I- As situações previstas no artigo 1381.º do Cód. Civil, constituem excepções impeditivas do direito de preferência estabelecido no artigo 1380.º do mesmo Código e não do direito de preferência consagrado no artigo 26.º do regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional, sendo certo que o DL n.º 73/2009, de 31-03, não estabelece qualquer remissão que permita considerar aplicável o aludido preceito .
II- Ainda que assim não se entenda, para que o facto impeditivo do direito de preferência aludido na 2ª parte da al. a) do art.° 1381º do Cód.Civil opere os seus efeitos, seria, em todo o caso necessário que a mudança de destino fosse permitida por lei, isto é que nada obste a que se concretize a pretensão de dar ao prédio uma outra afectação ou um outro destino, o que no caso não sucede já que o prédio em causa está inserido na Reserva Agrícola Nacional.
III - De igual sorte e mercê da propalada inaplicabilidade do art.º 1381º do Cód. Civil ao direito de preferência estabelecido no artigo 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, sempre se teria de concluir que a circunstância de o prédio dos Autores ser um “prédio misto” não teria qualquer valia argumentativa para cercear tal direito.
IV- O direito de preferência é, nos termos desse regime jurídico da RAN, atribuído aos proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN, nos casos de alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinante inseridos na RAN, a quem não for preferente. (sumário da relatora)
“A) FACTOS PROVADOS
1) Os AA são donos e legítimos proprietários do prédio misto denominado “Horta da Alegria”, sito na freguesia e concelho de Viana do Alentejo, com a área de 1,67500ha, inscrito na matriz respectiva em nome dos Autores, sob o artigo rústico n.º 48, Secção M, e urbano sob o art.º 1831, descrito a respectiva Conservatória do Registo predial sob o n.º 452/19880308.
2) O prédio dos AA. é composto por cultura arvense de regadio, oliveiras, nogueiras, pomar de citrinos e dependências agrícolas, na parte rústica, e rés-do-chão com dois fogos na parte urbana.
3) No referido prédio está edificada uma casa habitável com dois fogos.
4) Os AA destinam, predominantemente, o prédio às culturas referidas em 1) e ao cultivo de horta e ovinocultura.
5) O prédio dos AA confina, pelo lado Sul, com um prédio rústico, designado “Barca”, sito na freguesia e concelho de Viana do Alentejo, com a área de 1,42500ha, inscrito na matriz rústica respectiva sob o artigo 47, Secção M, composto de cultura arvense e oliveiras, descrito na respectiva Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1050/19950814.
6) Em 11 de Maio de 2018 o 2.º R., munido de procuração com poderes especiais do 1.º R., outorgou através de documento particular autenticado, contrato de dação em cumprimento através do qual, pela quantia de €10.000,00 o 1.º R. deu em pagamento ao 2.º R, livre de ónus ou encargos, o prédio rústico identificado em 4).
7) Em Janeiro de 2019, os Autores tiveram conhecimento do negócio referido em 6), e dos seus termos.
8) Nenhum dos Réus deu conhecimento aos Autores da intenção do 1.º R. em dar em pagamento o prédio referido em 4), nem os termos do negócio, nem as condições de pagamento, ou a pessoa do comprador.
9) O prédio dos AA. e o prédio identificado em 4) são confinantes entre si, são aptos para o mesmo tipo de cultura, e estão inseridos na Reserva Agrícola Nacional.
10) O 2.º R, não era, à data da dação em pagamento proprietário de qualquer outro prédio confinante com o prédio identificado em 4).
11) O Réu Vítor exerce a actividade de comércio de lenha e carvão.
12) O Réu Vítor actualmente utiliza o prédio rústico como depósito de lenha e carvão para distribuir e comercializar.
13) Os AA. encontram-se reformados, e usam o seu prédio para o cultivo autorizado, horta e pastoreio de ovinos, pretendendo com o prédio dado em pagamento, alargar tal cultivo assim como a área de pastoreio.
B) FACTOS NÃO PROVADOS
a) O valor patrimonial da casa de habitação é superior ao valor do terreno.”.
6. Impugnação da matéria de facto
Insurge-se o apelante contra a resposta dada ao facto 4. (Os AA destinam, predominantemente, o prédio às culturas referidas em 1) e ao cultivo de horta e ovinocultura) referindo que o depoimento da única testemunha dos AA., J…, não permite a conclusão de que à data da dação (2018) o ali afirmado se verificasse.
Convém referir que de acordo com a motivação expressa na sentença, a prova de tal facto adveio não só do “depoimento testemunhal do genro dos Autores, J…, que evidenciou espontaneidade e conhecimento directo dos factos relatados” mas também “em parte, pelo teor do depoimento testemunhal (emotivo), da testemunha arrolada pelos réus, M…, tia do Réu Jo…, que referiu que os Autores, há anos, cultivavam hortaliças que vendiam na praça, e mais recentemente, apesar de não o fazerem, semeiam para os animais comerem, tendo ovelhas a pastar nos terrenos (no deles e no do sobrinho)”.
Vejamos.
Ora, ficou inequivocamente provado através do depoimento da testemunha, que ouvimos, que o terreno dos Autores sempre foi destinado ao cultivo e ao pastoreio, quer por si, quer através do depoente e do outro genro (o que para o caso é indiferente) sendo rigorosa a conclusão alcançada pelo Tribunal.
Improcede, pois, esta pretensão do apelante.
Relativamente ao facto vertido em 13) ( Os AA. encontram-se reformados, e usam o seu prédio para o cultivo autorizado, horta e pastoreio de ovinos, pretendendo com o prédio dado em pagamento, alargar tal cultivo assim como a área de pastoreio. ).
Sem embargo de o Autor ter, entretanto, falecido, o afirmado também corresponde exactamente ao declarado pelo seu genro e pela própria tia do Réu, M…, que “confirmou ter visto as ovelhas dos Autores a pastar no prédio do sobrinho” pelo que é de acompanhar a conclusão alcançada pelo Tribunal de que os Autores ou seus sucessores pretendem alargar os cultivos que levam a cabo e a área de pastoreio dos animais.
Termos em que também improcede a pretensão do apelante.
Quanto ao facto inserto em 12) ( O Réu Vítor actualmente utiliza o prédio rústico como depósito de lenha e carvão para distribuir e comercializar) entendeu o Tribunal que a prova sobre o mesmo “decorreu do teor do depoimento testemunhal de Jor…, amigo do réu V…, que referiu que este, à semelhança do que já fazia quando trabalhava com o réu Joaquim, utiliza o prédio para armazenar a lenha que comercializa e transforma”.
Apesar do apelante pugnar pela sua modificação, não o justifica.
Por isso a sua pretensão é insusceptível de ser apreciada.
Termos em que se mantém a redacção do mesmo.
Por último, e quanto ao facto constante da alínea a) dos factos “Não Provados”, (O valor patrimonial da casa de habitação é superior ao valor do terreno) refere o apelante que “não pode o tribunal a quo julgar não provado um facto que os AA não contrariaram, tendo-se o Tribunal a quo substituído aos AA.”.
Isto só assim seria se o facto fosse passível de ser provado por acordo. E não o é.
Ora, o valor patrimonial de um prédio é determinado pela Autoridade Tributária e serve de base ao cálculo do IMI e do IMT, entre outras aplicações.
Carece, portanto, de ser provado através de competente documento emitido por essa entidade.
Se não há elementos nos autos que espelhem esse valor administrativamente fixado no mesmo momento temporal, a única conclusão a retirar é a de que tal facto (alegado pelo apelante no art.13º da contestação) não resultou provado.
É isso que o Tribunal afirma na motivação: “(…) os valores patrimoniais fixados para a parte urbana e para a parte rústica foram determinados em alturas bastante distintas (a parte urbana em 2017 e a parte rústica em 1989)”.
Termos em que se indefere a pretensão do apelante de ver alterada a decisão de o dar como “não provado”.
7. Reapreciação jurídica da causa: Da (in) verificação de impedimento do direito de preferência dos AA.
Insiste o apelante, com a tese já esgrimida na contestação, que a circunstância de o réu Vítor (adquirente) destinar o prédio rústico a um fim que não é a cultura (mas sim armazenamento de lenha) e o facto de o terreno dos AA. não estar autonomizado do prédio urbano são factos impeditivos do direito de preferência destes últimos, por via do estatuído na alínea a) do art.º 1381º do Cód. Civil.
Não podemos deixar de acompanhar o raciocínio expendido na sentença recorrida para rejeitar tal pretensão impeditiva: “(…) os referidos prédios confinantes encontram-se, ambos, inseridos na Reserva Agrícola Nacional e, por isso, apenas podem ser utilizados para fins agrícolas, não lhe podendo ser dado qualquer outro uso. Note-se que, para que tal excepção pudesse ter lugar, necessário seria que quem adquirisse o imóvel o fizesse para um fim diverso da cultura e, que esse “fim diverso” fosse legal e fisicamente possível.
Ora, estando os dois imóveis em questão inseridos na reserva agrícola nacional, o fim da “cultura do terreno” não poderá ser afastado pelo que não poderá proceder a excepção prevista na última parte da al. a) do art.º 1381.º do Código Civil.”.
Com efeito, não nos podemos olvidar que o Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional (RAN), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março, corresponde ao conjunto de áreas que apresentam – em termos agroclimáticos, geomorfológicos e pedopedagógicos – maior aptidão para a actividade agrícola, traduzindo-se, outrossim, numa restrição de utilidade pública à utilização não agrícola dos solos.
E nessa senda, este mesmo diploma estabelece, no seu artigo 26º, um direito legal de preferência que incide sobre a transmissão (por venda ou por dação em cumprimento) de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área RAN.
As situações previstas no artigo 1381.º do Cód. Civil, invocado pelo apelante, constituem excepções impeditivas do direito de preferência estabelecido no artigo 1380.º do mesmo Código e não do direito de preferência consagrado no artigo 26.º do regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional, sendo certo que o DL n.º 73/2009, de 31-03, não estabelece qualquer remissão que permita considerar aplicável o aludido preceito[1].
Ainda que assim não se entenda, para que o facto impeditivo do direito de preferência aludido na 2ª parte da al. a) do art.° 1381º do Cód.Civil opere os seus efeitos, seria, em todo o caso necessário que a mudança de destino fosse permitida por lei, isto é que nada obste a que se concretize a pretensão de dar ao prédio uma outra afectação ou um outro destino, no caso de servir como “depósito de lenha de lenha e carvão para distribuir e comercializar”.
Ora, tal destino não é legalmente admissível por o prédio em causa estar inserido na Reserva Agrícola Nacional…
De igual sorte e mercê da propalada inaplicabilidade do art.º 1381º do Cód. Civil ao direito de preferência estabelecido no artigo 26.º do DL n.º 73/2009, de 31-03, sempre se teria de concluir que a circunstância de o prédio dos Autores ser um “prédio misto” não teria qualquer valia argumentativa para cercear tal direito.
O direito de preferência é, nos termos desse regime jurídico da RAN, atribuído aos proprietários de prédios rústicos ou mistos incluídos numa área da RAN, nos casos de alienação ou dação em cumprimento de prédios rústicos ou mistos confinante inseridos na RAN, a quem não for preferente.
Ora, como ficou provado, os AA são donos e legítimos proprietários do prédio misto denominado “Horta da Alegria”, sito na freguesia e concelho de Viana do Alentejo, com a área de 1,67500ha, inscrito na matriz respectiva em nome dos Autores, sob o artigo rústico n.º 48, Secção M, e urbano sob o art.º 1831, descrito a respectiva Conservatória do Registo predial sob o n.º 452/19880308.
De todo o modo, sempre se diga que caso fosse susceptível de ser aplicado à situação dos autos o art.º 1381º do Cód. Civil não se verificava nenhum dos impedimentos aí elencados ao exercício do direito de preferência dos Autores.
Como bem se salienta na sentença, os “ AA. destinam o prédio, predominantemente, ao cultivo de horta e ovinocultura. Verifica-se assim, que pela destinação dada ao terreno, o mesmo não poderá ser considerado, meramente, um logradouro da casa, isto é, não se trata de um “terreno adjacente à casa, com carácter de quintal, pátio ou jardim, terreno de horta, com árvores, na dependência de uma moradia, servindo as necessidades ocasionais do dono da casa” (v. ac. do Tribunal da Relação do Porto, proferido no proc. RP200806180823239, de 18/06/2008, consultado em www.dgsi.pt), sendo antes um terreno que está afecto à agricultura.
Pelo exposto, entende-se que pela sua afectação económica, por um lado, e pela circunstância de o terreno não poder ser considerado, em termos civis, como mero logradouro da casa edificada, por outro, terá de considerar-se, por defeito, o prédio dos Autores como prédio rústico, pelo que não se encontram previstos, no caso sub judice, os pressupostos de que depende a exclusão do direito de preferência dos Autores, nos termos do art. 1381.º, al. a), 1.ª parte, do Código Civil.”.
Em suma: a apelação não tem como proceder.
III-DECISÃO
Por todo o exposto acorda-se em julgar totalmente improcedente a apelação e se confirma a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Évora, 9 de Setembro de 2021
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Florbela Moreira Lança
Elisabete Valente
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[1] Neste sentido, Ac.desta Relação de 11-02-2021 relatado pela Des. Ana Margarida Leite e consultável na Base de Dados do IGFEJ.
[2] Cfr. Ac.STJ de 17.10.2019 relatado pelo Conselheiro Raimundo Queirós e consultável na Base de Dados do IGFEJ.