prazo de 15 dias, proceder ao encerramento da actividade industrial, em virtude de estar em funcionamento sem o necessário alvará de autorização de utilização para o efeito.» (fls. 26)
49) Em 27 de Junho de 2019, foi comunicado ao representante legal dos Requerentes, pela mesma entidade e no âmbito do mesmo processo, ter sido efetuada «uma notificação ao titular do processo sr. A. S. da “intenção da câmara municipal tomar posse administrativa do imóvel com vista ao encerramento coercivo da actividade” que leva a efeito sem alvará de autorização de utilização (…).» (fls. 26v)
50) Por carta de 11.12.2020 do Município de ... foi dado conhecimento aos requerentes de que: «(…) no âmbito da situação em causa, foram notificados dos proprietários do referido edifício/anexo, onde exercem actividade industrial sem o necessário alvará de Autorização de Utilização para o efeito. Assim, dispõem os infractores, DO PRAZO DE 30 DIAS (úteis) para procederem ao ENCERRAMENTO DA ACTIVIDADE INSDUSTRIAL, e consecutivamente, APRESENTEM JUNTO DESTE MUNICÍPIO UM PEDIDO DE DEMOLIÇAO PARCIAL DAS OBRAS EM DESCONFORMIDADE do edifício existente (…)». (fls. 61 a 63)
51) Por ofício de 23.02.2021, o Município de ... notificou «os Srs. A. S. e outro (…) da intenção da Câmara Municipal tomar Posse Administrativa do seu terreno para se proceder ao Encerramento da actividade industrial e ainda à demolição das obras executadas num anexo em desconformidade com o processo de licenciamento 698/91-R (…)» (fls. 123 e 123v)
52) A habitação dos requerentes e o local onde decorre a actividade de construção de artefactos em betão fica numa zona rural, com muita agricultura.
53) Os requeridos desligaram o sinal de «BIP» do empilhador.
54) Os requeridos estão a tentar legalizar junto do Município, quer a construção, quer a actividade de construção de artefactos em betão.
55) Actualmente, três das paredes da construção referida em 14) onde decorre a actividade de construção de artefactos em betão estão revestidas a lã de rocha com 4 a 5 cm de espessura e a outra (que é a contigua com o arruamento) é somente constituída pela chapa metálica..»
B) Factos julgados não provados
«a) Os requerentes estão na posse do prédio referido em 1) a 3) há mais de 30 anos e do mesmo colhem os seus frutos e rendimentos e pagam as contribuições devidas.
b) A construção referida em 9) destinava-se à guarda de alfaias agrícolas.
c) A produção de artefactos em betão referida em 10) era ocasional.
d) No processo referido em 13) constava que o coberto era composto por um espaço amplo, destinado a guarda de utensílios agrícolas, pequenas máquinas e alfaias para consumo próprio.
e) No processo referido em 13), nos projetos técnicos e respetivas peças escritas sempre constou expressamente que a solução construtiva seria uma estrutura de madeira revestida nas superfícies horizontais e verticais com chapa simples de cor cinza permanecendo o pavimento do chão em terreno compacto.
f) A actividade de construção de artefactos em betão levada a cabo pelo Requerido implica a utilização de vibradores de cimento.
g) A betoneira referida em 25) trabalha, por dia, no máximo, 20 minutos.
h) O empilhador produz, em permanência, o sinal de “BIP” referido em 24) sempre que está em funcionamento.
i) O camião grua referido em 27) ocasiona um evidente constrangimento na via pública, que para tal não foi pensada nem dimensionada.
j) O ruído referido em 28), actualmente, seja intenso.
k) Por causa das nuvens de poeiras, os Requerentes estão impedidos de utilizar o exterior de sua casa para estender roupa ao ar livre, sob pena de terem que repetir a sua lavagem, tendo assim de proceder à sua secagem em espaço interior e não arejado.
l) Por causa das nuvens de poeiras, os Requerentes estão impossibilitados de deixarem os seus veículos estacionados ao ar livre dentro da sua propriedade pois sempre que os mesmos lá são deixados por períodos de 2 ou 3 dias neles se deposita uma camada de pó de cimento e de areia que implica a sua imediata remoção para evitar danos maiores.
m) A actividade de construção de artefactos em betão transformou o dia-a-dia dos requerentes num tormento contínuo de ruídos, trepidações e poeiras.
n) Sendo rara a manhã em que os requerentes não são acordados por ruído e trepidação.
o) A rebarbadora há dias que nem trabalha e é de uso muito esporádico e para uma ou outra bricolage.
p) Os ruídos produzidos pela actividade de construção de artefactos em betão são muito diminutos.
q) Os requeridos têm, de forma permanente, junto às suas instalações um grande bidão cheio de água, onde lavam as suas ferramentas.
r) Os requeridos apenas fazem uso do empilhador uma a duas vezes por mês.
s) As viaturas pesadas apenas se deslocam às instalações dos requeridos 3 a 4 vezes por mês.»
IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
No caso em apreço os autores, aqui apelantes pugnam pelo seu direito a aproveitarem plenamente o respectivo prédio, como habitação, sem ruídos ou trepidações, de forma a que tenham garantido o seu direito ao sossego e descanso, bem como o seu direito a um ambiente saudável, sem poeiras ou outros contaminantes.
Referem igualmente, que, exercendo parcialmente a sua actividade de estudo, trabalho ou investigação no domicílio, os ruídos ou trepidações causados pela indústria vizinha, interferem e prejudicam o respectivo trabalho.
Por seu lado, os réus invocam também o respectivo direito de propriedade, que lhes permite utilizar o prédio para o exercício de uma pequena indústria doméstica, o que vêm fazendo há mais de 30 anos, ainda os autores não habitavam o respectivo prédio, que tal actividade não causa ruído, trepidações ou poeiras, que prejudiquem o prédio dos autores e os seus direitos ao descanso e á saúde.
Este conflito, no que aos Tribunais judiciais concerne, terá de ser analisado de acordo com as regras do direito civil, concretamente do direito de propriedade e dos direitos de personalidade, nestes se contendo os direitos fundamentais consagrados na nossa Constituição.
O Tribunal “a quo” procurando garantir aos autores o seu direito ao sossego, descanso e a um ambiente saudável, limitou o horário de laboração da indústria doméstica dos réus e o modo como a actividade é exercida, nos termos que constam do dispositivo da sentença e supra expostos.
Mas os autores pretendem mais. Pretendem que o Tribunal decrete o encerramento da actividade exercida pelos réus no respectivo prédio ou, nos termos do pedido formulado, condene os réus a “absterem-se de desenvolver qualquer actividade industrial nomeadamente a não licenciada atividade de construção de artefactos em betão, gesso e cimento na habitação, logradouro e mais concretamente no coberto (pavilhão industrial) edificado de modo ilegal.”
Não se conformam com o facto de que, na sentença recorrida, se tenha também ponderado o direito dos réus ao exercício, no respectivo prédio, de uma indústria doméstica, direito que, na óptica dos autores, não existe, por a actividade não estar licenciada. Entendem assim inexistir qualquer colisão de direitos que mereça ser ponderada.
Apreciando.
O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas – art.º 1305º Código Civil.
As restrições de direito privado que este preceito contempla, são as que visam regular interesses conflituantes entre proprietários de prédios com relações de proximidade ou vizinhança e, no caso, estão contempladas nos art.º 1346º e 1347º do mesmo diploma.
Efectivamente, o direito de propriedade dos apelantes, o poder de usar, fruir e dispor do seu prédio, de aproveitar as suas utilidades, nele construindo ou mantendo a sua “habitação”, em condições de salubridade e de sossego que lhes permita uma vivência condigna (incluindo o trabalho intelectual), tem de se conciliar ou conjugar com o direito de propriedade do seu vizinho, que também tem o direito de usar, fruir e dispor do seu prédio, nomeadamente nele mantendo uma indústria doméstica (trabalho material), pois as normas do Código Civil não impedem a instalação e funcionamento de indústria doméstica, desde que sejam respeitados os limites impostos pelos citados normativos (emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes ou instalações de substâncias corrosivas ou perigosas susceptíveis de afectar os prédios vizinhos), ou seja, que não implique um prejuízo substancial para o uso do imóvel dos autores.
«Cada prédio é necessariamente vizinho de outros. Daí a inevitabilidade dos problemas juridicamente designados por “relações de vizinhança”. Estes problemas não são apenas os de definição dos limites físicos de cada prédio, mas sim também os de definição de limites às actividades levadas a cabo em cada prédio» (1).
Como sublinha o autor citado na nota de rodapé, “é neste campo, mais do que em qualquer outro, que parece impressivo e útil recorrer ao conceito de relações jurídicas reais, no sentido que Oliveira Ascensão deu à expressão: o de relações entre titulares de direitos reais”.
E a relação jurídica entre autores e réus, enquanto titulares de direitos reais, concretamente, proprietários de prédios confinantes, no que toca à edificação nos respectivos prédios e actividades neles exercidas, rege-se pelas supra referidas normas do Código Civil e não pelo disposto no RGEU, no PDM ou no RJUE ou nas normas referentes ao licenciamento industrial.
O escopo desses diplomas (RGEU, PDM e RJUE e outras normas de direito público), não é a concessão ou o reconhecimento de direitos subjectivos a particulares. A relação que se estabelece entre a administração e os destinatários emergentes daquelas normas é uma relação jurídico-administrativa.
Ainda que se reconheça que a legislação que define as regras do urbanismo e da construção ou relativas ao licenciamento industrial, visa também proteger interesses particulares, cuja violação pode fundar responsabilidade civil extracontratual (cfr. ac. da Rel. de Lisboa, 14.11.1996, CJ XXI, tomo V, p. 96; ac. da Rel. de Guimarães, de 02.10.2002, CJ XXVII, tomo IV, p. 273; ac. do STJ, 15.5.2003, internet, processo 03B535; ac. STJ 08.7.2003, internet, 03A2112).
Algo bem distinto é o Tribunal Judicial substituir-se ao ente público competente para a fiscalização do cumprimento dos regulamentos administrativos, verificar se a obra é ou não susceptível de licenciamento em face desses mesmos regulamentos e, não o sendo, suspender a obra ou determinar a sua demolição. Ou verificar se a actividade está ou não licenciada, cumpre ou não os requisitos de licenciamento e determinar o seu encerramento.
Tal, em nosso entender, compete ao órgão público, neste caso município, a quem incumbe tal tarefa e cujas decisões podem ser impugnadas, por quem para tanto tenha legitimidade, nos tribunais administrativos (2).
Pelo exposto não é pelo facto de a construção (pavilhão) estar ou não licenciada, cumprir ou não o projecto de licenciamento e ser ou não susceptível de ser utilizada para aquela actividade (artefactos de betão), que deixaremos de ponderar os direitos que assistem aos réus, enquanto proprietários do prédio onde se realiza tal actividade, quer os que dimanam do seu direito de propriedade, quer os que a Constituição também lhes confere.
Posto isto, como já antes referimos, o art.º 1346º do CC, confere ao proprietário de um imóvel o direito de se opor à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes, provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.
Com interesse para esta questão provou-se, entre o mais:
28) A actividade de construção de artefactos em betão levada a cabo pelo requerido marido e pelo funcionário produz ruído, nomeadamente aquando da utilização das máquinas supra referidas, na realização das cargas e descargas, bem como na desmoldagem das peças.
29) O ruído produzido pela actividade de construção de artefactos em betão está dentro dos limites legais permitidos para o local.
30) A utilização das máquinas e viaturas supra referidas na actividade de construção de artefactos em betão levada a cabo pelo requerido marido e pelo funcionário produz eco, reverberação, trepidações e vibrações, os quais não são, actualmente, perfeitamente percetíveis na habitação dos Requerentes.
31) E provoca a emissão de nuvens de poeiras nas zonas envolventes que atingem diretamente a residência dos Requerentes, nomeadamente quando é feito cimento e são descarregados os camiões com a areia.
32) E produz ainda resíduos industriais líquidos (nomeadamente cimentos e tintas) que foram libertados através do sistema de canalização das águas pluviais existente no subsolo do prédio dos Requerentes.
33) Por causa das nuvens de poeiras, a habitação e quintal dos Requerentes, ficam pequenas partículas de pó de cimento, nomeadamente na fachada, vidros e telhado.
34) Por causa das nuvens de poeiras, os Requerentes evitam abrir as janelas de sua casa.
47) Em 2 de Janeiro de 2019, em sede do processo fiscal FIS.2318 e através do ofício nº FM/PM-4 do Município de ..., Fiscalização Municipal, Polícia Municipal, foi comunicado aos Requerentes que: «(…) 1.3 – Foram ainda verificadas as condutas de águas pluviais, no entanto, não se confirmam escorrências de resíduos com cimento recentes.
55) Actualmente, três das paredes da construção referida em 14) onde decorre a actividade de construção de artefactos em betão estão revestidas a lã de rocha com 4 a 5 cm de espessura e a outra (que é a contigua com o arruamento) é somente constituída pela chapa metálica..»
Desta factualidade resulta que o ruído produzido não excede o limite legalmente permitido para o local.
Constata-se que as eventuais trepidações, reverberação ou vibração produzidas pelas máquinas utilizadas (uma betoneira eléctrica, um empilhador e uma rebarbadora, bem como de uma ferramenta que não foi concretamente identificada e destinada à vibração do cimento) além de, a terem existido e incomodado os autores, sempre o foram por curtos períodos de tempo (factos 25 a 27), actualmente as vibrações ou trepidações, “não são perfeitamente perceptíveis na habitação dos Requerentes”.
Consequentemente e no que tange aos ruídos, trepidação ou vibrações decorrentes do funcionamento das máquinas utilizadas pelo réu na sua actividade, concluímos que os mesmos não causam prejuízo substancial para o uso do prédio dos autores e o que poderiam causar foi acautelado na sentença recorrida.
Efectivamente, a sentença assegura um período de descanso de 15 horas (laboração apenas permitida entre as 8h30m e as 17h30m), mais do que suficiente para garantir o descanso e sono tranquilo dos autores e seus filhos, algum lazer ou até estudo.
Durante as 9h em que a indústria dos réus pode laborar, não produz ruído acima dos limites legais para aquela zona e o que produz distribui-se por curtos períodos de tempo (factos nºs 29º e 25º).
Nesse aspecto, só quem vive no deserto tem condições ideais de silêncio. A maioria da população, que vive nas cidades, tem de conciliar o estudo, trabalho de investigação e teletrabalho, com o ruído do trânsito rodoviário, vibrações dos camiões, dos autocarros, até dos aviões, bem como os insuportáveis ruídos das obras de construção civil que, felizmente, pois “quand le bâtiment va bien l’economie va bien”, surgem por todo o lado.
O direito ao trabalho e a trabalhar é uma emanação (e o sustentáculo) do direito à vida e à existência, pois, para quase todos nós, sem trabalho não há meios de sobrevivência. E é tão importante o trabalho manual ou material, como o trabalho intelectual. Contanto que o ruído não exceda em tempo e intensidade os limites legais, não tem o trabalhador manual de parar a sua actividade para que o trabalhador intelectual tenha condições óptimas para realizar o seu.
Mas, a sentença recorrida não se limitou a reduzir o tempo de laboração da actividade de construção de artefactos em betão e gesso, desenvolvida pelo réu marido e filho. Proibiu também a utilização de vibrador de mesa e/ou vibrador de agulha para realizar a vibração do betão e restringiu a utilização da betoneira e da rebarbadora ao interior do pavilhão (que tem três paredes, na confinância com o prédio dos autores, forradas a lã de rocha), de forma, por um lado, a eliminar as vibrações de que os autores se queixaram e, por outro, a que as poeiras do cimento não se espalhem pelo ar, atingindo o prédio dos autores.
Cremos assim que, com os limites impostos pela sentença recorrida à actividade desenvolvida no prédio dos réus – quer temporais [dias úteis das 8.30 horas (oito e trinta) às 17.30 horas (dezassete e trinta)], quer de meios [proibir os requeridos de utilizar (…) vibrador de mesa e/ou vibrador de agulha] quer de local [Impor aos Requeridos que a betoneira e a rebarbadora sejam utilizadas apenas no interior do pavilhão (…)], se logrou a “solução de compromisso” a que se refere o acórdão do STJ de 1-3-2016 (proc. 1219/11.4TVLSB.L1.S1) (3).
Recordemos que estamos perante um uso normal do respectivo prédio pelos réus, que há 36 anos nele têm a sua indústria doméstica (apenas trabalhava o réu e agora também o filho) de artefactos em betão e gesso (casotas para cão, tanques e pias), portanto desde data muito anterior à de qualquer classificação do PDM.
Tal uso não é contrário ao fim económico e social do direito de propriedade exercido sobre um prédio urbano.
Contudo, esse uso causa desassossego aos autores e seus filhos, que se queixam de ruído e trepidação ou vibrações, durante o dia, que colidem com o seu estudo, investigação ou teletrabalho.
O ruído produzido por aquela pequena indústria doméstica não excede os limites legais.
Mesmo assim, para garantir o direito ao descanso dos autores, fixou-se o horário durante o qual tal laboração poderá decorrer, deixando 15h de sossego aos autores, nos dias úteis, e a totalidade nos fins de semana e feriados.
Mais ainda, proibiu-se o uso de máquinas ou ferramentas susceptíveis de provocar vibrações maiores.
Restringiu-se o uso das restantes máquinas ou ferramentas ao pavilhão, de forma a minorar ou eliminar o ruído e a libertação de pó para o prédio dos autores.
Com tais limitações está assegurado o direito ao descanso dos autores e a um ambiente saudável – as poeiras da colocação do cimento na betoneira ficam limitadas ao pavilhão, as resultantes da descarga da areia, ocorrem poucas vezes no mês (facto nº 27), são momentâneas e, sendo mais pesadas do que o ar não têm tendência a espalhar-se na atmosfera, sendo um produto natural, equivalente à poeira que produz um tractor a lavrar um campo.
Desta forma, ou seja, com a solução encontrada pelo Tribunal “a quo” e expressa no dispositivo da sentença recorrida, os direitos fundamentais dos autores (o direito ao repouso, descanso e saúde, enquanto direito de personalidade), ainda que gozando de primazia sobre o direito de propriedade dos réus (mas já não sobre o seu igual direito ao trabalho e à obtenção dos meios económicos necessários à sua sobrevivência), mostram-se conciliados.
Pelo exposto, não acolhemos das doutas conclusões dos apelantes, antes sufragamos a decisão constante da douta sentença recorrida, que se impõe confirmar.
V – DELIBERAÇÃO
Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
*
Guimarães, 14-10-2021
Eva Almeida
António Beça Pereira
Ana Cristina Duarte
1. Rui Pinto Duarte em “Curso de Direitos Reais”, Principia, 3ª edição, págs. 80 e segs.
2. Neste sentido nos pronunciamos nos acórdãos desta Relação de Guimarães de 12.3.2020 (processo 861/18.7T8EPS-A.G1), não publicado e de 11-3-2021 (processo 5124/20.5T8GMR.G1) publicado em ww.dgsi.pt, bem como na Declaração de voto, como 2ª adjunta, no acórdão de 13-7-2021 (Proc. 98/20.5T8VNC.A.G1), igualmente publicado em www.dgsi.pt.
3. “O direito ao repouso, descanso e saúde dos M. (enquanto direito de personalidade), têm um valor superior ao direito de propriedade da ré e ao direito (económico) de exercer e explorar uma atividade e dever, por isso, prevalecer sobres estes últimos. Tal não significa que não se deva procuraruma solução de compromisso e consequentemente, sempre que possível, se deva tentar conciliar esses direitos”.