EXONERAÇÃO DO PASSIVO
FIXAÇÃO DO RENDIMENTO INDISPONÍVEL
SUSTENTO MINIMAMENTE DIGNO
RETRIBUIÇÃO MÍNIMA MENSAL GARANTIDA
SUBSÍDIO DE FÉRIAS
SUBSÍDIO DE NATAL
Sumário


SUMÁRIO (da responsabilidade da Relatora)

I. A decisão de mérito proferida após produção de prova, e onde esteja absolutamente omissa qualquer fundamentação de facto, é nula, assim devendo ser reconhecido no recurso dela interposto; mas se os autos reunirem já todos os elementos necessários para a fixação dos factos relevantes para a decisão de mérito, a Relação deve proceder a essa fixação e conhecer do mérito do recurso.

II. No desconhecimento das suas concretas despesas, exigidas pelo respectivo «sustento minimamente digno», o devedor insolvente deverá manter na sua disponibilidade, para o assegurar, a quantia equivalente à retribuição mínima mensal garantida, assim excluída da cessão ao fiduciário.

III. Justifica-se a presunção de que, quando o resultado da divisão por doze (meses do ano civil), do montante anual global dos rendimentos do trabalho (incluindo doze salários mensais, um subsídio de férias e um subsídio de natal) seja inferior à retribuição mínima mensal garantida para o período considerado, os subsídios de férias e de natal serão necessários para assegurar o «sustento minimamente digno» do trabalhador insolvente.

IV. Tendo o legislador optado no CIRE, na determinação do rendimento disponível a ceder pelo insolvente ao fiduciário, por um critério geral e abstracto (do que não seja necessário para assegurar o «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar»), pretendeu que o mesmo fosse objecto de casuística densificação, por forma a respeitar a diferenciada realidade do caso concreto (incluindo a sua adequação ao momento histórico e ao ambiente social em que é aplicado); e essa casuística densificação é incompatível com qualquer fórmula matemática, de automática e invariável aplicação (nomeadamente, de uma retribuição mínima mensal garantida por cada membro do agregado familiar do insolvente, ou de uma qualquer capitação matemática fixa que lhes seja aplicável).

V. Sendo o agregado familiar do casal insolvente composto por dois filhos maiores, inteiramente a seu cargo, e no desconhecimento das suas concretas despesas, serão adequadas a assegurar o sustento minimamente digno dos quatro (os dois insolvente e os dois filhos) três retribuições mínimas mensais garantidas.

Texto Integral


Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1. I. D. e mulher, A. L., residentes na Urbanização …, n.º …, em Fafe (aqui Recorrentes), apresentaram-se à insolvência, pedindo que:

· fossem declarados em estado de insolvência;

· e lhes fosse deferida a exoneração do seu passivo restante, fixando-se-lhes um rendimento indisponível de € 1.905,00 (equivalente a três salários mínimos nacionais).

Alegaram para o efeito, em síntese: terem, respectivamente, 70 e 67 anos de idade, e serem casados entre si; e encontrarem-se eles próprios impossibilitados de cumprirem as suas obrigações vencidas, de cerca de € 185.000,00, por falta de património e de rendimentos suficientes para o efeito (tendo as mesmas resultado da sua actividade de sócios e gerentes de C. e F., Limitada que se dedicava à construção civil - também ela já declarada insolvente -, e cujas obrigações garantiram pessoalmente, tendo ainda contraído diversos empréstimos, em benefício da Sociedade e deles próprios).
Mais alegaram terem como único rendimento a pensão mensal de velhice auferida pelo Requerente, de € 936,73, mas que se encontra penhorada em um terço (por isso só auferindo a quantia líquida mensal de € 638,99); terem de fazer face com ele a todas as despesas do seu agregado familiar, composto por eles próprios e por dois filhos comuns (solteiros, maiores, cada um deles já declarado insolvente, e sem quaisquer rendimentos ou património próprio); e sobreviverem apenas com a ajuda de familiares (nomeadamente, de uma outra filha da Requerente).
Por fim alegaram: terem cumprido o seu dever de se apresentarem à insolvência, tê-lo feito em tempo, e não terem culpa na criação dessa situação; não terem beneficiado antes da exoneração do passivo restante; e não terem registado qualquer condenação criminal, pelos crimes previstos nos arts. 227.º a 229.º, do CP.

1.1.2. Foi proferida sentença, onde, nomeadamente: se declarou a insolvência dos Requerentes (I. D. e mulher, A. L.); se decretou a imediata apreensão de todos os seus bens; e se designou o prazo de trinta dias para reclamação de créditos (sentença que aqui se dá por integralmente reproduzida).

1.1.3. Foi proferido despacho, declarando encerrado o processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as suas restantes dívidas; e declarando fortuito o carácter da insolvência (decisões que aqui se dão por integralmente reproduzidas).

1.1.4. Após apresentação do relatório a que alude o art. 155.º do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (1) pelo Administrador de Insolvência, e junção de prova documental pelos Requerentes (I. D. e mulher, A. L.), foi proferido despacho, admitindo liminarmente o pedido dos Requerentes de exoneração do passivo restante (após parecer favorável do Administrador de Insolvência, e não oposição dos credores dela), lendo-se nomeadamente no mesmo (que aqui se dá por integralmente reproduzido):
«(…)
Ora, inexiste qualquer indício de que os insolventes se tenham abstido de se apresentar à insolvência após o conhecimento da sua situação de insolvência, assim como não há indícios de que os devedores tenham actuado em prejuízo dos seus credores e bem assim que as suas condutas se possam subsumir a qualquer culpa grave no agravamento da situação.
Acresce que nenhum dos credores dos Insolventes se opôs ao dito pedido de exoneração do passivo restante. Também o Sr.(a) Administrador (a) de Insolvência nada opôs ao dito pedido.
Em sede de qualificação da insolvência foi já proferida decisão que a declarou como fortuita.
Não decorre, igualmente, dos autos que os insolventes tenham violado quaisquer deveres de informação ou colaboração (art.º 238º, nº 1 do CIRE). Acresce que os insolventes nunca foram condenados pelos crimes enunciados no art.º 238º, nº 1, al. f) do CIRE, conforme se pode constatar dos CRC juntos aos autos.
Assim, relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante formulado, em face dos elementos constantes dos autos não há razões que obstem ao deferimento da pretensão formulada e nomeadamente algum dos previstos no n.º 1 do art.º 238º do C.I.R.E.
Não havendo pois motivos para o indeferimento liminar de tal pretensão e afigurando-se-nos razoável a pretensão manifestada, o Tribunal através deste despacho inicial faculta a possibilidade de recurso ao mecanismo em causa aos requerentes, na condição de, nos termos do art.º 237º al. b) do CIRE, os devedores, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo satisfaçam as condições previstas no art.º 239º do mesmo código, ou seja, que durante esse período de cessão o respectivo rendimento disponível seja cedido a pessoa, que de seguida seja designada, como fiduciário, rendimento esse que será todo o auferido pelos mesmos com ressalva de uma quantia equivalente a uma retribuição mínima mensal garantida, quantia que fica reservada para cada um dos devedores (art.º 239º nº 3 al. b) do CIRE), ou seja, um total de duas retribuições mínimas mensais garantidas.
Determina-se ainda que durante esse período os devedores fiquem sujeitos ao cumprimento das obrigações previstas no n.º 4 do art.º 239º do CIRE.
Para fiduciário nomeio o Sr(ª). Administrador(a) de Insolvência já nomeado nos autos.
Notifique.
Registe e publicite nos termos do art.º 240º e 247º do CIRE.
(…)»

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1.2. Recurso

1.2.1. Fundamentos

Inconformados com esta decisão, os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.), na parte em que fixou o seu rendimento disponível, interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido e se alterasse a decisão recorrida (fixando o seu rendimento indisponível em três salários mínimos nacionais).

Concluíram as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões):

A - O Tribunal a quo deveria ter decidido conforme alegado, ter o tribunal apreciado a situação do agregado familiar dos requerentes na decisão que proferiu e se requer seja conhecido, devendo ser declarado que em face dos factos alegados e provados pelos requerentes o valor reservado para os requerentes e acima do qual deve ser efetuada a cessão seja de pelo menos 1905€ ou seja de 952,50€ para cada. Pelo que o tribunal a quo violou a al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC.

B - O Tribunal a quo deveria ter sido decidido conforme alegado, após ter apreciado a situação do agregado familiar dos requerentes na decisão que proferiu e se requer seja conhecido, devendo ser declarado que em face dos factos alegados e provados pelos requerentes o valor reservado paras os requerentes e acima do qual deve ser efetuada a cessão seja de pelo menos 1905€ ou seja de 952,50€ para cada. Pelo que o tribunal a quo violou a al. i) do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE.
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1.2.2. Contra-alegações
Não foram juntas quaisquer contra-alegações.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

2.2.1. Identificação das questões
Mercê do exposto, duas questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal ad quem:

1.ª - É a decisão recorrida nula, na parte em que fixou o rendimento disponível a ceder pelos Insolventes aos seus credores, nomeadamente por não especificar os fundamentos de facto que a justificam (subsumindo-se desse modo ao disposto no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC)?

2.ª - Foi insuficientemente considerado, na determinação do rendimento disponível a ceder pelos Insolventes aos seus credores, o terem os mesmos a seu cargo dois filhos maiores?
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2.2.2. Ordem do seu conhecimento
Lê-se no art. 663.º, n.º 2, do CPC, que o «acórdão principia pelo relatório, em que se enunciam sucintamente as questões a decidir no recurso, expõe de seguida os fundamentos e conclui pela decisão, observando-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º».
Mais se lê, no art. 608.º, n.º 2, do CPC, que o «juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras».
Ora, tendo sido invocada pelos Recorrentes (I. D. e mulher, A. L.) a nulidade da decisão proferida pelo Tribunal a quo (vício que, a verificar-se, obsta à sua validade), deverá a mesma ser conhecida de imediato, e de forma prévia às restantes questões objecto aqui de sindicância, já que, sendo reconhecida, poderá impedir o conhecimento das demais (2).
*
III - QUESTÃO PRÉVIA - Vícios da decisão de mérito

3.1. Nulidades da decisão judicial versus Erro de julgamento
As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou à sua validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º, do CPC (3).
Precisando, «os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença» ou de despacho judicial, já que «a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de dar lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (artº 662º, nº 2, c) e d) do nCPC)» (Ac. da RC, de 20.01.2015, Henrique Antunes, Processo n.º 2996/12.0TBFIG.C1, com bold apócrifo).
Outros há, porém, que, concordando em princípio com esta posição, não deixam de admitir que poderão existir vícios da decisão de facto idóneos a justificar, de per se, a nulidade da própria sentença, enfatizando o facto desta, desde o CPC de 2013 (e ao contrário do que sucedia com o anterior, de 1961) conter agora simultaneamente a decisão de facto e a decisão de direito (4).
*
3.2. Nulidades da decisão judicial - Omissão de fundamentação

3.2.1.1. Dever de fundamentação de facto

Enunciando as regras próprias de elaboração da sentença, lê-se no art. 607.º, n.º 2 e n.º 3, do CPC, que a «sentença começa por identificar as partes e o objecto do litígio, e enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer», seguindo-se «os fundamentos de facto», onde o juiz deve «discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final».
Mais se lê, no n.º 4 do mesmo art. 608.º citado, que, na «fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção»; e «tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados a presunções impostas pela lei ou por regras da experiência».
Por fim, lê-se no n.º 5 do mesmo art. 607º, que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», não abrangendo porém aquela livre apreciação «os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão da partes».
Reafirma-se, assim, em sede de sentença, a obrigação imposta pelo arts. 154.º do CPC, e pelo art. 205.º, n.º 1, da CRP, do juiz fundamentar as suas decisões (não o podendo fazer por «simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade», conforme n.º 2, do art. 154.º citado).

Com efeito, visando-se com a decisão judicial resolver um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1, do CPC), a paz social só será efectivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação (5).
Reconhece-se, deste modo, que é a fundamentação da decisão que assegurará ao cidadão o respectivo controlo e, simultaneamente, permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do bem ou mal julgado: a «motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível (…) de garantia do direito ao recurso» (Ac. da RC, de 29.04.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 772/11.7TBBVNO-A.C1) (6).

Logo, e em termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz que, na sentença, em parte própria, discrimine os factos tidos por si como provados e como não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respectiva natureza).
Impõe-se-lhe ainda que deixe bem claras, quer a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objecto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito), desse modo explicitando não só a respectiva decisão («o que» decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram («o porquê» de ter decidido assim).
A explicitação da formação da convicção do juiz consubstancia precisamente a «análise crítica da prova» que lhe cabe fazer (art. 607.º, n.º 4, do CPC): obedecendo aos princípios de prova resultantes da lei, será em função deles e das regras da experiência que irá formar a sua convicção, sobre a matéria de facto trazida ao respectivo julgamento.
Com efeito, «livre apreciação da prova» (art. 607.º, n.º 5, do CPC) não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 655).
«É assim que o juiz [de 1.ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 325).
«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2.ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, pág. 591, com bold apócrifo).
Compreende-se, por isso, que se afirme que este esforço, exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida, «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, pág. 281).
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3.2.1.2. Omissão de fundamentação de facto
Lê-se no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, que «é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».
Precisa-se, porém, que vem sendo pacificamente defendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa - nomeadamente, a falta de discriminação dos factos provados -, e não apenas a mera deficiência da dita fundamentação (7).
A concreta «medida da fundamentação é, portanto, aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e, em caso de recurso, pelo tribunal ad quem a que seja lícito conhecer da questão de facto» (Ac. do STJ, de 11.12.2008, citado pelo Ac. da RC, de 29.04.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 772/11.7TBVNO-A.C1).
Reitera-se, porém, que saber se a «análise crítica da prova» foi, ou não, correctamente realizada, ou se a norma seleccionada é a aplicável, e foi correctamente interpretada, não constitui omissão de fundamentação, mas sim «erro de julgamento»: saber se a decisão (de facto ou de direito) está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma (8).
Lê-se ainda, no art. 613.º, n.º 3, do CPC, que o «disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações, aos despachos».

Por fim, lê-se no art. 665.º, do CPC, que, ainda «que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação» (n.º 1); e, se «o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, deve delas conhecer no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários».
Defende-se, assim, que, «ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das (…) nulidades da sentença, não se limita a reenviar o processo para o tribunal a quo. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665º, nº 2». Logo, «a anulação da decisão (v.g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objecto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários», já que só «nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, pág. 261).
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3.2.1.3. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
Concretizando, vieram os Recorrentes (I. D. e mulher, A. L.) arguir a nulidade da decisão proferida pelo Tribunal a quo (que, admitindo liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante, fixou o respectivo rendimento indisponível em duas retribuições mínimas mensais garantidas), por alegada violação do art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.
Com efeito, e segundo os Recorrentes, «o despacho que declara a exoneração nem sequer se debruça sobre a questão levantada de além dos requerentes no seu agregado se encontram a seu cargo dois filhos menores que, não obstante estarem insolventes e terem o seu processo de exoneração decorrer de certa forma estão ao encargo dos seus pais»; e, «esta situação, não sendo propriamente uma situação tipo merece que seja considerada pelo tribunal».

Ora, compulsada a decisão de mérito proferida nos autos (o dito despacho de admissão liminar do incidente de exoneração do passivo restante, na parte em que fixou o rendimento disponível a ceder pelos Insolventes aos seus credores), após a produção de prova (unicamente documental), verifica-se que na mesma se omitiu completamente qualquer discriminação dos factos provados e não provados, para alicerçar o posterior juízo, de que rendimento o disponível «será todo o auferido pelos» Insolventes, «com ressalva de uma quantia equivalente a uma retribuição mínima mensal garantida, quantia que fica reservada para cada um dos devedores (art.º 239º nº 3 al. b) do CIRE), ou seja, um total de duas retribuições mínimas mensais garantidas».
Logo, tem-se como verificada a nulidade dessa decisão, na parte em que fixou o rendimento disponível a ceder pelos Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) aos seus credores, consistente na falta de especificação dos respectivos fundamentos de facto (isto é, a discriminação dos factos provados e não provados, a que se juntou a omissão de qualquer apreciação crítica da prova produzida que houvesse permitido o seu apuramento, assegurando depois a subsequente sindicância pelas partes), prevista na al. b), do n.º 1, do art. 615.º do CPC.
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Contudo, os autos reúnem todos os elementos necessário para que se possa conhecer do mérito da causa (isto é, da correcção, ou incorrecção, da fixação, pelo Tribunal a quo, do rendimento disponível dos Insolventes, para cessão aos respectivos credores).
Com efeito, lê-se na sentença que declarou a insolvência dos Recorrentes (I. D. e mulher, A. L.), sob a epígrafe «III. Fundamentação de facto», que, com «relevância para a decisão de mérito da causa, por força do disposto no artigo 28.º, do CIRE, e dos documentos juntos, consideram-se demonstrados os factos articulados na petição inicial»; e da mesma não foi interposto recurso, tendo por isso transitado em julgado (arts. 619.º, n.º 1 e 628.º, ambos do CPC).
Posteriormente, e com «vista à apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo restante», foram os Insolventes notificados «para juntar documentos comprovativos dos respectivos rendimentos e despesas do agregado familiar, designadamente declarações de rendimentos (IRS), recibo de renda e extracto de remunerações da Segurança Social»; e, juntos por eles documentos e notificados ao Administrador de Insolvência e aos seus Credores, nada foi oposto ou requerido por eles, ficando por isso assente o seu teor.
Logo, está já assente nos autos a factualidade necessária à fixação do rendimento disponível dos Insolventes, para cedência aos respectivos seus credores.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

4.1. Factualidade considerada
Com interesse para a apreciação da questão enunciada, mostram-se assentes nos autos os seguintes factos (desconsiderando-se os demais alegados, por irrelevantes para este efeito):

1 - I. D., então com 26 anos de idade, e A. L., então com 18 anos de idade (aqui Insolventes), casaram entre si no dia 9 de Agosto de 1975, sem convenção antenupcial (conforme certidão do assento de casamento respectivo, junta com o requerimento inicial, e que aqui se dá por integralmente reproduzido).

2 - I. D. e A. L. são pais de J. M. e de J. D., solteiros, maiores e com eles conviventes.

3 - J. M. foi declarado insolvente por decisão do Tribunal da Comarca de Braga, Juízo de Comércio de Guimarães, Juiz 2, no Processo n.º 52/20.7T8GMR (conforme certidão da sentença respectiva, junta com o requerimento inicial, e que aqui se dá por integralmente reproduzida).

4 - J. D. foi declarado insolvente por decisão do Tribunal da Comarca de Braga, Juízo de Comércio de Guimarães, Juiz 1, no Processo n.º 1199/20.5T8GMR (conforme certidão da sentença respectiva, junta com o requerimento inicial, e que aqui se dá por integralmente reproduzida).

5 - J. M. e J. D. não têm quaisquer proveitos fruto do trabalho, não contribuindo para assegurar a sua própria alimentação, ou quaisquer gastos com a casa.

6 - I. D. e A. L. são pais de A. T..

7 - Os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) têm actualmente como único rendimento a pensão de velhice do Insolvente, de € 936,73 por mês, tendo o seu rendimento anual líquido no ano de 2019 sido de € 13.155,93.

8 - A Insolvente (A. L.) é doméstica há mais de 20 anos.

9 - Os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) residem numa casa arrendada, pagando mensalmente a quantia de € 430,00 (quatrocentos e trinta euros, e zero cêntimos) para esse efeito (conforme cópias de «Contrato de Arrendamento Para Fim Habitacional Com Prazo Certo» e recibos de renda electrónicos, juntos aos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos).

10 - Em Dezembro de 2020, os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) pagaram € 26,68 (vinte e seis euros, e sessenta e oito cêntimos) por serviços de saneamento (conforme «Fatura» de Águas do Norte, junta aos autos e que aqui se dá por integramente reproduzida).

11 - Em Dezembro de 2020, os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) pagaram € 35,29 (trinta e cinco euros, e vinte e nove cêntimos) por fornecimento de água (conforme «Fatura» de Indaqua, junta aos autos e que aqui se dá por integramente reproduzida).

12 - Em Dezembro de 2020, os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) pagaram € 61,96 (sessenta e um euros, e noventa e seis cêntimos) por fornecimento de electricidade (conforme «Fatura» de Eletricidade ..., junta aos autos e que aqui se dá por integramente reproduzida).

13 - Em Dezembro de 2020, os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) pagaram € 14,12 (catorze euros, e doze cêntimos) por fornecimento de gás (conforme «Fatura» de Eletricidade ..., junta aos autos e que aqui se dá por integramente reproduzida).

14 - Em Dezembro de 2020, os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) pagaram € 126,52 (cento e vinte e seis euros, e cinquenta e dois cêntimos) por serviços de telecomunicações, incluindo televisão e telemóveis (conforme «Fatura» de Nos, junta aos autos e que aqui se dá por integramente reproduzida).

15 - Têm sido A. T. e outros familiares dos Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) a ajudá-los economicamente.

16 - Foram reconhecidos créditos sobre a insolvência na importância global de € 188.374,69 (cento e oitenta e oito mil, trezentos e setenta e quatro euros, e sessenta e nove cêntimos).

17 - Foi determinado o encerramento do processo de insolvência, pertinente a I. D. e mulher, A. L., por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as suas restantes dívidas.
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4.2. Motivação da decisão de facto
Os factos enunciados sob os números 1 a 7, e 15 (para além dos documentos autênticos que os atestam, neles próprios referidos) foram considerados provados pela sentença que declarou a insolvência dos Requerentes (I. D. e mulher, A. L.), tendo a mesma já transitado em julgado; e, por isso, tornaram-se insindicáveis nestes autos.
O facto enunciado sob o número 8 consta do relatório apresentado pelo Administrador de Insolvência, nos termos do art. 155.º do CIRE, que, notificado aos Credores, não mereceu qualquer reacção destes.
Os factos enunciados sob os números 9 a 14 constam de documentos juntos pelos Insolventes (I. D. e mulher, A. L.), que, notificado ao Administrador de Insolvência e aos Credores, não mereceram qualquer reacção destes.
Os factos enunciados sob os números 16 e 17 reproduzem o atestado pelos próprios autos de insolvência.
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V - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

5.1. Exoneração do passivo restante
5.1.1. Objectivos - Pressupostos e Tramitação
5.1.1.1. Objectivos

Lê-se no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março (que aprovou o CIRE - Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), que o «Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da “exoneração do passivo restante”».
Com efeito, e entre nós, ainda que o produto da liquidação do património (garantia geral dos credores, conforme art. 601.º do CC), não seja suficiente para o cumprimento integral das obrigações do devedor, nem por isso os credores vêem definitivamente cerceado o seu direito: em caso de regresso de melhor fortuna, poderão sempre accionar o insolvente, que continua vinculado até ao limite do prazo ordinário de prescrição de 20 anos (art. 309.º, do CC); e, assim, pode ser inviabilizada a sua reabilitação económica (cruzando-se na mesma quer a dignidade da pessoa humana, quer o interesse no desenvolvimento da economia, que pressupõe o contributo do maior número de elementos financeiramente saudáveis).
Reconhece-se ainda, com este pretendido «fresh start», que «o sobreendividamento» é «um risco natural da economia de mercado, particularmente associada à expansão do mercado de crédito - o crédito é uma actividade que se faz com risco e, por isso, o sobreendividamento é um risco antecipado e calculado pelos credores: o consumidor que ousa recorrer ao crédito e é mal sucedido não deve ser, por isso, excessivamente penalizado e, sobretudo, não deve ser excluído do mercado por um tempo demasiado longo» (Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o anteprojecto de código, Ministério da Justiça, Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, pág. 89).
O princípio geral nesta matéria é, então, o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular (9) a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

«A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período de cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impediam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica» (Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março, com bold apócrifo).
«Efectivamente, a concessão de uma nova oportunidade às pessoas singulares justifica-se, até porque a insolvência pode ter causas que escapam ao seu controlo, como as perdas de rendimento resultantes de desemprego, doença, ou divórcio, nos trabalhadores subordinados, ou o lançamento de um novo negócio, que se revelou não rentável, nos trabalhadores independentes, desempenhando muitas vezes os hábitos de consumo desenfreados também um papel, podendo o devedor muitas vezes recompor a sua situação económica se lhe derem a oportunidade de começar de novo» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 322).
Assim se justifica, inclusivamente, que a exoneração do passivo restante possa até ser requerida em casos de insuficiência da massa insolvente, conforme art. 39.º, n.º 8, do CIRE (10); ou sê-lo por insolventes sem qualquer rendimento actual susceptível de ser cedido aos seus credores (11).
Compreende-se, por isso, que se leia no art. 235.º, do CIRE, que, se «o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste».
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5.1.1.2. Pressupostos - Tramitação

Mais se lê, no art. 236.º, n.º 1 e n.º 3, do CIRE, que o «pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação» (n.º 1), pelo que só ele tem legitimidade para o efeito; e do requerimento deve constar «expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos» exigidos para o efeito, discriminados nos arts. 238.º e seguintes (n.º 2), grosso modo, o não ter prejudicado os credores com a sua pretérita actuação (nomeadamente, não ter falseado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência as informações pertinentes à sua situação económica por forma a obter crédito, ter-se apresentado prontamente à insolvência, não ter culposamente criado ou agravado a sua situação de insolvência, e não ter violado, com dolo ou culpa grave, os deveres de informação, apresentação e colaboração que o CIRE lhe impunha no decurso do respectivo processo de insolvência).
«Não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes», determinando que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal», a quem cabe afectar «os montantes recebidos, no final de cada ano que dure a cessão», aos «credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processos de insolvência» (arts. 239.º, n.º 1 e n.º 2 e 241.º, n.º 1, al. d), ambos do CIRE) (12); e, durante o período de cessão, não sendo «permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência», nem qualquer actuação que conceda vantagens especiais a um credor sobre outro (art. 242.º, do CIRE) (13).

Ficará ainda o devedor insolvente, durante o período de cessão, vinculado à observância de um conjunto de obrigações fundamentais, discriminado no art. 239.º, do CIRE (nomeadamente, de exercer uma profissão remunerada, de entregar ao fiduciário a parte dos rendimentos que receba que seja objecto da cessão, a não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, informando prontamente sobre os mesmos ou sobre o seu património, e a não fazer quaisquer pagamentos ou a não criar quaisquer vantagens especiais em benefício de qualquer dos credores da insolvência (14).
Das mesmas resulta que, para além dos específicos deveres de apresentação, informação e colaboração, o devedor insolvente está ainda obrigado aos deveres gerais de cooperação e de actuação com boa-fé processual (15).

A distribuição do dito rendimento disponível aos credores da insolvência far-se-á uma vez por ano, provavelmente como forma de poupança de custos e de melhor controlo da actuação do insolvente (art. 241.º, n.º 1, do CIRE, onde se lê que o «fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles de quem ele tenha direito a havê-los e afeta os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão», de acordo com a ordem legal de satisfação dos créditos»); e por isso se compreende que o fiduciário tenha que apresentar anualmente um relatório com informação sucinta sobre essa parcela do período da cessão (arts. 61.º, n.º 1 e 240.º, n.º 2, ambos do CIRE, lendo-se no último preceito que deve «a informação revestir periodicidade anual e ser enviada a cada credor e ao juiz»).

Caso o devedor venha a incumprir, dolosamente ou com grave negligência, as obrigações assumidas, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência, ou se apure culpa sua na criação ou agravamento da sua situação de insolvência, deve o juiz recusar antecipadamente a exoneração (art. 243.º, n.º 1, do CIRE); e, «oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência» (n.º 4, do art. 243.º citado).
Precisa-se porém (embora se crendo que de forma desnecessária, face ao demais explicitado), que, se antes «de ter sido proferida a decisão de recusa de exoneração», tiverem «sido efectuados pagamentos a credores sobre a insolvência», esses pagamentos «produzem os seus efeitos, pois não há restituição dos créditos» (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 612).

Não se verificando estas hipóteses, e vindo - no final do período da cessão - a ser concedida a exoneração do passivo restante, «importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida» (16), exceptuados os créditos por alimentos, as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamados nessa qualidade, os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações e os créditos tributários (arts 244.º e 245.º, ambos do CIRE) (17).
Precisa-se, porém, que aqui estão apenas em causa «os credores da insolvência, ou seja os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data da declaração de insolvência (art. 47º, nº 1). (…) Já os novos credores, cujos créditos se tenham constituído após a declaração da insolvência, não são abrangidos pelo art. 242º, podendo em consequência executar livremente os bens do devedor. Essa faculdade de execução apresenta-se, no entanto, como destituída de efeito prático, uma vez que o devedor não terá em princípio bens penhoráveis, dado que todo o seu activo patrimonial é cedido ao fiduciário, que o afecta à satisfação dos credores da insolvência» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 332, com bold apócrifo).

Compreende-se, por isso, que se afirme que não «se pense (…) que o CIRE contém um regime que é um brinde ao incumpridor» (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 584), já que se está perante um instituto que, simultaneamente, tem subjacente quer o interesse do devedor (que poderá ficar, definitivamente, exonerado do seu passivo restante - face ao termo do processo de insolvência), quer os interesses dos seus credores (que aqui encontram uma «dupla oportunidade» de satisfação dos seus créditos).
Por outras palavras, «após o encerramento do processo de insolvência, e portanto esgotada a função do administrador de insolvência com a repartição do saldo do património actual (I. V.) pelos devedores, ainda se efectua a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante cinco anos, com a função de o repartir pelos credores (art. 239º), colocando-se assim também o património a adquirir futuramente pelo devedor (S. V.) durante um longo período igualmente afecto à satisfação dos seus credores» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 322).
O benefício final pretendido pelo insolvente (isto é, a concessão efectiva da exoneração do seu passivo restante) depende ainda do preenchimento inicial de determinados requisitos, e fica subordinado ao cumprimento de determinadas obrigações, pelo que o despacho inicial «só promete conceder a exoneração efectiva», e não a garante (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 899) (18).
Por fim, do prazo fixo de cinco anos do período de cessão, se retira igualmente o ser «manifestamente estabelecido em benefício dos credores», constituindo «o período que o legislador entendeu adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos.
Em favor deste entendimento militam o nº 2 do art. 243º e o nº 1 do artº 244º dos quais decorre que a cessação antecipada do procedimento de exoneração, quando não fundada em situações relativas ao devedor, só se verifica se se mostrarem totalmente satisfeitos os créditos sobre a insolvência», «satisfazendo-se, assim, o fim que preside ao instituto», ocorrendo então «uma situação equivalente à inutilidade superveniente da lide» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, op. cit., págs. 905 e 916) (19).
Dir-se-á, deste modo, que no instituto da exoneração do passivo restante, o legislador procurou conciliar os incontornáveis direitos dos credores a verem satisfeitos os seus créditos, com direitos de personalidade do devedor (recuperação da sua liberdade económica, produtividade, bem-estar), desde que não haja dolo ou culpa grave da sua parte na situação em que se encontra e desde que não seja reincidente. No regime instituído foram nitidamente ponderadas, ainda, questões de política social geral. Estão presentes as ideias de socialização do risco do mercado de crédito, repartindo-o entre credores e devedores, e de prevenção da exclusão social do devedor (Ana Filipa Conceição, «Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares no Código da Insolvência e Recuperação de Empresas», I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2013, págs. 29-62, com bold apócrifo).
O interesse dos credores é ainda atendido pelo facto do insolvente, enquanto devedor não exonerado, ter o seu acesso ao crédito limitado, o que deixará de suceder após alcançar aquele benefício. Deste modo, incentiva-se a inclusão socioeconómica do devedor e propicia-se a sua contribuição futura no desenvolvimento da economia (Paulo Mota Pinto, «Exoneração do passivo restante: Fundamento e constitucionalidade», III Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2015, págs. 179).
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5.1.2. Rendimento disponível (para cedência aos credores)

5.1.2.1. Definição
Lê-se no art. 239.º, do CIRE, que, durante o «período de cessão», o devedor fica obrigado a ceder o rendimento que seja considerado disponível para o efeito (n.ºs 2, 3 e 4, al. c) ).
Está-se aqui perante uma obrigação principal, aquela que constitui a contrapartida do facto de poder vir a ser exonerado do passivo que possuía.

Pormenorizando a determinação do rendimento disponível (que deverá ser cedido pelo insolvente ao fiduciário, para entrega aos seus credores, com vista à respectiva exoneração final do passivo restante), é o mesmo definido por exclusão; e com recurso a conceitos indeterminados.
Com efeito, lê-se no art. 239.º, n.º 3, als. a) e b), do CIRE que, integram «o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor».
Ora, tendo o património uma função interna, «enquanto suporte de vida económica do seu titular», e uma função externa, enquanto «garantia geral dos credores», pode-se desde já afirmar que as duas primeiras exclusões previstas na al. b), do n.º 3, do art. 239.º, do CIRE, relacionam-se com aquela primeira, que assim deverá prevalecer, embora nos limites legais enunciados (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, págs. 905 e 906, e Luís A. Carvalho Fernandes, «A exoneração do passivo restante na insolvência das pessoas singulares no Direito português», Colectânea de Estudos sobre Insolvência, Quid Juris, 2009, pág. 295).

Enfatiza-se que, «de acordo com o que resulta dos artºs 81º, nºs 1, 2 e 4, e 84º, nº 1, o insolvente pode - e deve na medida do possível ! - providenciar pela realização de um trabalho que lhe garanta meios de subsistência, susceptível também de gerar rendimentos que, uma vez efectivamente obtidos, integram a massa insolvente» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 709, com bold apócrifo) (20).
Precisa-se, porém, que não se está aqui «apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo antes abrangidos quaisquer acréscimos patrimoniais. Assim, se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar-se cedido ao fiduciário. A tal não obsta o art. 2028º, nº 2, dado que a cessão do rendimento disponível constitui uma hipótese legalmente prevista» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 327, com bold apócrifo).
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5.1.2.2. Critérios de determinação do seu montante
5.1.2.2.1. Sustento minimamente digno do devedor

Tentando precisar o que seja «o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» (conceito exclusivamente convocado no recurso em apreciação), dir-se-á que, sendo o mesmo relativo ao montante indispensável a uma existência condigna, obriga a densificação, a uma ponderação casuística.
A jurisprudência tem, porém, tentado encontrar critérios que se revelem capazes de preencher este conceito normativo, facilitando a sua aplicação ajustada e equilibrada, perante cada situação concreta, e tendencialmente uniforme, face à generalidade das situações idênticas (21).
Parte, assim, da afirmação de que a exigência de um «sustento minimamente digno» radica na «dignidade da pessoa humana», consagrada nos arts. 1.º, 2.º, 13.º, 59.º, n.º 1 e 67.º, n.º 1, todos da CRP; e bem assim, no art. 25.º da DUDH, onde se lê que toda «a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários» (DUDH que a CRP manda considerar na interpretação e integração das normas próprias relativas a direitos fundamentais) (22).
Logo, na determinação do que seja «o sustento minimamente digno» ter-se-á necessariamente que atender «às condições pessoais e de vida do insolvente e do seu agregado (…), designadamente a sua idade, situação profissional, estado de saúde, rendimentos, composição do seu agregado familiar, encargos essenciais com o seu sustento, habitação, vestuário e despesas de saúde» (Ac. da RL, de 12.12.2013, Vítor Amaral, Processo n.º 3339/12.9TJLSB-D.L1-6).
Esta densificação do conceito de «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» exigirá, naturalmente, «uma fase de burilamento e adequação ao momento histórico e social da sua aplicação», importando nomeadamente «ter presente as recentes tendências do nosso Estado de reduzir os apoios concedidos aos seus cidadãos, nomeadamente na área da saúde, eliminando benefícios até agora existentes e taxando serviços antes gratuitos», com o consequente e paulatino aumento do «esforço financeiro necessário para aceder a assistência médica por parte de portadores de doenças crónicas» ou daquelas que naturalmente tenderão a surgir, ou a agravar-se, com o decurso da idade (Ac. da RG, de 16.05.2013, Raquel Rego, Processo n.º 4466/11.5TBGMR-F.G1, com bold apócrifo) (23).

Contudo, e naturalmente, tal não significa que o devedor deva manter «o nível de vida que tinha anteriormente, antes pode/deve mesmo baixá-lo, ainda que tendo sempre como limite o quantum necessário para a salvaguarda de uma existência condigna» (Ac. da RG, de 19.03.2013, António Santos, Processo nº 363/12.5TBCMN-B.G1) (24).

Prosseguindo, e tendo em conta que a lei fixou um tendencial limite máximo equivalente a três salários mínimos nacionais (de que, porém, o juiz se poderá afastar, desde que o fundamente de forma especial), dir-se-á que - na ausência de prova da existência de despesas ou encargos extraordinários - o limite mínimo deverá coincidir com um salário mínimo nacional (25). É que, apesar do seu estabelecimento não obedecer, na sua génese, à garantia de um mínimo de subsistência, não deixa de ser um referencial importante «do trabalho digno e da coesão social» (conforme preâmbulo do Decreto-Lei n.º 254-A/2015, de 31 de Dezembro).
Neste sentido, pondera-se a unidade e coerência do ordenamento jurídico, apelando-se nomeadamente ao disposto no art. 738.º do CPC, onde se lê que: são «impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização e acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado» (n.º 1); para «efeitos de apuramento da parte líquida das prestações referidas no número anterior, apenas são considerados os descontos legalmente obrigatórios» (n.º 2); a «impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional» (n.º 3).
Consagra-se aqui uma impenhorabilidade legal, radicada na «dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos de Portugal como República soberana, nos termos do art. 1º da CRP» (Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 12.ª edição, Almedina, Janeiro de 2010, pág. 208, com bold apócrifo); e indiscutivelmente estão «em causa interesses vitais do executado», como sejam os rendimentos que «se reputam indispensáveis ao seu sustento» (José Lebre de Freitas, A Ação Executiva. À luz do Código do Processo Civil de 2013, 6.ª edição, Coimbra Editora, Fevereiro de 2014, págs. 248-249).
Ponderou-se nesta redacção a anterior doutrina do Tribunal Constitucional, primeiro afirmada no seu Acórdão n.º 318/99 (Diário da República, II, n.º 247, de 22 de Outubro, p. 15.838), segundo o qual a norma do art. 824.º, n.ºs 1 e 2, do anterior CPC, na sua redacção inicial, «na medida em que permite a penhora até um terço quer de vencimentos ou salários auferidos pelo executado, quando estes são de valor não superior ao salário mínimo nacional em vigor naquele momento, quer de pensões de aposentação ou de pensões sociais por doença, velhice, invalidez e viuvez, cuja valor não alcança aquele mínimo remuneratório, é inconstitucional por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, nº 2, al. A) e 63º, nºs 1 e 3, da Constituição da República portuguesa».
Esta jurisprudência foi sendo reiterada pelo mesmo Tribunal Constitucional em decisões posteriores, levando à prolação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2002 (publicado no Diário da República, I, n.º 150, de 2 de Julho, págs. 546/01), que decidiu «declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até um terço das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do nº 2 do artigo 59º e dos nºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição».
Assim, em «caso de colisão ou conflito entre o direito do credor a ver realizado o seu direito, apoiado no nº 1 do art. 62º da CRP, como direito de acesso à propriedade, e o direito fundamental dos trabalhadores, pensionistas e outros beneficiários de regalias sociais e por causa de acidentes em perceberem um rendimento que lhes garanta uma sobrevivência condigna, optou o legislador, e justamente, pelo sacrifício do direito do credor, na medida do necessário e, se tanto for indispensável, mesmo totalmente, (…) neste caso para evitar que o devedor se transforme num indigente a cargo da sociedade» (Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 12.ª edição, Almedina, Janeiro de 2010, pág. 209, com bold apócrifo).
Logo, «podemos concordar que, independentemente da necessária ponderação casuística, o valor do salário mínimo nacional como limite mínimo de exclusão poderá constituir um ponto de partida razoável para as decisões», sendo «que não se deverá nunca por nunca, fixar um quantitativo inferior ao SMN mensal que esteja em vigor» (José Gonçalves Ferreira, A exoneração do passivo restante, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, págs. 93 e 94) (26).
A retribuição mínima mensal garantida está actualmente fixada em € 665,00 (Decreto-Lei n.º 109-A/2020, de 31 de Dezembro).
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5.1.2.2.2. Sustento minimamente digno do agregado familiar do devedor
Recorda-se, porém, que por força da lei a retribuição mínima mensal garantida (antes, salário mínimo nacional) que constitua o limite inferior para o «sustento minimamente digno» deverá ser imperativamente considerada, não só relativamente ao insolvente, como igualmente quanto a cada um dos elementos que componham o seu agregado familiar e que estejam a seu cargo.
Com efeito, o art. 239.º, n.º 3, al. b), i), do CIRE claramente impõe que seja excluído do rendimento sujeito à cessão o que seja razoavelmente necessário para assegurar um sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar e não do devedor e dos seus filhos menores.

Ora, o «conceito de agregado familiar não vem definido, nem no CIRE, nem nalgum outro diploma aplicável, sendo um conceito que assume distintos contornos consoante a matéria em causa. Por exemplo, para efeitos fiscais, o CIRS contempla um determinado conceito de agregado familiar (Artº 13º/3), onde cabem os dependentes a cargo dos sujeitos fiscais. Para efeito de apoios sociais, o DL 70/2010 de 16/04, contém um distinto conceito de agregado familiar - o agregado doméstico privado (Artº 4º). De comum, parece existir um elemento - o de vida em economia comum (Ac. da RG, de 08.01.2015, Manuela Fialho, Processo n.º 1980/14.4TBGMR-E.G1, com bold apócrifo).
Logo, se os filhos do insolvente forem menores, ou forem filhos maiores que ainda não tenham completado 25 anos e cujo processo de educação ou formação profissional ainda não esteja concluído (atenta a nova redacção conferida ao art. 1905.º, n.º 2, do CC, pela Lei n.º 122/2015, de 1 de Setembro), poder-se-ia presumir que cada um deles necessitaria, para o tal «sustento minimamente digno», de uma retribuição mínima mensal garantida.
Neste pressuposto, e competindo a ambos os progenitores a responsabilidade de o assegurarem (arts. 1878.º, 1880.º e 1905.º, todos do CC, e art. 989.º, n.ºs 1 e 3, do CPC), caberia então ao insolvente afectar-lhe metade de uma retribuição mínima mensal garantida, se outro tanto fosse assegurado pelo outro progenitor do filho em causa, ou por qualquer terceiro ou entidade que o substitua.

Contudo, considerando que «os diversos membros do agregado familiar não têm, necessariamente, idênticas necessidades», vem alguma jurisprudência rejeitando esta automática capitação de uma retribuição mínima mensal garantida, por cada membro que componha o agregado familiar do insolvente; e acolhe, em vez dela, «o recurso a escalas de equivalência, que permitam ter em conta as diferenças nas necessidades de cada membro do agregado familiar, designadamente a denominada escala de Oxford criada em 1982, para determinação da capitação dos rendimentos de um agregado familiar, segundo a qual o índice 1 é atribuído ao 1.º adulto do agregado familiar e o índice 0,7 aos restantes adultos do agregado familiar, enquanto às crianças se atribui sempre o índice 0,5 (Ac. da RC de 12/03/2013, procº 1245/12.5TBLRA-F, publicado em www.dgsi.pt)». Relembra, a propósito, que a «definição de uma capitação entre as definidas pela OCDE, em função da composição dos elementos do agregado familiar foi também acolhida pelo DL 70/2010 de 16/06, diploma que estabeleceu os critérios para concessão de apoios sociais» (Ac. da RG, de 08.01.2015, Manuela Fialho, Processo n.º 1980/14.4TBGMR-E.G1, com bold apócrifo).
Pondera, nomeadamente, que a «realidade diz-nos que as necessidades de um agregado familiar não são integradas por necessidades iguais para todos os seus membros, porque tem que se tomar em consideração que o custo marginal de uma pessoa extra varia na medida em que o tamanho da família aumenta, ou na medida em que as necessidades dos diferentes membros podem ser distintas»; e justifica assim que «se construíssem escalas de equivalência que permitissem tomar em consideração essas diferenças, de forma a possibilitar um maior rigor na capitação de rendimentos familiares» (Ac. da RC, de 12.03.2013, Sílvia Pires, Processo n.º 1254/12.5TBLRA-F.C1) (27).

Crê-se, porém, que, tendo o legislador optado no CIRE, expressa e intencionalmente, por um critério geral e abstracto, do «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar», pretendeu que o mesmo fosse objecto de casuística densificação; e a mesma é incompatível com qualquer fórmula matemática, de automática e invariável aplicação (28).
A crítica exposta tanto se aplica à consideração de uma retribuição mínima mensal garantida por cada membro do agregado familiar do insolvente, como à consideração de uma qualquer diferenciação matemática fixa de que beneficiem (face àquela retribuição mínima mensal garantida): uma e outra hipótese desconsideram as concretas diferentes despesas que, naturalmente, os vários e distintos membros do agregado familiar do insolvente terão (face àqueles rígidos e inalteráveis critérios).
Logo, e sem prejuízo de se poder recorrer a tais realidades como critérios auxiliares de ponderação, não poderão/deverão os mesmos subverter e substituir a necessária ponderação da diferenciada realidade do caso concreto, à luz do único critério legal elegível, do «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar».
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5.1.2.2.3. Determinação da retribuição mínima mensal garantida (enquanto limite mínimo)

É ainda discutível se esta «retribuição mínima mensal garantida», enquanto limite mínimo do rendimento a reservar imperativamente ao insolvente (salvaguardando-o da cessão aos seus credores) deverá coincidir com o singelo montante mensal que normalmente é auferido (29), ou deverá antes coincidir com o seu valor mensalizado, que se obtém dividindo o valor global dos rendimentos laborais obtidos pelos doze meses do ano civil (como já vêem fazendo entidades de referência em recolha e tratamento de dados, como a Pordata - Base de Dados Portugal Contemporâneo); e, por isso, incluindo aqui os subsídios de férias e de natal (30).
Crê-se que a resposta a esta pergunta terá necessariamente que ser tributária da especificidade do instituto da exoneração do passivo restante (que aqui nos ocupa), e não tanto dos conceitos gerais de retribuição mínima mensal garantida, de subsídio de férias e de subsídio de natal.

Precisando, e começando pelo subsídio de férias, não se ignora que actualmente, «mais do que como um simples período de inactividade, as férias são hoje concebidas como um factor de equilíbrio biopsíquico do trabalhador, implicando um “corte com a rotina”, uma ruptura drástica com o quotidiano laboral e extralaboral, o que redunda, mais ou menos inevitavelmente, num acréscimo de despesas para o trabalhador e respectiva família (deslocação, alojamento, etc.)»; e que é precisamente em «ordem a possibilitar que o trabalhador enfrente este previsível aumento de gastos», que a lei determina que, «além da retribuição de férias (…), o trabalhador terá outrossim direito a auferir um subsídio de férias» (João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 3.ª edição, Almedina, pág. 288).
Precisando novamente, e agora quanto ao subsídio de natal, dir-se-á que o natal permite ao trabalhador (e ainda que não religioso) o festejo de uma quadra especialmente dedicada à família, entendendo-se por esta não apenas a sua nuclear (cada vez mais reduzida), mas sobretudo a sua alargada (cuja reunião está cada vez mais limitada a esta quadra e à Páscoa), o que implica habitualmente um acréscimo de gastos (quer em deslocações, quer na disponibilidade de uma gastronomia mais rica e alargada no tempo, quer na aquisição das habituais prendas); e que é precisamente em ordem a possibilitar que o trabalhador assegure este aumento previsível de gastos, que lhe é pago o subsídio de natal.
Compreende-se, por isso, que se afirme que os subsídios de férias e de natal são, em regra, «prestações, legalmente consagradas, destinadas aos trabalhadores por conta doutrem (e aos beneficiários de pensões de reforma) que visam proporcionar aos seus titulares um acréscimo de rendimento (equivalente ao valor da retribuição), duas vezes no ano - no período de férias e no natal - a fim de que se usufrua de forma plena esses dois períodos festivos (de férias e de natal)» (Ac. da RG, de 26.11.2015, Maria Amélia Santos, Processo n.º 3550/14.8T8GMR.G1).
Contudo, admite-se facilmente que, no caso de trabalhadores que aufiram salários mais baixos, nomeadamente inferiores ou no limite da retribuição mínima mensal garantida, os subsídios de férias e de natal sejam necessários para garantir o seu «sustento minimamente digno», sendo nomeadamente afectos à satisfação de regulares despesas anuais (v.g. prémios de seguro, contribuições de condomínio), bem como à aquisição de extraordinários bens ou serviços (v.g. óculos graduados, aparelhos dentários, electrodomésticos de primeira necessidade, tratamentos urgentes), ou mesmo para fazer face a curtos períodos de perda, parcial ou total, ou decréscimo, da habitual remuneração laboral (v.g. baixa médica, menor volume de trabalho - suplementar, extraordinário, nocturno, ou noutro regime que justifique um valor hora mais elevado -, vacatio entre a dispensa de um posto de trabalho e o encontrar de outro).
Nestes casos, e infelizmente para o trabalhador (aqui insolvente), os subsídios de férias e de natal não cumprem a função social subjacente à sua consagração e pagamento, antes asseguram (exactamente como o demais rendimento laboral que aufira com carácter de habitualidade todos os meses) o pagamento das despesas inerentes ao seu sustento básico.
Ora, não temos dúvidas de que, nestes casos, os ditos subsídios de férias e de natal deverão ser subtraídos ao rendimento a ceder pelo insolvente ao fiduciário (no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante).
Tem-se, ainda, como conforme a maioria da jurisprudência que se vem pronunciando sobre este tema, uma vez, que quando exclui os subsídios de férias e de natal do rendimento autorizado a reter pelo insolvente, o faz assente na ponderação de que, no caso concreto, não se revela imprescindível ao seu «sustento minimamente digno» (31).
Logo, torna-se plenamente justificada a presunção de que, quando o resultado da divisão por doze (meses do ano civil), do montante anual global dos rendimentos do trabalho (incluindo doze salários mensais, um subsídio de férias e um subsídio de natal) seja inferior à retribuição mínima mensal garantida para o período considerado, os subsídios de férias e de natal serão necessários para assegurar o «sustento minimamente digno» do trabalhador insolvente.
Caberá, então, a quem discorde dessa razoável presunção, ilidi-la, demonstrando a falsidade do facto presumido (isto é, de que apesar do resultado da divisão referida ser inferior à retribuição mínima mensal garantida em vigor no período considerado, ainda assim os ditos subsídios de férias e de natal não são necessários para assegurar a sobrevivência condigna do trabalhador insolvente).
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Dir-se-á ainda, e sempre e apenas no quadro fáctico considerado (de ser a divisão, por doze, dos rendimentos laborais globais anuais inferior à retribuição mínima mensal garantida), que o entendimento contrário é susceptível de consubstanciar, não só a violação do princípio da dignidade da pessoa humana (conforme se crê sobejamente exposto antes), como ainda a violação do princípio da igualdade e do princípio da proporcionalidade, consagrados nos arts. 13.º e 18.º, n.º 2, da CRP (32).

Com efeito, e relativamente à violação do princípio da igualdade (33), em qualquer situação em que dois trabalhadores insolventes auferissem o mesmo rendimento anual global (v.g. € 6.960,00), mas em que um fosse composto apenas com doze salários mensais regulares, todos correspondentes à retribuição mínima mensal garantida (v.g. € 580,00), e o outro fosse composto por doze salários mensais irregulares (no seu montante), sendo qualquer deles inferior à remuneração mínima mensal garantida (mas em proporção diferenciada) e pelos subsídios de férias e de natal, o primeiro nada estaria obrigado a entregar do montante exclusivamente considerado (€ 6.960,00), enquanto que o segundo estaria obrigado a entregar o montante correspondente aos subsídios de férias e de natal.
Contudo, essa diferenciação seria absolutamente injustificada (já que apenas baseada na presunção - injustificada no caso concreto - de que estaria previamente assegurada a salvaguarda de uma retribuição mínima mensal garantida, e de que aqueles subsídios seriam afectos à satisfação das necessidades para que foram criados); e, por isso, violadora do princípio da igualdade.

Já relativamente à violação do princípio da proporcionalidade (34), dir-se-á que, tendo em conta a ponderação de interesses entre os credores do insolvente e o próprio, ínsita no instituto de exoneração do passivo restante (e já sobejamente explicitada supra), a mesma deixará de se verificar se este for obrigado a entregar àqueles parte do rendimento do seu trabalho necessária a assegurar o seu «sustento minimamente digno»; e isso não pode deixar de suceder se a parte entregue for necessária para compor, juntamente com a por ele retida, o valor correspondente a uma retribuição mínima mensal garantida para cada um dos doze meses do ano civil.
Este injustificado excesso do benefício que assim fosse concedido aos credores do insolvente seria, por isso mesmo, violador do princípio da proporcionalidade.
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5.2. Subsunção do caso concreto (ao Direito aplicável)
5.2.1. Sustento minimamente digno dos Insolventes

Concretizando, verifica-se que: os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) têm, actual e respectivamente, 71 e 63 anos de idade; são casados entre si e vivem em economia comum, juntamente com dois filhos maiores; estes dois filhos são solteiros, foram declarados eles próprios insolventes, não trabalham, e não contribuem por qualquer forma para o respectivo sustento; os Insolventes residem em casa arrendada, cuja renda mensal é de € 430,00; os consumos domésticos dos Insolventes, com água, luz, gás, telecomunicações e saneamento, ascendeu no mês de Dezembro de 2020 a € 264,57; o Insolvente (I. D.) tem como único rendimento a sua pensão de velhice, no valor de € 936,73; a Insolvente (A. L.) é doméstica há mais de vinte anos; e os Insolventes têm sido auxiliados economicamente por uma outra filha, e por familiares.
Mais se verifica que o Tribunal a quo considerou que deveria integrar o rendimento disponível «todo o auferido pelos mesmos com ressalva de uma quantia equivalente a uma retribuição mínima mensal garantida, quantia que fica reservada para cada um dos devedores (…), ou seja um total de duas retribuições mínimas mensais garantidas».

Precisa-se, porém, que tendo-se os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) apresentado conjuntamente à insolvência, mutuamente requerido a exoneração do passivo restante, sendo casados entre si e vivendo em economia comum, as duas retribuições mínimas mensais garantidas que compõem o seu rendimento indisponível deverão ser consideradas globalmente, e não individualmente.
Por outras palavras, dos rendimentos auferidos pelos dois Insolventes (independentemente de quem o aufira, e em que medida) será retirado o montante correspondente às duas retribuições mínimas mensais garantidas (que integra o rendimento indisponível afecto a ambos); e o remanescente será depois entregue ao Sr. Fiduciário (por integrar o rendimento disponível para cedência aos seus credores).

Esclarecido, e considerando que o único rendimento auferido neste momento pelos Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) é a pensão de velhice mensal do Insolvente, de € 936,73, justifica-se plenamente a presunção (isto é, tem-se a mesma como totalmente razoável) de que o subsídio de férias e o subsídio de natal que aufira serão necessários para assegurar aquele sustento minimamente digno: somados (global de € 1.873,46) às doze pensões mensais que aufere (no montante global de € 11.240,76), e dividido o total assim obtido (de € 13.117,22) por doze meses, obtém-se o valor médio mensal de € 1.093,10; e este é inferior a € 1.330,00 (quantia correspondente às duas retribuições mínimas mensais garantidas de que deverão dispor, conjuntamente, em cada mês).

Por fim, dir-se-á que, não se tendo apurado outras despesas que não a renda de casa e os habituais e razoáveis consumos domésticos (v.g. relevantes e extraordinárias despesas com saúde), se tem como adequado o montante definido pelo Tribunal a quo para integrar o rendimento indisponível dos Insolventes (I. D. e mulher, A. L.), por ser a própria lei que o presume necessário e suficiente para assegurar o seu sustento minimamente digno (sendo que aqui reforçadamente, já que partilham as despesas que aquela lei considera individualmente, nomeadamente de habitação).

Logo, e com as duas não despiciendas precisões referidas supra, reitera-se aqui o juízo de exclusão do rendimento disponível dos Insolventes (I. D. e mulher, A. L.), para ceder aos seus credores: o montante dos rendimentos que aufiram correspondente, em cada momento, a duas retribuições mínimas mensais garantidas (considerando conjuntamente aqueles e estas); e computando nas retribuições mínimas mensais garantidas os subsídios de férias e os subsídios de natal quando, somados às doze pensões de velhice mensais (as já auferidas pelo Insolvente, e aquelas que a Insolvente aguarda que lhe venham a ser atribuídas, quando perfizer a idade legal de atribuição), e dividido o total assim obtido por doze meses, o valor apurado seja inferior à dita retribuição mensal mínima garantida (no caso, multiplicada por dois).
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5.2.2. Sustento minimamente digno do agregado familiar dos Insolventes
Concretizando novamente, verifica-se que os Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) não vivem sozinhos, já que integram o seu agregado familiar dois filhos; e estes são maiores de idade, solteiros, já declarados insolventes, e não auferem quaisquer rendimentos.
Precisa-se, a propósito, que não estando os Insolventes obrigados a prover ao sustento dos filhos maiores (conforme arts. 1878, n.º 1, 1880.º e 905.º, n.º 2, todos do CC), não deixam de estar obrigados a prestar-lhes alimentos, quando deles careçam, uma vez que, sendo solteiros, não existem cônjuges ou ex-cônjuges, nem há notícias nos autos de descendentes que os devessem substituir primacialmente no cumprimento dessa obrigação (conforme art. 2009.º, n.º 1, als. a), b), e c), do CC).

Mais se verifica que o Tribunal a quo, na decisão impugnada, aparentemente desconsiderou estes factos, uma vez que não salvaguardou qualquer rendimento dos Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) para fazer face ao sustento destes seus dois filhos (de forma autónoma ao que sempre seria necessário para eles próprios): para o conjunto dos quatro, limitou-o a duas retribuições mínimas mensais garantidas.
Ora, e salvo o devido respeito por opinião contrária, se é certo que os filhos dos Insolventes, vivendo com eles, não aumentam na mesma proporção as despesas comuns (v.g. em habitação, já que mais não seja pela partilha por ambos de um mesmo quarto, ou em consumo de energia para cozinhar), certo é igualmente que exigem a realização de despesas adicionais (v.g. com alimentação, vestuário, calçado, saúde e transportes próprios).
Dir-se-á ainda que, não tendo sido concretamente apurado o montante destas despesas, se poderá ser excessivo para as satisfazer a ponderação individual de uma retribuição mínima mensal garantida, não o será certamente metade do seu valor, isto é, € 332,50 para cada filho (ou globais € 665,00, para ambos).
Contudo, os Insolventes, ao invés de requererem a fixação do rendimento indisponível em € 1.995,00 (isto é, três retribuições mínimas mensais garantidas), apenas peticionaram que o mesmo fosse feito corresponder a € 1.905,00; e o Tribunal (a quo e ad quem) está limitado ao pedido formulado (conforme arts. 609.º, n.º 1, 615.º, n.º 1, al e), e 663.º, n.º 2, in fine, todos do CPC).

Deverá, assim, excluir-se do rendimento disponível, para cedência aos credores dos Insolventes, o montante correspondente a duas retribuições mínimas mensais garantidas (actualmente de € 1.330,00), tido como indispensável para assegurar o seu sustento minimamente digno, e ainda o montante de € 575,00, tido como indispensável para assegurar o sustento minimamente digno dos dois filhos maiores que integram o seu agregado familiar e que deles dependem.

Reconhece-se que, deste modo, os Insolventes, por ora (isto é, enquanto se mantiver a total ausência de rendimentos auferidos pela Insolvente e pelos dois filhos maiores que integram o seu agregado familiar), nada cederão mensalmente ao Sr. Fiduciário, para satisfação dos seus credores. Contudo, essa ponderação foi antecipadamente realizada pela lei, ao conferir prioridade à manutenção do razoavelmente necessário ao sustento do devedor e do seu agregado familiar.
*
Importa, pois, decidir em conformidade, pela total procedência do recurso interposto pelos Insolventes (I. D. e mulher, A. L.).
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VI – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pelos Insolventes (I. D. e mulher, A. L.) e, em consequência, em

· Declarar nula a decisão recorrida, na parte em que fixou o rendimento disponível a ceder pelos Insolventes aos seus credores, por absoluta falta de fundamentação de facto;

· Proferir decisão, fixando o rendimento indisponível dos Insolventes e do seu agregado familiar em € 1.905,00 (sendo duas retribuições mínimas mensais garantidas tidas como indispensáveis para assegurar o sustento minimamente digno dos Insolventes, e o montante de € 575,00 tido como indispensável para assegurar o sustento minimamente digno dos dois filhos maiores que integram o seu agregado familiar e que deles dependem).
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Custas pela massa insolvente (art. 527.º, do CPC).
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Guimarães, 07 de Outubro de 2021.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;

1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;

2.ª Adjunta - Alexandra Maria Viana Parente Lopes.



1. O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - doravante CIRE - foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/04, de 18 de Março.
2. Neste sentido, Ac. da RL, de 29.10.2015, Olindo Geraldes, Processo n.º 161/09.3TCSNT.L1-2 (disponível em www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).
3. Neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo n.º 00858/14.
4. Neste sentido, de eventual não distinção dos vícios que afectam a elaboração da decisão de facto das nulidades da sentença, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, págs. 733 e 734, onde se lê que «atualmente a sentença contém tanto a decisão sobre a matéria de direito como a decisão sobre a matéria de facto (cf. o art. 607-4), pelo que os vícios da sentença não se autonomizam hoje dos vícios da decisão sobre a matéria de facto, diversamente do que antes sucedia (cf. os arts. 608 e 653-4 do CPC de 1961). Esta circunstância, se não justifica a aplicação, sem mais, do regime do art. 615 à parte da sentença relativa à decisão sobre a matéria de facto - desde logo porque a invocação de vários dos vícios que a esta dizem respeito é feita nos termos do art. 640 e porque a consequência desses vícios não é necessariamente a anulação do ato (cf. os n.ºs 2 e 3 do art. 662) -, obriga, pelo menos, a ponderar, caso a caso, a possibilidade dessa aplicação».
5. Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex Edições Jurídicas, 1997, pág. 348.
6. No mesmo sentido, Ac. da RG, de 12.01.2010, António da Costa Fernandes, Processo n.º 809/1996.G1, onde se lê que o «dever de fundamentar as sentenças visa tornar possível um duplo controlo. Em primeiro lugar, um controlo intraprocessual, permitindo às partes o fácil exercício dos meios de impugnação, através do conhecimento dos motivos da decisão, e em facilitar o trabalho das instâncias superiores de recurso. Em segundo lugar, um controlo extraprocessual. Este último traduz-se na possibilidade de a comunidade jurídica e a opinião pública controlarem o modo como os órgãos jurisdicionais exercem o poder que lhes está atribuído. Trata-se, neste caso, de um “controlo democrático difuso que deve poder ser exercido por aquele mesmo povo em nome do qual a sentença é proferida” - cfr. o art. 202º, 1, da CRP».
7. Por todos, José Lebre de Freitas, Código de Processos Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 703 e 704, e A Acção declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, pág. 332. Contudo, e para este autor e para Isabel Alexandre, face à solução consagrada no CPC de 2013 (de integrar na sentença tanto a decisão sobre a matéria de facto, como a fundamentação respectiva), só a falta da primeira integra a nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, e não também a falta da segunda (v.g. genérica referência a toda a prova produzida na fundamentação da decisão de facto, ou conclusivos juízos de direito), a que será aplicável o regime previsto no art. 662.º, n.º 2, al. d) e n.º 3, als. b) e d), do CPC (conforme Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, pág. 736, com indicação de jurisprudência conforme).
8. Neste sentido, Ac. do STJ, de 08.03.2001, Ferreira Ramos, Processo n.º 00A3277.
9. Logo, só as pessoas singulares podem requerer a concessão do benefício de exoneração do passivo; mas todas as pessoas singulares o podem fazer (v.g. consumidores, comerciantes, profissionais independentes ou liberais). Compreende-se, ainda, que as pessoas colectivas estejam excluídas do procedimento, uma vez que «nem sequer dela efectivamente necessitam, na medida em que se dissolvem com a declaração de insolvência e vêem a sua personalidade jurídica definitivamente extinta com o registo do encerramento da liquidação» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 323).
10. Neste sentido, Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, pág. 584. Na jurisprudência, Ac. da RP, de 05.11.2007, Pinto Ferreira, Processo n.º 0754986; ou Ac. da RP, de 12.05.2009, Henrique Araújo, Processo n.º 250/08.1TBVCD-C.P1. Contudo, considerando que nem sempre será uma boa decisão (quando tenha sido «o devedor que se colocou intencionalmente na situação e insolvência - que ele planeou apresentar-se à insolvência absolutamente desprovido de bens»), além de que, «sempre que a exoneração prossiga, os custos da exoneração transferem-se integralmente para os credores, o que não é fácil de aceitar», Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 612.
11. Neste sentido, Ac. da RP, de 18.06.2009, José Ferraz, Processo n.º 3506/08.0TBSTS-A.P1; Ac da RC, de 23.02.2010, Alberto Ruço, Processo n.º 1793/09.5TBFIG-E.C1; Ac. da RG, de 07.04.2011, Augusto Carvalho, Processo n.º 1101/10.2TBVVD-A.G1; ou Ac. da RG, de 04.03.2021, Ramos Lopes, Processo n.º 3872/19.9T8STS.G1.
12. Esta «cessão determinada no despacho judicial inicial constitui uma cessão de créditos de bens futuros»; e encontra na lei a sua fonte directa, não sendo o devedor quem, por acto voluntário, cede aquele rendimento disponível, já que o fiduciário tem direito, nos termos do art. 241.º, n.º 1 do CIRE, a «haver» directamente o mesmo, o qual, porém, só pode afectar às finalidades previstas na lei (Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, 2016, págs. 601 e 606). No mesmo sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 8.ª edição, Almedina, 2015, pág. 255, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 327, Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2016, pág. 327, e Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 907. «Em consequência, os rendimentos auferidos durante este período transferem-se no momento em que são adquiridos e independentemente do consentimento dos devedores dos rendimentos (art. 577º, nº 1, do CCivil), sendo acompanhados das garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (art. 582º, nº 1, do CCivil)» (Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6.ª edição, Almedina, 2016, pág. 327).
13. Compreende-se, por isso, que se afirme que a «autonomia patrimonial» do instituto justifica que, durante o período da cessão, os credores não possam executar o património que lhe está afecto, proibindo-se ainda a concessão de vantagens especiais a credores (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 8.ª edição, Almedina, 2015, pág. 257). «Visa-se, por um lado, assegurar a efetiva realização dos fins da cessão, pelo que respeita aos rendimentos cedidos, não os distraindo da sua afectação»; e a «restrição, quanto a outros bens do devedor, também se revela adequada, quer por a sua execução poder afetar a fonte desses rendimentos, quer por esses bens constituírem a base da vida económico-social do devedor» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição Quid Juris, Lisboa 2013, pág. 912).
14. Dir-se-á que, sendo todas as obrigações, «de alguma forma, instrumentais ao procedimento de exoneração», destaca-se porém «a última [não fazer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores], que se destina, além do mais, a assegurar o respeito pela igualdade de tratamento dos credores» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 622).
15. Compreende-se, por isso, que se afirme que «não pode deixar de se associar o despacho inicial e a subsequente abertura do período de cessão à concessão da liberdade condicional por bom comportamento - uma espécie de “período experimental”, em que, se tudo correr bem, terá lugar a libertação definitiva do sujeito» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 620).
16. Compreende-se, por isso, que se afirme que, rigorosamente, «a exoneração qualifica-se como uma (nova) causa de extinção das obrigações - extraordinária ou avulsa relativamente ao catálogo de causas tipificado no Código Civil (cfr. arts. 837.º a 874.º)»; e, «ao contrário do que sucede no Direito Civil, no Direito da Insolvência a exoneração aparece - deliberadamente - como uma faculdade natural do devedor» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, pág. 613).
17. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão defende que se consagraram «exclusões muito amplas, especialmente a que abrange os créditos tributários, o que poderá diminuir consideravelmente o interesse da exoneração do passivo restante» (Direito da Insolvência, 3.ª edição, Almedina, 2011, pág. 336, com bold apócrifo). No mesmo sentido se pronuncia Catarina Serra, quando afirma que «há créditos que a lei poupa aos efeitos da exoneração», com justificações «variadas - e porventura discutíveis - mas o certo é que a medida pode prejudicar, a final, o objectivo do fresh start», reduzindo «consideravelmente o alcance da exoneração como instrumento e extinção da generalidade das dívidas do devedor» (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, págs. 625-626).
18. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 24.01.2012, Fonseca Ramos, Processo n.º 152/10.1TBBRG-E.G1.S1, onde se lê que, sendo a exoneração «“uma segunda oportunidade” (fresh start), só deve ser concedida a quem a merecer; a lei exige uma actuação anterior pautada por boa conduta do insolvente, visando evitar que o prejuízo, que já resulta da insolvência, não seja incrementado por actuação culposa do devedor que, sabendo-se insolvente, permanece impassível, avolumando as suas dívidas em prejuízo dos seus credores e, não obstante, pretende exonerar-se do passivo residual requerendo a exoneração».
19. De forma não totalmente coincidente, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, Fevereiro de 2021, págs. 612 e 614, onde se lê que, embora a exoneração seja, «antes de tudo, uma medida de protecção do devedor», as suas «maiores vantagens não respeitam (…) aos interesses privados de nenhum sujeito ou grupo de sujeitos», sendo de alcance mais geral»: «constituindo um estímulo à diligência processual do devedor, ela permite o início mais atempado do processo de insolvência, ajudando a atenuar uma das maiores preocupações do legislador»; «permite a tendencial uniformização dos efeitos da declaração de insolvência, mais particularmente dos efeitos do encerramento do processo de insolvência, estendendo o benefício exoneratório a todos os devedores»; e, apesar de «provocar uma contracção imediata do crédito, ela acaba por produzir um impacto positivo na economia», já que, «quanto mais restrito é o acesso ao crédito - mais “exigente” quem o concede e mais “responsável” quem o pede - menor é o risco de sobreendividamento e menos provável a insolvência dos consumidores e dos empresários em nome individual».
20. A jurisprudência pronuncia-se em regra pela total abrangência dos rendimentos a ceder aos credores, conforme Ac. da RE, de 23.04.2020, Rui Machado e Moura, Processo n.º 7079/15.9T8STB-F.E1, onde se lê que «os valores compensados pelo empregador a título de adiantamento por despesas médicas incorridas junto do SAMS, os subsídios de estudo e as pensões de alimentos são “rendimentos”, para os efeitos previstos no artigo 239.º, nº 3, do CIRE e, por via disso, devem ser incluídos, também, nos mapas da cessão (juntos com o relatório que foi apresentado pelo administrador de insolvência)».
21. Consulte-se a propósito, com utilidade, Ana Filipa Conceição, «A jurisprudência portuguesa dos tribunais superiores sobre exoneração do passivo restante - breves notas sobre a admissão da exoneração e a cessão de rendimentos em particular», Julgar Online, Junho 2016.
22. Desenvolvendo, neste concreto âmbito, o conceito de «dignidade da pessoa humana», Ac. STJ, de 02.02.2016, Fonseca Ramos, Processo n.º 3562/14.1T8GMR.G1.S1.
23. Compreende-se, por isso, que, se com «o despacho de admissão liminar da exoneração do passivo restante, fica esgotado o poder jurisdicional do tribunal quanto à determinação do valor do rendimento de cessão», para proceder posteriormente à sua alteração, torna-se «necessária a alegação de ulterior alterações do circunstancialismo que esteve na origem da fixação do montante necessário para o sustento minimamente digno», ponderando-se nomeadamente o «que seja o agravamento das despesas relevantes e atendíveis que devam ser excluídas da cessão, nos termos e para os efeitos do artigo 239º,n.º 3, al. b-iii), do C.I.R.E.» (Mafalda Bravo Correia, «Critérios De Fixação Do Rendimento Indisponível No Âmbito Do Procedimento De Exoneração Do Passivo Restante Na Jurisprudência E A Sua Conjugação Com o Dever de Prestar Alimentos», Julgar, Nº 31, Janeiro/Abril de 2017, págs. 117-118). No mesmo sentido, Ac. da RP, de 02.06.2011, Teles de Menezes, Processo nº. 347/08.8TBVCD-F.P1, Ac. da RL, de 15.12.2011, Conceição Saavedra, Processo n.º 350/10.8TJLSB-E.L1-7, ou Ac. da RE, de 30.04.2015, Jaime Pestana, Processo n.º 151/14.4TBLLE.E1.
24. No mesmo sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RC, de 25.03.2014, Catarina Gonçalves, Processo n.º 3248/13.4TBVIS-C.C1, onde se lê que o «que é razoavelmente necessário terá de ser avaliado em função da situação concreta do devedor e não interessa o que o devedor gasta mensalmente», já que apenas releva «aquilo que é razoável gastar para prover ao seu sustento com o mínimo de dignidade, já que apenas isso lhe pode e deve ser garantido, dada a situação de insolvência em que se encontra»; ou Ac. da RG, de 08.01.2015, Manuela Fialho, Processo n.º 1980/14.4TBGMR-E.G1, onde se lê que «o devedor não pode almejar, após insolvência, ter um padrão de vida equivalente àquele de que já dispôs». Ainda Ac. da RG, de 15.05.2014, Maria da Purificação Carvalho, Processo n.º 3456/13.8TBGMR-C.G1, Ac. da RE, de 04.12.2014, Cristina Cerdeira, Processo n.º 1956/11.3TBSTR-I.E1, Ac. da RC, de 06.07.2016, Falcão de Magalhães, Processo n.º 3347/15.8TACB-D.C1, Ac. da RC, de 04.05.2020, Carlos Barreira, Processo n.º 2194/19.2T8ACB-B.C1, ou Ac. da RP, de 12.04.2021, Jorge Seabra, Processo n.º 5568/20.2T8VNG.P1. Concordando, Mafalda Bravo Correia, «Critérios De Fixação Do Rendimento Indisponível No Âmbito Do Procedimento De Exoneração Do Passivo Restante Na Jurisprudência E A Sua Conjugação Com o Dever de Prestar Alimentos», Julgar, N.º 31, Janeiro/Abril de 2017, p. 118, onde se lê que, na conjugação dos antagónicos interesses em jogo, dos credores e do insolvente, é «imperativo que ao insolvente seja imposta uma redução do seu nível de vida, em consonância com o seu estado de precaridade financeira, motivador da declaração de insolvência».
25. Precisa-se que o legislador laboral deixou de fazer referência ao conceito de salário mínimo nacional, lendo-se no art. 273.º, n.º 1, do Código de Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro que é «garantida aos trabalhadores uma retribuição mínima mensal, seja qual for a modalidade praticada, cujo valor é determinado anualmente por legislação específica, ouvida a Comissão Permanente de Concertação Social». Logo, a referência do CIRE ao salário mínimo nacional deve ter agora como correspondência a retribuição mínima mensal garantida.
26. No mesmo sentido, Ac. da RP, de 15.09.2011, Leonel Serôdio, Processo n.º 692/11.5TBVCD-C.P1; Ac. da RP, de 24.01.2012, Rodrigues Pires, Processo n.º 1122/11.8TBGDM-B.P1; Ac. da RG, de 14.02.2013, José Manso Rainho, Processo n.º 3267/12.8TBGMR-C.G1; Ac. da RG, de 16.05.2013, Raquel Rego, Processo n.º 4466/11.5TBGMR-F.G1; Ac. da RC, de 03.12.2013, Sílvia Pires, Processo n.º 1254/12.5TBLRA-F.C1; Ac. da RL, de 19.12.2013, Orlando Nacimento, Processo n.º 726/13.9TJLSB-C.L1-7; Ac. da RG, de 15.05.2014, Eva Almeida, Processo n.º 1020/13.0TBBRG-C.G1; Ac. da RE, de 04.12.2014, Cristina Cerdeira, Processo n.º 1956/11.3TBSTR-I.E1; Ac. da RC, de 10.03.2015, Catarina Gonçalves, Processo n.º 1110/14.2TBFIG-B.C1; Ac. da RL, de 09.07.2015, Teresa Pardal, Processo n.º 6829/13.2 TBSXL.L1-6; Ac. STJ, de 02.02.2016, Fonseca Ramos, Processo n.º 3562/14.1T8GMR.G1.S1; Ac. do STJ, de 06.07.2016, Falcão de Magalhães, Processo n.º 3347/15.8T8ACB-D.C1; Ac. da RG, de 17.09.2020, Paulo Reis, Processo n.º 1167/20.7T8VNF-C.G1; Ac. da RP, de 08.10.2020, Joaquim Correia Gomes, Processo n.º 9/20.8T8STS.P1; Ac. da RG, de 17.1.2020, Rosália Cunha, Processo n.º 2142/12.0TBBRG.G1; ou Ac. da RP, de 12.04.2021, Pedro Damião e Cunha, Processo n.º 2221/20.0T8STS.P1.
27. No mesmo sentido, para além dos já reproduzidos a propósito, Ac. da RL, de 11.10.2016, Carla Câmara, Processo n.º 1855/14.7TCLRS-7. A escala OCDE, vulgo escala de Oxford, na sua versão actual, pode ser consultada em https://www.oecd.org/eco/growth/OECD-Note-EquivalenceScales.pdf
28. Neste sentido, Ac. da RG, de 17.05.2018, António Barroca Penha, Processo n.º 4074/17.7T8GMR.G1, onde ainda refere que «a própria OCDE tem vindo a rever as denominadas “escalas de equivalência”, atribuindo pesos diferentes a cada um dos elementos do agregado familiar, não se compreendendo o porquê da escolha da escala de equivalência mais antiga».
29. Neste sentido, Ac. da RG, de 14.02.2013, José Rainho, Processo n.º 3267/12.8TBGMR-C.G1; Ac. da RC, de 11.02.2014, Carlos Moreira, Processo n.º 467/11.1TBVND-C.C1; Ac. da RC, de 13.05.2014, Luís Filipe Cravo, Processo n.º 1734/10.7TBFIG-G.C1; Ac. da RG, de 26.03.2015, Helena Melo, Processo n.º 952/14.3TBGMR.G1; Ac. da RG, de 26.11.2015, Amália Santos, Processo n.º 3550/14.8T8GMR.G1; Ac. da RG, de 12.07.2016, Francisca Micaela Vieira, Processo n.º 4591/15.3T8VNF.G1; Ac. da RL, de 22.03.2018, Pedro Martins, Processo n.º 24815/15.6T8LSB-2; Ac. da RP, de 07.05.2018, Augusto de Carvalho, Processo n.º 3728/13.1TBGDM.P1; Ac. da RG, de 17.05.2018, António Barroca Penha, Processo n.º 4074/17.7T8GMR.G1; Ac. da RP, de 24.03.2020, Lina Castro Baptista, Processo n.º 971/17.8T8STS.P1; Ac. da RP, de 16.06.2020, Lina Castro Baptista, Processo n.º 3294/19.4T8OAZ.P1; Ac. da RC, de 22.06.2020, Maria João Areias, Processo n.º 6137/18.2T8CBR-B.C1; Ac. da RC, de 13.07.2020, Maria João Areias, Processo n.º 1466/19.0T8VIS-D.C1; Ac. da RG, de 17.09.2020, Paulo Reis, Processo n.º 1167/20.7T8VNF-C.G1; Ac. da RP, de 08.10.2020, Joaquim Correia Gomes, Processo n.º 9/20.8T8STS.P1; Ac. da RP, de 26.10.2020, Jorge Seabra, Processo n.º 8215/13.5TBVNG-F.P1; ou Ac. da RP, de 26.01.2021, Vieira e Cunha, Processo n.º 2410/16.2T8STS.P1.
30. Neste sentido, Ac. da RL, de 27.02.2018, Higina Castelo, Processo n.º 1809/17.1T8BRR.L1-7; ou Ac. da RP, de 22.05.2019, Maria Cecília Agante, Processo n.º 1756/16.4T8STS-D.P1.
31. Neste sentido, Ac. da RG, de 14.02.2013, Manso Raínho, Processo n.º 267/12.8TBGMR-C.G1; Ac. da RC, de 13.05.2014, Luís Cravo, Processo n.º 734/10.7TBFIG-G.C1; Ac. da RG, de 26.11.2015, Maria Amélia Santos, Processo n.º 3550/14.8T8GMR.G1; Ac. da RG, de 25.05.2016, Fernando Fernandes Freitas, Processo n.º 6554/15.0T8VNF.G1; Ac. da RG, de 12.07.2016, Francisca Micaela Vieira, Processo n.º 4591/15.3T8VNF.G1; Ac. da RC, de 28.03.2017, Emídio Francisco Santos, Processo n.º 178/10.5TBNZR.C1; Ac. da RG, de 17.12.2018, Pedro Damião e Cunha, Processo n.º 2984/18.3T8GMR.G1 (tendo a aqui Relatora sido nele 1.ª Adjunta); Ac. da RE, de 17.01.2019, Maria João Sousa e Faro, Processo n.º 344/16.0T8OLH.E1; Ac. da RG, de 23.05.2019, António Sobrinho, Processo n.º 4211/18.4T8VNF.G1; Ac. da RP, de 23.09.2019, José Eusébio Almeida, Processo n.º 324/19.3T8AMT.P1; Ac. da RL, de 22.09.2020, Amélia Sofia Rebelo, Processo n.º 6074/13.7TBVFX-L1-1; ou Ac. da RG, de 03.12.2020, Helena Melo, Processo n.º 1248/20.7TVNF.G1.
32. Pronunciando-se sobre a compatibilização do procedimento de exoneração do passivo restante com os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efectiva, Ac. da RP, de 10.02.2020, Fernanda Almeida, Processo n.º 441/11.8TBESP.P1.
33. O princípio da igualdade vem sendo reiteradamente definido pelo Tribunal Constitucional como uma proibição geral de arbítrio, isto é: impondo que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que for essencialmente diferente, não proíbe as distinções de tratamento, se materialmente fundadas, mas sim as distinções de tratamento discriminatórias, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de fundamento racional. Com efeito, e como «princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante»; e, assim, ao «impor ao legislador que trate de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual, esse princípio supõe (…) uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder considerar tal justificação para a distinção como razoável, constitucionalmente relevante» (Acórdão nº 187/2001, do Tribunal Constitucional, D.R., II Série, de 26.06.2001). Ora, «o carácter arbitrário de uma diferenciação legal decorre da circunstância de “não ser possível encontrar […] um motivo razoável, que surja da própria natureza das coisas ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível”. Daí que [n]ão exista razão suficiente para a permissão de uma diferenciação [legal] se todos os motivos passíveis de ser tomados em conta tiverem de ser considerados insuficientes. É justamente o que sucede, quando não se logra atingir uma fundamentação justificativa da diferenciação. […] A máxima de igualdade implica, assim, um ónus de argumentação justificativa para tratamentos desiguais» (Acórdão nº 522/06, do Tribunal Constitucional, de 26 de Setembro, D.R., II Série, de 10.11.2006).
34. O princípio da proporcionalidade «recebe acolhimento jurídico claro apenas a partir do iluminismo, no domínio penal e do direito administrativo de polícia, com a vinculação da administração a uma exigência de necessidade, transitando a partir daí para o direito constitucional»; e torna-se um princípio um princípio geral de direito de acordo com o qual a limitação instrumental de bens, interesses ou valores subjectivos deve revelar-se idónea e necessária para atingir os fins legítimos concretos que cada um daqueles actos visam, e ainda axiologicamente tolerável quando confrontada com esses fins (Acórdão n.º 187/2001, do Tribunal Constitucional). Vem, assim, sendo reiteradamente definido pelo Tribunal Constitucional enquanto princípio geral atinente à relação entre meios e fins da actuação do poder público, nomeadamente por forma a que se verifique a adequação de uma concreta dimensão normativa às justificações ou finalidades para ela adiantadas. Trata-se de um princípio de proibição de excesso (conforme art. 18.º, n.º 2, da CRP). Exige, por isso, que se averigúe, através da análise de um regime concretamente em causa, se o elemento diferencial que se questiona se contém ainda dentro da medida da diferença verificada existir entre duas situações relacionais em confronto ou, pelo contrário, se revelará, desse ponto de vista, desmedido, representando, como tal, uma manifestação de excesso vedada pelo princípio da proporcionalidade.