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VENDA DE COISA DEFEITUOSA
DENÚNCIA DOS DEFEITOS
REPARAÇÃO DOS DEFEITOS
PRAZO PARA A RECLAMAÇÃO
INCUMPRIMENTO
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA
Sumário
I - Há venda de coisa defeituosa sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objeto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa vendida sofrer dos vícios ou carecer das qualidades abrangida no artigo 913º do Código Civil, quer a coisa entregue corresponda, quer não, à prestação a que o vendedor se encontra vinculado. II - O cumprimento defeituoso da obrigação verifica-se não apenas em relação à obrigação da entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer outra obrigação, proveniente de contrato ou qualquer outra fonte. E apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objeto da obrigação a que ele estava adstrito. III - A declaração de denúncia dos defeitos da coisa vendida é uma declaração unilateral receptícia, não sujeita a forma especial para ser emitida, mediante a qual se comunica ao vendedor os defeitos de que a coisa padece. Como declaração receptícia, é eficaz logo que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida [artigo 224º, nº 1, primeira parte, ex vi artigo 295º, do CC]. IV - No sistema jurídico português há uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar, o devedor está adstrito a eliminar os defeitos ou a substituir a prestação; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço ou a resolução do contrato. A regra que impõe este seguimento está patente no artº 1222º, nº 1, do Código Civil em relação ao contrato de empreitada, mas, apesar de não haver norma expressa neste sentido no contrato de compra e venda, ela depreende-se dos princípios gerais [arts. 562º, 566º, nº 1, 801º, nº 2 e 808º, nº 1, todos do CC] além de ser defensável a aplicação analógica do nº 1 do artº 1222º, no que se refere à imposição desta sequência, às hipóteses de compra e venda. V - Sendo possível a eliminação dos defeitos ou a nova realização da prestação, ao comprador só cabe escolha entre resolver o contrato e reduzir o preço, caso a contraparte tenha recusado qualquer das prestações de cumprimento ou depois de decorrido um prazo suplementar fixado, nos termos do artigo 808º do Código Civil, para a sua efetivação. VI – Apesar da ré não ter alegado expressamente na contestação a perda do interesse do negócio, tendo em conta que a recorrente instaurou a presente ação em 17.01.2019, era lícito à recorrida considerar que o equipamento em causa não seria reparado, pelo que em 31.01.2019 procedeu à devolução do mesmo junto da loja onde o comprou, o que não pode deixar de ser entendido como perda de interesse no negócio, nos termos do artigo 808º do CC, considerando-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação a cargo da aqui recorrente (art. 808º do CC). (sumário do relator)
Texto Integral
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO Algarjovicam, Lda. instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Favoritevelvet, Lda., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 5.377,81, acrescida de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alega, em síntese, que no âmbito da sua atividade e a solicitação da ré, forneceu a esta uma marmita a gás, pelo preço de € 5.377,81, não tendo a ré apresentado qualquer reclamação, mas apesar de repetidamente interpelada para efetuar o pagamento do preço, nada pagou à autora.
A ré contestou, defendendo-se por exceção, alegando que uma semana após a entrega da marmita, que ocorreu em 23.07.2018, contactou a autora informando que o isqueiro da mesma não funcionava, tendo a autora feito deslocar um funcionário para verificar o estado do equipamento, o qual confirmou aquele defeito. Com o passar do tempo, e não estando a situação do isqueiro resolvida, constatou a ré a oxidação da panela – facto este também transmitido à autora -, mas mais uma vez a assistência prestada foi nula, pelo que no dia 1 de fevereiro de 2019 procedeu à devolução do equipamento junto da loja onde o comprou.
Termina pedindo que seja «declarada a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre as partes, com a consequência legal de não obrigação de pagamento por parte da R.” e que a autora seja «condenada em litigância de má fé com a aplicação de uma coima a determinar pelo douto Tribunal …».
Houve resposta, concluindo a autora como na petição inicial, pugnando pela improcedência da exceção invocada e do pedido de condenação como litigante de má-fé, pedindo, por sua vez, a condenação da ré como litigante de má-fé.
Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a ré do pedido[1].
Inconformada, a autora apelou do assim decidido, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«1-No caso vertente a recorrente entende ter existido uma errónea interpretação da prova testemunhal e documental constante nos presentes autos, o que fundamenta, em seu entender, a impuganção da matéria de facto.
2-Com efeito, a avaliar pelo testemunho de António Arvela, deveria ter sido como provado o ponto 7, vide-se súmela do depoimento onde se refere que se deveria aguardar por o gás sair e depois ligar.
3-No que se refere ao ponto 8 dos depoimentos prestados por N… e C…, em que afirmaram, sem que exista prova nos autos que o comprove, que efectuaram chamadas telefónicas para a recorrente a denunciar defeitos no equipamento.
Como se costuma dizer em direito, o que não está no processo não está no mundo, pelo que essa ponto não deveria ter sido dada como provado.
4-O mesmo se dirá relativamente aos pontos 9, 10 e 11, a testemunha P…, actualmente ex funcionário da recorrente, disse sem margem para dúvidas que e o equipamento se mostrava apto a cumprir as suas funções, donde deveriam isso pontos ser dados como não provados.
5-Igual juízo se formula relativamente aos pontos 12, 13, 14 e 15, as testemunhas N… e C…, apenas referem vagamente que telefonaram para e recorrente sem que indicassem as datas em que tal ocorreu, nos autos inexiste qualquer comprovativo desses telefonemas. Custa a crer que nos tempos que correm sequer tenham enviado um e-mail reportando á recorrente tal situação.
6-Já no que se refere ao ponto 16, o depoimento de P… provou que o equipamento se mostrava apto para o fim em vista – cozedura de marisco, pelo que deveria ter sido julgado como não provado.
7-No tocante ao ponto 17, em face do depoimento de P…, prestado de forma escorreita, deveria ter sido provado que a recorrente prestou a assistência necessária, se tal não houvesse acontecido, o representante da recorrida não deixaria de apresentar a competente reclamação, o que não fez.
8-Em referência ao ponto 20, sempre se dirá que o representante da recorrida não referiu á testemunha P… que se recusava a efectuar o pagamento enquanto o equipamento não fosse reparado. Pelo contrário disse que julgava o filho já tinha efectuado a transferência, e se este não o fizesse ele próprio o faria pelo que o ponto 20 deveria constar como não provado.
9-No tocante aos pontos 21 e 22, verificamos que a panela não foi objecto de perícia, por razões imputáveis à recorrida, deixou a panela ao abandono á porta das instalaçãoes da recorrente, quando a deveria ter guardado para a disponibilizar quando o Tribunal determinasse a perícia, até parece que não tinha interesse na sua realização.
Pelo que esses pontos deveriam ter sido dados como não provados.
10-No que se refere ao ponto 25, em momento algum foi referido ao vendedor P… que a panela se encontrava oxidada, pois a mesma não foi objecto da competente perícia, pelo que deveria ter sido como não provado.
11-Relativamente ao ponto 26, a testemunha N… refere ter tido conhecimento da carta enviada pelo mandatário da recorrente, pelo que a recorrida sabia que aquela iria avançar para Tribunal caso o equipamento lhe não fosse pago, pelo que deveria ser tido como não provado.
12-Face ao depoimento prestado por P… a materia vertida em A deveria ter sido dada como provada, a recorrida não efectuou qualquer reclamação
13-A acima referida testemunha disse quais as caracteristicas do equipamento, declarando que o mesmo não oxidava, não tendo a recorrida efectuado a prova que lhe competia fazer, pelo que o referido em B deveria ter sido dado como provado.
14-A recorrida sequer invocou, muito menos provou, em que datas contactou os serviços da recorrente, pelo que o D devia ter sido dado como provado.
15-A testemunha P… comprovou que a única fez que foi pedida a assistência a recorrente prestou-a pelo que o H deveria ter sido dado como provado.
16-Provado ficou também que o filho do representante da recorrida iria transferir o montante em débito, o que atesta o bom funcionamento do equipamento vendido, pois, como decorre da experiência da vida, se o equipamento apresentasse defeitos o legal representante da recorrida não iria proceder ao seu pagamento, pelo que o I deveria ter sido dado como provado.
17-No que se refere ao J, tal matéria só poderia ter sido respondida se a perícia se tivesse realizado, e a recorrida inviabilizou-a.
18-O depoimento prestado por N…, mãe do legal representante da recorrida, revelou-se tendencioso, a mãe dificilmente é isenta em processos em que o seu filho tem interesse directo, como sucede neste caso.
19-Não se inibiu a referida testemunha de tentar alterar a verdade dos factos, quando referiu que a panela fora devolvida antes da propositura da presente acção , o que é contrariado pelos documentos no processo existentes.
20-A recorrida, apesar de dispôr de meios fáceis e expeditos para tal, não juntou aos autos os comprovativos dos telefonemas que refere ter efectuado, nem sequer requereu ao Tribunal que providenciasse a sua obtenção junto da sua operadora telefónica.
21-Invocou matéria de natureza exceptiva sem que tivesse apresentado a respectiva prova, de harmonia com o artº 342º nº 1 do C.C., tinha o ónus da prova relativamente à matéria que alegara.
22-Ante tal quadro importaria averiguar se a recorrida deu cumprimento ao disposto no nº 3 do artº 921º do C.C., que impõe que o defeito seja denunciado ao vendedor dentro do prazo de garantia, seis meses no caso vertente, e se o fez até 30 dias após o conhecimento desse defeito.
23-Sem o registo desses telefonemas supostamente efectuados, ficamos sem saber se a denúncia dos defeitos foi tempestiva.
24-Por mera cautela de patrocínio sempre se dirá que não se vislumbra que seja aplicável ao presente processo o artº 219º do C.C., a recorrida sequer o alegou.
25-A recorrida não seu cumprimento ao iter exposto no Acórdão do TRC do Proc. nº 92/11.7T2SVV-C1, o que teria sido fundamental para operar a rescisão contratual.
26-Por outro lado, não se vislumbra que tenha cumprido o ditame que se encontra vertido no nº 1 do artº 808º, também ele imprescindível para operar a rescisão contratual, sendo que a posiçao da recorrente se encontra respaldada no Acórdão do STJ, Proc. nº 2679/13.4TBVCD.P1.S1.
27-A recorrida, não alegou a perda do interesse do negócio, nos termos dos artºs 808º, 913º e 921º todos do C.C., pelo que não se pode aplicar o artº 5º nº 3 do C.P.Civil.
28-Não se lobriga que a recorrida tenha alegado devidamente tal matéria, condição essencial para aplicar o retro referenciado normativo, vide nesse sentido Acórdão no TRL Proc. nº 7365/2006-1 relatado pelo Venerando Desembargador Folque Magalhães.
29-Percute-se, queda-se indemonstrada a data da última denúncia, determinante para averiguar se foi cumprido o prazo estabelecido no artº 921º nº 3 do C.C..
30-E era á requerida que competia efectuar tal prova, artº 342º nº 1 do C.C..
31-Inexistem nos autos qualquer referência á data em que a recorrida terá interpolado a recorrente para esta reparar o equipamento.
32-Apesar de ter sido notificada pelo Tribunal, despacho datado de 20 de Maio de 2019, para vir aos autos juntar o comprovativos dos alegados defeitos, a recorrida não o fez.
33-Ao incumprir tal despacho, caiem pela base os argumentos em que a recorrida esteou a sua defesa, pelo que inexistem fundamentos para esta resolver o contrato com a recorrente.
34-Por que assim, não se verificando tal direito, deveria a presente acção ter sido julgada procedente por provada.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto, no sentido de não serem dados como provados os factos atinentes aos defeitos da coisa vendida;
- se a ré denunciou tempestivamente aqueles defeitos;
- se assiste à ré o direito à resolução do contrato de compra e venda celebrado entre as partes.
III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio e assistência de equipamentos Hoteleiros e Ar Condicionado.
2. No âmbito da sua atividade, por solicitação de R, forneceu uma Marmita a Gás, Aquecimento Directo MGD150 M980, n.º Série – 1185841, conforme fatura n.º FT1/963, no valor com IVA à taxa legal, perfez o montante de 5.377,81€(cinco mil, trezentos e setenta e sete euros e oitenta e um cêntimos), junta em doc.1, o qual se dá por reproduzido e para o qual se remete.
3. Apesar de ter sido interpelado por A em 30-10-2018 para efetuar os pagamentos que se encontravam em débito, inclusive por missiva enviada pelo seu mandatário a Ré, ignorou tal interpelação, não tendo rececionado a carta que lhe foi enviada.
4. O referido equipamento foi entregue no estabelecimento da R. sito na Rua Miguel Bombarda n.º 53, em Portimão, tratando-se de uma panela com cerca de 50 KG de capacidade que serve para cozedura de géneros alimentícios.
5. A atividade da R. prende-se com comércio, importação e exportação de peixe e mariscos vivos e congelados, preparação, congelação, salgamento, cozedura e outras atividades de transformação de produtos de pesca e aquicultura, bem como a atividade de restauração.
6. Assim que a Panela foi entregue – cerca de uma semana depois – a Ré contactou a Autora informando que o isqueiro da panela/marmita a gás não funcionava e solicitou assistência em relação ao referido equipamento.
7. Ocorreu uma efetiva deslocação de um funcionário da A. para verificar o estado do equipamento, tendo sido constatado, de facto, que o isqueiro não funcionava.
8. À data de janeiro de 2019 o referido equipamento já não se encontrava em condições de utilização nem doméstica nem industrial.
9. O referido equipamento apresenta diversas áreas de oxidação, sendo que a Ré sempre soube do que se passava e nada fez para o resolver.
10. O equipamento não apresentava quaisquer condições de utilização sem o isqueiro a funcionar.
11. A funcionária da R. tentou, por algumas vezes, efetuar a cozedura de géneros alimentícios com o referido equipamento, mas sem qualquer sucesso, uma vez que o isqueiro não funcionava.
12. Um dos funcionários da Autora transmitiu à Ré que poderiam fazer um buraco na panela, em baixo, para poderem acender a mesma, o que resolveria a situação do isqueiro.
13. A R. não aceitou tal instrução pois que estaria a danificar o material.
14. Foram vários os telefonemas da R. para a A. – a pedir que resolvessem a situação do equipamento.
15. Para além da sugestão supra referida (a do corte da panela) o funcionário da A. ainda transmitiu à R., quando esta insistia na questão o isqueiro, que o melhor seria comprar um isqueiro que se adaptasse ao equipamento.
16. Com o passar do tempo, e não estando a situação do isqueiro resolvida, constatou se a constante oxidação da panela – facto este também transmitido à A.
17. Quanto ao referido em 16 a assistência prestada pela A. foi nula.
18. Em 31-01-2019 a R. procedeu à devolução do equipamento junto da loja onde comprou, sendo que, o funcionário da referida loja não queria aceitar o referido equipamento, tendo sido chamado o dono do estabelecimento - e o equipamento foi deixado à porta do estabelecimento da autora.
19. Foi chamada a GNR que identificou o funcionário da R. que procedeu à devolução do equipamento.
20. Tendo a Ré constatado o que entendia serem defeitos no equipamento, logo a seguir à compra do mesmo, a R. optou por não fazer o pagamento até que a situação ficasse resolvida.
21. Para além do problema do isqueiro que se detetou logo ab initio, veio se ainda a constatar, num pequeno período de tempo, a oxidação do equipamento, o que o tornou (e mesmo que o isqueiro funcionasse) completamente inapto para o fim a que se destina.
22. O supra referido impediu, por completo, a utilização do mesmo por parte da R.
23. A Ré procedeu à devolução do equipamento em causa, após ter sido citada para a presente ação, o que ocorreu a 23 de janeiro de 2019.
24. A R. não colocou por escrito os defeitos que detetou no equipamento.
25. A deterioração do equipamento, em termos de oxidação, foi evoluindo gradualmente e a R. foi dando conhecimento de tal situação (ainda que verbalmente) à A.
26. A R. entendeu que a A. não pretendia resolver o problema comunicado, pois que recorreu aos presentes autos.[2]
27. Por o equipamento se encontrar dentro do prazo de garantia, a A não cobrou qualquer montante a R pela referida deslocação em 7.
28. No dia seguinte ao indicado em 18, quando o legal representante de A se dirigiu para as instalações da sua empresa, verificou que o artigo que fora deixado à porta do seu armazém, pelo legal representante de R, já não se encontrava no local.
29. A Autora desconhece por que razão tal sucedeu.
30. A autora apenas após a determinação da perícia informou os autos do desaparecimento da marmita, pese embora, o soubesse desde a data mencionada em 28.
E foram considerados não provados os seguintes factos:
A. A referida mercadoria foi a contento de R, que relativamente à qual não efetuou qualquer reclamação.
B. O equipamento é constituído por material de Inox; supostamente seria um material seguro porque não se oxida e não liberta o metal na comida - reação impedida pela camada de proteção de níquel que faz parte da sua composição.
C. O referido equipamento foi utilizado duas ou três vezes.
D. Que em 13 não o aceitou porque não poderia, depois, efetuar qualquer tipo de reclamação, por ter danificado o equipamento.
E. Que em 15 o funcionário da A. tenha recomendado ir aos chineses.
F. O equipamento, a ser utilizado, permitiria a libertação de metal para os géneros alimentícios que estivessem em processo de cozedura.
G. A R. quando procedeu à devolução do equipamento entregou, igualmente, todos documentos associados ao equipamento, incluindo o manual de utilização e o documento que contem a descrição do produto e suas características.
H. A única vez que R solicitou a comparência nas suas instalações de um Técnico, a A fê-lo deslocar prontamente ao local, verificando o Técnico enviado, de seu nome António Arvela, que o equipamento não funcionava pela simples razão de que a R se esquecera de pôr gás no isqueiro.
I. Um dos responsáveis da empresa adquirente, a A presume tratar-se do sócio gerente, foi dizendo repetidas vezes ao vendedor de A, de seu nome Pedro Vieira, que pretendia pagar o equipamento e que o seu filho iria efetuar a transferência do montante em débito.
J. A oxidação do equipamento deriva da falta de cuidado e de limpeza por parte de R no manuseamento daquele equipamento.
Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental e depoimentos das testemunhas registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que a recorrente cumpriu formalmente – com a exceção que abaixo se assinará - os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, já que especificou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, indicou os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ele propugnados, referiu a decisão que no seu entender deveria sobre eles ter sido proferida e indicou as passagens da gravação em que funda o seu recurso, que transcreveu, pelo que nada obsta ao conhecimento deste na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
É certo que a recorrente indicou relativamente aos factos impugnados as passagens da gravação – que transcreveu - no final da impugnação, e não relativamente a cada facto, o que, porém, não deve impedir a apreciação da impugnação da decisão de facto, considerando a filosofia subjacente ao atual CPC, que acentua a prevalência do mérito e da substância sobre os requisitos ou exigências puramente formais.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Infere-se das alegações/conclusões da recorrente que esta discorda da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, relativamente aos pontos 7 a 17, 20 a 22, 25 e 26 dos factos provados, e às alíneas A), B), D), H), I) e J) dos factos não provados. Vejamos, pois, se lhe assiste razão.
No ponto 7 deu-se como provado que «[o]correu uma efetiva deslocação de um funcionário da A. para verificar o estado do equipamento, tendo sido constatado, de facto, que o isqueiro não funcionava».
Diz a recorrente que essa factualidade não se mostra inteiramente correta, se se atentar no depoimento prestado por A…, funcionário da autora/recorrente, o qual terá explicado à ré/recorrida, que se deveria aguardar pelo gás sair e depois ligar, o que evidencia que a recorrente «prestou aos funcionários da Ré os esclarecimentos necessários para que esta pudesse trabalhar com o equipamento que aquela lhe vendera», devendo o ponto 7 ser alterado em conformidade.
Sucede, porém, que relativamente a este ponto da matéria de facto a recorrente limitou-se a dizer que a referida testemunha terá dito «que se devia aguardar pelo gás e depois ligar”, sem indicar as exatas passagens da gravação em que funda a respetiva impugnação, como impõe o artigo 640º, nº 1, al. b) e nº 2, do CPC – sendo certo que também não foram transcritas tais passagens – o que determina, sem mais, a rejeição do recurso quanto ao ponto 7 dos factos provados, que assim se mantém inalterado.
No ponto 8 deu-se como provado que «[à] data de janeiro de 2019 o referido equipamento já não se encontrava em condições de utilização nem doméstica nem industrial».
Segundo a recorrente, este facto devia ter sido considerado não provado, por não ter sido produzida prova de que o equipamento não funcionava à data referida, já que as testemunhas N… e C… se limitaram a dizer que efetuaram telefonemas para as instalações da recorrente sem que tão pouco indicassem as datas em que tais telefonemas terão sido feitos, “e dispunham de meios e fáceis e expeditos para tal, …, o que evidencia a fraqueza do seu argumento”.
Cumpre considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no artigo 396º do CC e artigo 607º, nº 5, 1ª parte, do CPC.
Como ensinou o Prof. Alberto dos Reis: « […] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei»[3].
Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados (art. 607º, nº 4, do CPC).
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes da motivação da decisão de facto que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.
No caso concreto, como se colhe daquela motivação, o ponto 8 foi dado como provado tendo em conta, essencialmente, os depoimentos das testemunhas N…, mãe do gerente da ré, e A…, empregada da ré, as quais, de acordo com a Sr. Juíza, depuseram de modo espontâneo e sincero, merecedor de credibilidade.
Ouvidos tais depoimentos, comungamos do mesmo entendimento da 1ª instância, tendo ambas as testemunhas sido claras quanto ao não funcionamento da marmita, não obstante as deslocações dos técnicos da autora às instalações da ré no intuito de resolver o problema, e apesar das testemunhas não terem referido a data exata em que a marmita já não se encontrava em condições de utilização, tendo em consideração a matéria de facto dada como provada no ponto 18, não impugnada pela recorrente, não custa admitir que assim fosse, o que justifica a entrega da marmita nas instalações da autora.
Por sua vez não se compreende a afirmação da recorrente de que as testemunhas «dispunham de meios e fáceis e expeditos para tal, …, o que evidencia a fraqueza do seu argumento», como se as mesmas fossem parte no processo e tivessem de provar o que quer que fosse.
Mantém-se assim inalterado o ponto 8 dos factos provados.
Impugna também a recorrente a decisão de facto relativa aos pontos 9, 10 e 11, dizendo que a testemunha P…, um ex-funcionário seu, «disse sem margem para dúvidas que o equipamento se mostrava apto a cumprir as suas funções», pelo que a matéria de facto destes pontos deveria ter sido dada como não provada.
Está em causa a seguinte facticidade:
«9. O referido equipamento apresenta diversas áreas de oxidação, sendo que a Ré sempre soube do que se passava e nada fez para o resolver.
10. O equipamento não apresentava quaisquer condições de utilização sem o isqueiro a funcionar.
11. A funcionária da R. tentou, por algumas vezes, efetuar a cozedura de géneros alimentícios com o referido equipamento, mas sem qualquer sucesso, uma vez que o isqueiro não funcionava.»
A referida testemunha, que foi diretor financeiro da autora, inquirida se a marmita apresentava algumas deficiências respondeu ter havido uma vez que foi informado pelo “dono” da ré que precisava de ajuda, pois quando ligava a marmita estava com dificuldades, tendo-se deslocado às instalações da ré um técnico.
E questionada a testemunha sobre se houve mais algum contacto com a ré, respondeu que “comigo não”.
Ora, para que seja alterada a decisão sobre a matéria de facto, não basta que se transcrevam excertos do que disseram esta ou aquela testemunha no sentido das alterações pretendidas. Os depoimentos das testemunhas têm de ser analisados no seu conjunto e pesam-se caso a caso, no contexto em que se inserem, tendo em conta a razão de ciência que invocam e a sua razoabilidade face à lógica, à razão e às máximas da experiência.
Não se pode escamotear que a testemunha P… depôs no sentido de não ter sido contactado sobre a existência de deficiências da marmita depois de um primeiro contacto, e em boa verdade nem seria expetável que o fosse contactado, dado tratar-se do então diretor financeiro da autora, não sendo crível que não houvesse outros funcionários que atendessem o público e recebessem as reclamações apresentadas.
Em sentido concordante com a matéria de facto dada como provado naqueles pontos, depuseram as já referidas testemunhas N… e A…, cujos depoimentos, como vimos, nos merecem credibilidade.
Ademais, o facto de o Tribunal ter dado maior credibilidade a estes depoimentos testemunhais em detrimento de outros depoimentos, nomeadamente o da testemunha P…, não significa que tenha deixado de os considerar. Apenas os valorou de forma diferente e nada, na lei, impedia que o fizesse, pelo que tem de se concluir – e de se aceitar – que, simplesmente, o depoimento daquela testemunha, em confronto com os depoimentos das testemunhas N… e A…, não foi apto a incutir no Tribunal recorrido a convicção de considerar não provada a factualidade em causa.
Em suma, o depoimento da testemunha P…, considerado isoladamente, não tem a virtualidade de impor decisão diversa sobre os pontos 9, 10 e 11 dos factos provados, que assim permanecem incólumes.
Diz ainda a recorrente que os pontos 12, 13, 14 e 15 deviam ter sido dados como não provados, uma vez que «as testemunhas N… e C…, apenas referem vagamente que telefonaram para e recorrente sem que indicassem as datas em que tal ocorreu, nos autos inexiste qualquer comprovativo desses telefonemas.»
Valem aqui as considerações feitas a propósito dos pontos 9, 10 e 11, acrescentando-se apenas que para a prova dos factos em causa (pontos 9 a 16), o Tribunal fundou ainda a sua convicção com base no relatório técnico de 21.02.2019 e fotografias juntas com a contestação, bem como no print da panela retirado da internet, também junto com aquele articulado, sendo certo que não são exigíveis meios de prova com força probatória pleníssima ou plena, que se imponham ao juiz, obrigando-o a dar como provado ou não provado certo facto por mera aplicação da respetiva norma de direito probatório.
Por conseguinte, permanecem intocados os pontos 12, 13, 14 e 15 dos factos provados.
Quanto aos pontos 16, 17, 20, 21, 22 e 25, diz a recorrente que com base no depoimento da testemunha P… deveriam os factos em causa ter sido dados como não provados.
Relativamente a estes pontos, relativos aos defeitos da panela, dão-se aqui por integralmente reproduzidas as considerações feitas anteriormente a propósito dos pontos 9, 10 e 11, pelo que nenhuma alteração será introduzida, permanecendo assim intocados os pontos 16, 17, 20, 21, 22 e 25 dos factos provados.
Diz também a recorrente que o ponto 26 dos factos provados não foi devidamente avaliado pelo Tribunal, uma vez que os depoimentos das testemunhas P… e N…, permitem concluir o contrário do que se deu como provado naquele ponto, acrescentando que a carta de interpelação enviada pelo mandatário da recorrente não foi rececionada pela recorrida por sua única e exclusiva culpa, pois tal missiva foi enviada para a sede desta última, ou seja, o endereço para onde foi enviada a carta de citação atinente à presente ação, e que a recorrida rececionou, retirando-se do depoimento da testemunha N… que a recorrida teve conhecimento do conteúdo da referida carta.
É do seguinte teor o ponto 26 dos factos provados:
«A R. entendeu que a A. não pretendia resolver o problema comunicado, pois que recorreu aos presentes autos.»
Ora, além de revestir feição conclusiva, o certo é que se trata de matéria que não foi alegada pelas partes nos respetivos articulados, sendo que aquilo que releva para a decisão da causa está já contemplado no ponto 3 dos factos provados, ou seja, que apesar de ter sido interpelada pela autora em 30.10.2018 para efetuar os pagamentos que se encontravam em débito, inclusive por missiva enviada pelo seu mandatário, a ré ignorou tal interpelação, não tendo rececionado a carta que lhe foi enviada.
Assim, embora por razões distintas das invocadas pela recorrente, decide-se eliminar o ponto 26 do elenco dos factos provados.
Impugna também a recorrente a decisão de facto referente às alíneas A), B), H), I) e J) dos factos não provados, socorrendo-se, uma vez mais, do depoimento da testemunha P…, pelo que deveria ser dada como provada tal matéria.
Relativamente à alínea D), diz a recorrente que a recorrida nem sequer alegou e muito menos provou «em que datas contactou os serviços da recorrente», pelo que o facto referido naquela alínea devia ter sido dado como provado.
Ora, pelas razões já aduzidas, o depoimento da testemunha P…, por si só não tem a virtualidade de dar como provada matéria que não encontra guarida em qualquer outro meio de prova, e se mostra até contraditória com a matéria dada como provada.
Por sua vez, a alegação da recorrente a respeito da alínea D), afigura-se, salvo o devido respeito, absolutamente inconsequente e mesmo contraditória, pois afinal o que a recorrente pretende que seja dada como provado, é que a ré não aceitou a instrução de um dos funcionários da autora para fazer um buraco na panela/marmita, porque nesse caso não poderia apresentar qualquer reclamação por ter danificado o equipamento, facto que a recorrente diz que não foi sequer alegado pela recorrida e muito menos provado.
Em suma, mantêm-se nos seus precisos termos as alíneas A), B), D), H), I) e J) dos factos não provados.
Resulta assim do exposto, que não se vislumbra uma desconsideração da prova produzida, mas sim uma correta apreciação da mesma, não se patenteando a inobservância de regras de experiência ou lógica, que imponham entendimento diverso do acolhido. Ou seja, no processo da formação livre da prudente convicção do Tribunal a quo não se evidencia nenhum erro que justifique a alteração da decisão sobre a matéria de facto, designadamente ao abrigo do disposto no artigo 662º do CPC.
Assim, teremos de concluir que, perante a prova produzida, bem andou a Sr.ª Juíza a quo na decisão sobre a matéria de facto, à exceção do ponto 26 dos factos provados, que pelas razões expostas foi eliminado do elenco dos factos provados.
Da (in)tempestividade da denúncia dos defeitos da coisa
Permanecendo incólume, no essencial, a decisão sobre a matéria de facto, não sofre dúvidas que a marmita que a autora vendeu à ré apresentava os defeitos acima enunciados. Tratou-se, pois, de uma venda defeituosa, a qual se distingue do cumprimento defeituoso da obrigação.
Acolhendo-nos à lição do Prof. Antunes Varela, «há venda de coisa defeituosa sempre que no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão da propriedade de uma coisa, a coisa vendida sofrer dos vícios ou carecer das qualidades abrangida no art. 913.º do Código Civil, quer a coisa entregue corresponda, quer não, à prestação a que o vendedor se encontra vinculado.
O cumprimento defeituoso da obrigação verifica-se não apenas em relação à obrigação da entrega da coisa proveniente da compra e venda, mas quanto a toda e qualquer outra obrigação, proveniente de contrato ou qualquer outra fonte.
E apenas se dá quando a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito»[4].
Com efeito, no caso em apreço vem provado que aquando da entrega da panela/marmita que a autora forneceu à ré por via do contrato celebrado entre ambas, de que tratam os autos, o isqueiro não funcionava, não reunindo quaisquer condições de utilização sem tal funcionamento; que à data de janeiro de 2019 o referido equipamento já não se encontrava em condições de utilização nem doméstica nem industrial; e que a panela/marmita apresenta diversas áreas de oxidação [cfr. pontos 6 a 10 dos factos provados].
Assim sendo, estamos, summo rigore, perante defeitos da panela/marmita e não perante a discrepância do equipamento fornecido, o que nos situa no campo da venda defeituosa, como implicitamente se reconheceu na decisão recorrida.
Assim, ao caso sub judice aplicam-se, as regras da compra e venda de coisas defeituosas (arts. 913.º e seguintes).
Resulta inequivocamente da análise da factualidade apurada, que a ré provou que a panela/marmita que adquiriu à autora, padece de defeitos graves que impedem a realização do fim a que destinava, estando assim preenchidos os pressupostos legais da responsabilidade do vendedor pelos vícios da coisa, relevantes porque afetam a função, utilidade típica ou corrente do objeto ou da coisa.
Aqui chegados coloca-se a questão de saber se a ré/recorrida denunciou atempadamente os defeitos da coisa vendida.
Segundo a recorrente, a resposta a esta questão deve ser negativa, pois sem os registos dos telefonemas «supostamente efetuados, ficamos sem saber se a denúncia dos defeitos foi tempestiva», a que acresce não ser aplicável ao caso o artigo 219º do CC, nem a recorrida sequer o alegou.
Sobre esta matéria escreveu-se na sentença recorrida:
«(…), foi dado como provado a existência de garantia de bom funcionamento, a qual, face à inexistência de estipulação, entende-se ser de 6 meses, após entrega, o prazo da mesma – art.º 921º nº2 do C.C. Pese embora se desconheça a data da entrega, se a considerarmos, numa interpretação adequada às regras da boa-fé, como sendo a da factura – 23-07-2018 (ponto 2) então a garantia cessaria em 23-01-2019, devendo qualquer defeito ser comunicado até 30 dias após o seu conhecimento. Ora, como resulta da matéria dos autos, houve várias denúncias, pese embora, nenhuma por escrito, o que, salvo melhor entendimento, não cremos ser obrigatório, por a lei não estipular forma especial para tal, pelo que, impera a liberdade de forma – art.º219º do C.C.- princípio da consensualidade. Assim sendo, tendo sido dado como provado que a Ré, de cada vez que tentava usar a marmita não conseguia e chamava o técnico que vinha ao local, resulta que as denúncias foram tempestivas, bem como, dentro do prazo de 6 meses de garantia – pontos 6 a 17 – notando-se que a Autora deu entrada da acção dentro da garantia em 17-01-2019, como resulta do histórico do processo.»
Afigura-se correto este entendimento, suportado na factualidade dada como assente, sendo que a denúncia dos defeitos, como bem se observa, não obedece a qualquer forma especial.
Com efeito, a declaração de denúncia dos defeitos da coisa vendida é uma declaração unilateral receptícia, não sujeita a forma especial para ser emitida, mediante a qual se comunica ao vendedor os defeitos de que a coisa padece[5]. Como declaração receptícia, é eficaz logo que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida [art. 224º, nº 1, primeira parte, ex vi art. 295º do CC].
E foi precisamente o que ocorreu in casu, pelo que se concluiu, como na sentença recorrida, pela tempestividade da denúncia dos defeitos efetuada pela ré/recorrida.
Da resolução do contrato
Defende a recorrente que a recorrida não deu cumprimento «ao iter exposto no Acórdão do TRC do Proc. nº 92/11.7T2SVV-C1, o que teria sido fundamental para operar a rescisão contratual», e que não vislumbra também «que tenha cumprido o ditame que se encontra vertido no nº 1 do artº 808º, também ele imprescindível para operar a rescisão contratual, sendo que a posiçao da recorrente se encontra respaldada no Acórdão do STJ, Proc. nº 2679/13.4TBVCD.P1.S1».
Por último, sustenta a recorrente que «[a] recorrida, não alegou a perda do interesse do negócio, nos termos dos artºs 808º, 913º e 921º todos do C.C., pelo que não se pode aplicar o artº 5º nº 3 do C.P.Civil»
Entendimento diverso foi acolhido na sentença recorrida, onde se escreveu:
«(…) porque o outro defeito – oxidação – igualmente não era resolvido pela Autora, assistiria à Ré o direito ao não pagamento do preço, nos termos do art.º428º do C.C., porém, excutidos que estivessem os meios de defesa do comprador do art.º921º do C.C. – a reparação ou substituição. Sem prejuízo, cumpre notar que, igualmente, a natureza de um dos defeitos era contínua e a sua reparação acontecia parcialmente, por deslocação dos técnicos que ligavam a máquina (mas a mesma depois não conseguia mais ligar) e, de todas as vezes, propunham soluções à Ré, o que foi arrastando a situação. Como tal mantinha-se legítima a recusa de pagamento pela Ré, dada a mora da Autora na reparação, sendo que, após a entrada da acção era legítimo à Ré a convicção na manutenção da não reparação, com definitivo incumprimento pela Autora e como tal, a perda de interesse no negócio, nos termos do art.º808º, 913º e 921º do C.C., com consequente resolução do mesmo e devolução do equipamento – enquadramento jurídico esse que a Ré não deu, mas aplicável, nos termos do art.º5º nº3 do C.P.C. Pese embora a Ré tenha sido citada em 23-01-2019, isto é, dentro da garantia, o seu pedido de resolução do contrato ocorreu no âmbito da contestação em 25-02-2019. Ora, pese embora tenham existido várias denúncias não é possível fixar a data da última, para efeitos de aferir do prazo do 921º nº3 do C.C. Porém, cumpre notar que, como referimos, à Ré durante todo o contrato interpelou o Autora para arranjar a máquina, que depois não funcionava, sendo a ferrugem detectável posteriormente e durante todo este tempo a Autora ia exigindo o pagamento, recusando-se a Ré até estar cumprido. Tendo de seguida a Autora dado entrada da acção a dias do fim da garantia - de modo legítimo, diga-se. Porém, igualmente cumpre notar que, tendo apenas a Ré sido notificada em 23-01-2019, isto é, no último dia da garantia, da acção judicial donde podia retirar o fundamento do incumprimento da reparação da Autora, não lhe era possível em tempo razoável o exercício da resolução do contrato, sendo-lhe legítimo o seu uso por via judicial, em contestação, como sucedeu, entendimento esse que entendemos adequado à boa-fé e cuja posição divergente beneficiaria a conduta inadimplente da Autora, em termos de abuso de direito por venire contra factum proprium - art.º337º do C.C. Numa nota final, pese embora em nosso entendimento o pedido resolutivo do contrato devesse ter sido objecto de pedido reconvencional, tal não foi o entendimento do douto despacho-saneador, que o admitiu implicitamente como matéria de excepção. Porém, tais questões de forma não contendem com a aplicabilidade do direito resolutivo da Ré, impondo-se, em nosso entender, a improcedência do pedido da Autora, por reconhecimento implícito da resolução do contrato pela Ré, nos termos supra mencionados.»
É sabido que há uma sequência lógica de momentos ou fases na tutela do comprador por via dos defeitos na coisa vendida – eliminação dos defeitos ou substituição da prestação, redução do preço ou resolução do contrato, apenas podendo o comprador reclamar a indemnização, se não houver uma daquelas possibilidades alternativas aptas a satisfazer, numa perspetiva objetiva, os interesses do mesmo[6].
Assim se decidiu, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.05.12[7], com o seguinte sumário: «[n]o nosso sistema jurídico há uma sequência lógica na tutela do comprador por via dos defeitos na coisa vendida, eliminação dos defeitos ou substituição da prestação, redução do preço ou resolução do contrato, apenas podendo ser pedida indemnização, de forma autónoma, sem ser nos casos de cumulação, por violação quer do interesse contratual negativo, quer do interesse contratual positivo, por não haver uma daquelas alternativas que satisfaça os seus interesses».
Também assim se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.01.2012[8]: «o devedor deve poder reparar o cumprimento defeituoso, antes de o credor poder optar pela resolução do contrato».
É também este o entendimento da nossa doutrina mais autorizada, destacando-se, desde logo, o Prof. Pedro Romano Martinez, que expressa assim o seu pensamento:
«Sendo possível a eliminação dos defeitos ou a nova realização da prestação, ao comprador ou ao dono da obra só cabe escolha entre resolver o contrato e reduzir o preço, caso a contraparte tenha recusado qualquer das prestações de cumprimento ou depois de decorrido um prazo suplementar fixado, nos termos do artº 808º, para a sua efectivação.
Há quem afirme que os pedidos de resolução do contrato e da redução do preço só não são de aceitar, caso haja uma proposta concreta da contraparte no sentido de eliminar os defeitos ou substituir a prestação defeituosa. Esta maneira de ver não parece de aceitar, pois a lei, em caso algum, concede a possibilidade de se optar entre o cumprimento das obrigações e a responsabilidade contratual; tal escolha não é consentida, nem ao credor, nem ao devedor. Enquanto o cumprimento da prestação acordada for possível, mediante a eliminação do defeito ou através da sua substituição, não pode estar aberto o caminho para a resolução do contrato, nem para a redução do preço; estas exigências são colocadas em vez da pretensão de cumprimento».[9]
O mesmo autor acrescenta:
«No sistema jurídico português há uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar, o devedor está adstrito a eliminar os defeitos ou a substituir a prestação; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço ou a resolução do contrato. A regra que impõe este seguimento está patente no artº 1222º, nº 1, em relação ao contrato de empreitada, mas, apesar de não haver norma expressa neste sentido no contrato de compra e venda, ela depreende-se dos princípios gerais ( artºs 562º, 566º, nº 1, 801º, nº 2 e 808º, nº 1, além de ser defensável a aplicação analógica do nº 1 do artº 1222º, no que se refere à imposição desta sequência, às hipóteses de compra e venda».[10]
Com efeito, importa não esquecer que, em nome da boa fé que deve imperar nas relações contratuais – artigo 762º, nº 2, do CC – há que respeitar o equilíbrio das prestações recíprocas nos contratos sinalagmáticos, sendo que a reparação da coisa, quando possível, ou a sua substituição, correspondem à realização da prestação originária, como, in hoc sensu, se pronuncia Calvão da Silva ao considerar que «obter a reparação ou substituição da coisa é realizar especificamente o próprio direito do comprador à prestação originária, isenta de vícios, que lhe é devida. É, portanto, o meio de remover uma antijuridicidade, de suprimir o próprio ilícito».[11]
No caso em apreço, como bem se observa na sentença recorrida, a ré não alegou expressamente a perda do interesse do negócio, mas considerando que a autora/recorrente instaurou a presente ação em 17.01.2019 (ref. Citius 6404405), era lícito à ré/recorrida considerar que o equipamento em causa não seria reparado, pelo que em 31.01.2019 procedeu à devolução do mesmo junto da loja onde comprou (cfr. ponto 18 dos factos provados), o que não pode deixar de ser entendido como perda de interesse no negócio, nos termos do artigo 808º do CC, considerando-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação a cargo da aqui recorrente (art. 808º do CC).
Merece igualmente a nossa adesão o seguinte trecho da sentença:
«(…) a Ré durante todo o contrato interpelou o Autora para arranjar a máquina, que depois não funcionava, sendo a ferrugem detectável posteriormente e durante todo este tempo a Autora ia exigindo o pagamento, recusando-se a Ré até estar cumprido. Tendo de seguida a Autora dado entrada da acção a dias do fim da garantia - de modo legítimo, diga-se. Porém, igualmente cumpre notar que, tendo apenas a Ré sido notificada em 23-01-2019, isto é, no último dia da garantia, da acção judicial donde podia retirar o fundamento do incumprimento da reparação da Autora, não lhe era possível em tempo razoável o exercício da resolução do contrato, sendo-lhe legítimo o seu uso por via judicial, em contestação, como sucedeu, entendimento esse que entendemos adequado à boa-fé e cuja posição divergente beneficiaria a conduta inadimplente da Autora, em termos de abuso de direito por venire contra factum proprium - art.º337º do C.C. Numa nota final, pese embora em nosso entendimento o pedido resolutivo do contrato devesse ter sido objecto de pedido reconvencional, tal não foi o entendimento do douto despacho-saneador, que o admitiu implicitamente como matéria de excepção. Porém, tais questões de forma não contendem com a aplicabilidade do direito resolutivo da Ré, impondo-se, em nosso entender, a improcedência do pedido da Autora, por reconhecimento implícito da resolução do contrato pela Ré, nos termos supra mencionados.»
A argumentação da recorrente de que a não alegação expressa da perda do interesse do negócio deveria impedir a resolução do contrato assenta numa visão desproporcionadamente formalista e rigidamente preclusiva do processo civil, manifestamente incompatível, não apenas com o Código de 2013, mas com princípios estruturantes em vigor desde 1995/96 – segundo a qual qualquer insuficiência, deficiência ou imprecisão na exposição e descrição dos factos substantivamente relevantes na petição inicial deveria ditar a irremediável improcedência da ação.
«Sucede, porém, que há muito deixou de ser assim no nosso ordenamento processual: desde que o A. tenha alegado na petição o núcleo essencial, caracterizador da causa de pedir, é perfeitamente possível que sejam ainda processualmente adquiridos, durante o processo, factos complementares ou concretizadores daquele núcleo essencial – e que poderão servir legitimamente de suporte a uma decisão de procedência da acção; ou seja: o que é decisivo para o juízo de procedência ou improcedência não é apenas – como o era na referida e há muito ultrapassada visão desproporcionadamente formalística e preclusiva do ónus de alegação da parte – o elenco de factos descritos inicialmente na petição, mas o conjunto de factos processualmente adquiridos até ao termo do processo, após realização das diligências de produção de prova.»[12]
Ora, no caso sub judice, o quadro factual apurado permite, sem sombra de dúvida, a aplicação ao caso do disposto no artigo 808º do CC, ainda que a ré não tenha alegado expressamente na contestação, na defesa por exceção, a perda do interesse do negócio.
Por conseguinte, o recurso improcede, sendo de manter a sentença recorrida, não se mostrando violadas as normas legais invocadas pela recorrente ou quaisquer outras.
Vencida no recurso, suportará a autora/recorrente as respetivas custas - artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
*
Évora, 14 de outubro de 2021
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Francisco Xavier (1º adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2º adjunto)
_______________________________________________
[1] Concluiu-se ainda na fundamentação da sentença pela inexistência de litigância de má-fé por banda das partes.
[2] Este ponto foi eliminado aquando da apreciação da impugnação da matéria de facto infra.
[3] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, p. 569.
[4] Cumprimento Imperfeito do Contrato de Compra e Venda (a excepção do contrato não cumprido), Parecer publicado na Col. Jur., ano XII (1987), T. 4, p. 30.
[5] Neste sentido, por todos, vd. João Cura Mariano, Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 4.ª edição revista e aumentada, Almedina, Coimbra, 2011, p. 90. Na jurisprudência, inter alia, o acórdão do STJ de 13.05.2014, proc. 16842/04.5TJPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. o Acórdão do STJ de 25.10.2012, proc. 3362/05.TBVCT.G1.S1, in www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto.
[7] Proc. 1288/08.4TBAGD.C1.S1, in www.dgsi.pt.
[8] Proc. 13/2002.L1.S1, cujo sumário (e apenas este) se encontra disponível in www.dgsi.pt.
[9] In Cumprimento Defeituoso em especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, Col. Teses, pp. 391 e ss.
[10] Idem, p. 392.
[11] In Compra e Venda de Cosas Defeituosas (conformidade e segurança), Almedina, 2008, p. 62, citado no Acórdão do STJ de 25-10-2012 que aqui vimos seguindo de perto.
[12] Cfr. Acórdão do STJ de 07.04.2016, proc. 6500/07.4TBBRG.G2.S3, in www.dgsi.pt.