PREVPAP
REGULARIZAÇÃO DE VÍNCULOS PRECÁRIOS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
ANTIGUIDADE
Sumário


Sumário – artigo 663º/7, CPC

I – No âmbito do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP), regulado pela Lei 112/2017 de 29-12, é correcta a fixação da remuneração da trabalhadora com referência ao valor actual que recebia enquanto prestadora de serviços aquando da formalização do vínculo, ao qual devem acrescer os legais subsídios de férias e de natal.
II- Não ocorre violação do princípio da igualdade salarial se a matéria de facto é omissa quanto a outros trabalhadores que recebam de modo diferente, não obstante desempenharem as mesmas funções em termos de quantidade, qualidade e tendo a mesma antiguidade.
III - A antiguidade da autora deve retroagir ao início das suas funções, incluindo para efeitos de pagamento de férias e de natal, quer porque a lei consagra o princípio da protecção da antiguidade, quer porque se trata de reconhecer uma relação laboral pré-existente e não de criar um novo vínculo.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso

Texto Integral


I. RELATÓRIO

A autora I. S. intentou a presente acção declarativa com processo comum contra a ré UNIVERSIDADE ..., pedindo que:

a.A ré seja condenada a reconhecer a existência de um contrato de trabalho com a autora com efeitos a partir do dia 1 de Outubro de 2015 e a antiguidade reportada a esta data;
b. Seja estabelecida a retribuição mensal líquida da autora no montante de € 1.134,55, sem prejuízo da progressão salarial que possa vir a ter;
c.Em alternativa, seja estabelecida a retribuição mensal ilíquida da autora no montante de € 1.134,55, sem prejuízo da progressão salarial que possa vir a ter;
d.A ré seja condenada a pagar à autora a diferença entre a retribuição mensal que seja paga e a que venha a ser estabelecida;
e.A ré seja condenada a pagar à autora a quantia de € 9.508,97, a título de subsídios de férias e de Natal referentes aos anos de 2015 a 2019;
f.A ré seja condenada a pagar os juros de mora sobre estas quantias.

A autora alega que no âmbito do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVAP) foi reconhecido que exercia funções que correspondiam a uma necessidade permanente da ré e que o vínculo precário ao abrigo do qual exercia estas funções devia ser regularizado. A regularização do vínculo foi realizada através da celebração de um contrato individual de trabalho por tempo indeterminado. A ré atribuiu-lhe a retribuição base mensal de € 944,02 e reconheceu a antiguidade a partir do dia 16 de Janeiro de 2017. Porém, considera que a retribuição que lhe foi atribuída consiste numa diminuição do montante que auferia, o que não era permitido, e que a antiguidade devia ter sido reconhecida para uma data anterior.
A ré contestou alegando que a retribuição base mensal e a antiguidade da autora respeitam os termos do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVAP) e que não ocorreu qualquer diminuição de retribuição. O regime em causa não determina que toda a relação contratual que existiu com o beneficiário da actividade é uma relação laboral. Apenas impõe o reconhecimento, imediatamente e para a frente, da existência de um contrato de trabalho, devendo a antiguidade ser reportada apenas a 16/01/2017. Quanto ao facto de a autora enquanto prestadora auferir €1.134,55 e ter-lhe sido fixado a retribuição mensal de €944,02 alega que não há diminuição salarial. Mais diz que a retribuição é regulada pelo nº 3 (não pelo n. 2) do artigo 14.º, 3, da Lei 112/2017, de 29 de Dezembro, pelo que o valor que a autora recebia pelos serviços que prestava não consubstancia qualquer baliza ou limite mínimo de valor a pagar pela Ré. Mais alega que o raciocínio da autora a favorecida em relação aos outros trabalhadores da Ré que se sujeitam a processos de recrutamentos aos quais aquela não se sujeitou dado que o seu vínculo foi regularizado ao abrigo de um regime especial.

Procedeu-se a julgamento.

Proferiu-se a seguinte SENTENÇA (DISPOSITIVO):
“Pelo exposto, decido julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência:
1.Condeno a ré a reconhecer a existência de um contrato de trabalho com a autora com efeitos a partir do dia 1 de Outubro de 2015 e a antiguidade reportada a esta data;
2.Condeno a ré a estabelecer a retribuição mensal ilíquida da autora no montante de € 1.134,55, sem prejuízo da progressão salarial que possa vir a ter;
3.Condeno a ré a pagar à autora a diferença entre esta retribuição mensal e que pagou à autora;
4.A esta quantia acrescem juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a data em que devia ter sido paga cada retribuição até integral pagamento;
5.Condeno a ré a pagar à autora os subsídios de férias e de Natal relativos aos anos de 2015 a 2019, os quais devem ser calculados por referência à quantia que recebia mensalmente enquanto prestadora de serviços em cada um dos anos em que devida ter ocorrido o pagamento, mas sujeita ao tratamento fiscal e para a Segurança Social que é aplicável aos trabalhadores;
6.A esta quantia acrescem juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde a data em que deviam ter sido pagos cada um dos subsídios de férias e de Natal até integral pagamento.
Custas a cargo da autora e da ré, na proporção de 1/6 para a autora e 5/6 para a ré.”

A RÉ RECORREU. CONCLUSÕES:

A. A Recorrente, enquanto fundação pública sujeita ao regime de direito privado, está obrigada a observar os princípios constitucionais respeitantes à administração pública, nomeadamente a prossecução do interesse público e os princípios da igualdade, imparcialidade, justiça e proporcionalidade.
B. A Recorrente, não obstante ter poder para celebrar contratos de trabalho sujeitos ao direito privado, nomeadamente ao Código do Trabalho, está obrigada a observar um procedimento público, imparcial e escrutinável de selecção de candidatos a cada posto de trabalho que pretenda preencher.
C. O PREVPAP (criado pela Lei 112/2017, de 29 de Dezembro) permitiu à Recorrente celebrar contratos de trabalho sem observância do procedimento imparcial e escrutinável de selecção de candidatos a cada posto de trabalho que pretenda preencher, desde que observados os limites e requisitos ali vertidos.
D. O PREVPAP destina-se a regularizar os vínculos contratuais existentes, passando a ser qualificados como contratos de trabalho, das pessoas a que se refere o n.º 1 do artigo 2.º da Lei 112/2017, de 29 de Dezembro. que exerçam ou tenham exercido as funções em causa no período entre 1 de janeiro e 4 de maio de 2017, ou parte dele, e durante pelo menos um ano à data do início do procedimento concursal de regularização;
E. O regime de excepção à exigência de procedimento concursal (ainda que simplificado) a que a Recorrente está sujeita que é o PREVPAP impõe à mesma que a mesma celebre contratos de trabalho de acordo com as circunstâncias levadas a apreciação na CAB e pela mesma qualificadas como contrato de trabalho a regularizar.
F. Por conseguinte, as funções e categoria profissional, e a retribuição a figurar no contrato de trabalho a celebrar no âmbito do PREVPAP devem ter por referência o período temporal avaliado pela CAB, ou seja, o ano de 2017.
G. Nos casos em que o vínculo existente, previamente à regularização via PREVPAP, não é um vínculo laboral, a definição da retribuição deve obedecer ao disposto no artigo 14.º/3 da Lei 112/2017, de 29 de Dezembro.
H. No caso dos autos, a determinação da retribuição da Recorrida por referência à retribuição anual da mesma no ano de 2017 obedece às normas e princípios vindos de observar,
I. Sendo assim inatacável a fixação de uma retribuição que corresponde à divisão por 14 do incremento patrimonial da Recorrida no ano de 2017 no âmbito do contrato de prestação de serviços.
J. Ao contrário do vertido na douta sentença, tal decisão não corresponde à diminuição da retribuição da Recorrida, uma vez que a mesma não tinha vínculo contratual laboral com a Ré no ano de 2019, sendo antes uma prestadora de serviços. [Caso a Recorrida tivesse sido integrada de forma célere, na sequência do PREVPAP, (admite-se, no ano de 2015), sendo-lhe fixada a retribuição igual ao valor que auferiria enquanto prestadora de serviços, em 2015, a sua progressão para posição retributiva superior apenas poderia ocorrer nos termos do disposto no Despacho n.º 1896/2018, de 21 de fevereiro, ou seja, seis anos após o início do vínculo – em 2021. Considerando-se o antedito, constata-se que a decisão ínsita na douta sentença acarreta desigualdade entre os trabalhadores da Recorrente.
K. Por violar o disposto no artigo 14.º/3 da Lei 112/2017, de 29 de Dezembro, e no artigo no artigo 134.º n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 62/2007 de 10 de Setembro, requer-se seja revogada a douta sentença de que se apela quanto aos pontos 2, 3 e 4 do dispositivo.

Sem conceder,
a. Caso assim não se entenda, a fixação da retribuição mensal deveria então ser de valor igual ao incremento patrimonial médio mensal da Recorrida, enquanto prestadora de serviços, no ano de 2017, ou seja, de €1.077,45,
b. Pelo que se requer que seja revogada a douta sentença de que se apela quanto ao ponto do dispositivo, e substituída por outra que fixe no montante de €1.077,45 o salário mensal da Recorrida.
L. Não existe equiparação entre a antiguidade reconhecida à Recorrida no âmbito do contrato de trabalho celebrado na sequência do PREVPAP e a existência de um contrato de trabalho desde o início dessa antiguidade.
M. O regime jurídico do PREVPAP não pretende que sejam retiradas tais consequências da regularização do vínculo, pelo contrário:
a. nos casos em que a antiguidade apresenta relevo jurídico, o legislador disse-o, como foi o caso do artigo 13.º da Lei 112/2017, de 29 de Dezembro.
b. Nos termos da Lei 112/2017, de 29 de Dezembro, a regularização produz efeitos de natureza laboral para diante; havendo a possibilidade do tempo anterior à regularização ter influência na carreira do trabalhador.
N. Entendimento distinto violaria a igualdade entre os trabalhadores da Recorrente: os opositores do PREVAP, sem lei que o preveja claramente, são qualificados como trabalhadores dependentes, sem sujeição a concurso, sem escrutínio, sem comparação com os demais candidatos, em período de tempo não considerado no PREVPAP, com a consequência de receberem subsídios de férias e de Natal.
O. Já os trabalhadores da Recorrente, que foram sujeitos a concurso, que viram os seus salários serem fixados por referência a uma tabela (aplicável face à sua categoria profissional – o que não aconteceu com Bolseiros, como é o caso do Recorrido) recebem valores inferiores.
P. Não são assim devidos subsídios de férias e subsídios de Natal respeitantes ao período de tempo em que entre a Recorrente e a Recorrida vigorou um contrato de prestação de serviços (01/10/2015 e 31/12/2019).
Q. Pelo exposto, atenta a violação do artigo 14.º da Lei 112/2017, de 29 de Dezembro, e o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP) e o princípio de que todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso (artigo 47.º/2 da CRP), requer-se seja revogada a douta sentença a quo, relativamente aos pontos 5 e 6 do dispositivo, e que em consequência seja a Recorrente absolvida do correspondente pedido.

Nestes termos e nos mais de direito que V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, mui doutamente suprirão, deverá a douta sentença a quo ser revogada, e em consequência, deverá ser a Recorrente absolvida dos correspondentes pedidos deduzidos pela Recorrida na petição inicial…”

CONTRA-ALEGAÇÕES -propugna-se pela improcedência do recurso.
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO – propugna-se pela manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (1)): fixação da retribuição da autora; fixação do início da relação contratual (antiguidade), mormente para efeitos de pagamentos de subsídios de férias e de natal.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:
Os factos provados pela primeira instância e que não são postos em causa são os seguintes:
1.A ré é uma fundação pública com regime de direito privado;
2.No dia 1 de Outubro de 2015, a autora começou a desempenhar funções nos serviços de apoio da direcção financeira e patrimonial da ré;
3.Desde o dia 1 de Outubro de 2015 até ao dia 1 de Janeiro de 2020 a autora desempenhou sempre as suas funções como prestadora de serviços da ré;
4.No período entre o dia 1 de Outubro de 2015 até ao dia 16 de Janeiro de 2017, a autora exerceu as mesmas funções que continuou a exercer posteriormente, designadamente nas instalações e com instrumentos dos serviços de apoio da direcção financeira e patrimonial da ré, estando obrigada a cumprir as orientações que lhe eram transmitidas e a realizar as tarefas que lhe eram atribuídas, com horário de trabalho e tendo que solicitar ao director para se ausentar no período de trabalho e para a marcação de férias;
5.No âmbito do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários (PREVPAP) foi emitido parecer favorável à regularização do vínculo que a autora mantinha com a ré;
6.Este parecer foi homologado pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das Finanças, do Trabalho e da Solidariedade e Segurança Social;
7.No dia 30 de Dezembro de 2019, para a regularização do vínculo, a autora e a ré celebraram o contrato individual de trabalho por tempo indeterminado que consta de fls. 51 a 53 e que aqui se dá por integralmente reproduzido;
8.Ficou acordado o seguinte:
O contrato de trabalho tinha início no dia 1 de Janeiro de 2020;
A autora era integrada na categoria de assistente técnico;
A autora auferia a retribuição base mensal de € 944,02, correspondente à 5ª posição retributiva da categoria e ao nível retributivo entre 10-A da tabela retributiva única constante do anexo III do Regulamento de Carreiras, Recrutamento e Contratação em Regime de Contrato de Trabalho de Pessoal não Docente e não Investigador da UNIVERSIDADE ..., em conformidade com o art. 37º nº5;
Sobre a retribuição incidiam os descontos legalmente previstos;
Era reconhecida a antiguidade da autora com efeitos a partir do dia 16 de Janeiro de 2017.
9.A retribuição da autora foi calculada nos termos da deliberação do Conselho de Gestão da ré que consta de fls. 51 e 52 e que aqui se dá por integralmente reproduzida;
10.Esta deliberação estabeleceu a seguinte fórmula de cálculo:

A retribuição base mensal é determinada de acordo com o valor bruto anual relativo a 2017, sem Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) nos casos em que era legalmente devido, e corresponderá ao valor mensal que o trabalhador auferia multiplicado por doze, respeitante aos meses de serviço efectivo, e dividido por catorze, respeitante às prestações mensais devidas.
11.A autora auferia as seguintes quantias como prestadora de serviços da ré:

AnoValor Mensal
2015€ 1.214,45
2016€ 1.077,45
2017€ 1.077,45
2018€ 1.161,42
2019€ 1.134,55

12.Sobre estas quantias incidiam os respectivos descontos legais.

B) DIREITO

Está em causa no recurso a fixação da retribuição da autora, a fixação da data de inicio da relação laboral (se deve retroagir ao inicio das funções) e se a ré está obrigada a pagar os subsídios de férias e de natal.
A substância do litígio é idêntica à já apreciada no processo 1782/20.9T8BRG.G1 (www.dgsi.pt, de 15-06-2021), pelo que seguiremos de muito perto as considerações aí expendidas, porquanto os pressupostos fácticos são similares.
A retribuição:
A ré fixou o valor da retribuição da autora em 944,02€. Recorreu a dois elementos: (i) à retribuição mensal recebida pela autora em 2017, apesar de a regularização ter ocorrido em Dez/19, quando a autora recebia um valor mensal superior (1.134,55€); (ii) à multiplicação por doze desse valor mensal recebido, seguida de subsequente divisão por catorze.
Quanto à antiguidade da autora, reconheceu-a partir de 16-01-2017, não obstante o início de funções datar de 1-10-2015.
Ao invés, o tribunal a quo atendeu ao valor de € 1.134,55€, por ser o auferido pela autora aquando da regularização e celebração de contrato de trabalho por tempo indeterminado (em Dez/19), o qual, em seu entender, deve apenas ser multiplicado por 14. Quanto à antiguidade da autora, reconheceu-a a partir do inicio das funções que deram origem à regularização do vínculo.
Em alegações, a recorrente insiste que a retribuição deve ser aferida por referência ao ano de 2017, com subsequente multiplicação por 12 e divisão por 14. Subsidiariamente pede que se atenda ao valor de 1.077,45€ correspondente à média mensal auferida em 2017. Alega que foram violados os artigos 14º, 3 da Lei 112/2017, de 29-12 e o artigo 134º, 1 e 2 (2) da Lei 62/2007 de 10-09 (regime jurídico das instituições de ensino superior), este último por violação dos princípios do interesse público, da igualdade, imparcialidade, justiça e proporcionalidade.
Na decisão recorrida faz-se um extenso enquadramento da questão, para o qual se remete.
Na parte que mais releva ao objecto de recurso, os fundamentos do tribunal recorrido alicerçam-se nas seguintes premissas: a retribuição fixada pela ré representa uma diminuição da retribuição que não é admitida; a ré é uma fundação pública com regime de direito privado e, pese embora sujeita a princípios constitucionais de prossecução do interesse público, da igualdade, imparcialidade e justiça, são-lhe extensíveis as finalidades de combate à precaridade do regime laboral do direito privado (3), tendo o seu regime de ser compatibilizado com todo o ordenamento jurídico, incluindo a Lei 112/2017, de 29-12 (PREVPAP) que pretendeu conciliar um conjunto de interesse e obriga à regularização do vínculo; o procedimento (PREVPAP) não cria um novo vínculo, como se não existisse a anterior situação, mas reconhece meramente o que já existia; não obstante as especificidades de regularização formal dos vínculos dos trabalhadores, esta não pode redundar numa situação pior daquele em que estavam investidos; a lei distingue a regularização do vínculo precário através da celebração de um contrato de trabalho em funções públicas ou de um contrato individual de trabalho, sendo este último o caso e previsto no artigo 14º, 1, b, 3, da referida lei; é correcto o recurso ao valor da retribuição da autora como prestadora de serviços, mas este terá de o ser por referência ao ano de 2019, caso contrário a retribuição é diminuída; mas não poderá ser considerada apenas a quantia mensal multiplicada por 12 vezes ao ano, dado que o enquadramento laboral imperativo terá de o ser na totalidade, incluindo obrigação de pagamento de subsídios de férias e de natal, que devem acrescer e não ser deduzidos; a ré não pode suprimir os aspectos desvantajosos, sendo este um expediente que contorna as obrigações legais.
Na essência adere-se à argumentação expendida.
Importa ter presente que foi reconhecido que a autora exercia funções que correspondiam a uma necessidade permanente da ré e que o vínculo precário ao abrigo do qual exercia estas funções devia ser regularizado, no âmbito do Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP), regulado pela Lei 112/2017 de 29-12. O programa insere-se numa estratégia de combate à precariedade no sector público que foi estabelecida no art. 19º nº1 da Lei 7-A/2016 de 30-03 e no art. 25º nº1 da Lei 42/2016 de 28-12.
O processo obedeceu a três fases, incluindo aquela em que interveio uma comissão bipartida (CAB) criada no âmbito da respectiva área governativa, prévia à regularização dos vínculos dos trabalhadores que, entre o mais, tinha por função avaliar dos requisitos de acesso ao programa, mormente “emitir parecer sobre a correspondência das funções exercidas a uma necessidade permanente do órgão, serviço ou entidade onde em concreto as mesmas são desempenhadas e sobre a adequação do vínculo jurídico às funções exercidas”, pareceres que seriam posteriormente homologados pelos membros do Governo competentes- vd. Proposta de Lei n.º 91/XIII de 29-06-2017, www.parlamento.pt
Uma vez estabelecido pela comissão (CAB) que se tratava de uma necessidade permanente passar-se-ia para a fase de regularização do vínculo pelos dirigentes dos órgãos onde os trabalhadores exerciam funções. Essa regularização, segundo o procedimento PREVPAP poderia ser através da celebração de um contrato de trabalho em funções públicas ou um contrato individual de trabalho.
A ré estava sujeita ao regime de direito privado e ao código do trabalho, pelo que a emissão do dito parecer da CAB ao classificar as situações de trabalho como correspondendo ao “exercício de funções que satisfaçam necessidades permanentes, sem vínculo jurídico adequado” obrigava as empregadoras a proceder imediatamente à regularização formal das situações, sem necessidade de quaisquer outras autorizações. Esse parecer implicava mormente o reconhecimento da existência de contratos de trabalho, nomeadamente por efeito da presunção de contrato de trabalho e por tempo indeterminado por se tratar da satisfação de necessidades permanentes- 14º, 1, b, da Lei 112/2017 de 29-12.
Quanto ao modo de fixar a retribuição, não havendo um vínculo laboral formal pré-existente (4), sendo a autora uma prestadora de serviços, as retribuições seriam “… determinadas de acordo com os critérios gerais, particularmente a retribuição mínima mensal garantida e as tabelas salarias das convenções colectivas aplicáveis” – nº 3, do artigo 14º, da Lei 112/2017, de 29-12 (no que, aliás, as partes concordam).
Não existe controvérsia entre autora e ré quanto ao facto de a base de referência ser a remuneração mensal da autora enquanto prestadora de serviços. Não sendo, assim, necessário dissecar, em demasiado, o que se entende por “critérios gerais”. Sempre se dirá que estes serão os previstos no código do trabalho, legislação a que a ré está sujeita, segundo a qual a retribuição é toda a prestação que o trabalhador recebe como contrapartida do trabalho, conforme o acordado, a lei e os usos, abrangendo-se todas as retribuições que sejam regulares e periódicas – 258º CT/09. Abrange-se também dentro dos critérios gerais o Regulamento 4095/2017, DR de 12-05-2017, referente, entre o mais, a carreiras e níveis retributivos aprovados pela ré.
A questão controvertida reside no facto de a recorrente querer socorrer-se de uma remuneração com referência a um período temporal desactualizado (2017) e sem qualquer correspondência com a realidade subjacente aquando da formalização do vínculo laboral. Se a ré só regularizou o vínculo no final de 2019 e não antes, tal não pode ser imputado à autora e a fixação das condições tem de ter por reporte a actualidade, sob pena de prejuízo da autora e de desvirtuamento do objectivo da lei de combate à precariedade laboral.
Não vemos, assim, como atender à remuneração que já não está em vigor, afigurando-se ser um critério desrazoável e injustificado. Ao contrário do que pretende a recorrente a lei não referencia a remuneração a atribuir ao período de 1-01-2017 a 4-05-2017. Este período serve apenas para, juntamente com outros requisitos, balizar o âmbito da regularização extraordinária dos vínculos- artigo 3º (5) da Lei 112/2017, de 29-12. A posterior regularização do processo e definição dos termos concretos do contrato cabe à ré de acordo com ao parâmetros legais (6), segundo a lei do procedimento e não às CABs.
Ademais, há que ter presente, como sublinhado na decisão recorrida, que a formalização do vínculo não representa a criação de uma nova relação contratual, mas um mero reconhecimento da existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado por se tratar de necessidades que as CABs já reconheceram como permanentes 14º, 1, b), da referida lei. Tratando-se do reconhecimento de uma situação pré-existente, há que retirar as necessárias consequências de que o montante recebido pela autora tem as garantias legais (excepto se se provasse que o recebia em circunstâncias extraordinárias, o que não é o caso), sob pena de violação do princípio da irredutibilidade da retribuição-129º, 1, d), CT/09.
A outra questão controvertida prende-se com o modo de cálculo da retribuição. Concorda-se, também aqui, com o tribunal a quo na parte que refere que a multiplicação da retribuição por 12, seguida de divisão por 14, obedece a um critério que desvirtua o sentido da lei que é o de dar maior e não menor protecção. Sabe-se que os prestadores de serviços não recebem subsídios de natal e de férias, enquanto os trabalhadores subordinados ao abrigo de contrato de trabalho têm direito aos mesmos. O que a ré fez com esta fórmula de cálculo foi contornar o imperativo legal de pagamento destes subsídios.
De acordo com um dos critérios da própria recorrente, se multiplicarmos por 12 a retribuição mensal recebida pela autora, chegaremos ao valor anual de 13.614,60€ se tivermos em conta o ano de em 2019 (data de regularização dos vínculos). Mas se prosseguirmos com a fórmula de cálculo proposta pela recorrente de subsequente divisão por 14, e com referência apenas ao ano de 2017, passaria a auferir anualmente o valor inferior de 13.216,28€. O que representaria uma diminuição salarial.
Alude a recorrente à violação de princípios públicos pelos quais tem de se nortear, mormente de igualdade entre os seus trabalhadores (13ºCRP) e de que todos os cidadãos têm o direito de acesso à função pública, em condições de igualdade e liberdade, em regra por via de concurso (artigo 47º/2 da CRP).
Mas, a matéria de facto é omissa no que a este aspecto se refere, não havendo elementos para se puder apurar da alegada desigualdade. É certo que o principio constitucional da igualdade (13º CRP, e na lei art. 134º da Lei 62/2007 de 10-09) pressupõe tratar de modo igual o que é igual e de modo diferente o que não o é. Mas a sua apreciação tem de ser feita com base em factos carreados aos autos, que inexistem.
Os assistentes técnicos têm 12 posições retributivas (níveis 5-A a 17-A- art. 16 do regulamento e anexo II), dentro dos quais os valores vão progredindo. Contudo, a ré não fixou a retribuição da autora com referência à posição/nível remuneratória em que efectivamente se inseria. Não integrou a autora na tabela remuneratória do Regulamento (nível) com base nas suas competências e antiguidade (veja-se a matéria provada). Não partiu da singularidade das suas funções e do seu tempo de serviço para aferir o vencimento que se lhe adequava na tabela do Regulamento (7). Fez ao contrário, centrou-se no vencimento já recebido. De acordo com a Deliberação calculou o valor que ganhava anualmente em 2017, dividiu-o por 14 e, seguidamente, atribuiu-lhe o nível que mais aproximadamente se “encaixava” nesse valor dentro da carreira de assistente técnico.
Ora, assim sendo, não existem elementos para se pode fazer comparações de igualdade/desigualdade com outros trabalhadores, sujeitos ou não ao regime de contrato de trabalho e a processos prévios de recrutamento e selecção.
De resto, a alegação de factos concretos relativos aquele que seria o posicionamento correcto da autora (funções da autora, caracterização, complexidade, competências, desempenho, habilitações, etc…), e a sua comparação concreta com outros trabalhadores que se lhe assemelhassem, de todo não consta da contestação. Na verdade, a ré admite que utilizou o critério de posicionar a autora nos níveis do Regulamento consoante o que já ganhava e não de acordo com outras especificidades concretas.
Não releva a invocação do Despacho n.º 1896/2018, de 21 de fevereiro, relativo à gestão das carreias de pessoal não docente em regime de contrato de trabalha. Ali regula-se um momento posterior ao que está em causa nos autos, que é a mudança de categoria e alteração da posição retributiva por promoção ou progressão. Do que ora nos ocupamos é o da fixação inicial da retribuição no caso específico de reconhecimento de contrato de trabalho de vínculos precários e ao abrigo de um regime próprio, mormente regulado no artigo 14º, da Lei 112/2017, de 29-12.
Em suma, não vemos como se possa agora, em fase de recurso, aquilatar da violação do princípio da igualdade.
Igualmente, é descabida a objecção da recorrente de que a há violação de regras de acesso à função pública. A lei ordinária (aliás invocada pela própria recorrente) estabelece um programa de regularização extraordinária dos vínculos precários através da admissão de pessoas que exerçam funções que correspondam a necessidades permanentes de ”entidades públicas”, obrigando à imediata regularização formal das situações, nomeadamente mediante o reconhecimento da existência de contratos de trabalho. Ademais, a recorrente não suscita a inconstitucionalidade de qualquer norma da Lei nº112/2017, de 29-12, que permite precisamente a admissão de trabalhadores através da celebração de contratos de trabalho e sem recurso a outras regras de recrutamento.

Como se refere na sentença, e agora centrando-nos na antiguidade da autora e no pagamento dos subsídios de férias e de natal:

A opção das universidades pelo regime do contrato individual de trabalho nas relações laborais implica o seu acolhimento na totalidade, não podendo ser criado um modelo alternativo em que, com fundamento na natureza pública da fundação ou na prossecução do interesse público, os aspectos considerados desvantajosos ou prejudiciais são substituídos por outros, designadamente através da utilização de instrumentos de natureza administrativa.
Como afirma António Monteiro Fernandes, 'a actuação do direito do trabalho visa enquadrar, através de um sistema de limitações imperativas, o protagonismo do empregador na definição dos termos em que a relação de trabalho se vai desenvolver' (8).
O estatuto retributivo dos trabalhadores é o que resulta das normas de natureza imperativa que constam no Código do Trabalho e nos instrumentos de regulação colectiva do trabalho (art. 1º e 3º do Cód. do Trabalho).
É aplicável a proibição de diminuição da retribuição, excepto nos casos previstos na lei ou nos instrumentos de regulação colectiva do trabalho, nos termos do art. 129º nº1 al. d) do Cód. do Trabalho.
É também aplicável a obrigatoriedade de pagamento dos subsídios de férias e de Natal, nos termos dos art. 263º nº1 e 264º nº2 do Cód. do Trabalho.”
Assim, entendemos também que a decisão de fazer acrescer os subsídios de férias e de natal não merece reparo.
A antiguidade da autora terá também de retroagir ao início das funções. O mesmo resulta da própria lei que é imperativa e estabelece um principio de protecção da antiguidade (13º, 1 (9) “Após a integração e o posicionamento remuneratório na base da carreira respetiva, para efeitos de reconstituição da carreira, o tempo de exercício de funções na situação que deu origem à regularização extraordinária releva para o desenvolvimento da carreira, designadamente….)

Neste sentido também o ac. RL de 26-06-2019, em cujo sumário consta:

(II Sendo a Lei PREPAV de carácter imperativo, não podiam autora e ré estipular quaisquer cláusulas limitativas dos seus efeitos, sob pena de nulidade. III- É nula a parte da cláusula do contrato de trabalho celebrado ao abrigo do PREVPAV de onde conste que “somente” será considerada a antiguidade para efeitos de desenvolvimento de carreira. III- Ainda que a cláusula fosse válida e consubstanciasse uma remissão abdicativa a mesma também não seria válida por outro motivo, pois havendo reconhecimento da existência de um contrato de trabalho desde data anterior, por força da Lei PREVPAV, aquando da declaração da renúncia, estava-se em plena vigência de um contrato de trabalho entre autora e ré.”
A protecção da antiguidade também decorre da consideração de que a formalização do vínculo se limita a reconhecer a relação pré-existente e não a criar um vínculo novo. De resto, em paridade com o que se tendo entendido na acção com processo especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho e relativamente ao sector privado, regulada pela Lei nº63/2013 de 27-08.
Ademais a jurisprudência neste domínio tem aliás entendido que a referida acção abrange certos “empregadores do sector público” sujeitos ao regime jurídico do contrato individual de trabalho, de resto também sujeitos à acção da Autoridade para Condições de Trabalho, sem prejuízo de a contratação de trabalhadores por parte deste empregadores só ser possível após a verificação dos requisitos legais, sob pena de nulidade do acto de constituição do vínculo laboral- acórdãos da RP de 8-01-2018 e RC de 19-01-2018.
Assim sendo, é de manter o decidido quer quanto à fixação da retribuição, quer quanto à antiguidade da autora e à obrigação de pagamento de subsídio de férias e de natal.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida (87º, CPT e 663º, CPC).
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
21-10-2021

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins



1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
2. Art. 134 (regime jurídico) 1 — As fundações regem -se pelo direito privado, nomeadamente no que respeita à sua gestão financeira, patrimonial e de pessoal, com as ressalvas estabelecidas nos números seguintes. 2 — O regime de direito privado não prejudica a aplicação dos princípios constitucionais respeitantes à Administração Pública, nomeadamente a prossecução do interesse público, bem como os princípios da igualdade, da imparcialidade, da justiça e da proporcionalidade.
3. Introduzido pela Lei 63/2013, de 27-08, que prevê a criação de acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
4. Como acontecia com os trabalhadores vinculados por contrato de trabalho a termo resolutivo ou ao abrigo de trabalho temporário-14º, 1, c, d, da referida Lei.
5. Art. 3º( Âmbito da regularização extraordinária) 1 — A presente lei abrange as pessoas a que se refere o n.º 1 do artigo 2.º que exerçam ou tenham exercido as funções em causa: a) No período entre 1 de janeiro e 4 de maio de 2017, ou parte dele, e durante pelo menos um ano à data do início do procedimento concursal de regularização; b) Nos casos de exercício de funções no período entre 1 de janeiro e 4 de maio de 2017, ao abrigo de contratos emprego -inserção, contratos emprego -inserção+, as que tenham exercido as mesmas funções nas condições referidas no proémio, durante algum tempo nos três anos anteriores à data do início do procedimento concursal de regularização; c) Nos casos de exercício de funções ao abrigo de contratos de estágio celebrados com a exclusiva finalidade de suprir a carência de recursos humanos essenciais para a satisfação de necessidades permanentes, durante algum tempo nos três anos anteriores à data do início do procedimento concursal de regularização.
6. Artigo14º, 3, da Lei 112/2017, de 29-12
7. Regulamento 4095/2017, de 12-5-2017.
8. In Direito do Trabalho, pág. 22.
9. Lei 112/2017, de 29-12.