CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
SOCIEDADE COMERCIAL
DEFESA DO CONSUMIDOR
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
DEFEITOS
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
CADUCIDADE DA AÇÃO
PRAZO DE PROPOSITURA DA AÇÃO
VÍCIOS DA COISA
DENÚNCIA
ABUSO DO DIREITO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


I. Não tendo a autora, sociedade comercial, provado as circunstâncias de que depende a aplicação do regime reservado aos consumidores não pode este aplicar-se ao caso dos autos.
II. A regra estabelecida no artigo 917.º do CC é a de que o direito de acção caduca decorridos seis meses sobre a denúncia.

Texto Integral


ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. Fisioclínica S. Paio de Oleiros, Lda., com sede na Rua …., …, …., propôs, em 18 de Outubro de 2018, contra JOP – Veículos e Peças, S.A., com sede na Rua …., …, …. e Jaguar Land Rover Portugal - Veículos e Peças. S.A., com sede no Edifício Escritórios …, Rua …, n.º 2 - 3.° B-3, …, …, acção com processo comum, pedindo:

a) Se declare resolvido o contrato de compra e venda do veículo automóvel celebrado a 10 de Maio de 2017 entre a autora e a 1.ª e ré, desde 20 de Abril de 2018;

b) Se condene as rés solidariamente a devolver à autora a quantia de € 70.300,00 (setenta mil e trezentos euros), acrescida de juros desde 20 de Abril de 2018, correspondente ao preço do veículo que adquiriu à l.ª ré, até integral pagamento;

c) Se condene as rés solidariamente a pagar à autora uma indemnização de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais;

ou, se assim se não entender,

d) Se condene as rés solidariamente a substituir a viatura por outra com as mesmas características, no estado de novo, ou a entregar à autora o veículo devidamente reparado e em perfeitas condições de funcionamento, apto a circular em segurança, sem qualquer avaria, concedendo novo prazo de garantia de dois anos, tudo sem prejuízo de serem as duas rés condenadas no pagamento da indemnização de € 5.000,00.

Alega para tanto, e em síntese, que adquiriu, em 10/05/2017, junto da l.ª ré, concessionário da 2.ª ré, um veículo automóvel …, modelo ..., novo, ao qual foi atribuída a matrícula ...-SX-..., pelo valor global de € 70.300,00, que pagou.

A partir de Junho de 2017 a viatura da autora começou a demonstrar graves problemas de funcionamento e, no seguimento de reclamação da autora, a viatura, com cerca 4.000 Kms, esteve nas instalações da l.ª ré, no dia 30/06/2017, para conserto e reparação das deficiências reportadas.

Contudo, ao invés do asseverado pela 1.ª ré, as deficiências que descreveu mantiveram-se e agravaram-se nos meses seguintes ao da devolução da viatura, impedindo mesmo a circulação da viatura, o que foi reportado via email, nos dias 3 e 7 de Dezembro. Assim, no dia 8 de Dezembro de 2017, a viatura, com cerca de 10.500 Km, teve de ser transportada em reboque para a oficina da l.a ré, onde permaneceu desde o dia 8 de Dezembro até ao dia 2 de Janeiro de 2018. Depois da entrega da mesma a 2 de Janeiro de 2018, confirmaram os legais representantes da autora que as anomalias não haviam sido resolvidas e que começavam a aparecer outras patologias, pelo que, a autora, a 12 de Fevereiro de 2018, enviou reclamação via email à l.ª ré reportando todo o historial de avarias da viatura SX, das reclamações enviadas, das deslocações e permanências da viatura à oficina da l.ª ré, sem que nada se resolvesse, aparecendo outrossim novas deficiências.

Em meados de Fevereiro, a l.ª ré ainda não tinha logrado debelar os problemas existentes desde a data da aquisição da viatura, designadamente avaria a avaria na câmara traseira que pensavam ir solucionar com a actualização de software, no sistema star/stop que nunca funcionou devidamente, ruído/vibração no tablier da viatura. E a 16 de Fevereiro de 2018, o mandatário da A. enviou às rés comunicação via email, reclamando a substituição integral da viatura ou a rescisão contratual com a consequente devolução do preço pago pela viatura. Foi ainda realizado novo diagnóstico à viatura, tendo-se concluído pelas avarias e deficiências de funcionamento que enumera no item 19 da p.i.. Além disso, a autora apurou a existência de outra deficiência, agora na pintura, e todos os descritos defeitos foram novamente comunicados à l.ª ré via email, a 4 de Abril de 2018, concluindo-se que a viatura com apenas 13.981 Km, padecia de demasiados problemas, o que inviabilizava a sua cabal e plena utilização.

Face à ausência de qualquer resposta da 1.ª ré, a autora rescindiu o contrato de compra e venda da viatura, através de carta registada enviada a 17 de Abril para as rés.


2. Citada, veio a 2.ª ré Jaguar Land Rover Portugal - Veículos e Peças. S.A., contestar, deduzindo a excepção de caducidade dos direitos invocados na acção, para o que aduz:

- não pode, legalmente, considerar-se a autora como consumidora e, por isso, beneficiária da protecção conferida pelo Regime Jurídico da Venda e Garantia de Bens de Consumo, DL 67/2003, de 8 de Abril, e os restantes diplomas conexos, respeitantes à defesa do consumidor;

- regendo-se, assim, a presente relação comercial pelo regime do contrato de compra e venda de coisa defeituosa, previsto nos artigos 913.º e s. do CC;

- ora, alega a autora que o seu veículo "começou a demonstrar graves problemas a partir de Junho de 2017", tendo tais "faltas de conformidade" sido denunciadas à "ré em Junho de 2017 e sucessivamente em Dezembro de 2017, Fevereiro, Março e Abril de 2018";

- pelo que nos termos e para os efeitos do regime aqui aplicável, a autora procedeu à efectiva denúncia dos alegados defeitos ou faltas de conformidade do veículo em Junho de 2017;

- o que implica, ao abrigo do número 4 do artigo 921.º do CC, que dispunha a autora de um prazo de seis meses desde a data de denúncia do defeito para intentar a presente acção para exercício dos seus direitos;

- desse modo, a considerar-se realizada a denúncia dos alegados defeitos em Junho de 2017 a presente acção teria sempre de ser apresentada em juízo até Dezembro de 2017;

- uma vez que apenas foi apresentada em juízo em 18 de Outubro de 2018, à autora já não é permitido exercer o direito a que se arroga, dado que o direito a propor a presente acção já caducou, devendo, por isso, a mesma ser julgada improcedente, por verificada a excepção de caducidade prevista no número 4, do artigo 921.° do CC, obstando assim ao conhecimento do mérito da causa, com a consequente absolvição da ré dos pedidos contra si formulados.


3. A 1.ª ré, JOP – Veículos e Peças, S.A., contestou igualmente, tendo também de deduzindo a excepção de caducidade dos direitos da autora, porquanto, como a própria autora afirma, pelo menos em 16 de Fevereiro de 2018 foi denunciado o defeito, e qualquer acção teria de ser intentada até 16 de Agosto de 2018.

Mas ainda, como mero raciocínio, é a própria autora que refere na p.i. que a última denúncia teria ocorrido em 16 de Abril de 2018, caso em que qualquer acção a propor deveria ser até 16 de Outubro de 2018. Logo, como a autora só propôs a acção em 18 de Outubro de 2018, já estava extinto por caducidade tal direito.


4. A autora respondeu, concluindo pela improcedência da invocada excepção e pela condenação das Rés como litigantes de má-fé.


5. Em sede de despacho saneador foi julgada improcedente a excepção da caducidade.

É a seguinte a parte relevante da decisão:

Na contestação a esta acção, os RR vêm invocar a excepção peremptória de caducidade, alegando que aquando da propositura da acção já havia decorrido o prazo de seis meses preceituado no Art. 917º do C.C.

Antes de apreciarmos esta excepção, cumpre analisar ao abrigo de que legislação se devem decidir os presentes autos.

Face ao alegado pela A., e como resulta da petição inicial, tal como a acção vem configurada pela A., sendo a A. pessoa colectiva de responsabilidade limitada, a Lei do consumidor, regulada pelo DL 67/03 de 8/4, decorrente da Lei 24/96 de 31/07 que incorpora no direito interno português a Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu de 25/5 não tem aplicação ao caso dos autos, pois esta lei só se aplica a bens destinados a uso não profissional ( cfr. Art. 2º, nº 1 da Lei 24/96 e Art.l 1º-A, nº 1 e Art. 1º-B, al. a) do DL 67/03 de 8/4.). Decorre da doutrina e Jurisprudência que vastamente se têm debruçado sobre o tema que para efeitos da Lei do Consumidor ( DL 67/03) ( cfr. Prof. Dr. Calvão da Silva, in Venda de Bens de Consumo, 4º Ed., 2010, Editora Almedina, Fls. 56, (CSC Art. 6º e Art. 160º do CC), ao referir que “ todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional será uma pessoa humana ou pessoa singular, com exclusão das pessoas jurídicas ou colectivas, as quais adquirem bens no âmbito da sua actividade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objetos profissionais” ou Ac. TRC, Proc. 1648/11.6TBACB.C1), deve ser considerado consumidor aquele a quem são fornecidos bens que não os destina para uso profissional, sendo considerado consumidor a pessoa humana e não as pessoas colectivas como a ora A. Uma vez que a A., pessoa colectiva adquiriu a viatura para benefício da sua actividade económica, ainda que os seus representantes legais façam uso pessoal da mesma, não se aplica a Lei do Consumidor mencionada. O regime aplicável ao nosso caso é, pois, o regime da compra e venda de coisa defeituosa dos Arts. 913º e ss do C.C.. Aqui chegados, passemos a apreciar a excepção de caducidade da acção invocado pelas RR. Deste modo, face à invocada caducidade do direito da Autora, cumpre, de imediato, apreciar, se o pedido da A. foi tempestivamente exercido.

Para o efeito, importa considerar que, em função da natureza comercial do contrato de compra e venda em apreço, lhe são aplicáveis os artigos 913º e ss do CC.

Com efeito, nos termos do disposto no Art. 917º do CC, a acção a propor caduca decorridos 6 meses após a denúncia.

Face às cartas trocadas entre A. e RR. e juntas aos autos, verificamos que a “última” comunicação efectuada pela A. a queixar-se dos vícios da coisa adquirida, foi feita por carta datada de 16/4/18, recebida pela R. JOP em 18/4/18 e pela R. Jaguar em 23/4/18.

A acção foi proposta em 18/10/2018, ou seja, a acção foi proposta (atendendo aos critérios estabelecidos no Cod. Civil quanto à contagem dos prazos no seu art. 279º do CC) dentro dos seis meses seguintes à ‘denúncia’ veiculada pela A.

Diga-se ainda, que o prazo de garantia dos dois ou três anos não tem que ser aqui trazido à colação, pois este é o prazo durante o qual o comprador pode invocar defeitos, situação que aqui não foi invocada pelas partes. As RR., repete-se, invocam a caducidade do direito de propor a acção por terem decorrido mais de seis meses desde a denúncia dos vícios às RR.

Termos em que se conclui que não se encontrava precludido o prazo de caducidade para propositura da acção pela A. em 18/10/2018, improcedendo, pois, a excepção peremptória de caducidade invocada”.


6. Inconformada veio a 2.ª ré Jaguar Land Rover Portugal - Veículos e Peças. S.A., interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.


7. A autora interpôs recurso subordinado, concluindo no sentido de que “[tendo a 2.ª ré recebido] a denúncia apresentada pela autora a 23 de Abril de 2018, a presente acção instaurada a 18 de Outubro, sempre teria sido apresentada no prazo de seis meses após tal comunicação”.


8. Em 9.03.2021 proferiu o Tribunal da Relação do Porto um Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a excepção peremptória de caducidade e a apelação, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se as rés de todos os pedidos.

Custas em ambas as instâncias pela recorrida”.


9. Inconformada, interpôs a autora Fisioclínica S. Paio de Oleiros, Lda., recurso de revista, pedindo que seja julgada improcedente a excepção de caducidade.

Termina a sua alegação com as seguintes conclusões:

a) A Autora não concorda que seja necessariamente aplicável ao caso concreto ao regime previsto nos art.ºs 913.º e seguintes do Código Civil.

b) Como a Autora alega nos pontos 46 a 53 da petição, a viatura foi adquirida para permitir aos seus legais representantes deslocar-se da sua residência para o seu local de trabalho e vice-versa, mas também para ser utilizada em momentos de lazer, fins-de-semana, férias, passeios e demais deslocações do dia-a-dia. Pelo que, a viatura adquirida se destinou essencialmente a uso pessoal dos legais representantes da Autora, constituindo o uso profissional residual

c) A qualificação de uma pessoa jurídica (singular ou coletiva) como consumidor depende assim, essencialmente, da finalidade do ato de consumo, detendo tal qualidade aquele que adquire um bem predominantemente para uso privado–uso pessoal, familiar ou doméstico de modo a satisfazeras necessidades pessoais e familiares.

d) Tal como se decidiu no Acórdão da RC proferido no âmbito do processo n.º 1638/11.6TBACB.C1, datado de 15-12-2016 por Maria Domingas Simões:

«É consumidor, mesmo considerando o seu conceito restrito, aquele que destina o bem adquirido predominantemente ao seu “uso pessoal, familiar ou doméstico”, sendo meramente instrumental ou acidental o seu aproveitamento para uso profissional».

e) Interpretação que encontra acolhimento na letra da lei que não exige que a destinação do bem tem de ser absoluta e exclusivamente não profissional, cumprindo-se a finalidade da lei de conferir proteção ao elo mais fraco.

f) No caso concreto, a viatura em questão trata-se de um veículo familiar, designado por SUB, o que por si só indicia que não se trata de uma viatura intrinsecamente de uso profissional como acontece com as carrinhas comerciais de 2 lugares, com as carrinhas de caixa aberta, com os furgões ou com as ambulâncias.

g) Os legais representantes da autora/recorrente ao adquirir a viatura em causa perspetivaram um carro que correspondesse às necessidades familiares e de lazer, dando prevalência ao bem-estar e conforto que um veículo do género do adquirido disponibiliza.

h) Para além disso, a recorrida tem como escopo ministrar nas suas instalações sitas na Rua do Hospital, S. Paio de Oleiros, tratamentos de fisioterapia. Ora, ao adquirir a viatura em questão, os legais representantes daquela atuaram fora do âmbito da sua atividade, sendo tão desconhecedores e vulneráveis como quaisquer outros consumidores ao adquirirem uma viatura automóvel.

i) Face ao exposto, cumpre concluir que a viatura foi adquirida para satisfazer essencialmente necessidades pessoais e familiares dos seus legais representantes, qualidade primordial que não é descaracterizada por nela se deslocarem para o trabalho, devendo aplicar-se ao litígio em questão a legislação prevista no DL n.º 67/2003 de 8 de Abril.

j) Ora, como o prazo de propositura da ação é de dois anos, mesmo a considerar-se que o prazo de caducidade ter-se-ia iniciado (o que não se concede) a 30/06/2017 apenas terminaria a 30/06/2019. Tendo sido a ação foi proposta a 18 de Outubro de 2018, o prazo legalmente previsto ainda não estava seguramente ultrapassado.

k) Ou, caso Vs. Exas. assim não entendam, porquanto a autora/recorrida ainda não logrou provar qual o uso predominantemente dado à viatura, remeter a aplicação ou não deste regime jurídico para momento ulterior, ou seja, após a realização do julgamento, quando já se tenha logrado apurar qual a factualidade assente.

l) Requer-se, assim, a Vs. Exas. a alteração do acórdão na parte em que decidiu ser inaplicável ao caso em apreço a legislação constante do disposto no DL n.º 67/2003 de 8 de Abril, quando considerou que não se pode enjeitar que a recorrida tem qualidade profissional pois o contrato de compra da viatura prendia-se com a atividade que a mesma se propunha desenvolver. Tal conclusão é incorreta pois constata-se que a viatura de gama alta, tipo SUB adquirida pela autora é um carro familiar onde imperam o luxo, a prevalência do espaço e do conforto em detrimento da eficiência e baixo consumo de um comercial utilitário; em nada se relacionado com o objeto comercial da autora do ramo da fisioterapia.

Sem prescindir:

m) Mesmo a considerar-se as disposições legais previstas nos art.ºs 916.º e seguintes do Código Civil, o direito da recorrente em instaurar a presente ação jamais estaria caduco.

n) A 1.ª Ré, concessionária da 2.ª Ré conferiu voluntariamente à Autora um prazo de garantia do bom funcionamento da viatura de três anos.

o) De acordo com o prescrito no art. 921.º do Código Civil, o prazo de garantia de seis meses é supletivo, isto é, não se aplicará quando o vendedor conferir prazo superior, como sucedeu no caso concreto

p) Mesmo que não verificasse a garantia de funcionamento de três anos, sempre seria de aplicar o prazo decorrente dos usos do mercado automóvel de dois anos, por força do disposto no art. 921.º, n.º 2, in fine do Código Civil.

q) O prazo da garantia contratual apesar de ter sido conferido pela 1.ª Ré terá de ser oponível à 2.ª Ré por quanto a primeira Ré é concessionária da segunda Ré, sendo sua representante; ficando esta vinculada às garantias prestadas pela primeira.

r) A garantia do bom funcionamento da viatura não constitui, como menos acertadamente considerou a decisão de primeira instância o prazo durante o qual o comprador pode invocar defeitos.

s) Como foi decidido pelo Acórdão do STJ de 03-04-2003, esta garantia de bom funcionamento da coisa vendida é superior aos direitos conferidos ao comprador na venda de coisas defeituosas.

t) Face ao exposto, tendo a presente ação sido instaurada quinze meses após a aquisição da viatura pela recorrente, encontrava-se dentro do prazo de bom funcionamento conferido pela recorrida de três anos; não se verificando a caducidade de exercer o seu direito de reparação da viatura e/ou substituição da viatura.

u) Sucede, contudo, que o Acórdão proferido não se pronunciou sobre a questão da garantia do bom funcionamento da viatura. Questão esta que afastaria o regime de caducidade de seis meses previsto no art. 917.º do CC, por isso, essencial a decidir o objeto do recurso apresentado pela ré.

v) Incorreu, então, o acórdão no vício de nulidade por omissão de pronúncia previsto no art. 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC aplicável por remissão do normativo constante no art. 666.º, n.º 1 do CPC.

w) A autora enviou missiva para as Rés a 16 de Abril de 2018, a especificar as várias patologias que a viatura apresentava. A 2.ª Ré respondeu a 26 de Abril de 2018 que o veículo ainda se encontrava dentro do seu período de garantia original, propondo à A. que se deslocasse a uma oficina da marca para realizar novo diagnóstico e, caso se revelasse necessário, proceder às necessárias reparações.

x) Deste modo, reconheceu e aceitou expressamente que o veículo adquirido pela Autora ainda se encontrava no seu período de garantia original, o que constitui nos termos do art. 331.º, n.º 2 do Código Civil, causa impeditiva da caducidade.

y) Por outro lado, a 1.ª Ré foi sempre assegurando à Autora que parte dos defeitos estavam reparados e que trataria de reparar os demais, o que foi obstando a que a Autora instaurasse ação judicial, impedindo a autora de exercer o seu direito e, portanto, nos termos do art. 329.º do Código Civil, que se iniciasse a contagem do prazo de caducidade.

z) Além do mais, a conduta das Rés consubstancia uma atitude dolosa pois fez intencionalmente a Autora incorrer em erro, asseverando, por um lado, que os defeitos da viatura estavam corrigidos e, após a constatação do contrário, que assumiria a reparação dos mesmos.

aa) Da conduta da 1.ª Ré resulta que a mesma utilizou vários artifícios para ir mantendo os legais representantes da autora em erro, atuando com dolo, asseverando, por um lado, que os defeitos estavam reparados e assumindo, por outro lado, a obrigação de os reparar. E assim, a autora, foi protelando a decisão de anular o negócio e acionar a ré judicialmente…

bb) Ora, da ressalva do n.º 1 do art. 916.º do Código Civil, resulta que havendo dolo, o comprador pode instaurar ação de anulação no prazo de um ano a contar do conhecimento do vício ou da falta de qualidade da “coisa”, independentemente de denúncia. Neste sentido pronunciou-se o Acórdão proferido a 07-10-2003, publicado na CJ/STJ, 2003, 3.º-88.

cc) Pelo que, incorrendo as Rés em conduta dolosa, a Autora poderia instaurar ação de anulação dentro do prazo de um ano do efetivo conhecimento dos defeitos, como prescreve o art. 287.º, n.º 1 do Código Civil.

dd) Como a Autora apenas teve o real conhecimento das anomalias após o diagnóstico realizado em Março de 2018 pela REVOR e da pintura em data posterior. Impõe-se, assim, concluir que a propositura da ação – em Outubro de 2018 - ocorreu dentro do prazo legal de um ano.

ee) Para além disso, a conduta das rés, mormente da 1.ª Ré, configura um autêntico abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, o que sempre redundaria na inaplicabilidade do prazo de caducidade.

ff) As Rés não agiram de boa-fé, não demonstraram uma conduta honesta e conscienciosa, pautada pela probidade de modo a não prejudicar os legítimos interesses da autora. Na verdade, foi o circunstancialismo criado pelas rés que fomentaram indelevelmente a demora na propositura da ação e, consequentemente a caducidade da mesma.

gg) Como as Rés atuaram com manifesta má-fé, em claro abuso do direito, enganando e ludibriando a autora de modo que esta protelasse a instauração da ação judicial, não poderão as rés invocar a exceção da caducidade que o seu comportamento determinou. Neste sentido decidiu o Acórdão da RE proferido a 01-07-1997, BMJ, 469.º-677, a propósito da prescrição, mas que também é aplicável à exceção da caducidade: «o princípio do abuso do direito contido no art. 334.º do Cód. Civil opõe-se a que possa invocar a prescrição aquele que com a sua conduta tenha obstado ao exercício tempestivo da outra parte».

hh) Finalmente e sem prescindir, a 2.ª Ré apenas recebeu a denúncia apresentada pela Autora a 23 de Abril de 2018, daí que a ação sempre teria sido instaurada no prazo de seis meses após tal comunicação.

ii) O Acórdão não se pronunciou sobre a causa impeditiva da caducidade previstas no art. 331.º, n.º 2 do CC invocada pela autora, não se pronunciou sobre o momento em que o prazo da caducidade se iniciaria nos termos previstos no art. 329.º do CC nem sobre o abuso do direito também alegado pela autora. Configurando todas estas questões aspetos essenciais para a prolação da decisão, o Acórdão incorreu no vício de nulidade previstos no art. 615.º, n.º 1, al. d), aplicável por força do art. 666.º, ambos do CPC”.


10. A 2.ª ré Jaguar Land Rover Portugal - Veículos e Peças. S.A., vem apresentar as suas contra-alegações.

Termina assim:

a) A Recorrente, adquirente do veículo dos presentes autos, é uma pessoa coletiva de responsabilidade limitada pelo que, pela sua própria condição e qualificação jurídica, não poderá, legalmente, ser considerada como Consumidora, e, como tal, beneficiária da proteção jurídica conferida pelo Regime Jurídico da Venda e Garantia de Bens de Consumo do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril.

b) Assim sendo, é à luz do regime geral de venda de coisa defeituosa constante do Código Civil que impera determinar se se encontra caducado o exercício do direito de ação da Recorrente, designadamente se a Recorrente efetivou o seu direito no prazo de seis meses após a denúncia por si apresentada.

c) Tendo sido a denúncia dos alegados defeitos sido realizada pela Recorrente em 30 de junho de 2017 (com exceção de um alegado defeito, denunciado em 4 de abril de 2018), impunha-se a apresentação da presente ação no prazo de seis meses desde a aludida data, isto é, até 30 de dezembro de 2017 (ou 4 de outubro de 2018 a respeito do último alegado defeito), o que não sucedeu uma vez que a presente ação foi apenas apresentada em 18 de outubro de 2018.

d) Tem-se, assim, por verificada a exceção de caducidade do direito da Recorrente que não exerceu o direito no prazo legalmente estipulado para o efeito.

e) A garantia do veículo dos autos não se apresenta como facto controverso nos presentes autos, sendo apenas discutido o decurso do prazo entre a denúncia dos alegados defeitos e o exercício dos direitos por parte da Recorrente, duas situações jurídicas distintas entre si, pelo que inexiste qualquer omissão de pronúncia sobre a garantia do veículo por parte do Douto Tribunal da Relação do Porto no âmbito do Acórdão recorrido, por tal facto não lhe ser legalmente exigível.

f) O comportamento adotado por parte da Recorrida não pode ser entendido como reconhecimento da existência de qualquer defeito no veículo nem consubstancia uma violação aos princípios da boa-fé pelo que inexistem quaisquer causas impeditivas de verificação da caducidade do direito.

g) Por último, o Douto Tribunal da Relação do Porto pronunciou-se expressamente sobre o momento legalmente previsto para o início de contagem do prazo de caducidade e tem por demonstrando nos autos, por admissão da própria Recorrente, a efetiva data de início do aludido prazo e limite para a apresentação da presente ação, sendo inequívoco que o mesmo não foi atendido”.


11. Em 25.06.2021 proferiu o Exmo. Relator do Tribunal da Relação do Porto um despacho com o seguinte teor:

Admito o recurso interposto com a REFª: …615, que é de revista, subindo imediatamente nos próprios autos com efeito meramente devolutivo.

Notifique.

Subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) se o Acórdão recorrido enferma de nulidade por omissão de pronúncia; e

2.ª) se o Tribunal recorrido decidiu bem ao julgar procedente a excepção de caducidade por esgotamento do prazo previsto no artigo 917.º do CC.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Do Acórdão recorrido resultam provados os seguintes factos[1]:

1) A autora é uma sociedade por quotas que ministra tratamentos de fisioterapia, efectua exames médicos, consultas de fisiatria e tratamentos complementares.

2) A autora adquiriu à 1.ª ré, concessionária da 2.ª ré, sociedades que se dedicam à comercialização de automóveis, uma viatura que os legais representantes da A. utilizavam para deslocações da residência para o local de trabalho e vice-versa, usando-o também nos momentos de lazer aos fins de semana, férias e passeios e demais deslocações do dia a dia.

3) Através das cartas trocadas entre A. e RR. e juntas aos autos (docs. 11 e 12 junto com a p.i.), juntamente com a demais correspondência trocada com RR., é comunicada a rescisão do contrato e reclamada a devolução do respectivo preço mais “despesas e tempo perdido”.

4) Quanto aos defeitos e avarias mencionados [nas cartas referidas em 3)], eles já haviam sido levados ao conhecimento das RR. através de anteriores comunicações da A.:

a) os enumerados no n.º 3 da p.i., em data incerta de Junho de 2017, que persistiram após a entrega para reparação, tendo sido novamente comunicados em 3 e 7 de Dezembro;

b) voltando a persistir após a entrega da viatura em 2/1/2018, e dando origem a nova reclamação e comunicação da A. à R. JOP a 12/2/2018, que não efectua qualquer reparação;

c) em data que a A. não menciona, é feito novo diagnóstico à viatura pela REVOR, tendo evidenciado os defeitos enumerados no item 19 da p.i.;

d) esse relatório e outra deficiência de pintura foram comunicados à R. JOP por comunicação via email de 4/4/2018.

5) A presente acção foi proposta em 18 de Outubro de 2018.


O DIREITO

A 1.ª questão a apreciar é a da nulidade por omissão de pronúncia do Acórdão recorrido[2].

Entende a autora, ora recorrente, que o Tribunal a quo incorreu em nulidade por omissão de pronúncia [cfr. artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC] porque não se pronunciou sobre a garantia de bom funcionamento [cfr. conclusões u) e v)] e que incorreu ainda em nulidade por omissão de pronúncia porque não se pronunciou sobre a causa impeditiva da caducidade prevista no artigo 333.º, n.º 2, do CC, não se pronunciou sobre o momento em que se iniciaria o prazo de caducidade nos termos do disposto no artigo 329.º do CC e não se pronunciou sobre o abuso do direito [cfr. conclusão ii)].

Ora, lendo com atenção o Acórdão (incluídas as alegações das partes que constam do respetivo relatório), verifica-se que a única questão que é suscitada no recurso é a da caducidade da acção por esgotamento do prazo previsto no artigo 917.º do CC.

Tendo sido esta a única questão suscitada, ela era a única que cabia ao Tribunal a quo apreciar. Tendo sido apreciada, não se verifica – não pode verificar-se – a nulidade por omissão de pronúncia referida no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.

E nem se diga que do recurso subordinado da autora decorria qualquer outra questão que cumprisse ao Tribunal recorrido apreciar. Considerando que não estavam preenchidos os requisitos do recurso subordinado, o Tribunal recorrido decidiu que dele não podia conhecer.

Explica-se bem esta situação no Acórdão recorrido:

A A. interpôs recurso subordinado, concluindo no sentido de considerar-se que a recorrente recebeu a denúncia apresentada pela autora a 23 de Abril de 2018, a presente acção instaurada a 18 de Outubro, sempre teria sido apresentada no prazo de seis meses após tal comunicação. O que corresponde a dizer que pretende ver mantida a decisão recorrida, que lhe é favorável, de julgar improcedente a excepção peremptória de caducidade invocada. Ora, dispõe o n.º 1 do art.º 639.º do CPC que na sua alegação o recorrente deve concluir pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. Constata-se que não é a alteração ou anulação da decisão recorrida que a A. pretende, mas apenas o reforço dos fundamentos em que a mesma se baseou. Tal espécie de pretensão não se enquadra na categoria do recurso subordinado, que visa, em qualquer caso, a modificação de uma decisão judicial. Quando muito caberia na categoria da ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, cuja finalidade é, na hipótese prevista no n.º 2 do art.º 636.º do CPC, impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas. Nesta conformidade, não é de conhecer, enquanto recurso, de tal pedido, havendo, tão só, que ponderar a argumentação expendida pela recorrente na apreciação do recurso”.

Sendo a única questão suscitada no (único) recurso (interposto pela 2.ª ré) a questão da caducidade da acção por esgotamento do prazo previsto no artigo 917.º do CC e tendo ela sido cabalmente apreciada, não pode – repete-se – dar-se razão à recorrente na sua pretensão de que o Acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia.


*


Posto isto, a 2.ª questão a apreciar – e questão central – é, justamente, a da caducidade do direito de acção por esgotamento do prazo previsto no artigo 917.º do CC.

Discorda a autora, ora recorrente, frontalmente, da decisão do Tribunal recorrido de julgar procedente a excepção de caducidade.

Alega que, actuando ela na qualidade da consumidora, ao caso dos autos não é aplicável o regime da venda de coisas defeituosas disposto nos artigos 913.º e s. do CC, mas sim o regime da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas disposto no DL n.º 67/2003, de 8 de Abril [cfr. conclusões a) a l)].

A título subsidiário (i.e., para o caso de se concluir que é aplicável aquele regime), insiste a autora que, ainda assim, não há caducidade [cfr. conclusão m)], aduzindo, sucessivamente, outros fundamentos, quais sejam:

i) o vendedor estaria obrigado a uma garantia de bom funcionamento, que tem o prazo, por convenção das partes, de três anos, ou, por força dos usos (usos do mercado automóvel), de dois anos, tendo a acção sido proposta dentro de tal prazo [cfr. conclusões n) a t)];

ii) dada a conduta das rés, a autora teria estado impedida de exercer o seu direito, pelo que a data de início da contagem do prazo deveria ser postergada, nos termos dos artigos 329.º e 331.º, n.º 2, do CC [cfr. conclusões w) a y)];

iii) as rés teriam usado de dolo, pelo que o caso dos autos configuraria a ressalva prevista no artigo 917.º do CC, que remete para o disposto no n.º 2 do artigo 287.º e do qual resulta o prazo de um ano [cfr. conclusões z) a dd)];

iv) as rés teriam incorrido em abuso do direito, pelo que não poderiam invocar a caducidade da acção [cfr. conclusões ee) a gg)];

v) a 2.ª ré teria recebido a denúncia apenas em 23.04.2018, pelo que a acção, tendo sido proposta em 18.10.2018, teria sido proposta dentro do prazo de seis meses e, portanto, não seria extemporânea [cfr. conclusão hh)].

Veja-se, então.

A tese central da autora assenta, como se viu, na aplicabilidade do regime da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas.

Esta tese está clara e incisivamente rebatida no Acórdão recorrido:

(…) a questão de saber se ao contrato de compra e venda do veículo automóvel dos autos é aplicável o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio, que aprovou o regime da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas (RVBCGR), tem particular relevo para a solução da excepção de caducidade da acção invocada pelas RR.. Dispõem os art.ºs 916.º e 917.º do C.Civil:

Artigo 916.º - 1. O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, excepto se este houver usado de dolo. 2. A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa. 3 - Os prazos referidos no número anterior são, respectivamente, de um e de cinco anos, caso a coisa vendida seja um imóvel.

Artigo 917.º - A acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2 do artigo 287.º.

Estabelecem os normativos transcritos três diferentes prazos de caducidade para o exercício do direito de anulação pelo comprador:

- um prazo de trinta dias contados desde a data do conhecimento do defeito até à da denúncia ao vendedor do vício ou a falta de qualidade da coisa;

- cumulativamente com ele, um prazo de denúncia de seis meses após a entrega da coisa. E ainda,

- após a denúncia, um prazo de seis meses sobre a data desta para a propositura da acção de anulação.

Tais prazos são alargados nos termos dos arts.º 5.º e 5.º-A do RVBCGR para:

- dois meses contados desde a data do conhecimento do defeito, se se tratar de um bem móvel, ou de um ano, se se tratar de um imóvel, até à da denúncia ao vendedor da falta de conformidade da coisa (n.º 1 do art.º 5.º-A);

- cumulativamente com ele, um prazo de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel (n.º 1 do art.º 5.º). E ainda,

- após a denúncia, um prazo de dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, um prazo de três anos a contar desta mesma data, para a propositura da acção, suspendendo-se o prazo durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens com o objectivo de realização das operações de reparação ou substituição, bem como durante o período em que durar a tentativa de resolução extrajudicial do conflito de consumo que opõe o consumidor ao vendedor ou ao produtor, com excepção da arbitragem (n.ºs 3 e 4 do art.º 5.º-A).

No caso vertente, está em questão o prazo decorrido entre a denúncia e a propositura da acção. E desde logo há que concordar com o despacho recorrido quando exclui do RVBCGR o contrato de compra e venda dos autos, não lhe sendo aplicáveis os prazos alargados concedidos por esse diploma. O RVBCGR aprovado pelo DL 67/2003, de 8.4, veio proceder à transposição para o direito interno da Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Maio, relativa a determinados aspectos de venda de bens de consumo e das garantias a elas relativas, visando assegurar a protecção dos interesses dos consumidores. O DL 84/2008, de 21 de Maio, alterando o DL 67/2003, de 8 de Abril, aditou o art.º 1-A, definindo como respectivo campo de aplicação, os contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores, definindo como “consumidor” aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1, do artigo 2.º da Lei 24/96, de 31 de Julho.

Revertendo ao caso vertente, no seguimento da matéria alegada pela recorrida, verifica-se que a mesma é uma sociedade por quotas que ministra tratamentos de fisioterapia, efectua exames médicos, consultas de fisiatria e tratamentos complementares, tendo adquirido à 1.ª ré, concessionária da 2.ª ré, sociedades que se dedicam à comercialização de automóveis, uma viatura que os legais representantes da A. utilizavam para deslocações da residência para o local de trabalho e vice-versa, usando-o também nos momentos de lazer aos fins de semana, férias e passeios e demais deslocações do dia a dia. Avulta assim, que estamos perante um negócio realizado entre duas entidades, no âmbito da actividade económica que ambas desenvolvem, manifesto sendo, também que os bens adquiridos se destinavam a uma aplicação profissional, ou mista, mas incluindo uma utilização profissional por parte da adquirente. Ora, não se configurando que possa a recorrida enjeitar a sua qualidade de profissional, nos termos explanados, não pode deixar de se considerar que o contrato celebrado se prendia com a actividade que a mesma se propunha desenvolver. Por conseguinte, não se pode concluir que na realização do contrato com vista à aquisição da viatura, deva a recorrida ser considerada como uma parte leiga e vulnerável, em termos tais que justifiquem a extensão do regime de protecção ao consumidor[3].

Em suma, reconhece-se – bem – no Acórdão recorrido de que a alegação de que a autora é consumidora e, portanto, é aplicável ao caso dos autos a disciplina constante do DL n.º 67/2003, de 8 de Abril, sobre a venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, carece de fundamento.

Desde logo, salta à vista um facto que é, em princípio, impeditivo da qualificação da autora como consumidora: o facto de se tratar de uma sociedade comercial, logo, uma pessoa jurídica.

O DL n.º 67/2003 [cfr. artigo 1.º-B, al. a)] remete para a noção de consumidor consagrada na Lei n.º 24/96, de 31 de 31 de Julho (Lei de Defesa do Consumidor) (cfr. artigo 2.º, n.º 1).

Dispõe-se naquele:

Para efeitos de aplicação do disposto no presente decreto-lei, entende-se por:
a) «Consumidor», aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho
”.

E dispõe-se nesta:

Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”.

Existe significativo consenso quanto a que esta corresponde a uma noção de consumidor em sentido restrito, que é, aliás, a mais corrente na doutrina.

Diz, a propósito, João Calvão da Silva:

(…) a letra da lei não especifica que o consumidor seja uma pessoa física ou pessoa singular. Normalmente, porém, a doutrina e as Directivas comunitárias excluem as pessoas colectivas ou pessoas morais. E cremos ser esta também a melhor interpretação do n.º 1 do art. 2.º da Lei n.º 24/96: todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional – ao seu uso privado, pessoal, familiar ou doméstico, portanto, por oposição a uso profissional – será uma pessoa singular, com as pessoas colectivas a adquirirem os bens ou os serviços no âmbito da sua capacidade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectos profissionais (cfr. art. 160.º do Código Civil) e art. 6.º do Código das Sociedades Comerciais [4].

E insiste o mesmo autor, em comentário à norma do artigo 1.º-B, al. a), do DL n.º 67/2003:

A noção de consumidor (al. a)) é a repetição da contida no n.º 1 do art. 2.º da Lei de Defesa dos Consumidores (…). A confinação de consumidor a pessoa singular corresponde, não só à Directiva transposta – (art. 1.º, n.º 2, al. a)): “pessoa singular que actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional” – como às das demais Directivas sobre a protecção do consumidor que têm surgido (…)[5].

Outros autores perfilham e corroboram esta tese.

Veja-se, por exemplo, o que afirma João Cura Mariano:

Apesar da neutralidade dos nossos textos legais (art. 2º, nº 1, da L.D.C. e artº 1º-A, a), do D.L. n.º 67/2003) (…), não tendo sido acolhida a redacção constante do Projecto da L.D.C, que previa expressamente a referência exclusiva às pessoas singulares, deve manter-se a ideia constante da respectiva nota justificativa de que é importante consagrar uma noção de consumidor semelhante à dos textos comunitários (…). Parece inequívoca a orientação comunitária de apenas considerar consumidores as pessoas singulares, devendo ser essa também a leitura da nossa lei (…)[6].

Outros autores concebem – é certo – a extensão do regime reservado aos consumidores às pessoas colectivas – mas não sem determinados cuidados, isto é, não sem que se exija a verificação de certas condições.

Integra este grupo António Pinto Monteiro:

“(…) as pessoas colectivas não são consumidores, mas, em certos casos, se provarem que não dispõem nem devem dispor de competência específica para a transacção em causa e que a solução está de acordo com a equidade, podem beneficiar do regime que a lei reserva aos consumidores [7].

Integra-o também Nuno Manuel Pinto Oliveira:

(…) na aplicação do direito do consumo deverá dar‑se um tratamento diferenciado às pessoas singulares e às pessoas colectivas; (…) entre as consequências do tratamento diferenciado entre as pessoas singulares e as pessoas colectivas, está a de que só poderá aplicar-se o direito do consumo às pessoas colectivas a partir de uma ponderação dos fins, dos princípios e dos valores relevantes (…).

O critério da competência específica designará uma condição necessária da aplicação do direito do consumo às pessoas colectivas — o direito do consumo só pode aplicar-se desde que a pessoa colectiva não tenha competência específica para o negócio em causa. Embora seja uma condição necessária, o critério da competência específica não designa uma condição suficiente. O facto de a pessoa colectiva não ter competência específica é um ponto de partida para uma ponderação — o direito do consumo só pode aplicar-se desde que a protecção de uma pessoa colectiva sem competência específica esteja de acordo com a equidade” [8] .

É a mesma a posição que vem sendo adoptada na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça. Veja-se o Acórdão de 29.05.2014, Proc. 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1, onde pode ler-se: “É, então, 'consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional'. Podendo estender-se o conceito às pessoas coletivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transação em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade e às pessoas singulares que atuem na prossecução de fins que pertençam ao âmbito da sua atividade profissional, se provarem o que acaba de ser referido relativamente às pessoas coletivas”.

E veja-se ainda o Acórdão de 30.04.2015, Proc. 1187/8.0TBTMR-A.C1.S1, que, reproduz e remete o aresto anterior.

Ora, a verdade que nenhuma das circunstâncias referidas foi alegada, e nem muito menos provada, no caso dos autos – não foi alegado, e nem muito menos provado, desde logo, que a autora não dispunha de competência específica para a transação em causa de forma a que pudesse equacionar-se a solução de lhe estender o regime reservado aos consumidores.

Esclarecido este primeiro ponto, a nossa atenção deve voltar-se, pois, para o regime geral contido nos artigos 913.º e s. do CC e, em particular, para as normas dos artigos 916.º e 917.º.

No artigo 916.º, sobre a denúncia do defeito, dispõe-se:

1. O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, excepto se este houver usado de dolo.

2. A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa.

3 - Os prazos referidos no número anterior são, respectivamente, de um e de cinco anos, caso a coisa vendida seja um imóvel.

No artigo 917.º, sobre a caducidade da acção, dispõe-se:

A acção de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2 do artigo 287.º.

Sabendo que o prazo de denúncia dos defeitos é de seis meses após a entrega da coisa e de que o prazo para a propositura da acção é de seis meses a contar da data da denúncia, formula-se a pergunta: será que, no caso dos autos, o direito de acção já havia caducado quando a autora propôs a acção?

Olhando para a factualidade provada, a resposta não pode deixar de ser afirmativa.

A autora denunciou os defeitos do veículo em duas ocasiões sucessivas: os defeitos enumerados no n.º 3 da p.i. – em data incerta de Junho de 2017 [cfr. facto provado 4, a)] –; os defeitos enumerados no item 19 da p.i. – em 4.04.2018 [cfr. facto provado 4, d)]. Tendo a presente acção sido proposta em 18.10.2018 é visível que o direito de acção relativamente a qualquer grupo de defeitos já havia caducado quando a autora propôs esta acção.

Contra isto não vale alegar que a 2.ª ré apenas recebeu a denúncia em 23.04.2018, pelo que a acção, tendo sido proposta em 18.10.2018, foi proposta dentro do prazo de seis meses [cfr. conclusão hh)]. É que, ao contrário do que a autora e ora recorrente parece pensar, o prazo não se conta desde a (recepção da) “última comunicação”, em que, reiterando-se a referência aos defeitos, “é comunicada a rescisão do contrato e reclamada a devolução do respectivo preço mais “despesas e tempo perdido” (cfr. facto provado 3); conta-se sim desde as comunicações (anteriores) destinadas à denúncia dos defeitos.

Foi este também o raciocínio do Tribunal recorrido, como se pode verificar:

Assim sendo, é à luz do regime geral de venda de coisa defeituosa, mormente do disposto nos art.ºs 916.º e 917.º do C.Civil, que importa saber se se mostra ultrapassado o prazo de caducidade previsto para o exercício de direitos por parte da adquirente, na vertente que ora nos interessa: se efectivou tal exercício no prazo de seis meses após a denúncia efectuada de que a coisa padecia de defeitos.

A decisão recorrida considerou tempestivo tal exercício, porquanto, “face às cartas trocadas entre A. e RR. e juntas aos autos, verificamos que a "última" comunicação efectuada pela A. a queixar-se dos vícios da coisa adquirida, foi feita por carta datada de 16/4/18, recebida pela R. JOP em 18/4/18 e pela R. Jaguar em 23/4/18”. Ora, examinadas tais cartas (docs. 11 e 12 junto com a p.i.), juntamente com a demais correspondência trocada com as RR., verifica-se que nas mesmas é comunicada a rescisão do contrato e reclamada a devolução do respectivo preço mais “despesas e tempo perdido”. Quanto aos defeitos e avarias aí mencionadas, eles já haviam sido levados ao conhecimento das RR. através de anteriores comunicações da A.:

- os enumerados no n.º 3 da p.i., em data incerta de Junho de 2017, que persistiram após a entrega para reparação, tendo sido novamente comunicados em 3 e 7 de Dezembro;

- voltando a persistir após a entrega da viatura em 2/1/2018, e dando origem a nova reclamação e comunicação da A. à R. JOP a 12/2/2018, que não efectua qualquer reparação;

- em data que a A. não menciona, é feito novo diagnóstico à viatura pela REVOR, tendo evidenciado os defeitos enumerados no item 19 da p.i.;

- esse relatório e outra deficiência de pintura foram comunicados à R. JOP por comunicação via email de 4/4/2018.

Perante tal circunstancialismo, resulta patente que a data da denúncia não é a da última comunicação efectuada pela A., datada de 16/4/18, recebida pela R. JOP em 18/4/18 e pela R. Jaguar em 23/4/18, mas antes, a de 30/6/2017 (ou outra anterior) quanto aos defeitos enumerados no item 3 da p.i.. Quanto aos restantes defeitos evidenciados pelo relatório da REVOR e deficiências de pintura, enumerados nos 19 e 23 da p.i., a data da denúncia é de 4 de Abril de 2018, tudo conforme a alegação dos factos pela A. na p.i..

Logo, à data da propositura da acção excedido estava já o prazo de caducidade da acção fixado no art.º 917.º do CCivil.

Procede, por isso, a invocada excepção peremptória de caducidade, sendo certo que o recurso para tal interposto pela 2.ª ré aproveita a ambas. Impondo-se, em conformidade revogar a decisão recorrida e absolver as RR. de todos os pedidos”.

Quanto à eventual garantia de bom funcionamento [cfr. conclusões n) a t)], aos eventuais impedimentos ao exercício do direito da acção [cfr. conclusões w) a y)], ao eventual dolo das rés [cfr. conclusões z) a dd)], tudo isso são alegações que não foram apreciadas pelo Tribunal a quo (para a razão remete-se para a resposta à questão anterior) e para as quais não existe, de qualquer forma, suficiente suporte nos factos provados que chegam à presente instância[9].

Finalmente, a alegação de abuso do direito [cfr. conclusões ee) a gg)] – questão que, ainda que nova ou não invocada por qualquer das partes, é sempre de conhecimento oficioso –, tão-pouco encontra qualquer apoio na factualidade provada, pelo que fatalmente terá de improceder. De facto, nada autoriza a que “o Tribunal considere ocorrido o abuso de direito à luz de factos que não foram alegados nem se podem considerar adquiridos nos autos”, “sendo sempre necessário que esteja demonstrada a respectiva factualidade para que o mesmo possa ser apreciado[10].

Tudo considerado, conclui-se que não existe fundamento para alterar a decisão do Tribunal a quo, devendo manter-se o Acórdão proferido.



***


III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


*


Custas pela recorrente.

*



Lisboa, 14 de Outubro de 2021


Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

_________

[1] Os factos foram reconstituídos a partir da fundamentação do Acórdão recorrido (com a consulta complementar dos documentos juntos aos autos aí referidos) e depois numerados.
[2] Dispõe-se no n.º 4 do artigo 615.º do CPC que “as nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”. Assim, a sede própria para a apreciação destas nulidades é o presente recurso. É certo que a lei prevê que o Tribunal recorrido se pronuncie sobre a nulidade antes da subida dos autos (cfr. artigo 617.º, n.º 1, e 666.º, n.º 2, do CPC), o que não aconteceu neste caso. No entanto, como a presente revista foi admitida e a questão ficará decidida pelo Supremo Tribunal, a baixa dos autos para pronúncia do Tribunal recorrido seria um acto inútil, logo, um acto a não praticar (cfr. artigo 617.º, n.º 5, 1.ª parte, e artigo 130.º do CPC).
[3] Sublinhados nossos.
[4] Cfr. João Calvão da Silva, Compra e venda de coisas defeituosas – Conformidade e segurança, Coimbra, Almedina, 2008 (5.ª edição), p. 122 (sublinhados do autor).
[5] Cfr. João Calvão da Silva, Venda de bens do consumo, Coimbra, Almedina, 2010 (4.ª edição), p. 70 (sublinhados do autor).
[6] Cfr. João Cura Mariano, Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra, Coimbra, Almedina, 2020 (7.ª edição), pp. 261-263.
[7] Cfr. António Pinto Monteiro, “Sobre o direito do consumidor em Portugal e o anteprojecto de Código do Consumidor”, in: Estudos de Direito do Consumidor, 2005, n.º 7, p. 254 (sublinhados do autor).
[8] Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Contrato de Compra e Venda, volume I – Introdução. Formação do Contrato, Coimbra, Gestlegal, 2021, pp. 160-161 (sublinhados do autor).
[9] Como apontou o Tribunal recorrido, para obviar a esta situação, deveria a autora / então apelada ter requerido a ampliação do âmbito do recurso, tendo podido, então, nos termos do artigo 636.º, n.º 2, do CPC, impugnar a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pela ré / então apelante, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.
[10] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 4.10.2018, Proc. 1047/14.5TBGMR-A.G1 (interpolação nossa).