PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
PRAZO SUPLEMENTAR
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO DO RECURSO
PROCEDIMENTO CAUTELAR
SUSPENSÃO DE GERENTE
Sumário

I - Para beneficiar do prazo suplementar de 10 dias o recorrente não tem que demonstrar o bem fundado da sua pretensão. A omissão dos pressupostos de ordem formal para requerer a reapreciação da decisão de facto apenas determinam a rejeição do recurso nessa parte (art. 640º/1 CPC). Não configuram pressupostos de admissibilidade do recurso.
II - Importa rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, por não estar delimitado o objeto do recurso, quando as conclusões de recurso são omissas a respeito dos concretos pontos objeto de impugnação e decisão que se sugere (art. 640º/1 CPC).
III - Justifica-se deferir o procedimento cautelar de suspensão de gerente, ao abrigo do art. 1055º CPC, conjugado com o art. 254º e 64º do Código das Sociedades Comerciais, quando indiciariamente provado em relação ao requerente a qualidade de sócio, que o gerente exerce uma atividade concorrente à sociedade e usou os bens daquela sociedade em seu exclusivo proveito e em benefício da sociedade que criou.

Texto Integral

ProvdCaut-SuspGerente-2024/20.2T8STS-A.P1

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto
(5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório[2]
B…, Lda., NIPC ………, com sede social na Rua …, .., da freguesia de …, do concelho de Vila Nova de Famalicão, propôs a presente providência cautelar de suspensão de gerente contra C…, residente na Rua …, …, … Santo Tirso.
Para tanto, alegou, em síntese, que, o Requerido transferiu valores para a sua conta pessoal e fez levantamento em numerário, sem qualquer justificação.
Mais arguiu que o Requerido constituiu a sociedade D… - Sociedade Unipessoal, Lda., com atividade concorrente da sociedade E…, Lda..
Por último, arguiu que o Requerido transferiu a propriedade da viatura pesada de mercadorias de matrícula ..-JZ-.., de marca …, para a predita sociedade.
Terminou pedindo a suspensão imediata do Requerido do cargo de gerente da sociedade E…, Lda., e a nomeação de F… para tal cargo.

Proferiu-se despacho que indeferiu a dispensa de citação do requerido e determinou a sua citação nos termos do art.º 366.º, n.º 2 do CPC, “ex vi” do art.º 1055.º, ambos do CPC.

O Requerido, devidamente citado para a presente providência cautelar, veio arguir a ilegitimidade da Requerente, uma vez que nunca procedeu à entrega do capital referente à sua quota social.
Impugnou a factualidade exposta pela Requerente e as competências de F… para gerir a sociedade E…, Lda.
Concluiu requerendo a improcedência do presente procedimento cautelar, por considerar que não estão indiciariamente reunidos os pressupostos para o seu decretamento.

A requerente veio exercer o contraditório em relação aos documentos juntos com a contestação.

Por despacho proferido a 28 de setembro de 2020 foi julgado improcedente a exceção de ilegitimidade ativa “ad causum” da Requerente.

Procedeu-se à produção de prova.

Proferiu-se sentença em 14 de novembro de 2020 (ref. Citius 41 91 98378) com a decisão que se transcreve:
“ Pelo exposto, julga-se procedente a presente providência cautelar de suspensão de gerente intentada por B…, Lda. e. em consequência, determina-se a suspensão provisória do Requerido C…, do cargo de gerente da sociedade E…. Lda.. e nomeia-se para tal cargo F….
Custas pelo Requerido”.

O requerido C… veio interpor recurso da sentença.

Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:
…………………….
…………………….
…………………….


A requerente veio apresentar resposta ao recurso, na qual formulou as seguintes conclusões:
…………………….
…………………….
…………………….

Proferiu-se despacho que convidou o requerente a pronunciar-se sobre a tempestividade do recurso.

O recorrente veio pronunciar-se no sentido de ser tempestivo o recurso interposto, por beneficiar do prazo suplementar de 10 dias, porque o recurso tem por objeto a reapreciação da decisão de facto. Refere, ainda, que mesmo assim não se entendendo, sempre seria de considerar tempestivamente interposto, porque deu entrada no 2º dia útil após termo do prazo e com o pagamento da multa fica regularizada a questão da tempestividade do recurso.

Em 16 de janeiro de 2021 proferiu-se o seguinte despacho:
“Requerimentos com refªs 37574854 e 37687902:
- Da tempestividade do recurso apresentado pelo Requerido/recorrente –
Uma vez que a análise do não cumprimento do artº 640º, nº 1, do C. P. Civil é da competência do Venerando Tribunal da Relação, determinando a rejeição do recurso no tocante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto – cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2020, e jurisprudência aí citada – in www.dgsi.pt-, e visto que, caso tal ocorra, o Requerido/recorrente interpôs o recurso no 2º dia útil com multa, determina-se o cumprimento do artº 139º, nº 5, alínea b), do C. P. Civil.
Notifique”.

Liquidada a multa e emitidas as guias, procedeu o apelante ao seu pagamento.

O recurso foi admitido como recurso de apelação, com efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- tempestividade do recurso;
- nulidade da sentença, com fundamento no art. 615º/1 d) CPC;
- reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova;
- mérito da causa;
- litigância de má-fé;
- aplicação da taxa sancionatória excecional.
2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados indiciariamente no tribunal da primeira instância:
a) A Requerente é sócia da sociedade comercial por quotas denominada E…, Lda., NIPC 5… … …, com sede social na Rua das …, .., da união de freguesias de …, … (… e …) e …, do concelho de Santo Tirso, com o capital social de €125.000,00.
b) O capital social mencionado a) encontra-se dividido em duas quotas: uma do valor nominal de €120.000,00 detida pela Requerente, e outra do valor nominal de €5.000,00 detida pelo Requerido.
c) A gerência da sociedade E…, Lda., encontra atribuída ao Requerido.
d) O objeto social da E…, Lda., é "Transportes rodoviários de mercadorias, Investigação e desenvolvimento das ciências físicas e naturais; Comércio por grosso de matérias-primas agrícolas e têxteis, animais vivos e produtos semiacabados,- tudo cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
e) O Requerido realizou as seguintes operações:
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €5.370,00, em janeiro de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €3.700,00, em fevereiro de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €2.000,00, em março de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €5.750,00, em abril de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €1.660,00, em maio de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €3.220,00, em junho de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €2.110,00, em julho de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €3.420,00, em agosto de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €2.480,00, em setembro de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €11.840,00s (dos quais devolveu €1.020,00), em outubro de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €1.550,00, em novembro de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €2.770,00, em dezembro de 2019;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €3.100,00, em janeiro de 2020;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €1.445,00, em fevereiro de 2020;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €3.400,00, em março de 2020;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €2.770,00 (dos quais devolveu €750,00), em abril de 2020;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €8.290,00, nomeadamente contabilística, em maio de 2020;
- Levantamentos e outros movimentos (compras/pagamentos/transferências) de €2.580,00, em junho de 2020;
e) Em dezembro de 2019, o Requerido constituiu a sociedade denominada D… - Sociedade Unipessoal, Lda., da qual é o único sócio e o único gerente, e que tem como objeto social “Transporte de mercadorias, nacionais e internacionais, com alvará”, e que está sediada no mesmo concelho de Santo Tirso - cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
f) O Requerido, em maio de 2020, transferiu a favor da D… - Sociedade Unipessoal, Lda., a viatura pesada de mercadorias de matrícula ..-JZ-.., de marca … -cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais-,
g) Sem que qualquer montante ou preço do veículo descrito em f) tenha dado entrada no caixa social da sociedade “E…, Lda”[3].
h) O Requerido usa o veículo mencionado em f) no exercício da atividade da sociedade D… - Sociedade Unipessoal, Lda.
i) F…, dedica-se a outras atividades, entre outras, nas seguintes sociedades:
- G…, Lda. - N.I.P.C. ………, com o capital social de Euros 1.700.000,00 do qual o referido F… possui uma quota de Euros 1.020.000,00, bem como por intermédio da sociedade B1…, S.A., atualmente designado B…, Lda. uma quota de Euros 238.000,00, a filha H… possui uma quota de Euros 170.000,00, a filha I… uma quota de Euros 170.000,00 e a J… uma quota de Euros 102.000,00 - cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- K…, Lda. – N.I.P.C. ………, com o capital social de Euros 100.000,00 do qual o F… possui uma quota por intermédio da sociedade B1… de Euros 80.000,00, atualmente designada B…, Lda. e o F… possui uma quota de Euros 20.000,00 - cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- L…, Lda. - N.I.P.C. … … …, com o capital social de Euros 5.000,00 do qual a J… possui uma quota de Euros 2.000,00 e o F… possui uma quota por intermédio da sociedade B1… atualmente designada B…, Lda. de Euros 3.000,00- cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- M…, Lda. - N.I.P.C. … … …, com o capital social de Euros 5.000,00 da qual o F… possui uma quota por intermédio da sociedade B1…., atualmente B… Lda. de Euros 4.950,00 e uma quota a título pessoal de Euros 50,00 e do cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- N…, Lda. - N.I.P.C. … … …., com o capital social de Euros 60.000,00 da qual o F… possui uma quota por intermédio da sociedade G…, Lda., de uma quota de Euros 3.000,00 e o F… de per si é possuidor de uma quota de 56.500,00 - cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- B1…, S.A., atualmente designada B…, Lda. - N.I.P.C. … … …., com o capital social de Euros 400.000,00, do qual a J… possui uma quota do valor de Euros 62.000,00, o F… possui uma quota de Euros 280.000,00 e I… possui uma quota de Euros 58.000,00 - cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- O…, Lda. - N.I.P.C. … … …, com o capital social de Euros 15.000,00 da qual o F… possui uma quota por intermédio da sociedade B1…., atualmente designada B…, Lda. de Euros 4.950,00 - cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- P…, Lda. - N.I.P.C. … … …, com o capital social de Euros 50.000,00, da qual a J… possui uma quota de Euros 10.000,00 e o F… uma quota de Euros 40.000,00 - cfr. certidão de matrícula junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
- Factos não provados
Produzida a prova, não resultou, com relevância, indiciariamente demonstrada a seguinte factualidade:
1- As operações mencionadas em e) não tenham suporte documental a justificar as mesmas.
2- A Requerente nunca tenha entregue o valor mencionado em b).
3- F… não possua competências e capacidade para gerir a sociedade E…, Lda.

Consignou-se, ainda:
A restante matéria de facto alegada não tem qualquer relevância para a decisão da presente providência, nomeadamente por constarem factos vagos, conceitos conclusivos ou repetidos.
3. O direito
- Tempestividade do recurso -
Na resposta ao recurso, a apelada suscita a questão da tempestividade do recurso, sob os pontos 1 e 2 das conclusões.
Considera que não estando verificados os pressupostos para proceder à reapreciação da decisão de facto, o apelante não pode beneficiar do prazo mais longo para interpor recurso.
Suscitam-se, duas questões distintas e que respeitam, uma, à tempestividade do recurso e a outra, à verificação dos pressupostos para proceder à reapreciação da decisão de facto.
A tempestividade do recurso prende-se com os pressupostos processuais em matéria de recurso.
Os pressupostos processuais em matéria de recursos constituem as circunstâncias de cuja verificação depende a possibilidade do tribunal superior se debruçar sobre o concreto objeto do recurso e que a doutrina[4]tem identificado como sendo a recorribilidade do despacho ou sentença, tempestividade e legitimidade.
O recurso está sujeito a um prazo de natureza perentória cujo decurso determina a definitividade da decisão decorrente da formação do caso julgado.
Nos termos do art. 638º/1 CPC, em regra, o prazo para interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão. O prazo reduz-se para 15 dias nas situações previstas na parte final do preceito, onde se incluem os processos urgentes.
Acresce a este prazo o de 10 dias quando o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada – art. 638º/7 CPC.
Com efeito, face ao critério previsto na lei, na fase de admissão do recurso e para aferir da sua tempestividade não cumpre fazer um juízo de mérito sobre os fundamentos do recurso.
Este tem sido, aliás, o entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça, citando-se, entre outros:
- Ac. STJ 03 de março de 2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1, (www.dgsi.pt), onde se refere: ”[t]anto mais que não pode confundir-se a tempestividade do recurso que versa sobre a reapreciação da decisão proferida sobre a matéria de facto, e que diz respeito aos prazos do recurso, com a eventual improcedência da acção por falta do cumprimento de um requisito processual, in casu, o ónus do art. 640º do CPC, ou por insuficiência da prova”.
- Ac. STJ 22 de outubro de 2015 Proc. 2394/11.3TBVCT.G1.S1 (www.dgsi.pt) onde se considera: ”[c]ontendo a alegação apresentada pelo recorrente uma impugnação séria, delimitada e minimamente consistente da decisão proferida acerca da matéria de facto, deve ter-se por processualmente adquirido, em termos definitivos, que se verificou a prorrogação do prazo para recorrer por 10 dias, independentemente do preciso juízo que ulteriormente se faça acerca do cumprimento do ónus de exata indicação das passagens da gravação – que naturalmente poderá condicionar o conhecimento de tal impugnação, sem, todavia, pôr em causa a tempestividade do recurso de apelação”.
No caso concreto, o apelante veio interpor recurso do despacho que deferiu a providência cautelar, pelo que o prazo para interposição do recurso era de 15 dias.
O apelante foi notificado da sentença em 18 de novembro de 2020.
O recurso foi interposto em 11 de dezembro de 2020.
O apelante veio interpor recurso de facto e de direito e impugna a decisão de facto, com fundamento na prova gravada (transcrição do depoimento na motivação e conclusões de recurso).
O recurso tem por objeto a reapreciação da prova gravada e tanto basta para o apelante beneficiar do prazo suplementar de 10 dias. Saber se estão reunidos os pressupostos para proceder à reapreciação da decisão de facto ou se a impugnação tem relevo para a apreciação do mérito da causa, constituem questões que se prendem com os fundamentos do recurso e com o respetivo mérito.
Para beneficiar do prazo suplementar de 10 dias o recorrente não tem que demonstrar o bem fundado da sua pretensão. A omissão dos pressupostos de ordem formal para requerer a reapreciação da decisão de facto apenas determinam a rejeição do recurso nessa parte (art. 640º/1 CPC). Não configuram pressupostos de admissibilidade do recurso.
Não se ignoram posições distintas sobre a matéria, mas que não acolhemos pelos motivos que se deixam expostos.
Conclui-se, assim, que o recurso foi tempestivamente interposto.

- Nulidade da sentença, com fundamento no art. 615º/1 d) CPC -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 3, suscita o apelante a nulidade da sentença com fundamento no art. 615º/1 d) CPC.
A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar ou o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento constitui um dos fundamentos de nulidade da sentença, previsto art. 615º/1 d) CPC.
O conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, constitui um vício relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento“ – art. 608º/2 CPC.
Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A respeito do conceito “questões que devesse apreciar“ refere ANSELMO DE CASTRO que deve “ ser entendida em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e ás controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado ás partes sob os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”[5].
LEBRE DE FREITAS por sua vez tem a respeito de tal matéria uma visão algo distinta, pois considera que devendo: “ o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 660º/2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado”[6].
Para melhor precisar o seu entendimento remete para o estudo do Professor ALBERTO DOS REIS cuja passagem se transcreve:
“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “ não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art. 511º/1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 664) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”[7].
Seguindo os ensinamentos dos ilustres Professores, atendendo ao regime processual vigente, afigura-se-nos ser esta a interpretação que melhor reflete a natureza da atividade do juiz na apreciação e decisão do mérito das questões que lhe são colocadas, pois o juiz não se encontra vinculado às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas.
Resulta desta interpretação que a sentença não padece de nulidade porque não analisou um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.
O apelante considera perante os factos que alegou que a requerente não concretizou a entrada de capital na sociedade E…, Lda. Refere que o juiz tomou posição sobre a legitimidade transcrevendo os fundamentos da decisão, mas que omitiu perante os factos alegados a apreciação de uma das exceções.
A apelante não indica a exceção que não foi objeto de análise pelo juiz do tribunal “a quo”. Na contestação apenas autonomizou uma exceção: a ilegitimidade da requerente.
A exceção de ilegitimidade processual ativa foi apreciada por despacho proferido em 28 de setembro de 2020. Na sentença tomou-se posição sobre a presumível existência do direito e reconheceu-se a requerente como sócia da sociedade E…, Lda., por não resultar provado que não efetuou a entrada de capital correspondente à sua quota.
Na sentença analisaram-se as questões colocadas pelas partes, em particular os fundamentos de oposição do apelante. O apelante não concorda com a decisão a respeito da concreta questão, mas tal circunstância não configura um vício da sentença, por omissão de pronúncia. Apenas pela via do recurso pode obter a reapreciação da decisão.
Conclui-se, assim, que a sentença não padece do vício apontado e os fundamentos alegados não preenchem a invocada nulidade.
Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos 1 a 3.
- Reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 14 a 22, a apelante insurge-se contra a forma como foi apreciada a prova, por se desconsiderar o depoimento de uma testemunha: J….
A apelada considera que não estão reunidos os pressupostos para admitir a reapreciação da decisão de facto.
Cumpre apreciar se estão reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.
O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova[8].
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, que se desdobra no preenchimento de dois requisitos:
- delimitar o objeto do recurso - determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar; e
- fundamentação - motivar o seu recurso com indicação da prova a reapreciar e quando se trate de prova gravada, a transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem-se considerado que o preceito estabelece dois tipos de ónus que incidem sobre o recorrente: (i) um ónus principal, consistente na delimitação do objeto da impugnação (indicação dos pontos de facto que considera incorretamente julgados) e na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impunham decisão diversa e o sentido dessa decisão) – Art.º 640º nº 1 do CPC; e (ii) um ónus secundário, consistente na indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art.º 640º nº 2 al. a) do CPC.
No que respeita ao cumprimento de tais ónus, defende-se que o controle do seu cumprimento se revela diferente.
Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos, a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.
Vem-se entendendo que este ónus secundário não visa propriamente fundamentar e delimitar o recurso, mas sim facilitar o trabalho do Tribunal da Relação no acesso aos meios de prova achados relevantes e por isso, o controlo do cumprimento deste ónus secundário deve ser feito pela Relação em termos funcionalmente adequados e em conformidade com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Neste sentido, podem consultar-se, entre outros, os Ac. STJ 25 de março de 2021, Proc. 1595/15.0T8CSC.L1.S1, Ac. STJ 16 de dezembro de 2020, Proc. 8640/18.5YIPRT.C1.S1, Ac. STJ 03 de outubro de 2019, Proc. 77/06.5TBGVA.C2.S2 (todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Porém, o não cumprimento dos aludidos ónus acarreta a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto (cfr. o art.640º, nºs 1 e 2 do NCPC).
Nestas circunstâncias não cumpre ao relator proferir despacho de aperfeiçoamento das conclusões de recurso, porque nos termos do art. 652º/1 a), o convite apenas é permitido para os efeitos do art. 639º/3 CPC.
Assim vem decidindo o Supremo Tribunal de Justiça, como se pode constatar pelos seguintes arestos:
- Acórdão de 02-06-2016 (proc. nº 781/07.0TYLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt):
“III - No âmbito da impugnação da matéria de facto, não é admissível o convite ao recorrente, designadamente, para completar as conclusões, sendo inaplicável o disposto no n.º 3 do art. 639.° do NCPC.”
- Acórdão de 27-09-2018 (proc. nº 2611/12.2TBSTS.L1.S1, consultável em www.dsgi.pt):
“III - Relativamente ao recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto não há lugar ao despacho de aperfeiçoamento das respetivas alegações uma vez que o art. 652.º, n.º 1, al. a), do CPC, apenas prevê a intervenção do relator quanto ao aperfeiçoamento “das conclusões das alegações, nos termos do n.º 3 do art. 639.º”, ou seja, quanto à matéria de direito e já não quanto à matéria de facto.
- Ac. STJ 03 de outubro de 2019,Proc. 77/06.5TBGVA.C2.S2 (acessível em www.dgsi.pt ):
“[…]está vedado ao relator a possibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento relativamente ao recurso da decisão da matéria de facto, na medida em que, em matéria de recursos, o art. 652º, nº1, al. a), do CPC, limita essa possibilidade às « conclusões das alegações, nos termos do nº 3 do artigo 639º “
Sobre o ónus primário de indicar os concretos pontos de facto impugnados defende-se:
“I - A especificação dos concretos pontos de facto [impugnados] deve constar das conclusões recursórias, posto que estas têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte.
IV - O dever de impugnação não se basta com a alusão genérica e indiscriminada a determinados meios de prova (v.g. “a prova testemunhal” ou “a prova pericial”), mas pode ser individualizada relativamente a cada facto ou factos que entre si formem um bloco. (Ac. STJ 17.11.2020, Proc. 846/19.6T8PNF.P1.S1)
Como também se entende:
“as conclusões visam delimitar o objeto do recurso e por isso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso” (Ac. STJ 03.03.2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1 ( www.dgsi.pt ).
“Considera[-se] preenchido o ónus de impugnação quando nas alegações e nas conclusões, se identifica os concretos pontos de facto que se têm como mal julgados, se indica os meios de prova que deveriam ter conduzido a um resultado probatório diverso e se transcreve parte dos depoimentos (Ac. STJ Ac. STJ 01.10.2015 Proc. 6626/09.0TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt )
Mas também se defende que:
“II - Sendo completamente omisso o recurso de apelação, em sede de conclusões, tem de se entender que a apelante não cumpriu o ónus de alegação impostos pelo disposto no art. 640 nº 1, nomeadamente o previsto na al. a), do CPC.
III - O recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões- Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil., pág. 165.
IV - No recurso sobre a matéria de facto se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, na parte afetada.
V - Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640 do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento (Ac. STJ 09.02.2021, Proc. 16926/04.0YYLSB-B.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt)”.
Quanto ao ónus de indicar a concreta decisão a proferir, por efeito da reapreciação, defende-se:
“ Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na al. c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões (Ac. STJ 25 de março de 2021, Proc. 1595/15.0T8CSC.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt).
Ponderando o critério da lei e as considerações tecidas, que têm sido por nós acolhidas, é de concluir que no caso presente não estão reunidos os pressupostos de ordem formal para admitir a reapreciação da decisão de facto e não se justifica a prolação de despacho de aperfeiçoamento das conclusões.
O apelante não indica os concretos pontos de facto a reapreciar, nem a decisão que em alternativa sugere, omitindo tal alegação nas conclusões de recurso e na motivação do recurso.
Na motivação do recurso e nas conclusões apenas se tecem considerações sobre a prova produzida, prova documental e testemunhal, juízo crítico que se desenvolve no sentido de se considerar que o tribunal não fez uma correta apreciação dos depoimentos em toda a sua extensão e não ponderou o depoimento de uma concreta testemunha. Porém, não se faz qualquer alusão aos concretos factos a reapreciar, nem à decisão que se sugere por efeito da reapreciação da prova.
Omite-se a delimitação do objeto do recurso, cujo ónus de alegação recai sobre o apelante.
Nestas circunstâncias não se podem considerar reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto, o que importa a rejeição do recurso quanto a tal matéria, nos termos do art. 640º/1 CPC.
Improcedem as conclusões de recurso, sob os pontos 14 a 21.
- Mérito da causa -
Nos pontos 4 a 13 das conclusões de recurso o apelante insurge-se contra a decisão que decretou a providência.
Na decisão proferida considerou-se, como se passa a transcrever:
“ Por via da presente providência cautelar, a Requerente B…, Lda., pede que seja decretada a suspensão de C… do cargo de gerente da sociedade E…, Lda., e a nomeação de F…. para tal cargo.
Antes do mais, cumpre expor que não tendo resultado indiciariamente que a Requerente não haja entregue o valor da sua quota social, à semelhança da análise efetuada quanto à ilegitimidade ad causum, de igual modo, nesta sede, improcede uma eventual ilegitimidade ad substantiam da Requerente.
Isto posto, cumpre averiguar se se mostram verificados todos os requisitos necessários para a pretensão supra exposta.
Antes do mais, cabe afirmar que o caso cautelar em apreço se insere no âmbito do processo previsto no artº 1055º do C. P. Civil, que sob a epígrafe suspensão ou destituição de titulares de órgãos sociais, configura o processo principal e definitivo de destituição, que pode ter enxertado no processo principal, como acontece no presente caso, uma providência cautelar de suspensão de titulares de órgãos sociais, por via do disposto no nº 2 do referido preceito que expressamente prevê tal possibilidade.
“Por outras palavras, as decisões de suspensão e de destituição são autónomas entre si; apreciando a 1.ª, cautelarmente, tal pretensão cautelar do requerente e, em caso afirmativo, decretando a suspensão; e apreciando a 2.ª, definitivamente, a pretensão principal e definitiva do requerente e, em caso afirmativo, decretando a destituição. (…) Cada uma das decisões põe termo a procedimentos funcionalmente autónomos e independentes entre si; a sua relação, insiste-se, é a relação que existe entre uma normal decisão cautelar e a posterior decisão da ação principal, com a diferença/especialidade de, aqui, a decisão cautelar ser tomada num incidente tramitado/enxertado na ação principal” – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28-05-2009, disponível in www.dgst.pt.
Assim sendo, à suspensão a que alude o nº 2 do artº 1055º do C. P. Civil, aplicam-se as regras das providências cautelares não especificadas previstas nos artºs 362º e segs. do mesmo diploma.
Ora, os procedimentos cautelares genericamente previstos nos artºs 362º e segs. do C. P. Civil, são meios de tutela provisória do direito que quem os deduz se arroga, sendo dependentes de uma ação já pendente - como acontece no caso em apreço, em que é um procedimento enxertado na ação principal de destituição -, ou que seguidamente vai ser proposta pelo requerente (artº 364º do C. P. Civil). Por outro lado, possuem natureza urgente (artº 363º do C. P. Civil), porquanto visam acautelar o efeito útil da ação a que alude genericamente o artº 2º do esmo diploma, impedindo “que durante a pendência de qualquer ação, declarativa ou executiva, a situação de facto se altere de modo a que a sentença nela proferida, sendo favorável, perca toda a sua eficácia ou parte dela. Pretende-se deste modo combater o periculum in mora (o prejuízo da demora inevitável do processo), a fim de que a sentença se não torne numa decisão puramente platónica” - Cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, pág. 23.
Para além da demonstração do referido perigo da demora inevitável do processo, os mesmos dependem ainda da prova sumária da probabilidade séria da existência do direito, também genericamente prevista no artº 365º do C. P. Civil, não exigindo esta prova o mesmo grau de convicção que a prova dos fundamentos da ação impõe, atenta a estrutura simplificada própria do procedimento cautelar, consonante, aliás, com o respetivo fim específico, bastando consequentemente o chamado fumus boni iuris. “[T]rata-se de uma prova sumária que não produz a "plena convicção (moral)", exigida para o julgamento da causa, mas apenas um grau de probabilidade aceitável para decisões urgentes e provisórias, como são as próprias daqueles procedimentos” – neste sentido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-03-2000, disponível in www.stj.pt.
Por isso, cabe afirmar que, no caso em apreço, apesar de na ação principal estarmos no âmbito de um processo especial, em face do disposto no artº 364º, nº 4, do C. P. Civil, “nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da ação principal”, significando isto que, do ponto de vista da decisão da providência cautelar de suspensão de gerente, nos devemos bastar com a verificação dos pressupostos genéricos definidos por lei para o decretamento das providências cautelares não especificadas.
Assim, para além dos requisitos essenciais que se devem verificar para o decretamento de qualquer procedimento cautelar, acrescem ainda os pressupostos exigidos no âmbito dos procedimentos cautelares não especificados.
São requisitos cumulativos do decretamento da providência cautelar comum ou não especificada, nos termos do disposto nos artºs 362º e 368º do C. P. Civil:
1. A provável titularidade de direito - pré-existente ou emergente de decisão a proferir- na esfera jurídica do requerente [artºs 362º, nº 2 e 368º, nº 1, do C. P. Civil];
2. Fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável [artº 362º, nº 1, do C. P. Civil];
3. Inaplicabilidade de qualquer das providências típicas para acautelar o risco de lesão em causa [artº 362º, nº 3, do C. P. Civil];
4. Adequação da providência concretamente requerida à efetivação do direito ameaçado [artº 362º, nº 1, in fine, do C. P. Civil];
5. Não ser o prejuízo decorrente do decretamento da providência consideravelmente superior ao dano que através dela se pretende acautelar [artº 368º, nº 2, do C. P. Civil].
No que tange à existência do direito (1.), basta-se a lei, no âmbito dos procedimentos cautelares, com uma prova perfunctória, ou seja, com a demonstração da mera aparência do direito, suscetível de fundar um juízo de verosimilhança. O fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável (2.)“Constitui, nas medidas cautelares atípicas, a manifestação do requisito comum a todas as providências cautelares: o periculum in mora” [Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil- Procedimento Cautelar Comum, III volume, Almedina, Coimbra, 1998, pág. 83]. Só as lesões graves e dificilmente reparáveis comportam a virtualidade de imporem ao tribunal a tomada de uma concreta providência, com reflexos imediatos na esfera jurídica alheia. Por isso, manda a lei atender ao prejuízo adveniente, para a pessoa do requerido, do decretamento da providência [A. Geraldes, ob. e loc. cit.].
Por conseguinte, considerando que o presente procedimento cautelar visa a suspensão judicial de gerente de uma sociedade por quotas, que esse procedimento não se mostra tipificado, e que foi pedido no âmbito do processo onde se pediu a respetiva destituição, é evidente que o mesmo é inonimado e dependente de causa já instaurada com vista à resolução definitiva pelo tribunal do conflito de interesses em causa.
Sendo certo que tal conflito de interesses, tendo em conta a sua natureza e o próprio período temporal abrangido pelos atos do gerente, pode ser de resolução demorada razão pela qual, se apresenta como situação em que abstratamente se afigura poder ser necessário proceder à composição provisória da situação controvertida.
De facto, os procedimentos cautelares são meios que não visam, em regra geral, a realização direta e imediata do direito substantivo, mas antes tomar medidas que assegurem a eficácia do resultado da ação destinada à atuação daquele direito provisoriamente tutelado, precisamente para acautelar a utilidade da composição definitiva que vier a ser definida na ação da qual depende, ou por outras palavras, relativamente à qual é instrumental.
Para isso, a lei basta-se com a prova mínima de que a situação jurídica alegada é provável ou verosímil, ou seja, considera suficiente um juízo de probabilidade ou de verosimilhança, do qual resulte a aparência do direito, prova indiciária habitualmente designada por “fumus boni juris”.
Depois, o segundo requisito mencionado tem a ver com aquilo que é comummente designado por “periculum in mora”, ou seja, com o perigo de perda do direito por via do tempo necessário para a sua decisão final, elemento que no procedimento cautelar inominado atípico ou comum, como ocorre no caso vertente, depende da prova do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável.
Para que se verifique o “fundado receio”, em regra, é necessário que na altura da instauração do procedimento cautelar ocorra uma situação de lesão iminente, ou que já esteja em curso mas ainda não se encontre integralmente consumada, ou, finalmente que se mostre indiciada a possibilidade de ocorrência de novas lesões ao direito já violado.
Assim, quanto a este aspeto, a lei não exige que se verifique, aquando da apresentação do requerimento do procedimento em juízo, um prejuízo concreto e atual, sendo suficiente o fundado receio que outrem cause ao requerente, antes da instauração da ação principal ou durante a sua pendência, lesão grave ou de difícil reparação.
Acresce que não é qualquer consequência danosa de ocorrência previsível antes da decisão definitiva que justifica o deferimento de uma medida provisória com reflexo imediato na esfera jurídica do requerido, sendo apenas as lesões graves e dificilmente reparáveis as adequadas a poder justificar uma decisão judicial provisória que salvaguarde o requerente da previsível lesão de um direito da sua titularidade que a demora da decisão definitiva pode fazer perigar.
Por isso, mesmo que se revelem irreparáveis ou de difícil reparação, não merecem acolhimento em sede de procedimento cautelar comum as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, ou ainda as que, mesmo sendo graves, sejam facilmente reparáveis.
Efetivamente, a gravidade da previsível lesão há de aferir-se à luz da sua repercussão na esfera jurídica do requerente, tendo presente que no que tange aos prejuízos materiais, eles são, em regra, passíveis de ressarcimento através de restituição natural ou de indemnização substitutiva - cfr. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-01-2006, disponível em www.dgsi.pt.
Como se analisa no acórdão da Relação de Lisboa de 05-02-2009, in www.dgsi.pt- “[M]esmo em sede cautelar de pedido de suspensão de gerente incumbe ao requerente alegação e demonstração perfunctória de que o gerente não só violou os seus deveres de gerente ou da sua incapacidade para o exercício normal das suas funções, como ainda a alegação e demonstração de que tais factos constituem justa causa de suspensão, de uma quebra de confiança que torne inexigível à sociedade o respeito pelo interesse e estabilidade do vínculo que a une ao gerente.”
Como é sabido e está expresso no nº 1 do artº 252º do Código das Sociedades Comerciais – CSC-, a sociedade é administrada e representada por um ou mais gerentes, que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena.
Como disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº 64º do CSC, com a epígrafe “Deveres fundamentais”,
“1 - Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:
a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e
b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores”.
Menezes Cordeiro, in “Código das Sociedades Comerciais” – 2009 – págs. 243 e 244 – em comentário a este normativo, escreveu:
“Os administradores das sociedades têm, no essencial, dois deveres ou poderes-deveres: o de gestão e o de representação.
O 64.° reporta-se, antes, ao modo de concretização desses dois deveres e, ainda, de todas as restantes obrigações que lhes advenham da lei ou dos estatutos. […]. Na tradição nacional, a diligência traduz a medida de esforço exigível ao devedor, no cumprimento das obrigações. Tal medida pode ser determinada em concreto ou em abstrato, remetendo para um bom cidadão comum (bonus pater famílias) ou para critérios mais exigentes. […]. O gestor criterioso e ordenado surge como uma bitola mais exigente do que a comum: requer um esforço acrescido, por se dirigir a especialistas fiduciários, que gerem bens alheios.
Apesar de inserida no final do 64.°/1, a), a diligência dá corpo a todos os deveres dos administradores, explicando a intensidade requerida na sua execução.[…].”
No Direito das sociedades, a lealdade exprime o conjunto dos valores básicos do sistema que, em cada situação concreta, devam ser acatados pelos diversos intervenientes.
Equivale, de certo modo, à ideia civil de boa fé.
A lealdade aplica-se: (a) nas relações dos sócios com a sociedade e entre si, integrando a ideia básica de status do sócio; (b) nas relações da sociedade para com os sócios, implicando um alargamento ex bona fide da competência da assembleia geral; (c) nas relações dos administradores com a sociedade e com os próprios sócios, as quais estão, agora, em causa.
Pela positiva, a lealdade obriga a seguir as regras do bom governo das sociedades (corporate governance).
A lei portuguesa, objetivamente tomada, remeteu essa matéria para os deveres de cuidado.
No Direito português, os deveres de cuidado devem ser tomados como normas de conduta que densificam, à luz dos ditames do bom governo das sociedades, os deveres gerais de gestão.
Afastam-se dos duties of care, próprios do negligence law, de onde foram retirados, em 2006, configurando-se como normas de procedimento.
A lei específica: (a) disponibilidade; (b) competência técnica; (c) conhecimento da atividade da sociedade: outros tantos deveres, não-taxativos, que dão um colorido geral a toda a atuação, essencialmente fiduciária, dos administradores.
Opera caso a caso: “adequados às suas funções”. Relevam a dimensão da sociedade, a atividade social, o pelouro, os objetivos fixados e os condicionamentos externos, jurídicos, económicos e sociais.
Comentando o artigo em análise, Armando Triunfante, in “Código das Sociedades Comerciais Anotado”, págs. 59 e 50, afirma: “Foram previstos os deveres de cuidado, de diligência e de lealdade. A doutrina tem contribuído para a densificação destes deveres. Vejamos então. O dever de cuidado tem sido dividido em três parcelas distintas (…): reunião da competência e disponibilidade para o exercício das funções; obrigação de acompanhar e vigiar a atividade social; obrigação de obter informação indispensável à tomada de decisões.
Já o dever de diligência concretiza-se na fórmula do “gestor criterioso e ordenado” a que daremos maior atenção nas anotações seguintes. Por último, o dever de lealdade costuma ser associado à obrigação de não concorrência, obrigação de não aproveitar em benefício próprio eventuais oportunidades de negócio, obrigação de transparência, a não-atuação em conflitos de interesses, o dever de moderação na recolha de vantagens remuneratórias, o dever de neutralidade, etc. (…).”
O dever de lealdade é indissociável da ideia de confiança, quer seja perante a sociedade, quer perante os sócios, quer perante terceiros. O acautelar do interesse social não se confina apenas ao interesse societário tout court, ou seja, a uma atividade que vise lucros. A eticização do direito e da vida societária impõem uma atuação honesta, criteriosa e transparente compaginável com a tutela de terceiros que possam ser prejudicados pela atuação do ente societário através da atuação de quem delineia a sua estratégia e é responsável pela atuação da sociedade, o que convoca os princípios da atuação de boa-fé, da confiança e a da proibição do abuso do direito.
Como refere Carneiro da Frada: “Os administradores devem, portanto, ser leais a todos: à sociedade, aos sócios, aos credores, aos trabalhadores e aos clientes. Não podem ser “mais leais a uns do que a outros”. Se o são, já são desleais” – “A Business Judgment Rule no Quadro dos Deveres Gerais dos Administradores”, pág. 219.
António Pereira de Almeida, in “Sociedades Comerciais e Valores Mobiliários”, págs. 239/240, acerca do dever de lealdade, escreve: “Este dever de lealdade corresponde aos fiduciary duties do direito anglo-saxónico e pode decompor-se na: — obrigação de não concorrência (competition with the corporation); - obrigação de não apropriação de informações internas ou negócios com a sociedade (inside trading); — obrigação de transparência, ou seja, de manter informados os outros administradores, os sócios e o público (duty of disclosure) de todos os factos relevantes, não confidenciais, que possam influenciar o voto dos sócios ou as decisões de investimento.” – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-09-2014, in www.dgsi.pt.
Em conclusão, o artº 64º do CSC, impõe a observância de deveres de cuidado, verdadeiros poderes-deveres dos gerentes ou administradores baseados numa relação de confiança (fidúcia) que se estabelece entre a sociedade e quem a gere, seja no círculo das suas relações internas, seja nas relações externas com terceiros, sejam eles credores, entidades administrativas, trabalhadores ou quaisquer outros interessados. O dever de cuidado – duty of care – está ínsito na atuação do “gestor criterioso e ordenado” e no grau de diligência que esse standard postula.
Por seu turno, quanto à proibição de concorrência, estabelece o artº 254º do CSC:
“1 - Os gerentes não podem, sem consentimento dos sócios, exercer, por conta própria ou alheia, atividade concorrente com a da sociedade.
2 - Entende-se como concorrente com a da sociedade qualquer atividade abrangida no objeto desta, desde que esteja a ser exercida por ela ou o seu exercício tenha sido deliberado pelos sócios.
3 - No exercício por conta própria inclui-se a participação, por si ou por interposta pessoa, em sociedade que implique assunção de responsabilidade ilimitada pelo gerente, bem como a participação de, pelo menos, 20% no capital ou nos lucros de sociedade em que ele assuma responsabilidade limitada.
4 - O consentimento presume-se no caso de o exercício da atividade ser anterior à nomeação do gerente e conhecido de sócios que disponham da maioria do capital, e bem assim quando, existindo tal conhecimento da atividade do gerente, este continuar a exercer as suas funções decorridos mais de 90 dias depois de ter sido deliberada nova atividade da sociedade com a qual concorre a que vinha sendo exercida por ele.
5 - A infração do disposto no n.º 1, além de constituir justa causa de destituição, obriga o gerente a indemnizar a sociedade pelos prejuízos que esta sofra.
6 - Os direitos da sociedade mencionados no número anterior prescrevem no prazo de 90 dias a contar do momento em que todos os sócios tenham conhecimento da atividade exercida pelo gerente ou, em qualquer caso, no prazo de cinco anos contados do início dessa atividade.”
Do que se vem de dizer resulta que o artº 254º, nº 1, do CSC, proíbe aos gerentes o exercício de atividade concorrente com a da sociedade.
Esclarece o n° 2 que a atividade concorrente com a da sociedade será qualquer atividade abrangida no objeto da sociedade "desde que esteja a ser exercida por ela ou o seu exercício tenha sido deliberado pelos sócios".
Quanto à proibição que recai sobre os gerentes, a atividade compreendida no objeto da sociedade que não esteja a ser exercida por ela apenas é relevante nos casos em que "o seu exercício tenha sido deliberado pelos sócios".
No contrato de sociedade deve constar a cláusula relativa ao objeto social: a cláusula na qual são indicadas “as atividades que os sócios propõem que a sociedade venha a exercer”. A proibição de exercício de atividades concorrentes abrange todas as atividades contidas na cláusula do contrato de sociedade desde que estejam a ser exercidas pela sociedade por quotas ou cujo exercício tenha sido deliberado pelos seus sócios.
Aqui chegados, uma vez que no artº 257º, n º 4, do CSC, se faz depender o pedido de suspensão/destituição de gerente da existência de justa causa, importa analisar o que se entende, para os efeitos pretendidos, por “justa causa”.
Refere Coutinho de Abreu, in CSC Em Comentário, acima citado, pág. 119, “que é justa causa a situação que, atendendo aos interesses da sociedade e do gerente, torna inexigível àquela manter a relação orgânica com este, designadamente porque o gerente violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade ou ficou incapacitado para o exercício normal das suas funções.”.
E que se consubstancia na violação de deveres legais específicos; deveres (legais gerais) de cuidado; deveres de lealdade; incapacidade para o exercício das funções; quer situações referíveis aos gerentes enquanto tais, v.g., desentendimentos frequentes entre gerentes que comprometam a boa marcha dos negócios sociais, bem como o aproveitamento em benefício próprio de oportunidades de negócio ou de bens da sociedade e a perda, intencional ou por desleixo, de condições necessárias ou convenientes para a vida da sociedade (cf. mesmo autor, in Curso, já citado, págs. 577 e 578).
Raúl Ventura, ob. cit., a pág. 91 e segs., aponta como constituindo justa causa “a violação grave dos deveres do gerente e a sua incapacidade para o exercício normal das respetivas funções”, dando como exemplo concreto, por reporte ao disposto no artº 254º do CSC, a violação do dever de não concorrência, que é, expressamente, qualificada como justa causa de suspensão/destituição.
Nos dizeres de Paulo Olavo Cunha, ob. cit., a págs. 688 e 689, a lei enuncia que a justa causa ocorre mediante a violação grave dos deveres do gerente, a incapacidade para o exercício normal das funções ou o exercício não autorizado de uma atividade concorrente, que compromete e desaconselha a manutenção do vínculo e, relativamente ao exercício de uma atividade concorrente, tal constitui causa de justificação ainda que se não prove o prejuízo, sendo, por isso, suficiente que a sociedade demonstre que o gestor exerce uma atividade (de administração) que recaia sobre um objeto análogo ao seu.
Isto posto e vertendo ao caso em sujeito, derivou indiciariamente provado que o Requerido, em dezembro de 2019, constituiu a sociedade denominada D… – Sociedade Unipessoal, Lda., da qual é o único sócio e o único gerente, e que tem como objeto social «Transporte de mercadorias, nacionais e internacionais, com alvará», e que está sediada no mesmo concelho de Santo Tirso.
Ora, o objeto social da E…, Lda. é “Transportes rodoviários de mercadorias, Investigação e desenvolvimento das ciências físicas e naturais; Comércio por grosso de matérias-primas agrícolas e têxteis, animais vivos e produtos semi-acabados”.
Destarte, derivou indiciariamente demonstrado que o Requerido exerce uma atividade concorrente à sociedade E…, Lda., assim violando o dever de não concorrência consagrado no artº 254º do CSC.
Por outro lado, resultou indiciariamente demonstrado que, em violação do disposto no seu artº 64º, nº 1, usou os bens daquela sociedade em seu exclusivo proveito e em benefício da sociedade que criou.
Com efeito, decorreu indiciariamente provado que o Requerido – aliás, confessado por este-, em maio de 2020, transferiu a favor da D… – Sociedade Unipessoal, Lda., a viatura pesada de mercadorias de matrícula ..-JZ-.., de marca …, sem pagamento de qualquer valor.
A predita factualidade indiciariamente demonstrada, e ainda que não haja sido dada como provada a demais matéria arguida pela Requerente, mormente a usurpação de valores monetários, corporiza a existência de justa causa, o que justifica o pedido formulado nos autos.
Em conclusão, julga-se procedente a presente providência cautelar de suspensão de gerente intentada por B…, Lda., e, em consequência, determina-se a suspensão provisória do Requerido C…, do cargo de gerente da sociedade E…, Lda., e nomeia-se para tal cargo F…”.
A decisão encontra-se devidamente fundamentada, fazendo uma correta aplicação e interpretação das normas jurídicas que para o caso relevam, com apoio em estudos jurídicos atuais e jurisprudência. A sentença considerou os factos provados e proferiu a decisão segundo um juízo de mera probabilidade ou verosimilhança, por estarmos na presença de um procedimento cautelar.
O apelante não impugna os fundamentos de direito e assenta a sua discordância em factos que não se provaram (pontos 4, 6 a 9 das conclusões de recurso).
Conclui-se, que verificados que estão os pressupostos do procedimento cautelar, não merece censura a decisão que deferiu a providência e por isso, se mantém.
Improcedem, também nesta parte as conclusões de recurso.
- Litigância de má-fé-
A apelada, nos pontos 8 e 9 das conclusões na resposta ao recurso, peticiona a condenação do apelante como litigante de má-fé, por litigar contra a verdade que bem conhece e por adotar um comportamento através do qual pretende retardar a ação da Justiça.
Na análise da questão não podemos deixar de ter presente o enquadramento e inserção no sistema do instituto em causa - litigância de má-fé -, no sentido de conseguir conciliar a faculdade de usar dos meios judiciais para fazer valer os “supostos“ direitos, com a responsabilidade por lide temerária.
O Professor ALBERTO DOS REIS referia a este respeito:
“Dizemos “supostos“[direitos], porque nunca se pôs, nem poderia pôr, como condição para o exercício do direito de ação ou de defesa que o autor ou o réu seja realmente titular do direito substancial que se arroga. Seria, na verdade, absurdo que se enunciasse esta regra: só pode demandar ou defender-se em juízo “quem tem razão“; ou, por outras palavras, só é lícito deduzir no tribunal pedidos ou contestações objetivamente fundados.
Só na altura em que o tribunal emite a sentença, é que vem a saber-se se a pretensão do autor é fundada, se a defesa do réu é conforme ao direito. De modo que exigir, como requisito prévio para a admissibilidade da ação ou da defesa, a demonstração da existência do direito substancial, equivalia, ou a cair numa petição de princípio, ou a fechar a porta a todos os interessados: aos que não têm razão e aos que a têm.
O Estado tem, pois, de abrir o pretório a toda a gente, tem de pôr os seus órgãos jurisdicionais à disposição de quem quer que se arrogue um direito, corresponda ou não a pretensão à verdade e à justiça”[9].
E na análise do instituto, nas considerações gerais, referia ainda, com mais propriedade: “[…]uma coisa é o direito abstrato de ação ou de defesa, outra o direito concreto de exercer atividade processual. O primeiro não tem limites; é um direito inerente à personalidade humana. O segundo sofre limitações, impostas pela ordem jurídica; e uma das limitações traduz-se nesta exigência de ordem moral: é necessário que o litigante esteja de boa fé ou suponha ter razão”[10].
PEDRO DE ALBUQUERQUE no seu estudo sobre litigância de má-fé, salienta que:“[a] proibição de litigância de má fé apresenta-se, assim, como um instituto destinado a assegurar a moralidade e eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça. O dolo ou má-fé processual não vicia vontades privadas nem ofende meramente interesses particulares das partes envolvidas. Também não se circunscreve a uma violação sem mais do dever geral de atuar de boa-fé. A virtualidade específica da má-fé processual é outra diversa e mais grave: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial“[11].
A lei enuncia no art. 542º CPC as situações que qualifica como litigância de má-fé, considerando para esse efeito que litiga de má-fé, quem com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A lei especifica, assim, os comportamentos processuais suscetíveis de infringir os deveres de boa-fé processual e de cooperação. Integram-se na previsão da lei condutas que digam respeito a ofensas cometidas no exercício da atividade processual a posições também elas processuais ou ao processo em si mesmo.
Trata-se de uma ilicitude baseada na violação de posições e deveres processuais que, a serem atingidos, geram de imediato uma ilicitude sancionável independentemente da existência ou lesão de qualquer ilícito de direito substantivo[12].
Os comportamentos processuais são sancionados quer sejam dolosos, quer se devam a negligência grave da parte ou do seu representante ou mandatário, podendo por isso fundar-se em erro grosseiro ou culpa grave[13]
Repetidamente, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que “a litigância de má-fé não se basta com a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta”[14], porque a lei impõe que a parte tenha atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento.
No caso presente o apelante veio exercer um direito que a lei lhe atribui: interpor recurso de uma decisão.
Apenas se apurou que os fundamentos em que sustenta a impugnação da decisão não mereceram provimento. Para sustentar a sua posição entrou em consideração com factos que não se provaram, mas daí não decorre que tinha conhecimento da falta de fundamento e que agiu com o propósito de protelar a realização da justiça.
Como se referiu integram-se na previsão da lei condutas que digam respeito a ofensas cometidas no exercício da atividade processual a posições também elas processuais ou ao processo em si mesmo.
Desta forma, não decorre dos factos apurados que o apelante violando os deveres de boa-fé processual, alterou a verdade dos factos e fez dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir entorpecer a ação da justiça.
Conclui-se que não estão reunidos os pressupostos para condenar o apelante com fundamento em litigância de má-fé.
- Aplicação da taxa sancionatório excecional -
A apelada peticiona, ainda, a aplicação de uma taxa sancionatória excecional.
Cumpre assim apurar se há fundamento para aplicação da taxa de justiça sancionatória excecional, que o artigo 531.º do CPC prevê nos seguintes termos:
“Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excecionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a ação, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida”.
A aplicação da sanção depende da verificação de dois requisitos: manifesta improcedência do pedido e atuação censurável da parte, que o ato da parte seja o resultado exclusivo de falta de prudência ou diligência[15].
No caso concreto a atuação do apelante situa-se no âmbito do uso normal do direito de defesa, pela via do recurso, apesar de não merecer provimento.
Conclui-se não se justificar a aplicação de uma taxa sancionatória excecional.

Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante e apelada, na proporção do decaimento que se fixa em ¾ e ¼ , respetivamente.
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e nessa conformidade rejeitada a reapreciação da decisão de facto e confirmar a sentença.

Julgar improcedente o pedido de condenação como litigante de má-fé.

Custas a cargo do apelante e apelada, na proporção do decaimento, que se fixa em ¾ e ¼ , respetivamente.
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Porto, 20 de setembro de 2021
( processei e revi – art. 131º/6 CPC )
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990
[2] O relatório foi elaborado após consulta do processo principal, via Citius, com o acompanhamento autorizado pelo Exmº Juiz na 1ª instância.
[3] No texto da sentença escreveu-se “requerente”, mas resulta dos documentos e da fundamentação da decisão de facto, que o veículo pertencia à sociedade E…, Lda e por isso justifica-se a retificação da redação da alínea g) dos factos provados, passando a ler-se “sociedade E…, Lda”.
[4] ARMINDO RIBEIRO MENDES Recursos em Processo Civil – Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pag. 73.
[5] ANSELMO DE CASTRO Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, Almedina, 1982, pag. 142.
[6] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO Código de Processo Civil Anotado, Vol.II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pag. 704.
[7] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora Lim, 1984, pag. 143.
No mesmo sentido pode ainda ler-se o ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil , ob. cit., pag.688.
[8] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, Julho 2013, pag. 126.
[9] ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil- Anotado, vol.II, pag. 258-259.
[10] ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil- Anotado, vol.II , pag. 261.
[11] PEDRO DE ALBUQUERQUE Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Atos Praticados no Processo, ed. Almedina, Coimbra, 2006, pag. 56.
[12] PEDRO DE ALBUQUERQUE Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Atos Praticados no Processo, ob. cit., pag. 52.
[13] CARLOS FRANCISCO DE OLIVEIRA LOPES DO REGO Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, pag. 308.
[14] Ac. STJ 18 de fevereiro de 2015, Proc. 1120/11.1TBPFR.P1.S1, www.dgsi.pt; Ac. STJ 11Fev 2015, Proc. 1392/05.0TBMCN.P1.S1, www.dgsi.pt.
[15] JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, julho 2017, pag.430-431.