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PERÍCIA
SEGUNDA PERÍCIA
FUNDAMENTOS
PODERES DO JUIZ
VALOR PROBATÓRIO
Sumário
I. Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de dez dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (art.º 487.º, n.º 1 do CPC), podendo o tribunal ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que julgue necessária ao apuramento da verdade (art.º 487.º, nº 2 do CPC), tendo a segunda perícia por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultas desta. II. A segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo Tribunal (art.º 591.º do CPC), não havendo qualquer prevalência de uma sobre a outra, sendo os resultados de ambas valoradas segundo a livre convicção do julgador. III. A expressão adverbial “fundadamente” significa precisamente que as razões da dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia. Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, explicitando as suas discordâncias em relação à primeira perícia, apresentando ainda as razões pelas quais entende que o resultado apresentado na mesma deveria ser diferente IV. Não cabendo ao tribunal aprofundar o bem (ou mal) fundado da argumentação apresentada no requerimento para a realização da segunda perícia, deve o juiz determinar a realização da segunda perícia, desde que conclua que a mesma não tem carácter impertinente ou dilatório. (sumário da relatora)
Texto Integral
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
I.Relatório
Na presente acção de divisão de coisa comum, na sequência da notificação do relatório pericial AA. W... e outros, requereram, respectivamente, em 10.10.2019 e 14.10.2019, que o senhor perito prestasse esclarecimentos.
Por despacho de 18.11.2019 foram deferidas totalmente as reclamações deduzidas pelos AA. e pelos RR. e determinada a notificação do Sr. Perito para, em 30 dias, prestar os esclarecimentos solicitados.
Prestados os esclarecimentos em 18.03.2020, os RR., D… e outros…, em 09.06.2020, requereram novo esclarecimentos ao Senhor Perito, tendo sido proferido despacho, em 22.09.2020, nos termos do qual se decidiu deferir parcialmente a reclamação dos requeridos e, em consequência, determinar a notificação do senhor perito para, no prazo de 10 dias :
“(i) esclarecer se o valor de 4.500 Euros correspondente ao custo de instalação (sistema de rega + plantação) do olival, a que alude no seu relatório pericial complementar, respeita ao custo por hectare ou pela globalidade do olival e,
(ii) em consequência, corrigir os valores mencionados no seu relatório pericial, se for o caso.”, indeferindo-se, no mais a pretensão dos reclamantes e designando-se data para a conferência de interessados.”.
Em 21.10.2020, o Sr. Perito prestou os esclarecimentos.
Nessa mesma data, 21.10.2020, os RR…, requereram a realização da 2.ª perícia, à qual se opuseram os AA., …, por requerimento de 02.11.2020.
Por despacho de 04.11.2020, foi relegado “para a conferência de interessados, já agendada, a tomada de posição quanto ao requerido”.
No dia 10.11.2020 realizou-se a conferência de interessados, tendo sido proferido o seguinte despacho:
“No requerimento de 21-10-2020, com a ref.ª Citius 36876230, os requeridos … vêm requerer a realização de uma segunda perícia, que reputam de necessária.
Ora, nos termos do artigo 929º do Cód. Proc. Civil, a presente conferência de interessados destina-se a fazer a adjudicação do prédio sob divisão e, na falta de acordo dos interessados, a determinar a venda da coisa.
Só neste último caso – de venda judicial – importará determinar o valor de mercado do prédio para efeitos de fixação do valor de base da venda, nos termos do artigo 812º do Cód. Proc. Civil, cfr. artigo 929º ex vi artigo 549º, nº 2 do Cód. Proc. Civil.
Face ao exposto, relega-se para momento ulterior a decisão quanto à realização de uma segunda perícia, conforme requerida.”
Não tendo sido alcançado o acordo quanto à adjudicação do imóvel em causa na conferência de interessados, foi proferido o seguinte despacho:
“Dada a inexistência de acordo quanto à adjudicação do prédio identificado nos autos, prédio misto situado em Quinta de São Vicente, com a área total de 29,075 HECT, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, constante nas matrizes nº 72, secção nº H1 da Freguesia de Ferreira do Alentejo e Canhestros; nº … da Freguesia de Ferreira do Alentejo e Canhestros; nº … da Freguesia de Ferreira do Alentejo e Canhestros e nº … da Freguesia de Ferreira do Alentejo e Canhestros, determina-se a venda do mesmo, conforme o disposto no artigo 929º, nº 2 do CPC.
Proceda às citações nos termos do artigo 786º do CPC.”
No dia 15.04.2021, os RR…, apresentaram requerimento, no qual, entre o mais alegaram e requereram, nos seguintes termos: “(…) O imóvel foi, portanto, avaliado em €1.451.035,00, valor que, como se disse, não leva em consideração o valor do olival e do armazém. 10. Unicamente para efeitos de uma resolução rápida do presente processo, ou seja, para que não se recorra a nova perícia – com as delongas que lhe são inerentes –, os Requeridos consideram que o valor base do imóvel deverá ser de, pelo menos, €1.851.035,00, ou seja, mais €400.000,00 do que o valor de avaliação que resulta do primeiro e único relatório pericial. 11. De resto, a majoração do valor base relativamente ao valor da avaliação, conforme se acaba de expor, deverá ser do interesse de todos os comproprietários que almejam receber o maior valor possível – e acima de tudo um valor justo – através da venda do imóvel. 12. Os Requerentes estarão, com certeza, de acordo com o presente valor base de venda, porquanto as várias abordagens negociais feitas pelos Requeridos aos Requerentes não lograram – pelo menos para já – obter sucesso, pelo que a valorização do imóvel será certamente vantajosa para todas as Partes. 13. Seja como for, sem prejuízo do valor que agora se requer que seja o considerado para venda judicial, os Requeridos informam que continuam disponíveis para vender extrajudicialmente as suas quotas-partes na Quinta de São Vicente aos Requerentes (e unicamente aos Requerentes) nos termos das propostas já feitas, ou seja, em condições mais benéficas face às que agora se requerem para a venda a terceiros. III. Olival e Armazém 14. A Requerida Terras de São Vicente, Lda. requer que, na venda, seja considerada a possibilidade de se desonerar a terra (e o respectivo armazém) do contrato de arrendamento celebrado e que vigorará até 2031. 15. Para tal, deverá, como contrapartida, ser entregue à sociedade Terras de São Vicente, Lda. o valor de €400.000,00. 16. Esta possibilidade não deverá ser impeditiva de se proceder à venda do imóvel sem incluir os direitos relativos ao olival e armazém, sendo apenas uma faculdade que poderá ser considerada pelos eventuais compradores do imóvel. Termos em que nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V.Exa. se requer que, nos termos do n.º 1 do artigo 812.º do CPC, se considere o supra referido, nomeadamente a necessidade de se proceder à venda através de uma modalidade adequada às especiais características do imóvel; o valor de venda pelo valor base de €1.851.035,00; a inclusão, na venda, da possibilidade de se desonerar a terra (parcela de 23,5 hectares) do contrato de arrendamento celebrado com as Terras de São Vicente, Lda., nos termos supra expostos.”
Os AA..., , responderam, por requerimento de 26.04.2021, pugnando pelo indeferimento do requerimento apresentado pelos RR.
No dia 28.04.2021 foi proferido o seguinte despacho:
“Do valor base de venda:
Notificadas as partes para se pronunciarem sobre a modalidade de venda e sobre o valor base de venda, as mesmas responderam, sendo que os requeridos vieram, por requerimento de 15-04-2021, sob a ref.ª 1953846, reiterar o requerimento de realização de segunda perícia, anteriormente formulado, sob a ref.ª 36876230, de 21-10-2020, e cuja decisão havia sido relegada para momento posterior à realização da conferência de interessados, nos termos da respectiva acta de 10-11-2020.
Uma vez que tal conferência findou sem acordo dos interessados quanto à adjudicação do prédio sob divisão e, nessa sequência, foi determinada a sua venda, cfr. artigo 929º, nº 2, do Cód. Proc. Civil, importa, antes de mais, conhecer do requerimento de realização da segunda perícia.
Sucede que, no seu requerimento de 15-04-2021, com a ref.ª 1953846, os requeridos propõem que seja dispensada a realização de segunda perícia, se o valor base de venda for fixado em 1.851.035 Euros (que de acordo com os mesmos corresponderá a mais 400.000 Euros do que o valor alegadamente atribuído pelo senhor perito, 1.451.035 Euros).
Porém, e salvo melhor análise, afigura-se-nos que existirá um equívoco da parte dos requeridos, porquanto o valor atribuído ao prédio sob venda, a “Quinta de São Vicente”, pelo senhor perito foi de 1.857.785 Euros, cfr. relatório de perícia rectificado, junto em 18-03-2020, sob a ref.ª 1731240, sendo que tal valor supera a proposta dos requeridos.
Face ao exposto, deverão os requeridos, no prazo de 10 (dez) dias, esclarecer esta sua proposta quanto ao valor base de venda.
Notifique.”
No dia 12.05.2021, na sequência do despacho proferido no dia 28.04.2021, os RR., apresentaram requerimento, nos termos do qual:
…, Requeridos nos autos à margem identificados, notificados do despacho com ref. 31772165, vêm esclarecer a proposta apresentada quanto ao valor base de venda, o que fazem nos termos seguintes: “1. A sociedade comercial Terras de São Vicente, Lda. tomou de arrendamento a parte rústica da Quinta de São Vicente, por contrato celebrado em Janeiro de 2006. 2. O contrato vigorará até ao ano de 2031. 3. Entretanto, volvidos 10 (dez) anos após a celebração do contrato, os aqui Requerentes vieram colocar em questão a validade do referido contrato, intentando um processo declarativo junto do Tribunal Judicial da Comarca de Beja – a 1ª instância confirmou a validade do contrato, mas os Requerentes recorreram da decisão para o Tribunal da Relação de Évora (o que ocorreu este ano). 4. Seja como for, aquela terra é explorada de facto pela referida sociedade desde a data em que se celebrou aquele contrato, tendo a mesma sociedade procedido à instalação de um olival e à construção de um armazém agrícola. 5. Em consonância, no âmbito do presente processo, nos diversos pedidos de esclarecimentos apresentados ao Sr. Perito, os Requeridos (alguns que foram sócios da referida sociedade, outros que ainda o são) sempre demonstraram a necessidade de se proceder à destrinça entre os bens que pertencem tanto aos Requerentes como aos Requeridos e os bens que pertencem à sociedade Terras de São Vicente, Lda. (em virtude da celebração do contrato de arrendamento rural). 6. Com efeito, na Conclusão do Relatório Pericial apresentado no dia 02-09-2019, o Sr. Perito referiu na pg. 9 que: “Concluindo, o valor de avaliação determinado para o prédio misto denominado “Quinta de S. Vicente”, inscrito na matriz sob o artigo 72, secção H1, é de 1.857.785 (um milhão oitocentos e cinquenta e sete mil setecentos e oitenta e cinco euros). VERBA VALOR (€) Rústico (R-72-H1) 841.000,00€ Urbano (U-539, U-541 e U-543) 915.535,00€ Armazém 101.250,00€ TOTAL 1.857.785,00€“ 7. Porém, logo de seguida, sabendo o Sr. Perito que o armazém pertence à sociedade Terras de São Vicente, Lda., sendo, portanto, um armazém agrícola, referiu também: “O valor do mesmo prédio sem as instalações colocadas pelos requeridos é de [sic] 1.919.735,00€ (um milhão setecentos e cinquenta e seis mil quinhentos e trinta e cinco euros)”. VERBA VALOR (€) Rústico (R-72-H1) 841.000,00€ Urbano (U-539, U-541 e U-543) 915.535,00€ TOTAL 1.756.535,00€“ 8. Nesse relatório, o Sr. Perito também avaliou a parte rústica em questão – onde está plantado o olival das Terras de São Vicente, Lda. – atribuindo o valor de €30.000,00 por hectare. 9. Mas, quanto a esse valor, não distinguiu: ▪ Qual seria o valor da terra (sem olival); ▪ Nem qual seria o valor do olival (“sem terra”) pertencentes à referida sociedade; e, bem assim, ▪ O valor da terra considerando que essa parte rústica está onerada com um contrato de arrendamento. 10. Por conseguinte, os Requeridos, por Requerimento com ref. 1620061, solicitaram ao Sr. Perito que esclarecesse sobre os três referidos pontos. 11. Na sequência do pedido de esclarecimentos, o Sr. Perito apresentou Requerimento com ref. 1731240, datado de 18-3-2020, esclarecendo o seguinte: “O valor atual do terreno com o olival instalado é de €13.500,00, considerando o contrato de arrendamento rural” (vide pg. 2) (negrito e sublinhado nosso) 12. Esclareceu, ainda, que, quanto ao valor do hectare da parte rústica (€30.000,00), o valor atribuído ao terreno seria de 17.000€ e o valor atribuído à plantação (olival), pertencente às Terras de São Vicente, Lda., seria de 13.000€ (vide última pg. do Requerimento). 13. Acontece, porém, que por lapso, os Requeridos, no seu anterior Requerimento, não apontaram correctamente o valor de avaliação da Quinta de São Vicente – tendo trocado o valor de €13.500,00, referido no artigo 11., pelo valor de €17.000,00. 14. Assim, face aos dados acima referidos, os Requerido passam de seguida a calcular o valor da Quinta de São Vicente. 15. Tendo em consideração, ▪ O Relatório Pericial, bem como os subsequentes esclarecimentos; ▪ Nomeadamente o valor indicado como valor da parte rústica tendo em consideração o contrato de arrendamento e também o armazém que pertence à arrendatária, 16. O imóvel foi avaliado pelo Sr. Perito da seguinte forma: Rústico Composto por: Terra (23,5ha*€13.500) €317.250,00 Horta/jardim Casa Principal €94.500,00 Estéril €41.500,00 Área total : 29,0750 hectares TOTAL €453.250,00 Urbano Casa Principal €688.800,00 Restantes edificações à volta da Casa Principal €226.735,00 TOTAL €915.535,00 TOTAL €1.368.785,00 17. O imóvel foi, portanto, avaliado em €1.368.785,00, valor que não inclui o armazém pertencente à sociedade Terras de São Vicente, Lda. e que toma em consideração a realidade jurídica existente (contrato de arrendamento rural) na parte rústica da Quinta de São Vicente. 18. Pelo que não há dúvidas que o valor do imóvel não é de €1.857.785,00, 19. Uma vez que esse valor não toma em consideração que o armazém não pertence nem aos requerentes, nem aos Requeridos, mas sim à sociedade arrendatária, 20. Nem toma em consideração o valor da parte rústica da Quinta de São Vicente que está, de facto, onerado por um contrato de arrendamento. 21. Sendo certo que, segundo o Relatório Pericial o olival e armazém pertencentes às Terras de São Vicente, Lda. foram valorados em €406.750,00. 22. Reiterando o que já foi dito no anterior Requerimento dos Requeridos (incluindo os artigos 1.º a 7.º): 23. Unicamente para efeitos de uma resolução rápida do presente processo, ou seja, para que não se recorra a nova perícia – com as delongas que lhe são inerentes –, os Requeridos consideram que o valor base do imóvel deverá ser de, pelo menos, €1.851.035,00, ou seja, mais €482.250,00 do que o valor de avaliação que resulta do primeiro e único relatório pericial (e subsequentes esclarecimentos). 24. De resto, a majoração do valor base relativamente ao valor da avaliação, conforme se acaba de expor, deverá ser do interesse de todos os comproprietários que almejam receber o maior valor possível – e acima de tudo um valor justo – através da venda do imóvel. 25. Os Requerentes estarão, com certeza, de acordo com o presente valor base de venda, porquanto as várias abordagens negociais feitas pelos Requeridos aos Requerentes não lograram – pelo menos para já – obter sucesso, pelo que a valorização do imóvel será certamente vantajosa para todas as Partes. 26. Seja como for, sem prejuízo do valor que agora se requer que seja o considerado para venda judicial, os Requeridos informam que continuam disponíveis para vender extrajudicialmente as suas quotas-partes na Quinta de São Vicente aos Requerentes (e unicamente aos Requerentes) nos termos das propostas já feitas, ou seja, em condições mais benéficas face às que agora se requerem para a venda a terceiros. I. Olival e Armazém 27. Os Requeridos (entre os quais os sócios da sociedade Terras de São Vicente, Lda.) requerem que, na venda da Quinta de São Vicente, seja considerada a possibilidade de se desonerar a terra (e o respectivo armazém) do contrato de arrendamento rural celebrado e que vigorará até 2031, entregando-se, assim, com a venda, a parte rústica da Quinta de São Vicente (e o armazém) livre do contrato de arrendamento. 28. Para tal, deverá, como contrapartida, ser entregue à sociedade Terras de São Vicente, Lda. o valor de €400.000,00. 29. Esta possibilidade não deverá ser impeditiva de se proceder à venda do imóvel sem incluir os direitos relativos ao olival e armazém, sendo apenas uma faculdade que poderá ser considerada pelos eventuais compradores do imóvel. Termos em que nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exa. se requer que sejam tomados em conta os esclarecimentos agora prestados.”
Foi então proferido, em 17.05.2021, o despacho sob censura, nos termos do qual:
“Nos seus requerimentos de 01-02-2021, com a ref.ª 1912914, e de 26-04-2021, com a ref.ª 1961234, dos requerentes, por um lado, propõem a venda mediante leilão electrónico, não tomando posição concreta sobre o valor base do prédio misto; por outro, opõem-se à pretensão vertida pelos requeridos no seu requerimento de 15-04-2021, com a ref.ª 1953846.
Por seu turno, dos requerimentos dos requeridos de 15-04-2021, com a ref.ª 1953846, e de 29-04-2021, com a ref.ª 31772165, deflui que os requeridos estão de acordo quanto à fixação do valor base do prédio misto em 1.857.785 Euros, porém, reclamam que o armazém e o olival integrados nesse prédio pertencem à sociedade “Terras de São Vicente, Lda.”.
Por isso, quando dizem que “o imóvel foi, portanto, avaliado em € 1.368.785,00, valor que não inclui o armazém pertencente à sociedade Terras de São Vicente, Lda. e que toma em consideração a realidade jurídica existente (contrato de arrendamento rural) na parte rústica da Quinta de São Vicente.” [artigos 17º e 18º do requerimento de 29-04-2021, com a ref.ª 31772165], querem significar, segundo alcançamos, que o prédio misto em causa, desconsiderando o olival e o armazém nele existentes, foi avaliado pelo senhor Perito em 1.368.785 Euros.
Não negam, porém, os requeridos – antes o afirmam expressamente – que o valor global atribuído pelo senhor Perito ao prédio misto sob venda é de 1.857.785 Euros.
Mais declaram os requeridos, no seu requerimento de 15-04-2021, com a ref.ª 1953846 (vide artigo 10º) que “Unicamente para efeitos de uma resolução rápida do presente processo, ou seja, para que não se recorra a nova perícia – com as delongas que lhe são inerentes –, os Requeridos consideram que o valor base do imóvel deverá ser de, pelo menos, €1.851.035,00, ou seja, mais €400.000,00 do que o valor de avaliação que resulta do primeiro e único relatório pericial.”.
Nesta conformidade, pedem os requeridos no seu requerimento de 15-04-2021, com a ref.ª 1953846, que:
a) Se proceda à venda através de uma modalidade adequada às especiais características do imóvel;
b) A fixação do valor de venda pelo valor base de €1.851.035,00;
c) A inclusão, na venda, da possibilidade de se desonerar a terra (parcela de 23,5 hectares) do contrato de arrendamento celebrado com as “Terras de São Vicente, Lda.”.
Para a decisão a proferir, importa ainda tomar em consideração que, no Relatório Pericial apresentado no dia 02-09-2019, com a ref.ª 1590065, o senhor Perito, na página 9, conclui o seguinte: “Concluindo, o valor de avaliação determinado para o prédio misto denominado “Quinta de S. Vicente”, inscrito na matriz sob o artigo 72, secção H1, é de 1.857.785 (um milhão oitocentos e cinquenta e sete mil setecentos e oitenta e cinco euros).
Refira-se que, nas circunstâncias do caso e face à posição das partes, não tem o Tribunal motivos para divergir do juízo pericial formulado pelo senhor Perito. Isto, posto, cumpre decidir.
Comece-se por dizer que os requeridos suscitam questões que não podem ser objecto de apreciação e decisão no âmbito deste litígio.
A questão de saber qual o valor do olival e do armazém existentes no prédio misto sob venda, e bem assim a questão da validade e eficácia do contrato de arrendamento alegadamente celebrado com a sociedade “Terras de São Vicente, Lda.”, que é estranha a estes autos, não têm acuidade para o que ora importa decidir: o valor base do prédio misto a vender e a modalidade de venda.
Mais. É inquestionável que a venda do prédio misto a realizar nestes autos inclua o olival e armazém, aludidos pelos requeridos, porque esses são partes integrantes do mesmo e porque não têm qualquer autonomia jurídica relativamente a ele, cumprindo aqui lembrar o disposto no artigo 204º, nºs 2 e 3, do Cód. Civil.
O direito ao eventual ressarcimento da sociedade “Terras de São Vicente, Lda.” por benfeitorias realizadas no prédio misto (como poderá ser o caso do olival e do armazém) não poderá ser discutido nestes autos, cujo único objecto é a divisão do prédio misto entre requerentes e requeridos e porque não é parte na causa a sociedade “Terras de São Vicente, Lda.”. O mesmo se aplica à questão da validade e eficácia do contrato de arrendamento alegadamente celebrado com a mesma sociedade, o qual, aliás, é objecto de discussão noutra acção judicial.
Pelo exposto, a pretensão dos requeridos de inclusão, na venda, da possibilidade de se desonerar a terra (parcela de 23,5 hectares) do contrato de arrendamento celebrado com a sociedade “Terras de São Vicente, Lda.” carece em absoluto de fundamento legal, no quadroda venda judicial a realizar.
Sem prejuízo poderão os potenciais compradores, querendo, negociar directamente com os interessados uma tal solução para o futuro, só que não tem cabimento legal estabelecer essa solução como condição da venda judicial.
De resto, no despacho de 31-10-2018, com a ref.ª 29917720, já o Tribunal tomou posição sobre a inadmissibilidade legal nesta acção de pedido reconvencional formulado pelos requeridos (onde se inclui, por maioria de razão, quaisquer terceiros que nem são causa nesta acção) de despesas que aqueles alegadamente efectuaram para manutenção do prédiomisto.
No que tange à realização de uma segunda perícia, considerando que os requeridos já declararam que “Unicamente para efeitos de uma resolução rápida do presente processo, ou seja, para que não se recorra a nova perícia – com as delongas que lhe são inerentes –, os Requeridos consideram que o valor base do imóvel deverá ser de, pelo menos, €1.851.035,00, ou seja, mais €400.000,00 do que o valor de avaliação que resulta do primeiro e único relatório pericial.”, dá-se a mesma por prescindida.
Relativamente à modalidade de venda, face à posição dos requerentes e sendo a venda em leilão electrónico a modalidade de venda que foi erigida pelo legislador como preferencial quando esteja em causa a venda de bens imóveis, a venda será determinada nessa modalidade, cfr. artigo 549º, nº 2, e 837º ex vi do artigo 929º, nº 2, do Cód. Proc. Civil.
Com os fundamentos de facto acima expostos e ao abrigo do disposto nos artigos 812º e 837º, 817º, nº 3, e 816º, nº 2, todos do Cód. Proc. Civil, ex vi do artigo 929º, nº 2, do mesmo Código, conjugados com a Portaria nº 282/2013, de 29-08, aplicável por força do artigo 837º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, relativamente à venda do prédio misto situado em Quinta de São Vicente, com a área total de 29,075 HECT, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, constante nas matrizes nº …, secção nº … da Freguesia de Ferreira do Alentejo e Canhestros, nº … da Freguesia de Ferreira do Alentejo e Canhestros, nº … da Freguesia de Ferreira do Alentejo e Canhestros e nº … da Freguesia de Ferreira do Alentejo e Canhestros, DECIDE-SE:
a) NÃO DETERMINAR a realização de segunda perícia para apuramento do valor venal do prédio misto;
b) DETERMINAR como modalidade da venda a venda em leilão electrónico;
c) FIXAR como valor base do prédio misto 1.857.785 Euros(por ser o atribuído pelo senhor Perito ao prédio misto, com todas as partes integrantes, e por não se suscitar oposição das partes a este valor),sendo aceites ofertas de valor igual ou superior a85% desse valor base; e
d) DETERMINAR que não há lugar à formação de lotes.
Indique a secretaria pessoa idónea para desempenhar as funções de Encarregado da Venda, que desde já se nomeia.
Notifique nos termos do disposto no artigo 812º, nº 6, do Cód. Proc. Civil.
(…)”
Os Requeridos, …, não se conformando com o despacho prolatado dele interpuseram recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:
A. “Os Requeridos não se conformam com o teor do despacho que determinou a não realização de segunda perícia e fixou o valor base de venda da Quinta de São Vicente, pelo que vêm recorrer do mesmo.
B. Esta decisão limita os direitos dos Requeridos ao negar a realização de uma segunda perícia, nos termos do artigo 487.º do CPC.
C. Consubstanciando-se numa nulidade processual (artigo 195.º do CPC), há lugar a recurso por ser um despacho de rejeição de meio de prova, nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 644.º do CPC.
D. De acordo com o n.º 1 do artigo 487.º do CPC “qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”.
E. Os Requeridos alegaram fundamentadamente, em diversas ocasiões, as razões da discordância relativamente aos resultados da primeira perícia, nunca tendo o Tribunal levantado quaisquer dúvidas quanto à boa fundamentação do requerido.
F. Logo no requerimento com ref. 1764973, datado de 09.06.2020, os Requeridos vieram requerer ao Tribunal a quo que o Sr. Perito esclarecesse sobre diversas obscuridades e conclusões que não se encontravam fundamentadas.
G. Não tendo o Sr. Perito esclarecido quaisquer uma daquelas dúvidas após pedido de esclarecimentos, vieram os Requeridos, através do requerimento com ref. 1842977, datado de 21.10.2020, requerer que se procedesse a uma segunda perícia, de acordo com o previsto no artigo 487.º do CPC.
H. Para tal fundamentaram devidamente as razões pelas quais discordavam do teor do Relatório Pericial – razões estas relacionadas com a avaliação da parte urbana da Quinta de São Vicente.
I. Posteriormente, na conferência de interessados tida em 10.11.2020, o Tribunal a quo referiu expressamente que seria realizada uma segunda perícia caso se decidisse pela venda judicial do imóvel.
J. O Tribunal a quo levou em consideração, por terem sido devidamente fundamentadas, todas estas dúvidas e discordâncias apresentadas e fundamentadas pelos Requeridos.
K. Com efeito, consta da acta da conferência de interessados o seguinte: “Ora, nos termos do artigo 929º do Cód. Proc. Civil, a presente conferência de interessados destina-se a fazer a adjudicação do prédio sob divisão e, na falta de acordo dos interessados, a determinar a venda da coisa. Só neste último caso – de venda judicial – importará determinar o valor de mercado do prédio para efeitos de fixação do valor de base da venda, nos termos do artigo 812º do Cód. Proc. Civil, cfr. artigo 929º ex vi artigo 549º, nº 2 do Cód. Proc. Civil. Face ao exposto, relega-se para momento ulterior a decisão quanto à realização de uma segunda perícia, conforme requerida.
L. Não obstante, contraditoriamente, e fazendo tábua rasa da legítima e fundada pretensão dos Requeridos e da sua própria decisão vertida em acta de conferência de interessados, o Tribunal a quo proferiu, em 14.01.2021, ref. 31540778, despacho:
“Notifique os Interessados para querendo, no prazo de 10 (dez), se pronunciarem, (i) quanto à modalidade de venda (v.g., venda mediante propostas em carta fechada, por referência à al. a), do nº 1, do artigo 811º, do Cód. Proc. Civil) do prédio objecto da presente acção e, bem assim, (ii) quanto ao valor base dos bens a vender, nos termos e para os efeitos do artigo 812º, nºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil.”.
M. A verdade é que o Tribunal deveria ter ordenado, na própria conferência de interessados ou, pelo menos, no despacho que se seguiu, a segunda perícia, pois o mesmo Tribunal acabou por decidir pela venda judicial do imóvel em causa.
N. Mas, não sendo apreensível a razão, não o fez.
O. Face a esta actuação do Tribunal a quo – e o tempo, entretanto, já decorrido –, os Requeridos nos seus requerimentos com ref. 1953846 e 1973745 (datados de 15.04.2021 e 12.05.2021 respectivamente), apresentaram uma proposta de valor e cálculos que, caso o Tribunal a quo resolvesse aceitar, os Requeridos renunciavam ao direito de se realizar uma segunda perícia.
P. Também aqui, o Tribunal a quo, fazendo tábua rasa da legítima e fundada pretensão dos Requeridos, da sua própria decisão vertida em acta de conferência de interessados e fazendo também tábua rasa das premissas apresentadas pelos Requeridos, no seu despacho com ref. 31816366, datado de 17.05.2021, decidiu:
“NÃO DETERMINAR a realização de segunda perícia para apuramento do valor venal do prédio misto;”.
Q. Fundamentando a decisão da seguinte forma: “No que tange à realização de uma segunda perícia, considerando que os requeridos já declararam que “Unicamente para efeitos de uma resolução rápida do presente processo, ou seja, para que não se recorra a nova perícia – com as delongas que lhe são inerentes –, os Requeridos consideram que o valor base do imóvel deverá ser de, pelo menos, €1.851.035,00, ou seja, mais €400.000,00 do que o valor de avaliação que resulta do primeiro e único relatório pericial.”, dá-se a mesma por prescindida” (sublinhado e negrito nosso).
R. No entanto, a verdade é que os Requeridos não prescindiram da segunda perícia: tê-lo-iam feito caso o Tribunal a quo tivesse aceitado as premissas dos Requeridos.
S. Ora, por um lado, o Tribunal não aceitou os valores, cálculos e premissas sugeridos pelos Requeridos – que, se aceites, tornariam segundo os Requeridos dispensável uma segunda perícia, por outro lado, apesar de não aceitar os valores, cálculos e premissas sugeridos acabou o Tribunal por decidir fixar o valor sem se efectuar uma segunda perícia.
T. E a verdade é que o Tribunal a quo desconsiderou, por completo, a proposta dos Requeridos.
U. Nem tampouco o valor sugerido pelos Requeridos “bate certo” com o valor fixado pelo Tribunal e, mesmo que correspondesse – que não corresponde como é evidente –, ainda assim assentaria numa “formulação jurídica” totalmente distinta da sugerida pelos Requeridos.
V. Por isso não pode, em caso algum, uma condição, que não foi considerada pelo Tribunal a quo, ter como efeito “automático” uma aceitação da avaliação feita pelo Sr. Perito e, portanto, ter-se como prescindida a segunda perícia e aceite a primeira: não foi isto que os Requeridos disseram e não é isso sequer que resulta das premissas apresentadas, isto é, do requerido!
W. Quanto muito, caso o Tribunal entendesse não poder haver lugar a “condições” apresentadas pelos Requeridos, então o Tribunal não teria outra alternativa se não a de ordenar a segunda perícia.
X. Com o devido respeito, é certo que o Tribunal deveria ter, de acordo com o espírito de toda a actuação processual – tanto dos Requeridos como do próprio Tribunal –, ordenado a realização de segunda perícia à parte urbana da Quinta de São Vicente e não, como se verificou, ter decidido de surpresa pela não realização da segunda perícia.
Y. O direito à realização de segunda perícia está expressamente previsto no artigo 487.º do CPC, tendo sido cumpridos todos os requisitos necessários para o seu deferimento e, ademais, o Tribunal a quo nem sequer fundamentou a sua decisão invocando dilação ou impertinência (nem o poderia ter feito!).
Z. Os Requeridos jamais prescindiram da realização de uma segunda perícia, uma vez que as premissas apresentadas pelos Requeridos não foram aceites pelo Tribunal a quo.
AA. Estamos, portanto, na presença de uma nulidade prevista no artigo 195.º do CPC, pois estamos na presença de uma omissão de um ato que a lei prescreve e que pode influir no exame ou na decisão da causa.
BB. Assim impugna-se a decisão do Tribunal a quo quanto à não realização de uma segunda perícia.
CC. Deve, portanto, o Tribunal ad quem mandar ordenar a realização de uma segunda perícia que deverá incidir sobre a parte urbana da Quinta de São Vicente.
DD. Os Requeridos não aceitam – pelas razões invocadas sumariamente em i) e melhor explanadas nos requerimentos atrás mencionados – o valor de avaliação da parte urbana da Quinta de São Vicente.
EE. Pelo que se impugna o valor de €1.857.785,00 que foi fixado como valor base de venda da Quinta de São Vicente.
FF. Devendo o Tribunal ad quem – também por essa razão – ordenar a realização de segunda perícia, por forma a averiguar o real valor da parte urbana da Quinta de São Vicente. Nestes termos requer-se a V. Exas. que julgue procedente o presente recurso, por provado, e, em consonância, ordene: A) A revogação da decisão recorrida. B) A determinação da realização de segunda perícia à parte urbana da Quinta de São Vicente. C) A anulação de todos os actos que tenham sido praticados e que dependam em absoluto desta diligência de instrução. Fazendo-se assim a costumada e tão necessária
JUSTIÇA!”
Os apelados, …, responderam às alegações, pugnando pela confirmação do despacho recorrido e pedindo a condenação dos apelantes por litigância de má-fé, em indemnização nunca inferior a € 2.500,00, e concluíram:
“I. – Mediante requerimentos de 15/04/2021 (Ref.ª CITIUS 1953846) e de 12/05/2021 (Ref.ª CITIUS 1973745), os Apelantes anuíram no valor base de venda do imóvel, “(…) para efeitos de uma resolução rápida do presente processo, ou seja, para que se não recorra a nova perícia – com as delongas que lhe são inerentes (…).”.
II. – Com base na posição processual das partes, o Tribunal a quo proferiu o Despacho recorrido datado de 17/05/2021 (Ref.ª CITIUS 31816366), o qual a) não determinou a realização de segunda perícia para apuramento venal do prédio misto; b) determinou a venda em leilão electrónico como modalidade de venda; c) fixou o valor base do prédio misto de 1.857.785,00€; e, d) determinou que não há lugar á formação de lotes.
III. – Deste Despacho vieram os Apelantes recorrer alegando que o Despacho recorrido é nulo, nos termos do disposto no arts. 195.º e 644.º, n.º 2 do CPC, uma vez que não prescindiram da segunda perícia e impugnaram o valor de €1.857.785,00 que foi fixado como valor base de venda do imóvel.
IV. – Ora, o Princípio da Confiança é um princípio ético fundamental de que a Ordem Jurídica em momento algum se pode alhear.
V - Perante a factualidade constante dos Autos, verifica-se que o Tribunal e até os Apelados, podiam fundadamente confiar que os Apelantes, depois de prescindirem da segunda perícia e de aceitarem o valor base de venda do imóvel, não iriam negar e impugnar os mesmos.
VI. – Em face do exposto, temos por certo que o comportamento processual dos Apelantes, qualificado em termos jurídicos à luz do que acima se expôs, integra um venire contra factum proprium, proibido pelo art.º 334.º do CC; uma vez que,
VII. - O mesmo comportamento ofende de forma clamorosa a Justiça e os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito.
VIII. - É inadmissível e contrária á Boa-Fé processual, a conduta assumida pelos Apelantes, na exacta medida em que trai a confiança gerada nos Apelados e no próprio Tribunal a quo, pelo seu comportamento anterior, confiança essa objectivamente reforçada por mais do que um requerimento apresentado nos Autos pelos Apelantes.
IX. - Ora, tal conduta não pode deixar de merecer a mais incisiva censura ética e jurídica, sendo que nem se estará perante uma situação de “mera” negligência grosseira, mas sim de dolo na alteração consciente dos factos.
X. – Impendendo sobre as Partes o dever de pautar a sua actuação processual por regras de conduta conformes á boa-fé (art.º 8.º CPC), é evidente que os Apelantes litigam de má-fé, fazendo do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de, pelo menos, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão – art.º 542.º, n.º 2, al. d) do CPC -, facto que não pode ser alheio á Justiça, nomeadamente do caso concreto.
XI. – Devem, por isso, os Apelantes ser condenados em indemnização, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 543.º do CPC, que o Tribunal considere adequada à conduta processual em apreço, a qual não deverá nunca ser inferior a 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros).
Termos em que, nos melhores de Direito e sempre com o mui Douto suprimento de V. Exas., deverá o recursointerposto ser indeferido, por não provado, mantendo-se a Decisão recorrida.
Mais deverá a conduta processual abusiva dos Apelantes, ser alvo da maior censura Ética e Jurídica, devendo estes ser condenados como litigantes de má-fé, em indemnização a arbitrar pelo Tribunal, mas nunca inferior a 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros).
Assim decidindo farão V. Exas. a acostumada
JUSTIÇA!”
Os apelantes responderam ao pedido de condenação por litigância de má-fé, pugnando pelo seu indeferimento.
Providenciados os vistos, em simultâneo, por meios electrónicos, e nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir II. Objecto do Recurso
Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas, cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC).
As questões a decidir resumem-se a saber:
- se deve ser deferida a requerida realização da segunda perícia;
- se os apelantes devem ser condenados como litigantes de má fé; III. Fundamentação 1.De Facto
Os factos pertinentes à resolução do presente recurso constam do antecedente relatório. 2.Do mérito do recurso 1.ª questão solvenda
“Segundo o artigo 2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a todo o direito, excepto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo.
Atenta essa relação forçosa entre o modo como a acção é configurada e as necessidades que o objectivo do reconhecimento do direito coloca, num qualquer processo cível só podem existir dois fundamentos para recusar à parte a produção de um meio de prova pretendido pela mesma: a manifesta falta de interesse do meio de prova para a demonstração dos factos relevantes (porque o facto que o meio de prova visa demonstrar já se encontra provado por outro meio de prova produzido ou porque o facto nenhum interesse tem para a decisão do litígio); a violação das regras de direito probatório formal que regulam a admissão e produção desse meio de prova.
A partir do momento em que ao juiz não é consentido que se abstenha de decidir quando não se sinta suficientemente elucidado sobre os factos relevantes e que existem regras relativas ao ónus da prova que definem contra qual das partes o tribunal deve decidir em caso de dúvida sobre a realidade de um facto relevante, é conatural à natureza equitativa que todo o processo deve assumir a atribuição às partes do mais amplo direito à produção da prova, balizado apenas pela necessidade de proteger direitos legítimos (v.g. proibições de prova, direito ao sigilo) ou pela absoluta falta de interesse da diligência probatória pretendida.
É essencial a essa natureza equitativa do processo que não sejam colocados às partes obstáculos excessivos ao livre exercício do esforço probatório, como sucede se discordando a parte dos resultados de um determinado meio de prova, lhe for vedado, sem mais, produzir um novo meio de prova apesar de nada permitir concluir antecipadamente pela irrelevância desse novo meio de prova.
Por outro lado, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, designadamente decidir questões de facto sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
No caso da decisão relativa a questões de facto, a actividade decisória do juiz é antecedida da actividade instrutória: o juiz decide em função da prova produzida e depois da prova produzida. Nessa medida, ao contrário da decisão relativa às questões de direito, a observância material do principio do contraditório antes da decisão das questões de facto não se basta com o permitir às partes tomar posição sobre os factos, oralmente ou por escrito, mas exige, em acréscimo, o permitir às partes actuar e interferir com a própria actividade probatória. Por outras palavras, o contraditório exige que o tribunal admita a parte a produzir prova para demonstrar ou tornar duvidoso o facto que o tribunal irá decidir ou sobre o qual se irá formar a sua convicção (facto instrumental).
Lebre de Freitas in Introdução ao Processo Civil – conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3.ª edição, pág. 124 e seguintes, ensina que “por princípio do contraditório entendia-se tradicionalmente a imposição de que: a) formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão; b) oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar. Assim se garantia o desenvolvimento do processo em discussão dialéctica, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações e provas feitas pelas partes. A esta concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gebör germânico (), entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igual influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo”.
Mais à frente (folhas 128) este autor acrescenta que “no plano da prova, o princípio do contraditório exige: a) que às partes seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa; b) que lhes seja consentido faze-lo até ao momento em que melhor possam decidir da sua conveniência, tidas em conta, porém, as necessidades de andamento do processo; c) que a produção ou admissão da prova tenha lugar com audiência contraditória de ambas as partes; d) que estas possam pronunciar-se sobre a apreciação das provas produzidas por si, pelo adversário ou pelo tribunal. A primeira derivação deste direito à prova compadece-se com a limitação razoável do número de testemunhas a ouvir por cada parte, que a exigência de economia processual justifica; mas é mais dificilmente conciliável com a atribuição à discricionariedade judicial da admissão de certo tipo de meio de prova, como acontece com a inspecção judicial (art. 612-1), ou com a limitação a um pequeno número das testemunhas a inquirir por cada facto.”
A folhas 129, na nota 12, este autor informa que “no tribunal constitucional federal alemão fixou-se a jurisprudência no sentido de só a admissão de provas manifestamente irrelevantes poder ser recusada, pois se entende que as partes têm o direito, não só à proposição, mas também à admissão das provas relevantes para o objecto da causa (…). Nesse juízo de manifesta irrelevância não devem entrar considerações derivadas duma valoração da prova (ainda não produzida) apressadamente feita à priori (…). O Supremo Tribunal Federal (…) admitiu-o quando o juiz já estivesse convencido da realidade do facto que a parte pretende provar com o meio de prova, recusando-o apenas na hipótese inversa de convicção de que o facto não se verificou (…); mas, em decisão mais recente (de 2002), negou em qualquer caso, a admissibilidade desse juízo prematuro (…)”. É esse igualmente o nosso entendimento.”[1]
Deixado este excurso sobre os princípios básicos que devem orientar a interpretação e aplicação das normas relativas ao direito probatório formal, importa, pois, debruçarmo-nos sobre a segunda perícia.
Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de dez dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (art.º 487.º, n.º 1 do CPC), podendo o tribunal ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que julgue necessária ao apuramento da verdade (art.º 487.º, n.º 2 do CPC), tendo a segunda perícia por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta (art.º 487.º, n.º 3 do CPC).
Note-se que a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo Tribunal (art.º 489.º do CPC), não havendo qualquer prevalência de uma sobre a outra, sendo os resultados de ambas valoradas segundo a livre convicção do julgador, sendo a segunda perícia mais um meio de prova que servirá ao tribunal para melhor esclarecimento dos factos.[2] Assim, a segunda perícia visa fornecer ao tribunal novo elemento de prova relativo aos factos que foram objecto da primeira, cuja indagação e apreciação técnica por outros peritos (art.º 488.º, al. a) do CPC) pode contribuir para a formação duma mais adequada convicção judicial.
“O n.° 3 do art.º 589.° (art.º 487.º, n.º 3 do CPC vigente) do Código de Processo Civil, ao referir que a segunda perícia se destina a corrigir a eventual inexactidão dos resultados da primeira perícia, compreende qualquer inexactidão que seja relevante ao nível dos resultados da perícia e possa influir no juízo de avaliação do tribunal, e tanto abrange as inexactidões verificadas ao nível da fundamentação como as relativas à percepção dos peritos ou às conclusões a que chegaram com base nos seus conhecimentos especializados.
O que a lei pretende com a realização da segunda perícia é que sejam dissipadas quaisquer dúvidas sérias que tenham ficado a subsistir da primeira perícia, sobre a percepção ou apreciação dos factos investigados, com relevância na decisão sobre o mérito da causa.
O que justifica a segunda perícia é a necessidade ou a conveniência de submeter à apreciação de outro perito ou peritos os factos que já foram apreciados. Parte-se do princípio que o primeiro perito ou os primeiros peritos viram mal os factos ou emitiram sobre eles juízos de valor que não merecem confiança, que não satisfazem; porque não se considera convincente o parecer obtido na primeira perícia é que se lança mão da segunda.
Condição primeira do deferimento do requerimento de realização de segunda perícia, a sua fundamentação, através, naturalmente, da alegação, pelo requerente, das razões da sua discordância relativamente ao relatório apresentado (art.º 589 n.º 1 do CPC).”[3].
Só é, pois, admissível uma segunda perícia se, quem a requerer, explicitar as suas discordâncias em relação à primeira perícia, apresentando ainda as razões – que podem reportar-se a factos que a primeira perícia devesse ter considerado e haja omitido ou não tenha esclarecido suficientemente - pelas quais entende que o resultado apresentado na mesma deveria ser diferente,[4] ou seja, deverá indicar os motivos que conduziriam a um diferente resultado, o que bem se percebe se tivermos em conta que, diferentemente da reclamação contra o relatório pericial, visa-se, por intermédio da segunda perícia, obter um resultado diferente daquele a que se chegou anteriormente, por se considerar este inexacto (cfr. n.º 3 do art.º 487.º do CPC).
Como se afirma no Ac. do STJ de 25.11.2004[5], “[a] expressão adverbial "fundadamente", significa precisamente que as razões da dissonância tenham que ser claramente explicitadas, não bastando a apresentação de um simples requerimento de segunda perícia. Trata-se, no fundo, de substanciar o requerimento com fundamentos sérios, que não uma solicitação de diligência com fins dilatórios ou de mera chicana processual. E isto porque a segunda perícia se destina, muito lógica e naturalmente, a corrigir ou suprir eventuais inexactidões ou deficiências de avaliação dos resultados a que chegou a primeira.”
Trata-se da emissão de um segundo juízo pericial, que tem por objecto a averiguação dos mesmos factos (art°s. 487.°, n.º 3 e 488.° do CPC).
É, no fundo, como decorre do art.° 489.º do CPC, “uma prova a mais, que servirá ao tribunal para melhor esclarecimento dos factos”, ou seja, uma prova adicional facultada pela lei às partes.”
A realização da segunda perícia, a requerimento das partes, não se configura como discricionária, pressupondo que a parte alegue, de modo fundamentado e concludente, as razões porque discorda do relatório pericial apresentado, exigindo-se que a quem a requer que explicite os pontos em que se manifesta a sua discordância do resultado atingido na primeira, com as razões porque entende que esse resultado devia ser outro.[6]
Esta exigência de fundamentação imposta às partes que requeiram a segunda perícia decorre de duas ordens de razões: a primeira, de natureza processual, ou seja, impedir que seja utilizada como "mero expediente dilatório" ou "mera chicana processual"; a segunda, de natureza substantiva, apontar e precisar as razões da discordância com o resultado da primeira perícia, as quais não podem deixar de incidir sobre eventuais inexactidões, insuficiências ou contradições de que padeça a primeira perícia, atento o disposto no n.º 3 do art. 487.º do Código de Processo Civil [7].
“E o objetivo a atingir com a exigência de fundamentação das razões de discordância é, desde logo, evitar segundas perícias dilatórias, exigindo-se, para tanto, à parte que concretize os pontos de facto não suficientemente esclarecidos na primeira perícia, enunciando as razões por que entende que o resultado da perícia deveria ser diferente. A parte tem de indicar os pontos de discordância (as inexatidões a corrigir) e justificar a possibilidade de uma distinta apreciação técnica. Não cabe ao tribunal aprofundar o bem ou o mal fundado da argumentação apresentada, sendo que só a total ausência de fundamentação constitui razão para indeferimento do requerimento para a realização da segunda perícia (RP 10-7-13, 1357/12 e RE 18-9-12, 4162/09). Fundamentando o requerente as razões da sua discordância face ao resultado da primeira perícia, a lei não permite ao juiz uma avaliação de mérito da argumentação apresentada como suporte da divergência, devendo o juiz determinar a realização da segunda perícia, desde que conclua que a mesma não tem caráter impertinente ou dilatório (RP 11-1-16, 4135/14) - António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág 546-547 -.
O objetivo a alcançar com a exigência de fundamentação das razões de discordância é evitar segundas perícias desnecessárias, inúteis e dilatórias, exigindo a lei, para o evitar, a especificação, a concretização, dos pontos de facto não cabalmente esclarecidos na primeira perícia e a indicação das razões do entendimento de dever o resultado da perícia ter sido diferente, tendo o requerente de indicar os pontos de discordância, isto é, as inexatidões a corrigir, e justificar a possibilidade de uma diversa apreciação técnica.”[8]
“Como vimos, o n.º 1 do artigo 487.º do novo Código de Processo Civil exige da parte requerente da segunda perícia que alegue fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado. A exigência legal consiste, pois, no dever de a parte fundamentar o seu requerimento, não lhe basta pretender a realização e requerer este novo meio de prova, para obter a sua realização é necessário que exponha os motivos pelos quais discorda das conclusões do relatório da primeira perícia, não somente que manifeste a sua discordância mas ainda que esclareça o tribunal dos motivos pelos quais não concorda com aquelas conclusões, das razões pelas quais entende que as respostas deverão ser diferentes.
Nessa fase, o requerente não tem de convencer o tribunal de que novos peritos chegarão à resposta que ambiciona ou que é provável que isso suceda. Em qualquer circunstância serão os peritos a produzir o relatório pericial e a confirmar ou infirmar o que o requerente pretende. Ao requerente basta que exponha com objectividade as razões (os fundamentos) pelas quais entende que o resultado da peritagem pode ou deve ser diferente.
A avaliação que cabe ao tribunal fazer não é sobre a viabilidade ou probabilidade de se alcançar o resultado desejado pelo requerente, mas somente sobre se o requerente expôs razões bastantes para, no pressuposto de que as mesmas poderão vir a ser acolhidas por peritos, se alcançar um resultado diferente. O que significa que para decidir sobre o requerimento não cabe ao tribunal analisar se existem fundadas razões para o resultado da perícia ser diferente, mas apenas se a parte expôs, de forma fundamentada (circunstanciada, explicada), as razões para entender que isso pode acontecer.
Na apreciação do requerimento de realização de segunda perícia o juiz não deverá apreciar o mérito da argumentação técnica do requerente, confrontando-o com o relatório pericial apresentado, e decidindo pela admissão ou rejeição em função do resultado dessa apreciação; ao invés, sempre que conclua que não se verifica a impertinência ou a dilatoriedade do requerimento, deverá permitir que novos peritos apreciem a argumentação técnica do requerente, no confronto com o relatório contestado e a elaborem um segundo relatório pericial, que poderá, ou não, acolher a argumentação divergente.
É certo que o n.º 3 da norma estabelece que a nova perícia se destina a corrigir a eventual inexactidão dos resultados da primeira, parecendo querer dizer com isso que a segunda perícia pressupõe que a primeira esteja inexacta. Todavia, como anotam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista, pág. 599, nota 1, “afirmando que o segundo arbitramento se destina a corrigir a eventual inexactidão dos resultados a que conduziu o primeiro, o artigo 609.º, 2, limita-se a apontar a principal razão justificativa do pedido ou da determinação do segundo arbitramento, sem pretender, de modo nenhum, significar que se trate da sua única e exclusiva finalidade”. No texto, estes autores assinalam que “a finalidade do segundo arbitramento abrange a possibilidade, não só de corrigir a eventual inexactidão (ou deficiência) das percepções dos peritos ou das conclusões baseadas nos seus conhecimentos especializados, mas também de obter uma apreciação ou justificação diferente da emitida pelos intervenientes na perícia anterior. A parte interessada no segundo arbitramento pode discordar do resultado da perícia efectuada, como pode apenas considerar insuficiente a fundamentação ou justificação do laudo emitido, receando que ele não seja capaz de persuadir o tribunal”.
A ser assim, como parece ser, a alteração legislativa posterior ao comentário destes autores tem um significado claro: agora as partes já não podem requerer a segunda perícia apenas por considerarem insuficiente a fundamentação ou justificação do laudo emitido, caso em que poderão sim pedir esclarecimentos aos peritos ou que estes complementem o seu relatório em dado aspecto, apenas podem requerê-la com fundamento da discordância do resultado da perícia efectuada. Como quer que seja, uma vez que somente se forem outros peritos a pronunciarem-se sobre a matéria será possível concluir se o primeiro relatório é exacto ou não, o tribunal não pode recusar o requerimento com base em estar indemonstrado que este relatório padeça de inexactidão.
Como se afirma no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.10.2010, Teles Pereira, in www.dgsi.pt, “II – Constitui uma alegação fundada das razões da discordância com o resultado dessa primeira perícia (…) a crítica dirigida à fundamentação das asserções presentes na primeira perícia; III – Tal crítica pode traduzir-se numa imputação de falta, insuficiência, ou mesmo de pouca clareza ou de inconsistência, dirigida à fundamentação do juízo pericial expresso na primeira perícia, sendo que em qualquer destes casos, existindo uma alegação fundamentada de razões de discordância com a primeira perícia, haverá que realizar a segunda perícia.”.
Na fundamentação deste Acórdão afirma-se com inteiro acerto o seguinte: «Importará ainda ponderar, constituindo um elemento interpretativo particularmente relevante, o sentido significativo primordial da prova pericial. Esta, com efeito, “[…] tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem […]” [artigo 388º do Código Civil (CC)], sendo que a respectiva força probatória é fixada e apreciada livremente pelo tribunal (artigos 389º do CC e 591º [actualmente art.º 489.º] do CPC). Ora, este elemento – livre apreciação – deve ser entendido, colocando uma particular ênfase no elemento fundamentação das asserções fornecidas ao tribunal por quem é técnico de um determinado ramo do saber e, por isso, efectua (funciona como) a “ponte” entre o tribunal (o juiz) e esse saber. Neste caso, dizíamos, o elemento “livre apreciação” deve ser entendido por referência à ideia de motivação técnica e racional (a fundamentação de que aqui se fala), sendo que neste sentido, como refere Jordi Ferrer Beltrán, “[…] a livre valoração da prova é livre só no sentido de não estar sujeita a normas jurídicas que predeterminem o resultado dessa valoração”, já que “[a] operação consistente em julgar o apoio empírico que um conjunto de elementos de julgamento aportam a uma hipótese, está sujeita aos critérios gerais da lógica e da racionalidade”. E pode dizer-se a este respeito – e continuamos a citar o mesmo Autor –, que “[…] esse apoio empírico propiciará um grau de corroboração que, como assinalava Popper, nunca será absolutamente conclusivo, mas, como também advertia [Popper], «embora não possamos justificar uma teoria […], podemos, por vezes, justificar a nossa preferência por uma determinada teoria sobre outra; por exemplo, se o seu grau de corroboração for maior»”[..].”[9]
Revertamos ao caso dos autos.
No caso em apreço, foi determinada a realização de perícia para ser determinado o valor do imóvel que é objecto mediato da presente acção de divisão de coisa comum. Irresignados com o resultado pericial e com os esclarecimentos prestados, os recorrentes requereram a realização de segunda perícia (req. ref. 36876230, de 21.10.2020).
Porém e no decurso da tramitação dos autos, declararam que, “unicamente para efeitos de uma resolução rápida do presente processo, ou seja, para que não se recorra a nova perícia – com as delongas que lhe são inerentes –, os Requeridos consideram que o valor base do imóvel deverá ser de, pelo menos, €1.851.035,00, ou seja, mais € 400.000,00 que o valor de avaliação que resulta do primeiro e único relatório pericial”, não sem antes explicitarem que o imóvel, não levando em consideração o valor do olival e do armazém, foi avaliado, de acordo com o relatório pericial, em € 1.451.035,00 (req. ref. 38554205, de 15.04.2021).
A Mm.ª juíza a quo determinou a notificação dos RR./Apelantes para esclarecerem a “sua proposta de venda quanto ao valor base de venda”, “porquanto o valor atribuído ao prédio sob venda, a “Quinta de São Vicente”, pelo senhor perito foi de 1.857.785 Euros (…), sendo que tal valor supera a proposta dos requeridos” (cfr, despacho de 28.04.2021, ref. 31749044). Na sequência de tal notificação, os RR./Apelantes esclareceram, em 12.05.2021 (req. ref. 38846343) que, por lapso referiram que o imóvel, excluindo o valor do olival e do armazém, fora avaliado em € 1.451.035,00 quando tal avaliação foi de € 1.368.785,00, pelo que reiteram que “unicamente para efeitos de uma resolução rápida do presente processo, ou seja, para que não se recorra a nova perícia – com as delongas que lhe são inerentes –, os Requeridos consideram que o valor base do imóvel deverá ser de, pelo menos, €1.851.035,00, ou seja, mais € 482.500,00 do que o valor de avaliação que resulta do primeiro e único relatório pericial (e subsequentes esclarecimentos)”, não sem antes explicitarem que o imóvel, não levando em consideração o valor do olival e do armazém, foi avaliado pelo Senhor Perito em € 1.368.785,00.
O despacho recorrido considerou que os recorrentes concordaram que o “valor global atribuído pelo senhor Perito ao prédio misto sob venda é de 1.857.785 Euros”, pelo que se entendeu que prescindiram da realização da segunda perícia, tendo-se indeferido, por isso, a sua realização.
Como se colhe do quadro fáctico, os recorrentes apenas admitiram não manter a realização da segunda perícia por si requerida caso se fixasse o valor base de venda do imóvel no montante de € 1.851.035,00. Tal valor corresponde, no seu entendimento, à majoração, em € 482.250,00 do valor atribuído à globalidade do imóvel, mas retirados os valores atinentes ao olival e ao armazém, instalados na parte rústica que se acha arrendada a terceiro, ou seja, retirado o valor global de € 406.750,00, correspondente ao valor do armazém (€ 101.250,00) e ao valor do olival (€ 305.500,00).
É, pois, manifesto, que os apelantes não concordaram com o valor global de € 1.857,785,00, estando ali incluindo o valor do armazém e do olival, sendo certo que a diferença de valores assenta na consideração, pelo despacho recorrido, do valor global do prédio a dividir, o que equivale por dizer que o mesmo teve em conta a parcela arrendada.
Refira-se, que a questão de saber se o valor global do imóvel deve ou não compreender a valia reconhecida à parte rústica é manifestamente alheia ao objecto do recurso.
No entanto, sempre se dirá que, claramente, não se verifica o pressuposto em que os recorrentes - benevolamente e sopesando as delongas a tal inerentes - entenderam sujeitar a dispensa da realização de uma segunda perícia, qual seja a fixação do valor do imóvel com exclusão do olival e do armazém implantados naquela parte rústica e com a aludida majoração.
Aqui chegados, importa, pois, verificar se os apelantes no requerimento para realização da segunda perícia alegaram fundadamente as razões e decidir se deve ter lugar a segunda perícia.
Resulta dos autos que a mesma foi requerida no prazo de 10 dias após os últimos esclarecimentos prestados pelo Exmo. Sr. Perito antes nomeado. Daí que, em face do disposto no n.º 1 do art.º 487.º do CPC, se deva concluir pela sua tempestividade[10].
No requerimento em que foi formulado o pedido de segunda perícia, os recorrentes expressam, ao longo de 40 artigos, as razões pelas quais dissentem do resultado pericial alcançado, colocando fundamentadamente em causa a consistência e a valia da análise pericial e discorrendo sobre as deficiências e lacunas e o modo como influíram na fixação do valor global do imóvel, em particular, e sobretudo, da casa principal.
Por isso, torna-se claro que a impetrada emissão de um segundo juízo pericial corresponde a um interesse sério e fundado dos reclamantes, ou seja, os apelantes indicaram os motivos concretos da discordância em relação aos resultados da primeira perícia (art.º 589.º, n.º 1 do CPC) e essa discordância surge bem explicita no requerimento que, em tempo, os ora apelantes apresentaram.
A nosso ver, portanto, os recorrentes invocaram fundadamente razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado, justificando-se em absoluto a realização de uma segunda perícia.
Na verdade, não cabe ao tribunal aprofundar o bem ou o mal fundado da argumentação apresentada, sendo que só a total ausência de fundamentação constitui razão para indeferimento do requerimento para a realização da segunda perícia. Fundamentando o requerente as razões da sua discordância face ao resultado da primeira perícia, a lei não permite ao juiz uma avaliação de mérito da argumentação apresentada como suporte da divergência, devendo o juiz determinar a realização da segunda perícia, desde que conclua que a mesma não tem carácter impertinente ou dilatório[11].
Vale isto por dizer que não cabendo ao Tribunal aprofundar o bem (ou mal) fundado da argumentação apresentada, pode, ainda assim, indeferir o requerimento com fundamento no carácter impertinente ou dilatório da segunda perícia [12].
“Aliás, se relativamente à primeira perícia e face ao estatuído no art.º 476.º n.º 1 e 2 do CPC, o juiz pode indeferir o requerimento por a diligência ser impertinente ou dilatória e indeferir questões suscitadas pelas partes por desnecessárias, inadmissíveis ou irrelevantes, nenhum sentido faria que o não pudesse fazer, com a mesma amplitude em relação a outra perícia (a segunda), que verdadeiramente é repetição, total ou parcial, da primeira, que tem por objeto a averiguação das mesmas questões de facto sobre que incidiu a primeira e se destina a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta, regendo-se a segunda pelas disposições aplicáveis à primeira (art. 488º).
E uma diligência de prova será impertinente (devendo, por isso, ser indeferida) se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa (Ac. da RG de 17.12.2019, proferido no proc. n.º 21/16.1T8VPC-B, acessível em www.dgsi.pt) e, mais ainda, se nem de questão de facto se tratar mas mera questão de direito ou se a perícia não for o meio próprio para provar certo facto.
É impertinente ou dilatória a perícia que não respeita a factos condicionantes da decisão final ou que, embora a eles respeitando, o respetivo apuramento não depende de prova pericial, por não estarem em causa os conhecimentos especiais que aquela pressupõe[13], sendo que o que se pretende do perito é que realize uma objetiva observação técnica do objeto da perícia e relate, no relatório final apresentado, o resultado dessa observação, devendo ser dela afastadas questões jurídicas, opiniões e avaliações subjetivas, suscetíveis de influenciar a livre convicção do julgador.”[14].
Na espécie, estando reunidos os requisitos exigidos pelo art.º 487.º, n.º 1 do CPC e não se vislumbrando o carácter impertinente e/ou dilatório da segunda perícia, devia esta ter sido admitida.
Sem embargo, entendem os apelados que, considerando-se, como se acabou de considerar, que os apelantes haviam fundadamente requerido a realização da segunda perícia, estes actuaram em “manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum propium”, porquanto, tendo prescindido da segunda perícia “agora, em sede recursiva, alegam e afirmar, em sentido claramente contraditório que “(…) os Requeridos jamais prescindiram da segunda perícia (…)”
Há, pois, que indagar se, não obstante a verificação dos pressupostos para que seja ordenada a realização da segunda perícia, os apelantes, ao interporem o presente recurso, exerceram uma posição jurídica contrária a um comportamento assumido anteriormente nos autos, violando o princípio da confiança e que determine a “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa-fé em sentido objectivo”
Alegam os apelados que os apelantes “actuaram em manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium (…) que informaram o tribunal a quo que “Unicamente para efeitos de uma resolução rápida do presente processo, ou seja, para que não se recorra a nova perícia – com as delongas que lhe são inerentes -, os Requeridos consideram que o valor base do imóvel deverá ser de, pelo menos, € 1.851.035,00 (…)”, permitindo que o tribunal proferisse a decisão sob censura, “para que depois, em sede de recurso, venham alegar que jamais prescindiram da segunda perícia e venham impugnar o valor atribuído ao imóvel, no qual anteriormente anuíram”, quando “perante estes factos, (…) o Tribunal e até os Apelados, podiam fundadamente confiar que os Apelantes, depois de prescindirem da segunda perícia e de aceitarem o valor base de venda do imóvel, não iriam negar e impugnar os mesmos.”
Terminaram, referindo que: “É inadmissível e contrária à Boa-Fé processual, a conduta assumida pelos Apelantes, na exacta medida em que trai a confiança gerada nos Apelados e no próprio Tribunal a quo, pelo seu comportamento anterior, confiança essa objectivamente reforçada por mais do que um requerimento apresentado nos Autos pelos Apelantes.”
Vejamos.
Expressa a lei ser ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art.º 334.° do Cod. Civil).
Reporta-se, pois, o referido normativo à existência de um direito substantivo exercido com manifesto excesso em relação aos limites decorrentes do seu fim social ou económico, em contrário da boa-fé ou dos bons costumes, proibindo essencialmente a utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de interesses exorbitantes do fim que lhe inere.
O fim económico e social de um direito traduz-se, essencialmente, na satisfação do interesse do respectivo titular no âmbito dos limites legalmente previstos; e os bons costumes são, grosso modo, o conjunto de regras de comportamento relacional, acolhidas pelo direito, variáveis no tempo e, por isso, mutáveis conforme as concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade de referência em determinados tempo e espaço.
O seu funcionamento, como excepção peremptória imprópria de direito adjectivo que é, não depende da sua consciencialização por parte do respectivo sujeito. O entendimento da jurisprudência, no seguimento da doutrina, tem sido no sentido de que este instituto funciona como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido ético jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica.
Na configuração da figura do abuso de direito, o art.º 334.º do Cod. Civil consagra uma concepção objectiva ou objectivista: não só tem o excesso cometido no exercício do direito de ser manifesto, como não é necessária a consciência do abuso, isto é, a consciência, por parte do agente, da contrariedade do seu acto à boa-fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido.
A figura do abuso de direito assenta, essencialmente, no princípio da confiança, do qual resulta que “as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente, no exercício dos direito e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”[15].
A boa-fé vale aqui como um princípio normativo, pelo qual todos devem actuar como pessoas de bem, num quadro de honestidade, correcção, probidade e lealdade, de forma a não defraudar as legítimas expectativas e a confiança gerada nos outros[16]
Com efeito, o princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia.
Antunes Varela refere que “para que haja lugar ao abuso de direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exercer o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”[17].
Este instituto está, pois, talhado para obstar a situações em que por impossibilidade do legislador de previsão de situações marginais em que é inadequada a aplicação da lei, ou por negligência daquele na elaboração de leis, ou ainda por ocorrência de circunstâncias imprevisíveis aquando da elaboração da lei, a aplicação estrita desta conduziria a resultado manifestamente violador do mais elementar sentido de justiça, entendida esta segundo um critério social dominante.
Esta figura complexa do abuso de direito é, assim, uma válvula de segurança, uma de várias cláusulas gerais com que o legislador pode obtemperar a injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, a injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido.
“A figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa-fé e o sentimento de justiça em si mesmo”. [18]
“No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte em função do modo como antes actuara”[19].
“(…)
Sabido, porém, que uma das funções essenciais do direito é a tutela das expectativas das pessoas, facilmente se intui que por si só o negócio jurídico, sob pena de cometimento de flagrantes injustiças em muitas situações concretas, não pode constituir o único modo de protecção das expectativas dos sujeitos na não contradição da conduta da contraparte; casos há em que, ainda antes do limiar da vinculação contratual, o agente deve ser obrigado a honrar as expectativas que criou, podendo exigir-se-lhe, então, que actue de forma correspondente à confiança que despertou; casos, isto é, em que não pode venire contra factum proprium. A delimitação de tais casos obrigou a doutrina e a jurisprudência a terem que precisar com o máximo de rigor possível os pressupostos da proibição desta modalidade do abuso, desde logo por se ter a noção de que este instituto, construído, todo ele, a partir da cláusula geral da boa-fé, apenas deve funcionar em situações limite, como verdadeira válvula de segurança e de escape do sistema, e não como uma tal ou qual panaceia de que se lança mão sempre que a aplicação das regras de direito estrito pareça ser insuficiente para assegurar a solução justa do caso. Importa evitar a todo o custo, como escreveu o autor atrás citado, “a utilização da boa-fé como um “nevoeiro” que serve para tudo” (…).
Assim, há desde logo um primeiro e fundamental pressuposto a considerar: a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. Em segundo lugar exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a actual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente. Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa-fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente. Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente (Neste exacto sentido, Menezes Cordeiro, “Contrato Promessa – Art.º 410º, nº 3, do Código Civil – Abuso do Direito - Inalegabilidade Formal”, ROA, Julho de 1998, II, pág. 964 (que se seguiu de muito perto no texto).
Por último, exige-se que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjectiva objectivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano. Os pressupostos enumerados não podem em caso algum ser aplicados automaticamente pois, como observa o autor que vimos a acompanhar, o venire contra factum proprium é, em última análise, “uma técnica que não dispensa, e antes pressupõe, um controlo da adequação material da solução, com uma valoração global de todos os elementos à luz do ponto de vista da tutela da confiança legítima” (Obra e loc. citados, pág. 302); por isso, todos aqueles pressupostos “deverão ser globalmente ponderados, em concreto, para se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo” (…).”[20]
Revertendo ao dos autos, adianta-se, com o respeito sempre devido, que não assiste razão aos apelados.
Do excurso, é de meridiana clareza que os recorrentes não excederam os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, frustrando as legitimas expectativas dos recorridos (ou do tribunal a quo), não se verificando nenhuma situação que permita concluir-se que os apelantes abusaram do direito.
Na verdade, não se antolha que a conduta dos RR../apelantes tenha ultrapassado os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim social ou económico do seu direito, não se vislumbrando qualquer um dos comportamentos típicos abusivos (venire contra factum proprium, inalegabilidade, suppressio, tu quoque e desequilíbrio).
De resto, interpretando os requerimentos apresentados pelos RR., acima transcritos, à luz das regras contidas nos art.ºs 236.º e ss. do Cod. Civil (ex vi art.º 295.º do mesmo diploma), nem sequer se pode considerar que os recorrentes “estão de acordo quanto à fixação do valor base do prédio misto em 1.857.785 Euros”.
Daí que, ao invés do que alegam os recorridos, não se detecte, na conduta processual dos recorrentes um qualquer comportamento abusivo – na modalidade de venire contra factum proprium – que, à luz dos princípios inscritos no art.º 334.º do Cod. Civil, legitime solução diversa.
Por esse motivo, é de ter como espúria a invocação do sobredito preceito.
Na confluência destas considerações, impõe-se concluir pela revogação do despacho recorrido.
Deve-se, contudo, notar que não se incorreu em qualquer nulidade processual, já que, como é de meridiana clareza, a realização da segunda perícia não é uma diligência legalmente imposta – não foi omitido um acto ou uma formalidade que a lei prescreva -. Ademais, mesmo a verificar-se a omissão de um acto ou de uma formalidade prescritas na lei, que na espécie não ocorreu, como vimos, até se poderia questionar se o seu indeferimento influiria na decisão da causa, atento o escopo finalístico da acção de divisão de coisa comum (cfr. n.º 1 do art.º 1413.º do Cod. Civil e art.º 925.º do CPC). Por essas razões, desatende-se a arguição em apreço.
Não cabendo ao Tribunal aprofundar o bem (ou mal) fundado da argumentação apresentada[21] e correspondendo o requerido ao propósito subjacente à determinação pericial do valor do imóvel, não se verificando que a segunda perícia seja impertinente e/ou dilatória, defere-se a realização da segunda perícia, cabendo ao tribunal a quo a designação do perito (cfr. al. b) do art.º 488.º do CPC), com observância das regras constantes da al. a) mesmo preceito.
Destarte, merece provimento o recurso. 2.ª questão solvenda
Os apelados requereram a condenação dos apelantes como litigantes de má-fé em multa processual e indemnização.
Para tanto alegaram que os Apelantes ao actuarem em notório venire contra factum proprium, litigaram com má-fé, não podendo tal conduta deixar de merecer a mais incisiva censura ética e jurídica, sendo que nem se estará perante uma situação de “mera” negligência grosseira, mas sim de dolo na alteração consciente dos factos, devendo, por isso, ser condenados em multa e indemnização.
Mais alegaram que sendo os Apelantes patrocinados por Advogado e tendo este a obrigação de, na observância dos deveres deontológicos que sobre si recaem “filtrar” ou, pelo menos, não fundamentar as suas alegações e conclusões de recurso com factos contraditórios àqueles que já havia alegado nos presentes autos.
Apreciemos.
O direito de acção constitui uma emanação do sistema de justiça pública – i.e. o monopólio estatal do exercício da função jurisdicional -, o qual tem como alicerce básico o estabelecimento da regra da proibição da autodefesa (art.º 1.º do CPC).
O direito de acção caracteriza-se por ser um direito de fazer agir o Estado para que, através dos tribunais, defina a posição jurídica concreta do requerente, cabendo àquele o dever de actuar (cfr. n.º 1 do art.º 20.º e n.º 2 do art.º 205.º, ambos da CRP e n.º 1 do art.º 8.º do Cod. Civil).
Essa definição respeitará o contraditório da contraparte (n.ºs 1 e 2 do art.º 3.º do CPC e impõe a demonstração dos pertinentes factos (n.ºs 1 e 2 do art.º 342.º do Cod. Civil).
Assim, apesar de a todo o direito substantivo corresponder uma acção (n.º 2 do art.º 2.º do CPC), o direito a accionar os órgãos competentes do Estado assume-se também como distinto do direito subjectivo que sustenta a pretensão do requerente, surgindo no conflito desencadeado por uma violação e ameaça de violação desse direito ou ainda pela incerteza relativamente àquele direito subjectivo.
E essa autonomia releva-se, desde logo, na circunstância de o direito de acção existir e funcionar sem que se saiba se o direito subjectivo subjacente existe e no reconhecimento de que, ressalvados os casos excepcionais de má-fé, o direito de acção foi correctamente exercido, mesmo nas hipóteses em que, a final, se vem a reconhecer que o direito substantivo não existe[22].
É que, mesmo nos casos em que a acção improcede, não se pode, sem mais, afirmar que o direito de acção foi exercido em termos abusivos. Por outras palavras, o recurso legítimo aos tribunais não é apenas consentido àqueles que inequivocamente tem a razão a seu lado.
Daí que a improcedência da acção apenas acarrete a condenação em custas (n.º 1 do art.º 527.º do CPC), isto é a responsabilização processual objectiva do vencido.
Porém, como sucede com qualquer direito, também o direito de acção é susceptível de ser exercido em termos abusivos (cfr. art.º 334.º do Cod. Civil).
Tal conduta é sancionada através do mecanismo da responsabilidade processual subjectiva, i.e. da litigância de má-fé, sendo esta correntemente descrita como um afloramento do abuso de direito.
Menezes Cordeiro[23] caracteriza a litigância de má fé como um instituto processual de tipo público que visa o imediato policiamento do processo.
A particular gravidade que assume o abuso processual acontece porque lesa não apenas a contra-parte, mas, devido ao carácter publicístico do processo, também e sobretudo, a própria administração da justiça, sendo por isso designado por vários autores como abuso pluriofensivo.
Decorre do n.º 1 do art.º 542.º do CPC que, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária se esta a pedir.
No n.º 2 do art.º 542.º do CPC, elencam-se situações que a lei entende integrarem o conceito de litigância de má-fé.
Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa, tiver praticado omissão grave do dever de cooperação, ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A primeira fattispecie enquadra os casos em que é deduzida pretensão com manifesta falta de fundamento fáctico ou jurídico, ao passo que a segunda prende-se com a violação do dever de verdade na alegação de factos que relevem para a acção ou para a defesa.
A doutrina tem considerado a má-fé de que trata o art.º 542.° do CPC sob dois aspectos: a má-fé material e a má-fé instrumental.
A primeira noção abrange os casos de dedução de pedido ou oposição cuja falta de fundamento se conhece e a alteração consciente da verdade dos factos ou a omissão de factos essenciais. A segunda noção diz respeito ao uso reprovável do processo, ou dos meios processuais, para conseguir um fim ilegal, para entorpecer a acção da justiça ou para impedir a descoberta da verdade.
Requisito necessário é, em ambos os casos, que a parte actue de forma dolosa (ou seja, com a consciência de não ter razão) ou com negligência grave.
Trata-se de uma inovação decorrente da entrada em vigor das alterações introduzidas pela Reforma de 1995/1996, operada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, a qual introduziu uma nova filosofia de colaboração, dando um especial relevo ao “(…) dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos” (cfr. o respectivo preâmbulo).
Ou seja, os pressupostos subjectivos da litigância de má-fé alargaram-se e, por isso, quem actuar com negligência grosseira também pode e deve ser condenado como litigante de má-fé.
Porém, tem de ser uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da actuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação ou de censura e idêntica reacção punitiva.
Assim, entende-se que a actuação contrária à boa-fé será “temerária” sempre que a parte actue com culpa grave ou erro grosseiro (será “simplesmente imprudente” se a lide foi conduzida com culpa leve) ou “dolosa”, sempre que a parte viole intencionalmente aqueles princípios, i.e. sabia não ter razão e ainda assim litigou.
O exercício do direito ao recurso – que corresponde a um dos aspectos em que se desdobra o direito de acção - é, como vimos e em regra, lícito, pelo que cabia aos recorridos alegar e demonstrar factos dos quais se pudesse extrair a responsabilidade processual subjectiva dos recorrentes com base nas alegações vertidas na minuta recursória (n.º 1 do art.º 342.º do Cod. Civil).
Na verdade, a alegação de que os recorrentes litigam de má fé sustentava-se, como se colhe das contra-alegações, na constatação de que os mesmos antes adoptaram um comportamento contraditório com aquele que preconizam no recurso.
Já acima se expôs que essa situação não se retrata nos autos.
Daí que se não detecte qualquer comportamento processual abusivo que deva ser sancionado no quadro da litigância de má fé (n.º 1 do art.º 542.º do CPC).
Ademais, à míngua de elementos disponíveis nos autos que apontem em sentido diverso, não se divisa que existam quaisquer indícios de litigância de má-fé por parte dos apelantes, que permitam sancionar civilmente os recorrentes como litigantes de má-fé.
Nesta conformidade, não se mostrando verificados os pressupostos (objectivos ou subjectivos) da condenação dos recorrentes, nos termos e para os efeitos do art.º 542º do CPC, indefere-se o pedido de condenação dos apelantes por litigância de má-fé, deduzido pelos apelados.
As custas serão suportadas, porque vencidos, pelos apelados (n.º 1 e 2 do art.º 527.º do CPC).
IV.Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, em consequência concedendo provimento ao recurso, revoga-se o despacho recorrido e determina-se a realização de segunda perícia, com vista a determinar o valor base de venda do prédio misto situado em Quinta de São Vicente, com a área total de 29,075 HECT, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº …, constante nas matrizes n.ºs ….
Indefere-se o pedido de condenação dos apelantes em multa e em indemnização por litigância de má-fé.
Custas pelos apelados.
Registe.
Notifique.
Évora, 14 de Outubro de 2021
Florbela Moreira Lança (Relatora)
Elisabete Valente (1.ª Adjunta)
Cristina Dá Mesquita (2.ª Adjunta)
(acórdão assinado digitalmente)
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[1] Ac. da RP de 14.07.2021, proferido no proc. n.º 3590/18.8T8PNF-A.P1, acessível em www.dgsi.pt
[2] Neste sentido, vide, FERNANDO PEREIRA RODRIGUES, Os Meios de Prova em Processo Civil, Março de 2015, Almedina, pp. 151 e Ac. da RG de 14.02.2019, proferido no proc. n.º 2587/17.0T8BRG-A.G1, acessível em www.dgsi.pt
[3] Ac. da RC de 01.07.2014, proferido no proc. n.º 11/11.0TBCBR-A.C1, acessível em www.dgsi.pt
[4] Neste sentido vide Ac. da RP de 05.12.2002, acessível em www.dgsj.pt. No mesmo sentido, vide LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra, pp. 521 e LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª ed., Almedina, pp. 509.
[5] Proferido no processo n.º 04B3648 e acessível em www.dgsi.pt.
[6] Assim, Ac. da RG de 07.05.2013 proferido no proc. nº. 590-A/2002 e Ac. da RP de 27.01.2020, proferido no proc. n.º 5818/17.2T8VNG-A.P1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt e LEBRE DE FREITAS, CPC anot., II, 2.ª ed., pp. 774
[7] Assim, entre muitos, o Ac do STJ, de 25.11.2004, referido na nota 5
[8] Ac. da RP de 27.01.2020, referido na nota 6
[9] Ac. da RP, referido na nota 1
[10] Neste sentido, vide. LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, op. cit.. pp. 521 e o Ac. da RL de 02.11.2018, proferido no proc. n.º 34964/15.5T8LSB-A.L1-2, acessível em www.dgsi.pt.
[11] Assim, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS SOUSA Código de Processo Civil Anotado, I, Almedina, pp 546-547 e Acs. da RP de 10.07.2013, poferido no proc. n.º 1357/12, de 11.01.2016, proferido no proc. n.º 4135/14 e da RE 18.09.2012, proferido no proc. n.º 4162/09, acessíveis em www.dgsi.pt
[12] Neste sentido, vide, Ac. RC de 01.12.2015, proferido no proc. n. 65/14.8TBCTB-B-C1 e Acs da RG de 19.05.2016, proferido no proc. n.º 188/12.8TMBRG-F.G1 e de 12.07.2016, proferido no proc. n.º 559/14.5TJVNF.G1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[13] ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS SOUSA, op. cit., pp. 539
[14] Ac. da RP de 27.01.2020, referido na nota 6
[15] COUTUNHO DE ABREU, Do abuso de direito, 1983, pp. 55
[16] Assim, CUNHA E SÁ, Abuso de Direito, pp. 171.
[17] Das Obrigações, II, pp.516
[18] Ac. do STJ, de 07.02.2008, proferido no proc. n.º 3934/07- 2ª Secção, acessível em ww.dgsi.pt)
[19] Ac. do STJ de 12.02.2009, proferido no proc. n.º 08A4069, acessível em www.dgsj.pt
[20] Ac. da RL de 28.03.2019, proferido no proc. n.º 295/14.2TBSCR-A.L1-6, acessível em www.dgsi.pt
[21] Assim, ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS SOUSA, op. e loc. cit. e o Ac. da RP de 10.07.2013, proferido no proc. n.º 1357/12.6TBMAI-A.P1, acessível em www.dgsi.pt
[22] Assim ANTUNES VARELA, RLJ n.º 3824, pp. 330
[23] Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Acção e Culpa «In Agendo», 2006