RECURSO PENAL
DUPLA CONFORME
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA DA PENA
Sumário


I - Em caso de dupla conforme, à luz do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, são irrecorríveis as penas parcelares e únicas aplicadas em medida igual ou inferior a 8 anos de prisão e confirmadas pela Relação, conhecendo o Supremo apenas das penas de prisão, parcelares e únicas, aplicadas em medida superior a 8 anos.
II - E restando para apreciação no recurso a medida da pena única, circunscrevendo-se o conhecimento da impugnação estritamente a matéria de direito, não cumpre apreciar de nenhuma questão relativa à condenação nas penas parcelares precedentes, nem dos fundamentos do pedido de redução da pena única desenvolvidos na estrita decorrência da impugnação das penas parcelares.

Texto Integral


Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 350/14…….. foi proferido acórdão do Tribunal da Relação ….. a confirmar integralmente e nos seus precisos termos o acórdão de primeira instância proferido pelo Juízo Central Criminal ….. J.., do Tribunal Judicial da Comarca ….,  em que se condenara  a arguida AA, nos seguintes termos:

“Em co-autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 132º, n º s 1 e 2, alínea b), do Código Penal, na pena de cinco (05) anos de prisão;

Em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 132º, n º s 1 e 2, alíneas b), c), i), e j), do art.º 132º, do Código Penal, na pena de cinco (05) anos de prisão;

Em co-autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 132º, n º s 1 e 2, alíneas, alíneas b), c), i), e j), do art.º 132º, do Código Penal, na pena de cinco (05) anos de prisão;

Na pena única de oito (08) anos e seis (06) meses de prisão.”

Novamente inconformada com o decidido, veio recorrer a arguida para o Supremo tribunal de Justiça, concluindo:

“1.    Vem o presente recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação…, que, manteve na íntegra a condenação proferida pelo Tribunal do Coletivo ..., da Comarca….., e condenou a arguida, ora recorrente, em termos que aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos legais.


2.    A arguida não tentou matar o seu marido e não se conforma com a chocante e revoltante injustiça que a decisão recorrida consubstancia, nem com o aconchego que a mesma significa para uma investigação que durou quase cinco anos, que se digladiou para tentar encontrar quem executou, como, com que arma, e o motivo para ocorrência dos factos, sem sucesso, “afunilando” a investigação no sentido de que foi a arguida, e só pode ter sido a arguida, a cometer os crimes.

Por isso, não pode a arguida calar essa sua indignação, sendo certo que recorrerá até às últimas instâncias, Europeias se necessário for.

3.     Os fundamentos do recurso são:

- Vícios do n.º 2 do art.º 410.º do CPP a conhecer, pelo menos, oficiosamente por este STJ;

- Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia;

- Extrapolação do uso da prova indireta;

- Violação do princípio in dúbio pro reo.

4.    Quanto aos vícios do n.º 2 do art.º 410.º do CPP a conhecer, pelo menos, oficiosamente por este STJ, antes de mais, importa o Tribunal aferir a questão da existência destes vícios, uma vez que, a matéria de facto relevante para a decisão da causa, somente pode considerar-se definitivamente fixada, perante a inexistência de vícios ou nulidades.

4.1.     A Recorrente entende, salvo melhor opinião, haver vício por falta ou insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto, senão também erro notório da prova ou, pelo menos, erro de julgamento, pelo Tribunal da 1.ª Instância, que o Tribunal recorrido manteve.

4.2.    Quanto à Primeira tentativa – … de dezembro de 2014

Vem provado que:

“3. Em data não apurada, anterior a … de dezembro de 2014, a Arguida AA delineou um plano para matar seu marido BB.

4. (...) a Arguida solicitou a colaboração de um indivíduo cuja identidade não foi possível apurar” (itálico nosso)

Porém, não consta da factualidade apurada,

i)     Quem executou?;

ii)    Se a arguida estava presente no momento da execução?;

iii)   Arma do crime e a quem pertencia?;

iv)   Que plano era esse?;

v)    Móbil do crime?

Vem ainda provado que:

“11. A Arguida fez duas chamadas a partir do telemóvel do ofendido BB (...) não tendo falado em ambas as ocasiões.

12. A Arguida apagou o registo das chamadas realizadas para a linha 112 do registo de chamadas efetuadas do telemóvel.

13. Por volta da 1h e 45 m a arguida AA, via Facebook, solicitou ao filho da sua vizinha CC que acordasse a sua mãe e lhe pedisse para ir a sua casa, o que veio a suceder.

15. A meio da noite a Arguida AA sob o pretexto de ir para o quarto arrumar roupa, simulou ter encontrado o telemóvel do ofendido BB numas calças pertencentes àquele.

17. O ofendido BB foi encontrado por uma patrulha da GNR, na…… , em……., a cerca de 200/300 m do prédio onde habitava, pelas 6h e 15 m do dia …. de Dezembro de 2014, ainda com vida, tendo sido transportado para o Hospital Distrital……” (itálico nosso)

Porém, não consta da factualidade apurada,

vi)    Se o telemóvel acompanhou o ofendido na sua ida à garagem ou se esteve sempre no seu quarto desde que o ofendido saiu de casa nessa noite dos factos?

vii)     Se o ofendido costumava deixar o telemóvel em casa quando saía?;

viii)    O que ia o ofendido fazer à garagem?;

ix)     Porque razão o ofendido saiu de casa nessa noite e não levou consigo o telemóvel?;

x)    O que aconteceu entre as 23h e a 1h e 45 m?;

xi)     O que aconteceu entre as 23h e as 6h e 15 m, hora em que o ofendido foi encontrado pela GNR?;

xii)    Se o ofendido regressou a casa vindo da garagem e se voltou a sair de casa depois?;

xiii)    Se o ofendido saiu de casa apenas para a garagem e se da garagem foi diretamente para o local onde foi encontrado pela GNR?;

xiv)    Se a arguida se deslocou, com ou sem o ofendido, à garagem; se ficou sempre em casa nessa noite; se a arguida esteve sempre acordada ou se adormeceu entre as 23h e a 1h e 45 m?;

xv)     Porque razão a arguida terá feito as chamadas para o 112, para depois as apagar?;

4.2.1. Quanto às chamadas para o 112, é o próprio tribunal da 1.ª instância que, na fundamentação do seu douto acórdão, refere não saber se a arguida terá feito essas chamadas para simular que era o próprio ofendido a fazê-las, ou se pretendia auxílio, mas desistiu de o pedir.

4.2.2. Ora, as duas hipóteses aventadas pelo tribunal têm subjacentes consequências jurídicas completamente distintas: pois é muito diferente ter a intenção de simular, de onde se poderá inferir a autoria do crime; ou ter conhecimento de que o marido estava em perigo e pretender auxílio, o que poderá inferir que não foi a arguida que cometeu o crime ou que, quando muito foi cúmplice ou tentou encobrir o mesmo – afetando a apreciação jurídica da extensão da culpa e da própria autoria do crime!

4.2.3. Não competia à arguida explicar as chamadas do telemóvel, sob pena da inversão do ónus da prova.

4.2.4. A teoria inicial da Acusação de que a arguida fez as chamadas e regressou à garagem para colocar o telemóvel junto ao corpo do ofendido, não o tendo podido fazer por o mesmo já lá não se encontrar, consta dos factos não provados (facto não provado C.).

4.2.5. Ademais, atente-se ainda aos factos constantes da Acusação, a saber:

 5.º - Assim, no dia … de Dezembro de 2014, pelas 23 h, o casal encontrava-se em sua casa quando a arguida AA e o ofendido BB se deslocaram até à garagem do prédio.

6.º - Na garagem do edifício encontrava-se à espera do casal o indivíduo a quem a arguida AA havia pedido ajuda para executar o seu plano.

7.º - Quando o casal saiu do elevador o tal indivíduo com um revolver de calibre 6.35 mm disparou três tiros sobre o ofendido BB.

13.º A arguida regressou ao seu apartamento sem que tivesse entrado em contacto com a GNR ou com a linha de emergência 112 no sentido de solicitar auxílio médico para o ofendido BB. (itálico nosso)

4.2.6. Contudo, o tribunal da 1.ª instância não se pronunciou sobre estes factos, os quais não constam da matéria vertida nos factos provados, nem nos factos não provados.

4.2.7. Se não era hábito o ofendido esquecer-se do telemóvel em casa, conforme o próprio ofendido afirmou, não foi feita prova da razão pela qual teria então o arguido deixado o telemóvel em casa quando saiu.

4.2.8. Atendendo às regras de experiência comum e à lógica e racionalidade da inferência que o tribunal retirou do indício das chamadas do telemóvel do ofendido, não foi este tribunal capaz de fundamentar o sentido para a arguida ter feito aquelas chamadas.

4.2.9. De facto, com que intuito alguém que planeia e encomenda a morte do marido vai depois fazer duas chamadas para o 112, sem falar, para de seguida apagá-las e, ainda, surgir depois com o telemóvel consigo, dizendo que o encontrou no quarto – ao invés de, por exemplo, se desfazer do telemóvel ou dizer que não sabia do mesmo?

4.2.10. Se a ideia foi a de simular que tinha sido o ofendido a fazer as chamadas, não apagava o seu registo e/ou não surgia com o telemóvel na sua posse depois, quando muito deixava o telemóvel caído na garagem, atirava-o pela janela ou fazia-o desaparecer...

4.2.11. Se, por outro lado, a ideia da arguida ao fazer as chamadas foi a de pedir auxílio, como o tribunal da 1.ª Instância cogita na fundamentação do seu acórdão, então tal poderá pressupor que a arguida não cometeu o crime, que poderá simplesmente estar a encobrir algo que não quer contar.

4.2.12. Há um hiato temporal entre cerca das 23h do dia … de dezembro de 2014, em que o arguido saiu de casa, até que foi encontrado pela GNR, às 6h e 15 m do dia … de dezembro de 2014.

4.2.13. Durante mais de 7 horas não se sabe, nem se fez prova por onde poderá ter andado o arguido, com exceção de que esteve e foi atacado na garagem, sem se saber ao certo, contudo, a que horas exatas ocorreu esse ataque.

4.2.14. De notar que as imagens de videovigilância do local onde o arguido foi encontrado pela GNR não dão quaisquer pistas de que o arguido por ali tivesse passado ou estado por muitas horas.

4.2.15 O tribunal da 1.ª Instância, fundamentou ainda sua convicção no depoimento da referida testemunha DD, que terá revelado que a Arguida o contactou em data anterior à data dos factos de … de Dezembro de 2014, propondo-lhe que, a troco de 5.000 euros, matasse o marido a tiro.

4.2.16. Contudo, não consta da factualidade dada como provada que a arguida tenha, em data anterior à dos factos, contactado DD!

4.2.17. Ora, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410, n.º 2, al. a, CPP), verifica-se quando o tribunal não tiver considerado provado ou não provado um facto alegado pela acusação ou pela defesa ou de que possa e deva conhecer, nos termos do art. 358, nº 1, CPP, se esse facto for relevante para a decisão da questão da culpabilidade.

4.2.18. Igualmente não consta da factualidade apurada, pese embora tenha sido dito, em audiência de julgamento, pela própria testemunha DD, antes de a arguida prestar quaisquer declarações, que houve um caso anterior à data dos factos ocorridos contra o ofendido BB, respeitante a uma suspeita de tentativa de violação que recaiu sobre esta testemunha, em que a aqui arguida seria testemunha acusatória.

4.2.19. Desde logo, não faz sentido que um suspeito em fase de investigação receba um telefonema informal da Polícia Judiciária dando conta de que é suspeito de um crime, e menos sentido faz que seja depois esse suspeito a deslocar-se voluntariamente à Polícia Judiciária para ser ouvido.

4.2.20. Mais, que a Polícia Judiciária lhe indique o nome de uma testemunha – que seria a ora arguida – e que, então aí, DD tenha decidido contar que afinal essa pessoa lhe havia feito uma proposta para matar o marido, proposta esta que não aceitou – e embora não tivesse ido logo denunciar tal proposta às autoridades – ainda assim a arguida teria sentido necessidade de se vingar, através de uma amiga e de uma alegada tentativa de violação, cujo processo por sinal foi o que deu azo a que, em sede de investigação, DD tenha decidido delatar a arguida.

4.2.21. Ora, se o tal suposto processo em que DD surge como suspeito de tentativa de violação ocorreu, como o próprio disse, antes dos factos ocorridos contra o ofendido BB, urge perguntar quem se terá tentado vingar de quem? Não terá sido antes esta testemunha a vingar-se da arguida?.

4.2.22. Ao invés, no seu Acórdão, o tribunal da 1.ª Instância salientou que a circunstância de DD referir que se deslocou à PJ para prestar depoimento de modo próprio se deveu não a motivos altruístas, mas eventualmente como forma de arranjar álibi quanto ao seu envolvimento nos factos.

Desta passagem da motivação do Acórdão da 1.ª Instância parece resultar que este tribunal cogita a hipótese de o próprio DD poder ter envolvimento nos factos.

4.2.23. Não entende a recorrente o sentido desta referência pois foi a própria testemunha a referir que foi à Polícia Judiciária antes da ocorrência dos factos em apreciação nos presentes autos, na sequência e no contexto do outro processo de violação em que era suspeito, processo esse anterior ao dos autos.

4.2.24. De igual modo a recorrente não entende como pôde o tribunal considerar credível o depoimento desta testemunha que a recorrente entende ser uma testemunha “tailor made” em face de uma investigação que se viu num beco sem saída e com poucas provas, para além de meras provas circunstanciais.

4.2.25. ACRESCE QUE, DD contou ainda ao tribunal que esteve no apartamento da arguida, onde esta alegadamente lhe terá feito uma proposta de matar ou arranjar alguém para matar o marido, referindo também que, nessa mesma ocasião, estava lá a mãe da arguida, D. EE.

4.2.26. Segundo depôs, DD terá negado tal proposta, não obstante relata que foi à garagem onde ocorreram os factos, por ser um dos locais onde poderia ocorrer o crime, referindo, ainda, que se deslocou de carro, com a arguida e a sua mãe, a um local em …., perto do parque de campismo e da casa da mãe da arguida (que mora em …..), onde o ofendido poderia ser atacado.

4.2.27. Ora, para alguém que recebe uma proposta daquele calibre, que afirma ter rejeitado, não é plausível que tenha aceitado deslocar-se, segundo o depoimento do próprio, na mesma ocasião, quer à garagem do prédio, quer de carro para outro local, perto ……, a mais de 20 minutos de distância, para discutir os detalhes do plano do crime.

4.2.28. Ademais, não soube precisar outro tipo de detalhes, como localizar temporalmente estes factos, nem os foi denunciar às autoridades com as quais, segundo deixou transparecer, mantém relações de colaboração e proximidade.

4.2.29. Todas estas questões foram levantadas pela Recorrente no seu recurso para o Tribunal da Relação, com desgravação, transcrição e especificação técnica dos excertos relevantes do depoimento da testemunha DD, em particular, na parte em que se refere à existência da mãe da arguida, sogra do ofendido, naquele alegado encontro.

4.2.30. Contudo, o Tribunal a quo ignorou tais questões.

4.2.31. Existe insuficiência da matéria de facto provada, se não é averiguado no processo, a existência ou não de coautoria ou de autoria singular simultânea, entre o arguido e outros indivíduos, por tal se poder repercutir quer na aplicação das penas em face do princípio da igualdade na aplicação do direito e quer na condenação na indemnização civil.

4.2.32. O vício invocado é impeditivo de bem se decidir, tanto no plano objectivo como subjectivo, pois o julgador quedou-se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, resultantes da prova produzida em julgamento e dos próprios autos, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final do silogismo judiciário, anomalia sem verificação.

4.2.33. A Recorrente considera que da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.

4.2.34. Quer o tribunal da 1.ª Instância, quer o Tribunal da Relação, de que ora se recorre, deixaram de apurar e de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela defesa e que resultaram da audiência de julgamento, considerando a Recorrente, salvo melhor opinião, que houve desprezo por prova relevante não investigada pelo tribunal.

4.2.35. O Tribunal da Relação escorreu simplesmente, na sua fundamentação, quanto à testemunha DD, que não há, pois, razão para não crer no essencial do seu depoimento e que se cingiu a isto: a arguida contratou-o para matar o marido dela, a tiro de pistola, a troco de 5 000€. (itálico nosso). Nada mais disse quanto ao vertido pela arguida no seu recurso.

4.2.36. O Tribunal da Relação entendeu que o recurso da arguida assentou substancialmente nas declarações que a mesma prestou, e que o Tribunal Coletivo as valorou com a cautela e parcimónia que as circunstâncias determinavam, atribuindo-lhe credibilidade apenas na parte em que o declarado encontrou conforto noutras provas credíveis.

Como tal, nessa parte, o tribunal da Relação entendeu que a motivação da decisão recorrida se explanou com inteira clareza, mostra-se inteiramente justificado, por ser contextualmente o devido, não sendo merecedor de qualquer reparo. (itálico nosso)

Pelo que, os segmentos das declarações da arguida indicado no recurso não só não indiciam como, muito menos impõem decisão diversa da que foi tomada quanto a qualquer dos factos impugnados com base nessas declarações. (itálico nosso)

4.2.37. Sucede que o Recurso da arguida para a Relação baseou-se em muito mais do que as declarações da arguida, tendo havido o cuidado, talvez até excessivo, de transcrição das passagens relevantes dos depoimentos das testemunhas, incluindo de DD, de onde resultam claramente as questões acima levantadas e que o tribunal recorrido não debateu nem escamoteou.

4.2.38. Não obstante, no Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação teve o cuidado de listar a base factológica que serviu às inferências para os factos julgados provados por presunção, indo inclusive além do que foi o tribunal da 1.ª Instância, a saber:

b)         Quanto aos acontecimentos da noite de … para … de dezembro de 2014

- em data anterior a … de dezembro de 2014 a arguida/recorrente contactou DD a quem ofereceu o pagamento de 5 000€ para que matasse, a tiro de pistola, o seu marido BB;

(...)

- Durante todo esse tempo o telemóvel não esteve em poder do ofendido, mas em casa, onde se encontrava a arguida. (itálico, sublinhado e negrito nosso)

4.2.39. Sucede que tais factos elencados pela Relação, não surgem na lista dos factos provados do Acórdão da 1.ª Instância, embora na motivação deste surjam longas passagens sobre o peso do testemunho de DD e das chamadas para o 112 feitas do telemóvel do ofendido, na inferência de que só podia ter sido a arguida a cometer o crime...

4.2.40. Os factos indiciários, dos quais foi inferida a prova dos factos probandos integradores do tipo objectivo, devem ser enumerados na matéria de facto provada. Não basta apenas identificá-los na motivação da decisão da matéria de facto. O Tribunal primeiro deve identificar e enumerar os factos que deu como provados e depois, com aquela matéria claramente autonomizada, partir para o exame crítico das provas.

4.2.41. Ademais, como se disse, não se fez prova de um motivo para a arguida querer matar o ofendido.

4.2.42. Pese embora a arguida tenha declarado ter perdido tudo após a ocorrência dos factos, inclusive a casa onde vivia, por não ter como a pagar sozinha, não ficou na factualidade apurada como ficou a vida da arguida após os crimes, nomeadamente, a nível financeiro.

4.2.43. Por outro lado, ainda, não consta da factualidade apurada se havia alguma relação de conflitualidade entre a vítima e a arguida ou outros seus familiares directos e afins.

4.2.44. A respeito de um possível motivo, o ofendido BB deixou no ar a suspeita de uma informação que não visava a arguida, mas sim a mãe da arguida, D. EE, sogra do ofendido, uma vez que o falecido marido da mãe da arguida lhe terá contado que a sua mulher, D. EE, estaria a tentar ……..

4.2.45. Quer a investigação, a Acusação, o Tribunal da 1.ª Instância e o tribunal recorrido optaram pelo total silêncio quanto a esta hipótese.

4.2.46. E mais, FF, mãe do ofendido, começou logo por dizer em audiência de julgamento que já a mãe da arguida havia matado o companheiro, passagem do depoimento que a recorrente teve o cuidado de transcrever e fazer a devida especificação técnica aquando do recurso para a Relação.

4.2.47. Ademais, resulta da prova documental dos autos e das próprias declarações da arguida, a instâncias do Meritíssimo Juiz do Coletivo da Primeira Instância, que saíram valores elevados da conta bancária na Caixa … co-titulada pela mãe da arguida (que a arguida teve o cuidado de explicar tratar-se da conta da mãe e que tal co-titularidade apenas ocorria em virtude da idade desta), mas apenas utilizada e movimentada pela mãe, designadamente, sucessivos levantamentos de 150 euros ocorridos dessa conta bancária entre o dia … de dezembro de 2014 e o dia … de dezembro de 2014, bem como os sucessivos levantamentos ocorridos em janeiro, de 200 euros cada um.

4.2.48. Ainda assim, e uma vez mais, tal factualidade não foi devidamente apurada nos factos dados como provados e não provados nem o tribunal recorrido, em consonância com o tribunal da 1.ª instância, se pronunciou sobre os mesmos, pese embora, considera-se, salvo melhor opinião, que tais factos são altamente relevantes!

4.2.49. Como se disse, e reitera-se, em sede de recurso, a arguida transcreveu as passagens destes depoimentos do ofendido, da testemunha FF e das declarações da própria arguida, sem prejuízo dos extratos bancários que constam como prova documental nos autos, e o Tribunal da Relação não se pronunciou sobre nenhum destes factos alegados no Recurso.

4.2.50. Em face da insuficiência da prova e da ausência de um motivo para os crimes, o tribunal deveria ter valorado a possibilidade de ter sido outra pessoa a cometer os crimes.

4.3.   Quanto à segunda tentativa – … de janeiro de 2015

Ficou provado que

29.   No dia … de Janeiro de 2015, quando o ofendido BB se encontrava internado no Hospital Distrital ……, no internamento de cirurgia, ainda debilitado física e psiquicamente, a arguida, através de meio não concretamente apurado, administrou-lhe organosfosforados em dose não determinada.

32.    A Arguida sabia que os organosfosforados são pesticidas, que não se destinam ao consumo ou tratamento humano, que a sua administração é letal e que tal substância não fazia parte de qualquer terapêutica à qual o ofendido se encontrasse sujeito.

Contudo, não ficou provado nem se apurou:

xvi)   Como foram administrados os organofosforados – se através de uma única administração, se através de várias; se em dias diferentes, se no mesmo dia; se por via oral, se através de injeção?;

xvii)    A administração dos organofosforados tenha ocorrido através de injeção abdominal (Facto não provado M.);

4.3.1. Na fundamentação do seu Acórdão, o tribunal da 1.ª Instância limitou-se a dizer que a Arguida já havia atentado contra a vida do ofendido e já conhecia o caráter letal daquele pesticida, pois o seu padrasto morreu por ingestão dessa mesma substância, alegadamente suicídio, tendo a arguida estado presente junto ao corpo, conforme flui da certidão junta a fls 350 e segs, e admitido pela própria arguida. (itálico nosso)

4.3.2. O Acórdão prossegue ainda a sua fundamentação ao notar que a tentativa de envenenamento ocorreu no período de visitas de familiares (mãe do ofendido e Arguida), como flui do registo de visitas junto aos autos. (itálico nosso)

4.3.3. Também o Acórdão recorrido, quanto a este crime, enunciou a seguinte base factológica que serviu às inferências para os factos provados por presunção relativa aos acontecimentos de …/01/2015:

- a administração do referido químico ao ofendido ocorreu no período de visitas de familiares, que nesse dia foram a arguida (primeiro) e a mãe do ofendido (depois); (itálico nosso)

4.3.4. Sucede que, também este facto (erradamente valorado, diga-se), não surge no elenco dos factos dados por provados pela 1.ª Instância, sendo apenas mencionado na motivação do seu Acórdão.

4.3.5. Para além da prova relativa à informação clínica e ao estado de saúde do ofendido (que acusou a presença de organofosforados), nenhuma outra prova foi feita no sentido de que tenha sido de facto a arguida a cometer este segundo crime.

4.3.6. Não houve qualquer prova testemunhal, ou outra, no sentido de que a arguida tenha sido vista a dar o pesticida ao ofendido.

4.3.7. Em primeiro lugar porque foi dado como provado que a arguida cometeu os factos com a ajuda de alguém – cuja identidade não se conseguiu apurar.

4.3.8. Pode o tribunal garantir que esta segunda tentativa não poderá ter sido já cometida pela pessoa que cometeu o ataque na garagem, aquando da primeira tentativa, com receio de que o ofendido o pudesse vir a reconhecer depois?

4.3.9. Ademais, na data em que alegadamente ocorreram estes factos, ao contrário do que é referido no Acórdão, não eram apenas a arguida e mãe do ofendido que visitavam o BB.

4.3.10. Atente-se aos registos de visitas no dia … de janeiro de 2015 a que o Acórdão se reporta (prova documental constante dos autos):

- Entre as 16h12m até às 17h – visita da arguida;

- À mesma hora do início da visita da arguida, às 16h12m até às 16h40 – visita da mãe do ofendido, FF;

- Entre as 16h41m até às 17h – visita da sogra do ofendido, EE;

- Entre as 20:25 e as 21:44 – visita de FF.

4.3.11. Também a mãe da arguida conhece o caráter letal do pesticida pois o seu falecido marido morreu por ingestão dessa substância.

4.3.12. E ainda assim, a mãe da arguida não é sequer equacionada, por uma única vez, no Acórdão, como não o foi na Acusação nem sequer chamada para depor em tribunal! Apesar da sua presença surgir implícita em quase todo o processo e até mesmo nalguma prova testemunhal e documental!

4.3.13. Poderá o tribunal garantir que a segunda tentativa não foi, tal como alegadamente ocorreu na terceira tentativa, cometida por um terceiro ou um profissional de saúde?

4.3.14. Tanto podia ter sido a arguida como qualquer outra pessoa, designadamente a sogra do ofendido, quem executou o crime na primeira tentativa, na garagem, um profissional de saúde ou alguém que se tivesse feito passar por médico ou enfermeiro...

4.3.15. Os factos provados (prova direta) de onde se inferem os factos presumidos assentaram assim em pressupostos errados, insuficientes da factualidade apurada e que resultam do próprio texto do Acórdão, pois na verdade inferem-se factos presumidos de outros factos presumidos, o que não pode ocorrer.

4.3.16. Uma vez mais, se diga, que todas estas questões – em especial, a questão do registo de visitas e de no dia dos factos não ter sido apenas a arguida e a mãe do ofendido a visitá-lo – foram colocadas perante a Relação, que não dedicou uma palavra quanto às mesmas no seu Acórdão.

4.4. - Quanto à terceira tentativa – … de março de 2015

Ficou provado que:

38.   A Arguida AA pediu ajuda ao Arguido GG, médico no ..., seu conhecido, para juntos porem termo à vida do ofendido BB.

39.   A alta clínica do ofendido estava prevista ocorrer no dia … de Março de 2015.

40.    No dia … de março de 2015 o Arguido GG, a pedido da Arguida AA, falou com a Diretora do Serviço de fisiatria HH à qual solicitou que fosse adiada a alta do ofendido BB por alguns dias, para que a Arguida AA pudesse encontrar um local onde o ofendido BB pudesse prosseguir os seus tratamentos.

41.    A Dr.ª HH acabou por aceder ao pedido em virtude de ter verificado não existir ainda um entendimento entre a ora Arguida e a mãe do ofendido BB sobre o local para onde o mesmo deveria ir quando tivesse alta hospitalar.

42.   Assim, a alta ficou adiada para dia … de março de 2015.

(itálico e sublinhado nosso)

4.4.1. Existe uma clara contradição entre a motivação da decisão de facto constante do Acórdão da 1.ª Instância e o facto dado como provado a 35., pelo menos quanto ao alcance deste, pois no texto desse Acórdão refere-se que:

“Ouvida HH a mesma confirmou que o Arguido GG falou consigo sobre o estado clínico de BB e, apesar de não se recordar se foi solicitado adiamento de alta clínica, o certo é que isso mesmo resulta do apenso I onde a própria testemunha escreveu que após conversa com a mãe e esposa do utente BB foi solicitado adiamento da alta “invocado razões sociais pessoais”, deixando escrito no registo de … .3.2016, às 18:38, que havia falta de consenso sobre o local e residência após a alta.

(...) Das declarações da Arguida e da testemunha HH o que fica é que o Arguido falou com a testemunha HH sobre o estado clínico do ofendido”. (itálico nosso)

4.4.2. Ora, se foi a mãe do ofendido e a arguida que falaram com a médica HH para adiar a alta, invocando falta de acordo quanto ao local para onde iria viver – as tais razões sócio pessoais;

E se o arguido GG apenas falou com aquela médica sobre o estado clínico do ofendido;

Não podia o tribunal fazer constar dos factos provados que o Arguido GG, a pedido da arguida, falou com HH para que fosse adiada a alta, para logo de seguida dar também como provado que aquela médica acedeu ao pedido após conversar com a arguida e a mãe do ofendido e verificar não haver decisão quanto ao local para onde o mesmo deveria ir após a alta.

4.4.3. Existe uma contradição entre a motivação do Acórdão da 1.ª Instância, fundamentada na prova existente nos autos e na prova testemunhal produzida em julgamento, de onde resulta do texto que, na verdade, o arguido GG falou com a testemunha apenas e só sobre o estado clínico do ofendido.

4.4.4. Resulta, desde logo, do texto do Acórdão da 1.ª Instância que não foi feita prova no sentido de que tenha sido o arguido GG – a pedido da arguida – que solicitou o adiamento da alta do ofendido, sendo assim insuficiente ou inexistente a prova para fundamentar o facto provado a 35. do qual se infere o facto provado a 33. e de que a arguida e o arguido planearam o adiamento da alta para atentaram contra a vida do ofendido.

4.4.5. Aquele tribunal invocou ainda que a mãe do ofendido desconfiava já da arguida, e não era seguro que o ofendido ficasse aos cuidados desta após alta hospitalar (o que não é verdade pois FF só passou a desconfiar da arguida quando teve noção da investigação dos presentes autos e após a ocorrência da terceira tentativa, como resultou da prova e foi alegado no recurso da arguida para a Relação).

4.4.6. Ora, o pedido de adiamento da alta ocorreu (i) porque, entre a mãe do ofendido e a arguida, havia um desentendimento quanto ao local para onde o ofendido iria passar a morar ou (ii) o adiamento da alta foi um expediente levado a cabo pela arguida, com a ajuda do arguido GG, como última tentativa de concretizar a morte do marido?

4.4.7. Ainda que se entenda que foi feita prova quanto a (i), certamente que não foi feita prova quanto a (ii) e isso resulta patente da motivação do Acórdão da 1.ª Instância, ainda que em contradição do facto provado 35., na extensão e sentido que o mesmo assume, de que o adiamento da alta ocorreu devido ao pedido do médico arguido GG. 

4.4.8. Ou seja, do depoimento da testemunha HH e, bem assim, da informação clínica junta no Apenso I, não resulta provado que o arguido GG, sozinho ou em conjunto com a arguida, tenham falado ou interpelado HH no sentido de adiar a alta.

4.4.9. Apenas fez-se prova que o arguido GG, em data que a testemunha não consegue precisar, terá perguntado pelo estado clínico do ofendido.

4.4.10. De facto, segundo as regras de experiência comum, é perfeitamente plausível que um médico de família pergunte pelo estado clínico dos doentes que seguem.

E a própria testemunha HH admitiu-o em julgamento, dizendo até que, anos antes, o arguido já a teria questionado sobre um outro paciente.

Esta testemunha admitiu ainda ser frequente o pedido de adiamento da alta por não haver decisão quanto ao local para onde o paciente irá depois convalescer.

4.4.11. Do exposto resulta claro que o tribunal não poderia, como fez, ter dado por provado o facto 35. quando diz que no dia … de março de 2015 o arguido GG, a pedido da Arguida AA, falou com a Diretora do Serviço de fisiatria HH à qual solicitou que fosse adiada a alta do ofendido BB por alguns dias (...).

4.4.12. Acresce que não se conseguiu apurar se o agravamento do estado de saúde do ofendido pela toma de benzodiazepinas, se deu através de uma única toma, naquele dia, se de várias tomas, ao longo de vários dias.

4.4.13. Por outro lado, ainda, consta dos factos não provados que:

II. A arguida AA comunicou ao Arguido GG que o ofendido BB, seu marido, era perigoso e que aquela receava que o mesmo lhe fizesse mal se saísse do hospital.

J.   No período da tarde do dia … .3.2015, o Arguido GG voltou a visitar o ofendido BB, nas suas vestes de médico, na presença da Arguida AA, e através de uma injeção na barriga voltou a administrar benzodiazepinas ao ofendido. (sublinhado e itálico nosso)

4.4.14. Não obstante, na motivação da matéria de facto, consta do texto do Acórdão da 1.ª Instância que:

“O expediente de adiar a alta foi entendido pelo Tribunal como uma última tentativa de concretizar a morte do marido, agora com a ajuda do médico, seu conhecido (...)

Para a formação desta convicção foi ainda importante o depoimento de LL que além de confirmar a presença do Arguido na altura de ministrar os comprimidos, refere também a presença da Arguida, disso logrando convencer o Tribunal, tando assim que a Arguida não era para si uma desconhecida, vendo-a regularmente nas visitas que fazia ao marido, estando a testemunha na mesma enfermaria.

Note-se o esforço da Arguida em adiar a alta do ofendido, tendo chegado a falar com o Arguido GG, seu conhecido ...., para que este intercedesse junto de HH no sentido de reforçar o pedido de adiamento de alta clínica, o que veio a suceder (...)” (negrito, sublinhado e itálico nosso)

4.4.15. Ora, se o tribunal da 1.ª Instância deu por não provado que o arguido GG visitou o ofendido na companhia da arguida (Facto não provado J. acima transcrito), como pôde na sua motivação vir dizer que ficou convencido, pelo depoimento de LL, da presença da arguida junto do arguido na altura de ministrar os comprimidos.

4.4.16. Tal consubstancia uma contradição insanável entre a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada e a fundamentação do acórdão.

4.4.17. E bem andou o tribunal ao dar como não provado o facto J. pois, apesar de constar no registo das visitas desse dia … de março de 2015 que a arguida visitou o ofendido no período da tarde, entre as 15:05 e as 16:38, consta também que a arguida saiu por essa hora e só terá regressado pelas 18:30, ou seja, houve um período de duas horas em que a arguida não esteve no hospital.

4.4.18. Pelas regras de experiência, se a arguida quisesse pôr termo à vida do marido com a ajuda do médico não iria, nesse mesmo dia, junto com ele, visitar o BB, numa enfermaria cheia de pessoas que pudessem testemunhar tais factos.

Mais sentido faria que a arguida nem tivesse, nesse dia, ido visitar o marido, precisamente para não ser vista como suspeita ou a última pessoa a estar com ele antes do agravamento do seu estado de saúde.

4.4.19. Acresce que, segundo consta do texto da motivação do Acórdão da 1.ª Instância “o ofendido BB confirma que, em dia que não consegue concretizar, se recorda de um homem de bata branca lhe ter dado comprimidos a tomar, o que referiu à sua mãe FF e esta relatou em julgamento”. (itálico nosso)

4.4.20. Normal seria que o BB relatasse que junto desse médico, naquele momento, se encontrava a sua esposa, visto que nessa altura o BB estava em perfeito estado de saúde e consciência, prestes a ter alta. E não o fez simplesmente porque tal não ocorreu!

4.4.21. De realçar também que o indício de a arguida conhecer o arguido do .... é muito fraco. Sendo a arguida ........, é natural que o conhecesse. Na realidade, qualquer outro suspeito, residente na cidade ........ ou arredores, poderia ter solicitado a ajuda deste ou outro médico, ou até de alguém que se fizesse passar por médico vestindo uma bata branca, para cometer o crime.

4.4.22. Aliás, o surgimento do médico na terceira tentativa é a prova de que a segunda tentativa também pode ter sido cometida por alguém que não estava diretamente ligado ao ofendido e que não tinha contacto direto com este diariamente.

4.4.23. Alguém que acedesse às instalações do hospital, vestido com bata de médico ou enfermeiro, visto que o controlo de segurança nos hospitais não é apertado, sobretudo quanto ao acesso por profissionais de saúde ou pessoas vestidas com bata de médico ou enfermeiro.

4.4.24. Felizmente o BB recordou-se e fez menção à existência de um médico, ou alguém vestido de médico, lhe ter dado comprimidos a tomar.

De outro modo, certamente, também este ato de execução seria, sem mais e através do método indiciário, imputado à arguida!

4.4.25. É por demais excessiva a extrapolação que o tribunal da 1.ª Instância fez de que o facto de ter falado e conhecer o arguido GG é suficiente para daí inferir com grau de certeza que foi a mando desta que o arguido tentou matar o ofendido BB, através de comprimidos.

4.4.26. O indício de que o BB não voltou a sofrer novas tentativas contra a sua vida depois de ter saído do hospital e ido viver com a mãe não merece relevo, pois o ofendido saiu ...., mudando-se para .... e, logo de seguida, para ....., onde atualmente reside com a sua esposa, com quem teve dois filhos, um deles concebido por altura de maio/junho de 2015, o que despoletou o divórcio entre a arguida e o ofendido.

Portanto, por si só, o facto de se ter deslocado geograficamente pode explicar o sucedido.

4.4.27. Logo, o facto provado 46. não exprime a verdade material dos factos, ou é pelo menos insuficiente, pois o ofendido foi viver com a mãe para ........, fora ........, tendo logo de seguida ido viver para ........, tendo ficado por apurar da factualidade para onde foi o arguido morar após a alta clínica, de modo que se pudesse inferir a circunstância de o Arguido não ter sofrido novos atentados após ter ido morar com a mãe.

4.4.28. Ademais, ficou por apurar a seguinte factualidade:

xviii) Que relação existia entre a arguida AA e o arguido GG – para além de este ser médico de família no ...., local de residência desta e do ofendido?;

xix)      A arguida e o ofendido eram acompanhados por este médico de família?;

xx A sogra do ofendido conhecia e era acompanhada por este médico?;

xxi) Que motivos teria este médico para atentar contra a vida do ofendido?;

4.4.29. Todas as contradições e insuficiências acima apontadas foram alegadas em sede de Recurso para a Relação, mas esta não as apreciou no Acórdão recorrido.

4.4.30. A respeito da terceira tentativa, o tribunal recorrido limitou-se a dizer que o Tribunal da 1.ª Instância não se firma apenas no depoimento da testemunha HH – como pretende a recorrente – mas também no que foi dito pela testemunha FF, pelo que ficou a constar dos registos clínicos (Ap. I) e com o que veio efetivamente a acontecer depois – houve mesmo alteração à data inicialmente prevista para a alta do ofendido e este foi convalescer para casa da sua mãe. (itálico nosso).

4.4.31. Ainda quanto a estes factos a Relação, no seu douto Acórdão, considerou como base factológica de onde se infere o facto probandum que:

- o médico e arguido GG, a …/3/2015 interpelou a médica HH, a qual integrava a equipa de tratamento do ofendido no referido hospital, sobre o estado clínico de BB e sobre o possível adiamento da alta clínica que para ele se preconizava; (itálico e sublinhado nosso)

4.4.32. Ou seja, a Relação manteve provado que o arguido GG terá falado com HH sobre o adiamento da alta clínica do ofendido, embora não refira que o fez a pedido da arguida. Na opinião da recorrente, o tribunal a quo parte de um pressuposto errado, baseado em prova insuficiente, para manter por provado este concreto ponto dos factos.

4.4.33. Em suma, do exposto, resulta que, ainda que se considere que tal não se trata de um vício do erro notório na apreciação de prova, e que se entenda que o que sucede é que a decisão da matéria de facto está em desconformidade com a prova produzida, dúvidas não tem a recorrente de que existe o vício de falta/insuficiência da prova para a matéria de facto provada, vício este constante do n.º 2 do art.º 410.º do CPP a conhecer, pelo menos, oficiosamente por este STJ.

5.   Da omissão de pronúncia pelo tribunal recorrido.

Do acima exposta resulta que do texto da decisão da 1.ª Instância, conjugando os factos provados e não provados, e respectiva motivação, verifica-se que não consta da enumeracão dos factos provados ou não provados factos relevantes para a decisão da causa, que da mesma devem constar, os quais, conexionados com as omissões na factualidade apurada já supra referidas, e lendo a motivação da decisão de facto apresentada naquele acórdão, importaria apurar.

5.1.1. Tal consubstancia omissão de pronúncia uma vez que estas questões relacionam-se diretamente com os factos e indícios que serviram para a formação de convicção do tribunal na decisão condenatória.

5.1.2. A omissão de pronúncia, vício que conduz à nulidade da decisão, nos termos do art.º 379.º n.º 1 c), do CPP, tem lugar quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devia, e há-de reportar-se a questões que o tribunal é obrigatório decidir, colocadas pela acusação, defesa ou resultantes da discussão da causa, pertinentes com o objecto do processo, o «thema decidendum».

5.1.3. Ora, infere-se das normas conjugadas dos art.os 379.º, n.º 1, als. a) e c), e 425.º, n.º 4 do CPP, que é nula a sentença que não contiver a respectiva fundamentaçao ou quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

5.1.4. O que precisamente sucede no caso do acórdão da Relação, ora recorrido, relativamente às questões elencadas.

5.1.5. Ao nosso direito processual penal preside o princípio da investigação porque o processo penal persegue a verdade material!

5.1.6. Para além dos factos provados na decisão da matéria de facto releva, ainda, a falta do elenco matéria de facto de contra-indícios ou indícios alternativos e/ou complementares que poriam em causa as provas positivas que apontam apenas para a arguida.

5.1.7. No caso temos que os juízes, na avaliação dos indícios, não tiveram especial atenção aos factos que se alinham num sentido diferente ao dos indícios culpabilizantes, pois que a sua comparação é que torna possível a decisão sobre a existência e gravidade das provas.

5.1.8. Trata-se de matéria de direito cujo conhecimento é da competência deste STJ (art. 434.º, do CPP) ou, assim não se entendendo, trata-se de nulidades do acórdão recorrido que devem ser arguidas ou conhecidas em recurso (art. 379.º, n.º 2, do CPP).

5.1.9. No caso dos autos, como houve impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação tinha de proceder a uma efectiva reapreciação dos pontos da matéria de facto cuja sindicância foi pedida, através dos meios de prova transcritos, não bastando tecer comentários sobre princípios processuais ou baseados apenas na fundamentação do Acórdão da 1.ª Instância.

5.1.10. Ainda que se entendesse que a recorrente não obedeceu completamente aos comandos previstos no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, contudo, nesse caso, caberia ao Tribunal da Relação ordenar o aperfeiçoamento, o que também não fez.

5.1.11. Assim não tendo acontecido, está-se perante uma situação de omissão de pronúncia, que leva à anulação da decisão objecto de recurso.

5.1.12. É de fulcral importância para salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa que as Relações façam um efectivo controlo da matéria de facto provada na 1ª instância, por confronto desta com a prova produzida oralmente na audiência;

5.1.13. Bem sabemos que o recurso da matéria de facto não é um novo julgamento, antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que foram expressamente indicados pela recorrente perante o Tribunal da Relação;

5.1.14. Porém, se é certo que assim se impõe um limite à recorrente, o tribunal de recurso não está impedido de oficiosamente conhecer de todos os erros que não impliquem reformatio in pejus, mesmo os não especificados, visto que no processo penal rege o princípio da verdade material e, quando está em jogo a liberdade do cidadão cuja inocência é protegida constitucionalmente até ao trânsito em julgado da condenação, não há que impor entraves formais para evitar o erro judiciário;

5.1.15. Sendo certo que no controle da matéria de facto, não se devem descurar os princípios da livre apreciação da prova e da imediação, que estão na essência da decisão da 1ª instância, tais princípios não são um obstáculo inultrapassável, antes um dos muitos factores que o tribunal de recurso tem de ponderar na altura de modificar ou não a matéria de facto provada;

5.1.16. O certo, porém, é que, lendo o acórdão recorrido nas partes acima assinaladas, resulta claro que o mesmo não conheceu das muitas questões fundamentais que foram suscitadas pela recorrente.

5.1.17. Aliás, percorrido o acórdão, não se vislumbra qualquer referência a um depoimento ou declaração reportado a uma efectiva passagem da gravação.

5.1.18. Note-se que no recurso para a Relação se impugnava matéria de facto nos termos do art.º 412.º n.º s 3 e 4, do CPP, e para se ficar convencido de que a vinculação temática foi observada, observando a transparência, seria de expressar as passagens concretas que foram ouvidas e analisadas.

5.1.19. Era mandatário que o tribunal a quo se tivesse pronunciado sobre o conteúdo, pelo menos, de parte das passagens mais relevantes dos depoimentos que a arguida invocou expressamente no seu recurso para a Relação por considerar que não foram devidamente tidos em conta pelo tribunal da 1.ª Instância.

5.1.20. Contudo, o Tribunal recorrido não se pronunciou sobre o conteúdo desses depoimentos e, fundamentalmente, sobre as questões, por eles indicadas, nomeadamente, a questão da eventual participação da sogra do ofendido nos factos, que a recorrente entende serem relevantes e verdadeiros contra-indícios, ou pelo menos indícios que poderão indicar um sentido diferente e, como tal, levariam obrigatoriamente à dúvida razoável do tribunal, dúvida essa que o tribunal da Relação, consequentemente, entendeu não existir.

5.1.21. O que constitui OMISSÃO DE PRONÚNCIA E FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO;

5.1.22. Consequentemente, o Acórdão de que se recorre é nulo nos termos do arto 379.º, n.º 1, al. a) primeira parte e c), “ex vi” art.º 425.º, n.º 4, do CPP.

6.  Quanto à prova indireta e sua extrapolação

Salvo melhor opinião, entende-se que o tribunal da 1.ª Instância, com a conivência do tribunal da Relação ora recorrido, excedeu a prova por inferência ao ter construído um juízo de probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma, ao invés de um juízo de certeza jurídica, dando factos como provados, quando deveria tê-los dado como não provados, no que à sua autoria pela pessoa da arguida diz respeito, e, sobretudo, deixando de apurar um conjunto de factualidade relevante.

6.1.   Ora, atentendo à jurisprudência sobre a prova por inferência ou indiciária, vide o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.01.2015, disponível em www.dgsi.pt, que se transcreve para facilidade de referência:

I - Na formação da convicção judicial intervêm provas e presunções. As primeiras são instrumentos de verificação direta dos factos ocorridos, e as segundas permitem estabelecer a ligação entre o que temos por adquirido e aquilo que as regras da experiência nos ensinam poder inferir.

II - Na avaliação da prova indiciária há que ter presente três princípios:

a) o princípio da causalidade, segundo o qual a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal;

b) o princípio da oportunidade, segundo o qual a análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito;

c) o princípio da normalidade, de acordo com o qual só quando a presunção abstrata se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.

III - Se não for possível formular um juízo de certeza, mas de mera probabilidade, por subsistir mais do que uma causa provável, sem que os indícios existentes permitam excluir todas as restantes, depois de analisados à luz dos referidos princípios, então valerá o princípio da presunção de inocência, já que para a condenação se exige um juízo de certeza e não de mera probabilidade. (sublinhado e itálico a cargo da Recorrente)

6.2.  De facto, a doutrina vem defendendo que o indício deve ser grave, resistindo às objeções e que tem uma elevada carga de persuasividade como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Deve ainda ser preciso, não sendo permeável a outras interpretações. Mas sobretudo, o facto indiciante deve estar amplamente provado, sob pena de se sustentar numa argumentação que, embora sendo lógica, não está sustentada em bases sólidas. Por fim os indícios devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão do facto indiciante.

6.3.   Para a ora recorrente, o processo decisório merece censura pois para uma condenação exige-se um juízo de certeza jurídica, e não de mera probabilidade, pelo que, na ausência daquele juízo, prevaleceria o princípio da presunção da inocência e o seu corolário que é o in dúbio pro reo.

6.4.   Efetivamente no caso da primeira tentativa de homicídio ocorrida no dia 26 de dezembro de 2014, o tribunal partiu do facto conhecido das chamadas do telemóvel para o 112, cujo registo foi apagado, concatenado com o depoimento de DD, que relatou que a arguida lhe propôs, em tempos, que matasse o marido, para concluir que a arguida cometeu os crimes de que vinha acusada.

6.5.   Porém, a recorrente entende que as chamadas para o 112 do telemóvel do ofendido, e a eliminação do registo dessas chamadas não é consequência típica dos factos ocorridos contra o BB naquela noite.

6.6.   O mesmo se diga quanto ao depoimento de DD, pois entende-se que não é este facto conhecido de a arguida e da sua mãe (pessoa não foi minimamente equacionado pelo tribunal) terem proposto àquela testemunha que matasse o BB – proposta que foi recusada pela testemunha, segundo depôs – que permite superar tal dúvida ou ser considerado um indício suficiente para a conclusão de que foi, com certeza jurídica, e para além de toda a dúvida razoável, a arguida, e só a arguida, que praticou, em concreto, os factos ocorridos na noite de … de dezembro de 2014.

6.7.  Ademais, como se disse, não constam dos factos provados que a arguida tivesse, em data anterior a … de dezembro de 2014, contactado DD, embora tal resulte da motivação do Acórdão da 1.ª Instância.

6.8.   Desde logo não se tendo conseguido determinar ao certo a identidade do indivíduo que executou os factos nessa noite, nem bem a hora a que ocorreram ou por onde andou o ofendido por mais de 7 horas, não poderia o tribunal só por si concluir com uma certeza para além de toda a dúvida razoável que foi a arguida a autora dos crimes de que vem acusada.

6.9.  Depois, quanto à segunda tentativa, ocorrida em … de janeiro de 2015, o tribunal partiu daqueles mesmos factos conhecidos da primeira tentativa e, ainda, do facto da arguida ter visitado o então marido nesse dia e de já ter conhecimento do caráter letal dos organosfosforados, em virtude do alegado falecimento do seu padrasto, para concluir ter sido também a arguida a cometê-lo.

6.10. Com o devido respeito, e uma vez mais, entende-se que tais factos conhecidos e indícios não permitem superar a dúvida ou serem indícios suficientemente fortes, precisos e amplamente provados, para a conclusão de que foi a arguida a cometer aquele crime.

6.11. Na verdade, tais indícios ficam abalados pela razão de ninguém ter visto quem, como ou em que exato momento foi administrada aquele pesticida ao ofendido.

6.12. Por outro lado, a existência de contra-indícios, nomeadamente, naquele mesmo dia e horas a mãe do ofendido, bem como a sogra, terem visitado o ofendido; o próprio contra-indício de na terceira tentativa ter sido um profissional de saúde a, alegadamente, executar esse terceiro crime.

6.13. Realça-se ainda que o facto de o primeiro crime ter, alegadamente, ocorrido com a colaboração de um outro indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, consubstancia em si mesmo também um contra-indício ou, pelo menos, o vislumbre de uma outra possibilidade ou hipótese de ter sido esse indivíduo, mesmo sem já a colaboração do mandante do primeiro crime, a pretender por termo à vida do ofendido para que este não o viesse a reconhecer mais tarde.

6.14. Assim, entende a recorrente que os factos conhecidos pelo tribunal sendo embora indiciantes de que a arguida poderá ter sido com alguma probabilidade a autora das tentativas de homicídio, em co-autoria material na terceira tentativa com o arguido GG, não permitem só por si estabelecer com recurso às regras da experiência, tal certeza sem que outras hipóteses possíveis se intrometam no espírito do julgador, designadamente a possibilidade de ter sido outra pessoa a praticar esses mesmos factos.

7. Violação do princípio «in dubio pro reo» (matéria de direito)

O acórdão recorrido violou, assim, o princípio do «in dúbio pro reo».

7.1.   Do exposto supra, resulta que, não fora os sucessivos vícios da decisão recorrida, ao confirmar integralmente a decisão da 1.ª Instância;

7.2.   E tivesse o acórdão recorrido conhecido das partes elencadas no presente recurso que devia ter apreciado e não apreciou,

7.3.   Com toda a certeza que o Tribunal recorrido teria chegado à conclusão de que os indícios nos quais se baseou grande parte dos factos probandum podem conduzir a outra pessoa que cometeu os crimes que não a arguida, designadamente, a sogra do ofendido, mãe da arguida, ou o terceiro contratado para matar, cuja identidade não se apurou, nomeadamente, quanto à segunda e terceira tentativas.

7.4.   De onde resulta um imenso estado de dúvida que impunha, como impõe, a decisão a favor da arguida.

7.5.   Não tendo a prova produzida em julgamento, em concreto, sido concretizadora e esclarecedora de como aconteceu toda a situação, mantendo-se razoáveis dúvidas e questões por responder, deveria o julgador ter decidido a favor do arguido.

7.6.   O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.

7.7.   Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.

7.8.   No tocante ao princípio da livre apreciação da prova, o mesmo não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e, portanto, arbitrária – da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» –, de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo – cf. Figueiredo Dias, ob. cit., págs. 202-203.

7.9.   Como tal, e com todo o respeito, entende-se que o raciocínio seguido pelo tribunal da 1.ª Instância, e confirmado pelo tribunal recorrido, para chegar aos factos presumidos, que não são consequência típicas daquele de que se parte, carece de fundamentação, compatível com as regras da experiência e mostra-se violador dos princípios in dúbio pro reo e da presunção de inocência, este último consagrado no artigo 32.º n.º 2 da CRP.

7.10. Mas, também por via da apreciação dos vícios acima apontados pela ora recorrente, se chega à mesma conclusão, pois a apreciação da prova produzida não permite adquirir a certeza para além da dúvida insanável e razoável de que a ora arguida foi a autora dos crimes que lhe imputam e, como tal a prova produzida não é suficiente para se adquirir uma certeza prático-jurídica capaz de afastar a presunção de inocência, pelo que, a arguida deveria ter sido ABSOLVIDA!

SUBSIDIARIAMENTE,

8.   Sem prescindir, mesmo que assim não se entenda, caso se considere que o tribunal a quo andou bem, assim como o Tribunal da 1.ª Instância, e que a arguida deve ser condenada por todos os crimes de que vem acusada, salvo o devido respeito, a pena que foi aplicada a cada um dos crimes, no Acórdão de que ora se recorre é excessiva, desadequada, injusta e desproporcional.

9.     A recorrente entende que, sendo a arguida primária, estando social e profissionalmente inserida, não mais se conhecem crimes à arguida após a ocorrência dos factos, e em face das suas condições sócio-económicas resultantes do relatório social da arguida, e dadas como provadas, em particular o facto da filha ser portadora de deficiência e ser, quase na totalidade, dependente da arguida, a pena para cada um dos crimes deveria, no máximo, ser de 3 anos e, em cúmulo jurídico, uma pena única de 5 anos.

10.  Em face do que, o tribunal deveria ter ponderado a aplicação do instituto da suspensão da pena.

11.   E, ainda, sem prescindir, caso se entenda, que a arguida deve ser condenada quanto a, apenas, um ou dois dos crimes de que vem acusada, e já não quanto aos demais, a pena deve ser revista, ajustada, adequada e proporcional, em consonância, assim como o pedido de indemnização civil a que foi condenada.

Termos em que, e nos que Vossas Excelências superiormente suprirão, deve conceder-se integral provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o acórdão recorrido, absolvendo-se a arguida da prática dos três crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. No art. 131.º, n.ºs 1 e 2, al. b), c), i) e j), do artigo 132.º do código penal (ex vi artigo 22.º, n.º 1 do código penal) a que foi condenada e, consequentemente, improceder o pedido de indemnização civil a que foi igualmente condenada a pagar, respetivos juros vencidos e vincendos e/ou,

Decretar reenvio do processo para novo julgamento, relativamente à totalidade do processo, nos termos dos artigos 426.º e 426.º-A do CPP, como consequência de Vossas Excelências conhecerem, pelo menos oficiosamente, dos vícios invocados pela arguida, e considerem não serem passíveis de suprir, por contender com a determinação da matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias.

SUBSIDIARIAMENTE, sem conceder, caso se considere que o tribunal a quo andou bem e que a arguida deve ser condenada por todos os crimes, por dois ou apenas um deles, deverá a pena ser revista em consonância e substituída por uma pena mais justa, adequada e proporcional, no máximo de 3 anos de prisão por cada crime e, em cúmulo jurídico, numa pena única máxima de 5 anos, aplicando-se o instituto da suspensão de pena em face do relatório social e das condições socio-económicas da arguida, do facto de ser primária, estar social e profissionalmente inserida, de ter uma filha ……. que necessita dos cuidados constantes da mãe.”

O Ministério Público respondeu ao recurso pronunciando-se no sentido da improcedência, e concluindo:

“1.º No Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Competência Criminal – J …, no dia … de Fevereiro de 2020, nos Autos de Processo Comum Colectivo nº 350/14……. foi exarado, publicitado e depositado Acórdão condenando, para além do mais, AA, em co-autoria material, praticado na forma tentada:

i. um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 131.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do art. 132.º do Código Penal (ex vi art. 22.º, n.º 1 do Código Penal), na pena de 5 anos de prisão;

ii. um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 131.º, n.ºs 1 e 2, al. b), c), i) e j), do art. 132.º do Código Penal (ex vi art. 22.º, n.º 1 do Código Penal), na pena de 5 anos de prisão;

iii. um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 131.º, n.ºs 1 e 2, al. al. b), c), i) e j), do art. 132.º do Código Penal (ex vi art. 22.º, n.º 1 do Código Penal), na pena de 5 anos de prião;

iv. em cúmulo jurídico foi condenada a Arguida AA na pena única de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2º Desta decisão interpõe recurso para este Tribunal da Relação ……..

3º Douto Acórdão de … de Fevereiro de 2021, negou provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.

4º Deste Acórdão interpôs Recurso, para esse Alto Supremo Tribunal de Justiça, sendo o mesmo admitido.

 5º Analisado o texto da Motivação do Recorrente e respectivas Conclusões, resulta que o Recorrente não deu cabal cumprimento ao disposto no artigo 412º nº 2 do Cód. Proc. Penal.

6º No entanto, as conclusões apresentadas permitem a identificação das questões que pretende ver decididas, mostrando-se entendível de modo claro, qual o objecto do Recurso.

7º Assim, é de concluir pelo cumprimento, embora um tanto defeituoso, por parte do Recorrente das exigências do referido artigo 412º nº 2, como é jurisprudência pacífica.

Por todos, vejam-se, Acórdãos:

Supremo Tribunal de Justiça de 21/01/99 no Procº. 742/98 – 3ª Secção.

Supremo Tribunal de Justiça de 01/03/01 no C.J. S.T.J. IX, 1, 235.

Tribunal Constitucional nº 401/2 001 no D.R., II Série, de 07/11/01.

Relação de Évora de 15/05/03 no Recurso Penal nº 170/03 – 1ª Secção.

8º Por este motivo, salvo o devido respeito, consideramos dispensável endereçar-convite para o efeito.

9º A Recorrente apresenta um texto com 160 Conclusões, que não obedece aos requisitos formais e materiais do artº 412º do Cód. Proc. Penal, pelo que deveria ser endereçado convite à Recorrente para suprir tal deficiência, nos termos do nº 3 do artº 417º do mesmo Código

10º CONTUDO,

«I - A circunstância de as conclusões das alegações serem extensas e alguns dos factos nelas inseridos não terem interesse para a decisão, não as inutiliza, contanto que nelas se indiquem os pontos sobre os quais o tribunal é chamado a resolver e as razões por que se pretende o provimento desse recurso. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-1996, Proc nº 439/96 - 2ª Secção.

11º Embora continuemos a entender que as Conclusões de Recurso devem ser concisas e precisas, afigura-se que a Recorrente coloca, perante este Tribunal ad quem, as razões jurídicas, que a levam a discordar da decisão do Tribunal da Relação, e a apontada extensão das conclusões, não lhes tolhendo a perceptibilidade, também não impediria essa instância de apreciar, com o devido rigor, as questões, ali avocadas, afigura-se-nos que não é de convidar o Recorrente a aperfeiçoar as suas Conclusões.

12º Analisada a peça recursiva, verifica-se que quer discutir a matéria de facto, invocando os vícios do nº 2 do artº 410º do Cód. Proc. Penal, designadamente, «insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto, senão também erro notório da prova ou, pelo menos, Erro de julgamento, pelo Tribunal da 1ª Instância, que o Tribunal recorrido manteve», ou seja,

13º A Recorrente interpôs recurso da decisão do Tribunal de 1ª instância para o Tribunal da Relação de Évora, arguindo vícios do nº 2 do artº 410º impugnando a matéria de facto dada como provada constantes dos pontos 3., 4., 5., 6., 12., (por lapso, indicado como 11. no acórdão), 13. (por lapso, indicado como 12. no acórdão), 16. (por lapso, indicado como 15. no acórdão), 25., 26., 27., 28., 31., 33., 35., 38., 42., e 43., considerando que, em relação aos mesmos, não foi produzida prova suficiente, em particular, quanto à imputação da autoria material à arguida.

14º A Recorrente entende que a decisão recorrida é nula, por omissão de pronúncia  e falta de fundamentação, «nos termos do arto 379. ° n.° 1, al. a) primeira parte e c), “ex vi” art°425. ° n.°4, do CPP»

15º Entende a Recorrente «O tribunal da 1.ª Instância com a conivência do tribunal da Relação ora recorrido, excedeu a prova por inferência ao ter construído um juízo de probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma, ao invés de um juízo de certeza jurídica, dando factos como provados, quando deveria tê-los dado como não provados, no que à sua autoria pela pessoa da arguida diz respeito, e. sobretudo, deixando de apurar um conjunto de factualidade relevante.»

16º Pretende a Recorrente que o Acórdão recorrido violou o «principio in dubio pro reo».

17º Não são de conhecer as questões indicadas em 12º a 16º, face à sua irrecorribilidade, atentas as penas parcelares impostas, como se explicará no ponto Medidas das penas.

18º Deve a al f) do artº 400º n.º 1 do Cód. Proc. Penal interpretar-se no sentido de que só podem ser objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão superior a 8 anos, referida a cada um dos crimes singularmente considerados, como a que se reporta ao concurso de crimes.

19º Neste último c aso o recurso será restrito à medida da pena única, excepto se algumas das penas parcelares seja superior a 8 anos, caso em que o recurso abrange essas penas e a pena conjunta.

20º O recuso é de rejeitar relativamente às questões colocadas relativamente aos crimes cujas penas de prisão impostas sejam inferiores a 8 anos.

21º No caso em análise, porquanto as penas parcelares são de (cinco) 5 anos de prisão e a única foi fixada em 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão, da conjugação dos artºs 432º nº 1 al b) e 400º nº 1 al f) do Cód. Proc. Penal, apenas é recorrível a decisão que incidiu sobre a pena conjunta.

22º Entendemos que considerando as penas parcelares impostas, a merecer censura a pena única imposta é pela sua bondade.

23º Deve, pois, improceder a pretensão do Recorrente.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, sufragando a confirmação do acórdão e concluindo:

 “-   O segmento do recurso, que compreende as questões supra elencadas, por relevar da irrecorribilidade, deve ser rejeitado;

-    Quanto à invocada nulidade da sentença e à medida da pena única, deve ser o recurso julgado improcedente.”


Não houve resposta ao parecer.

Não tendo sido requerida audiência, teve lugar a conferência.


1.2. O acórdão recorrido, na parte que interessa ao recurso, tem o seguinte teor:

“«1. O ofendido BB e a Arguida AA começaram a viver juntos no ano de 2008 e casaram em … de Janeiro de 2010, tendo vivido maritalmente até ao dia … de Janeiro de 2014.

2. O casal residia na…, em ... .

3. Em data não apurada, anterior a … de Dezembro de 2014, a Arguida AA delineou um plano para matar seu marido BB

4. Para pôr o seu plano em execução, a Arguida solicitou a colaboração de um individuo cuja identidade não foi possível apurar.

5. No dia … de Dezembro de 2014, pelas 23 h, o ofendido o deslocou-se até à garagem.

6. Na garagem do edifício encontrava-se o individuo a quem a Arguida AA havia pedido ajuda para executar o seu plano que disparou três tiros sobre o ofendido BB com um revolver de calibre 6.35 mm.

6. Um dos projécteis atingiu o ofendido BB no tórax tendo perfurado o osso externo e se alojado perto do coração.

7. Outro projéctil atingiu o ofendido perto da omoplata direita sendo que o projéctil se alojou na zona do abdómen.

8. O terceiro projéctil atingiu o ofendido perto da coluna vertebral, a meio da zona dorsal.

9. Mais dois tiros foram disparados sem que tenham atingido o ofendido BB.

10. De seguida, o individuo cuja identidade não foi possível apurar, desferiu uma pancada na cabeça do ofendido BB.

11. A Arguida fez duas chamadas a partir do telemóvel do ofendido BB com o n.º …53 para a linha 112, uma às 23 h e 59 m do dia … de Dezembro de 2014 com uma duração de 12 segundos e uma outra as 0 h e 0 m do dia … de Dezembro de 2014 com a duração de 10 segundos, não tendo falado em ambas as ocasiões.

12. A Arguida apagou o registo das chamadas realizadas para a linha 112 do registo de chamadas efectuadas do telemóvel.

13. Por volta da 1 h e 45 m a Arguida AA, via Facebook, solicitou ao filho da sua vizinha CC que acordasse a sua mãe e lhe pedisse para ir a sua casa, o que veio a suceder.

14. Quando CC chegou a casa da Arguida AA a mesma contou-lhe do desaparecimento do ofendido BB, tendo informado que o marido havia saído pelas 22 h para ir ter com os amigos com quem jogava airsoft e que não mais tinha voltado e que nem sequer atendia as suas chamadas.

15. A meio da noite a Arguida AA sob o pretexto de ir para o quarto arrumar roupa, simulou ter encontrado o telemóvel do ofendido BB numas calças pertencentes àquele.

16. De seguida realizou diversas chamadas para os amigos do ofendido BB com o intuito de apurar do paradeiro do seu marido.

17. O ofendido BB foi encontrado por uma patrulha da GNR, na…, em……, a cerca de 200/300 m do prédio onde habitava, pelas 6 h e 15 m do dia … de Dezembro de 2014, ainda com vida, tendo sido transportado para o Hospital Distrital……..

18. O ofendido permaneceu internado até … de Abril de 2015, data em que teve alta hospitalar.

19. Como consequência necessária e directa do evento descrito o ofendido BB sofreu as seguintes lesões:

- traumatismo craniano encefálico grave, abdominal e torácico;

- fractura craniana no occipital esquerdo;

- traumatismo no hemotórax direito, pneumotórax esquerdo, hemoperitoneu;

- ferimentos causados por um projéctil com uma entrada a nível esternal, duas entradas posteriores a nível da omoplata direita e hemitórax posterior direito.

20. Tais lesões colocaram o ofendido BB em risco de vida.

22. Dessas lesões resultaram para o ofendido BB as seguintes sequelas:

- crânio: na região temporo-occipital esquerda, cicatriz, rosada, ligeiramente deprimida, oblíqua para baixo e para fora, com 4 cm x 3mm; I na região temporo-parietal esquerda, cicatriz, rosada, irregular, com 6 cm x 5 mm; na região fronto-parietal direita, cicatriz, nacarada, deprimida, obliqua para a frente e para dentro, com 5cm de comprimento;

- tronco: na face posterior do hemitórax direito, dois vestígios cicatriciais, acastanhados, ligeiramente deprimidos e oblíquos para baixo e para fora, medindo cada um lcm x 7mm; desde o terço superior da face lateral do hemitórax direito até á zona do apêndice xifóide, cicatriz, rosada, saliente à palpação, curvilínea, de concavidade superior, com 20cm x 5mm; no terço médio da face lateral do hemitórax direito, cicatriz, rosada, com 2cm x 5mm (correspondente a colocação de dreno, segundo informa a mãe); a nível do manúbrio esternal, cicatriz, rosada, transversal, com l cm x 7mm (correspondente a entrada de projéctil, segundo informa a mãe); no terço superior da face lateral do hemitórax esquerdo, cicatriz, acastanhada, transversal, com 2 cm x 5 mm (correspondente a colocação de dreno, segundo informa a mãe); cicatriz xifo-púbica, passando à direita do umbigo, rosada, com 30 cm x 5 mm (que terá resultado de laparotomia); no flanco direito, cicatriz rosada, transversal, com 2 cm x 5 mm; na região infra-clavicular direita, várias cicatrizes, ligeiramente acastanhadas, ocupando uma área de 7 cm x 5 cm;

- membro superior esquerdo: diminuição da força muscular do membro; limitação das mobilidades do ombro – discreta parésia do membro superior esquerdo;

- Epilepsia generalizada.

23. As lesões sofridas pelo ofendido BB consolidaram-se em … de Agosto de 2015.

24. Essas lesões determinaram para o ofendido BB 218 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral e profissional.

25. A Arguida actuou em união de esforços com um indivíduo cuja identidade não foi possível apurar, mediante a execução de um plano por si previamente delineado.

26. A Arguida actuou com o propósito de atentar contra a vida do ofendido, apenas não tendo conseguido alcançar o resultado pretendido, ou seja, produzir a morte do ofendido, por motivo alheio à sua vontade, não obstante aquele ter sido atingido em zonas vitais como o tórax e a cabeça.

27. A Arguida encontrava-se ciente de que o ofendido BB, seu marido, se encontrava gravemente ferido e de que corria risco de vida, contudo não diligenciou por lhe providenciar socorro.

28. No dia … de Janeiro de 2015, quando o ofendido BB se encontrava internado no Hospital Distrital .., no internamento da cirurgia, ainda debilitado física e psiquicamente, a Arguida, através de meio não concretamente apurado, administrou-lhe organofosforados em dose não determinada.

29. Como consequência necessária e directa da administração desta substância o ofendido BB entrou em coma e devido a intoxicação por organofosforados correu risco de vida, não se tendo concretizado o seu decesso porquanto a situação de intoxicação foi detectada e o mesmo foi sujeito a tratamento atempadamente.

30. Desta feita houve um retrocesso no estado de saúde do ofendido BB tendo este voltado para a unidade de cuidados intensivos por mais cerca de uma semana, sendo a data da sua alta hospitalar que seria por aqueles dias retardada até quase ao final do mês de Março.

31. A Arguida AA sabia que os organofosforados são pesticidas, que não se destinam ao consumo ou tratamento humano, que a sua administração é letal e que tal substância não fazia parte de qualquer terapêutica à qual o ofendido se encontrasse sujeito.

32. A Arguida voltou a actuar com o propósito de atentar contra a vida do ofendido, o qual se encontrava muito debilitado, apenas não tendo conseguido alcançar o resultado pretendido, ou seja, produzir a morte do ofendido, por motivo alheio à sua vontade.

33. A Arguida AA pediu ajuda ao Arguido GG, médico no .…, seu conhecido, para juntos porem termo à vida do ofendido BB.

34. A alta clínica do ofendido estava prevista ocorrer no dia … de Março de 2015.

35. No dia … de Março de 2015 o Arguido GG, a pedido da Arguida AA, falou com a Directora do Serviço de fisiatria HH à qual solicitou que fosse adiada a alta do ofendido BB por alguns dias, para que a Arguida AA pudesse encontrar um local onde o ofendido BB pudesse prosseguir os seus tratamentos.

36. A Dr.ª HH acabou por aceder ao pedido em virtude de ter verificado não existir ainda um entendimento entre a ora Arguida AA e a mãe do ofendido BB sobre o local para onde o mesmo deveria ir quando tivesse alta hospitalar.

37. Assim, a alta ficou adiada para dia … de Março de 2015.

38. Desta feita, no dia … de Março de 2015, em hora não concretamente apurada, o Arguido GG deslocou-se ao Hospital Distrital……, ao internamento da fisiatria onde o ofendido se encontrava, ainda debilitado física e psiquicamente, e fazendo-se valer da sua qualidade de médico, vestido com a sua bata, visitou o ofendido BB ao qual administrou benzodiazepinas através de comprimidos (cerca de cinco comprimidos).

39. As benzodiazepinas nas doses administradas não faziam parte de qualquer terapêutica à qual o ofendido BB se encontrasse sujeito, sendo os valores apresentados passiveis de causar a morte

40. O ofendido BB, na sequência da administração dessas substâncias, correu risco de vida devido a intoxicação com benzodiazepinas, não vindo a perecer porquanto encontrando-se em meio hospitalar foi uma vez mais prontamente socorrido através de uma lavagem ao estômago e administração de carvão activado, contudo devido à intoxicação permaneceu prostrado e sonolento durante vários dias.

41. O Arguido GG estava ciente de que a quantidade de benzodiazepinas que administrou eram susceptíveis de causar perigo para a vida do ofendido, tal como sucedeu.

42. A Arguida AA e o Arguido GG actuaram em união de esforços, executando um plano previamente delineado por aquela e aceite por aquele.

43. Os Arguidos AA e GG actuaram com o propósito de atentar contra a vida do ofendido, o qual se encontrava francamente debilitado, apenas não tendo conseguido alcançar o resultado pretendido, ou seja, produzir a morte do ofendido, por motivo alheio à vontade dos mesmos, pese embora o meio utilizado fosse apto a produzir esse resultado.

44. A Arguida AA agiu, em todas as situações descritas, de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

45. O Arguido GG também agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.

46. Depois da alta hospitalar ocorrida a … de Abril de 2015, o ofendido BB ficou a residir com a mãe, não tendo voltado a haver notícias de que tenham atentado contra a sua vida.

47. Os Arguidos não têm antecedentes criminais registados.

48. O Centro Hospitalar ….. despendeu 34.733,87 € com os tratamentos médicos prestados ao ofendido BB.

49. A Arguida nasceu no concelho…, sendo a filha mais nova do casal parental.

50. Aos 6 anos, deslocou-se com a sua família para ..., inicialmente para ….. e depois para ……., onde residiu até ao seu pai ter falecido, quando contava com 18 anos.

51. AA esteve enquadrada na escola até ao 6º ano de escolaridade, tendo tido duas retenções.

52. Em Agosto de 1998, a Arguida enfermou ………, tendo estado hospitalizada, em coma. AA terá ficado com sequelas, nomeadamente enxaquecas frequentes.

53. Aos 18 anos, na sequência do abandono escolar aos 16 anos e da morte do progenitor, a Arguida começou a trabalhar tendo iniciado funções……...

54. A Arguida manteve residência com a sua mãe até ter conhecido o pai da sua filha mais velha II (25 anos), tendo a coabitação durado cerca de 2 anos.

55. Fruto de complicações pós-parto em que a sua filha ficou sem oxigénio durante um período o que levou à existência de sequelas neurológicas, apresentando a sua descendente limitações cognitivas e motoras. (……).

56. O pai da filha afastou-se, não tendo tido qualquer participação no processo educativo da filha.

57. Quando a Arguida tinha cerca de 25 anos estabeleceu nova relação afetiva com o pai (JJ, atualmente com 61 anos) do seu filho, mais novo, KK (19 anos).

58. O casal residiu em casa morada de família em …….

59. Entretanto, fruto do fim do relacionamento com o anterior companheiro iniciou elação com o ofendido.

60. Em termos laborais, a Arguida foi dispondo de forma regular de trabalho, pese embora tenha mudado diversas vezes de entidade patronal e funções.

61. Na altura em que terão ocorrido os factos, a Arguida coabitava com o ofendido e com os seus dois filhos e trabalhava de forma regular.

62. GG é oriundo de um agregado familiar que havia emigrado para …… durante a sua infância, GG regressou ao país de origem com cerca de 18 anos de idade por forma a integrar a Faculdade de Medicina ……., concluindo a respetiva licenciatura em…..

63. Efectuou estágio policlínico no Hospital…. – e após realização de exame na especialidade de Medicina ……. -, o Arguido fixou residência e desenvolveu a atividade de médico……., registando, para além do atual local de trabalho –……..-, períodos laborais no ……. e/ou nas respetivas……..

64. O Arguido constituiu família (com o cônjuge) com cerca de 34 anos de idade, tendo efetuada uma adequada vinculação afetiva com o enteado (então no início da adolescência), movimentando-se o grupo familiar num quadro de estabilidade socioeconómica.

65. Nos contactos efetuados (quer na atualidade, quer em 2015), não foram mencionadas e/ou detetadas especiais referências sociais estigmatizantes, sendo GG caracterizado como um elemento que privilegia, nos tempos livres, a prática de jogging como antídoto às tendências depressivas (com referência, em 2015, a diagnóstico de quadro de depressão) que têm estado subjacentes a situações cíclicas de baixa clínica, a última das quais em Julho passado»

Julgaram-se não provados os seguintes factos:

«A. O plano da Arguida referido em 3 passaria por simular um assalto no qual o ofendido acabaria atingido com tiros disparados a partir de uma arma de fogo.

B. A regressou à garagem e colocou o equipamento de airsoft do ofendido BB dentro do veículo da marca……, modelo……, com a matrícula ...-...-…, pertencente à mãe daquele, que se encontrava estacionado na garagem do prédio onde aqueles viviam, tendo ainda mudado o veículo de lugar na garagem e deixado as chaves caídas junto ao veículo.

C. Uma vez que não encontrou o ofendido BB a Arguida AA não pôde colocar o telemóvel daquele junto ao seu corpo.

D. Na noite de … .12.2014, a Arguida não entrou em contacto com a GNR ou com a linha de emergência 112 no sentido de solicitar auxílio médico para o ofendido BB após este ter sido baleado. 

E. A Arguida estava obrigada a prestar o auxílio referido em 27 da factualidade provada.

F. No dia … .12.2014, a Arguida AA veio a ser abordada pelas autoridades tendo comunicado que na noite anterior o ofendido BB, seu marido, havia saído por volta das 22 h para se encontrar com amigos do airsoft não mais tendo regressado, referindo que tais saídas eram habituais o que não correspondia à verdade.

G. A Arguida AA sabia que a garagem do prédio era um local pouco frequentado onde poderia levar várias horas até que o ofendido BB fosse encontrado e socorrido.

H. A Administração de organofosforados referida em 26 foi feita através de injecção abdominal.

I. A Arguida AA comunicou ao Arguido GG que o ofendido BB, seu marido, era perigoso e que aquela receava que o mesmo lhe fizesse mal se saísse do hospital.

J. No período da tarde do dia … .3.2015, o Arguido GG voltou a visitar o ofendido BB, nas suas vestes de médico, na presença da Arguida AA, e através de uma injecção na barriga voltou a administrar benzodiazepinas ao ofendido.

K. As benzodiazepinas não faziam parte de qualquer terapêutica à qual o ofendido BB se encontrasse sujeito

L. O Arguido GG desconhecia que fármacos se encontravam a ser administrados ao ofendido e em que quantidades.»

(…)

No concernente à determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, esta é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º do CP). A culpa aqui em referência reporta-se à censura dirigida ao agente por referência à prática do facto ilícito, que consiste na desaprovação da sua atitude interna face às exigências do dever ser sociocomunitário. E as exigências de prevenção reportam-se à prevenção geral e à prevenção especial: aquela traduzida pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada (sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime); e esta, numa vertente positiva ou de socialização, que se traduz na oferta ao arguido das condições para prevenir a reincidência . A doutrina vem consistentemente densificando estes conceitos e o modo como eles operam conjugadamente, referindo que: «dentro da moldura ou dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto ótimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de “defesa do ordenamento jurídico”) – devem atuar, em toda a medida possível, os pontos de vista de prevenção especial, sendo sim eles que vão determinar, em última instância, a medida da pena. Isto significa que releva neste contexto qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza: seja a função positiva de socialização, seja qualquer uma das funções negativas subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. A medida de necessidade de socialização do agente é, no entanto, em princípio, critério decisivo das exigências de prevenção especial, constituindo hoje – e devendo continuar a constituir no futuro – o vetor mais importante daquele pensamento.» Temos, pois, que a medida da culpa fixa o máximo que a pena concreta pode comportar; a prevenção geral impõe o limite mínimo da pena em medida ainda suportada pelas expectativas comunitárias face à norma de proteção de bens jurídicos que foi violada; fixando-se depois a medida concreta da pena de acordo com as necessidades de prevenção especial, por referência à ressocialização do infrator e à prevenção de futuros crimes (pelo próprio). Breve: dentre os limites fixados pela medida da culpa (máximo de pena) e pela prevenção geral (mínimo da pena) a prevenção especial virá a determinar o quantum concreto da pena.

Depois destas considerações sobre os referentes normativos, vistos já os parâmetros em que o tribunal a quo balizou a sua avaliação e o resultado a que chegou no processo de escolha e determinação da pena concreta, vemos que valorizou as exigências de prevenção geral, o elevado grau da ilicitude (atentas as circunstâncias do caso) e da culpa da arguida.

A ponderação feita na 1.ª instância sobre a medida das penas relativamente a cada um dos ilícitos (5 anos de prisão por cada um deles) mostra-se conforme aos princípios supra enunciados, pelo que não há nenhuma razão para as alterar.

Impõe o artigo 77.º, § 1.º CP no âmbito do princípio da unidade da pena que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única, seno o que importa agora realizar.

Ao contrário de outros o nosso sistema penal não optou pelo somatório de penas em concurso; antes entendeu dever ficcionar-se uma conduta global a punir com uma pena única.

Neste conspecto tudo deverá passar-se «como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisivo para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências especiais de socialização).»

Considerando as penas parcelares relativas a cada um dos crimes integrados no concurso (5 anos de prisão por cada um dos ilícitos praticados), a moldura abstrata deste (5 anos a 15 anos de prisão), nos termos do artigo 77.º, § 2.º CP, tendo em consideração a gravidade do conjunto dos factos, nos termos já supra expostos, extraindo-se desse conjunto a gravidade do ilícito global perpetrado, conclui-se que a pena final do cúmulo em 8 anos e 6 meses de prisão se não mostra desajustada.

Termos em que o recurso improceder.”


2. Fundamentação

Das conclusões da recorrente, que delimitam o objecto do recurso, resulta que as questões a apreciar seriam as seguintes: Vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP; Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia; Violação do in dubio pro reo; Determinação da medida das penas parcelares e única.

Sucede que, como bem nota o Ministério Público na resposta ao recurso e no parecer neste Supremo tribunal, há que conhecer previamente de questão que conduzirá à redefinição do objecto do recurso.

2.1. Questão Prévia: Da inadmissibilidade do recurso na parte referente a toda a decisão que conduziu à fixação das penas parcelares, por irrecorribilidade destas penas (art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP)

Esta questão prévia afecta em parte a cognoscibilidade do recurso da arguida.

Preceitua art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP que não é admissível recurso “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

A arguida encontra-se condenada em três penas parcelares de cinco anos de prisão, que foram integralmente confirmadas (nas suas medidas e, antes disso, nos seus pressupostos de punição) pelo Tribunal da Relação, na sequência de anterior recurso interposto pela arguida do acórdão de primeira instância. Nenhuma destas penas excede os oito anos de prisão. Assim ocorre apenas com a pena única, resultante do cúmulo jurídico das parcelares aplicadas.

Daqui resulta que o recurso deve ser rejeitado na parte respeitante às condenações nos crimes e nas penas parcelares que lhes correspondem.

Tem sido esta a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, em interpretação conforme à Constituição, de acordo com as decisões do Tribunal Constitucional.

Assim se decidiu, por exemplo, no acórdão do STJ de 11-03-2021 (Rel. Helena Moniz), em cujo sumário pode ler-se:

“II - Tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, onde se impede a possibilidade de recurso das decisões do Tribunal da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, e o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, segundo a jurisprudência deste STJ, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão; e das condenações em pena de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão, quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.”

Também no Acórdão do STJ de 17-02-2021 (Rel. Gabriel Catarino) se desenvolveu:

“Em sentido que se nos figura similar, os arestos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Julho de 2015, relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, em que se doutrinou que (sic): “No que respeita à existência ou não de fundamentação essencialmente diferente entre a sentença apelada e o acórdão recorrido, adere-se inteiramente à argumentação expendida no despacho que considerou procedente a questão prévia da recorribilidade – sendo manifesto, aliás, que na sua argumentação os reclamantes confundem os conceitos de fundamentação diferente e de fundamentação essencialmente diferente, como instrumento para, no âmbito da figura da dupla conforme, delimitar as possibilidades de acesso ao STJ, perante decisões inteiramente sobreponíveis, nos respectivos segmentos decisórios: não basta, para quebrar o limite à recorribilidade decorrente da regra da dupla conforme, identificar uma qualquer alteração ou nuance na fundamentação jurídica acolhida no acórdão recorrido, sendo indispensável que se trate de uma alteração ou modificação qualificada da base jurídica da decisão, resultante do apelo a um diferente enquadramento normativo do pleito: não cabem, pois, seguramente no referido conceito de fundamentação essencialmente diferente os casos em que – movendo-se inquestionavelmente a Relação, no que respeita à efectiva ratio decidendi do acórdão proferido, no campo dos mesmos institutos ou figuras jurídicas – se limita a aditar um mero reforço argumentativo no que toca à idêntica solução jurídica do pleito que alcançou.

Por outro lado, não é exacto que possa inferir-se do direito fundamental de acesso à justiça, plasmado no art. 20º da Constituição, um amplo direito de acesso a um terceiro grau de jurisdição a exercitar pelo STJ, sem que ao legislador e à jurisprudência seja legítimo delimitar ou filtrar, em termos proporcionais e adequados, os litígios em que deva intervir em via de recurso ainda o STJ: na verdade, o acesso à justiça e a tutela judicial efectiva bastam-se com a obtenção de uma decisão jurisdicional, em tempo útil, sobre os litígios de direito privado, sendo certo que no caso a sentença proferida foi objecto de reapreciação pela 2ª instância, que manteve inteiramente o sentido decisório questionado pelo recorrente; ora, não está seguramente compreendido naqueles princípios fundamentais um direito de aceder ao STJ sempre que a parte vislumbre alguma nuance ou alteração menor na fundamentação jurídica seguida pelas instâncias.

“(…) O Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo pacificamente serem dois os pressupostos de irrecorribilidade fixados naquela alínea f) por um lado, que o acórdão da relação confirme a decisão da 1ª instância; por outro, que a pena aplicada na relação não seja superior a 8 anos de prisão.

(…) Quanto ao segundo pressuposto, também constitui jurisprudência uniforme deste Tribunal a de que, no caso de concurso de crimes, só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça relativamente aos crimes (relativamente às questões suscitadas a propósito dos crimes) punidos com pena de prisão superior a 8 anos e/ou à pena conjunta superior a essa medida. Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça, na esteira da interpretação praticamente consensual que fazia deste mesmo preceito na versão anterior à Reforma de 2007, vem entendendo, também agora de forma pacífica, que, no caso de um concurso de crimes, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da relação que confirme decisão da 1ª instância apenas é admissível relativamente ao(s) crime(s) punidos com prisão superior a 8 anos e/ou relativamente às questões sobre os pressupostos do próprio concurso e da formação da pena conjunta, quando esta também ultrapasse aquele limite (cfr., entre outros, os Acs. 11.02.09, P° 113/09-3º; de 04.03.09, P° 160/09-3ª; de 25.03.09, P° 486/09-3ª; de 16.04.09, P° 491/09-5ª; de 29.04.09, P° 39l/09-3ª; de 07.05.09, P° 108/09-5ª; de 27.05.09, P° 384/07GDVFR.S1-3ª, de 12.11 2009, P° n° 200/06.0JAPTM-3ª, de 23.06.10, P° n° l/07.8ZCLSB.L1.S1-3ª de 09.06.2011 P° n° 4095/07.8TPPRT.P1.S1- 5ª, de 26.04.2012, P° n°438/07.2PBVCT.G1.S1-5ª, de 12.09.2012, P° n° 269/08.2TABNV.L1.S1-3ª e de 29.05.2013, P° n°344/11.6JALRA.El)”. (…) Ac. do STJ, de 11/6/2016, Pº 54/12.7SVLSB.L1.S1-3ª.””

Por último, refira-se o Acórdão do STJ de 29.04.2015 (Rel. Raul Borges), em cujo sumário pode ler-se:

“I - As penas aplicadas pelos crimes cometidos pelo recorrente, e integralmente confirmadas pela Relação, foram inferiores a 8 anos de prisão, sendo nos casos de furto qualificado – 2 anos e 2 meses e 2 anos e 5 meses – detenção de arma proibida – 1 ano e 4 meses – e roubo agravado – 6 anos de prisão. Em cúmulo jurídico, foi aplicada a pena única de 8 anos e 6 meses de prisão.

II - O STJ tem entendido, que em caso de dupla conforme total, como ora ocorre, à luz do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, são irrecorríveis as penas parcelares, ou únicas, aplicadas em medida igual ou inferior a 8 anos de prisão e confirmadas pela Relação, restringindo-se a cognição às penas de prisão, parcelares e única(s), aplicadas em medida superior a 8 anos.

III - O arguido restringiu a sua impugnação à medida da pena imposta pelo roubo, afastando em seu entender o concurso de crimes, e nada disse sobre a pena única, debitando apenas sobre a única pena que deveria subsistir, aplicada pelo crime de roubo. Significa isto que o recorrente não impugna a pena única, que nunca refere, nem na motivação nem nas conclusões, não fazendo parte do objecto do recurso a discussão da sua medida.

IV - O recurso é, pois, de rejeitar por inadmissibilidade, nos termos do art. 420.º, n.º 1, al. b), em conjugação com o art. 414.º, n.º 2, ambos do CPP, sendo certo que, como resulta do art. 414.º, n.º 3, do CPP, a decisão que admita o recurso não vincula o tribunal superior.”

Na fundamentação deste acórdão, encontra-se referência abundante à jurisprudência do Supremo no mesmo sentido e a vários acórdãos do Tribunal Constitucional no sentido da conformidade constitucional do entendimento do Supremo.

Assim, pode ler-se ali:

“O Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que o direito ao recurso como garantia de defesa do arguido não impõe um duplo grau de recurso. (…)

A constitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na actual redacção, na medida em que condiciona a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça aos acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, que decidiu não a julgar inconstitucional – acórdão n.º 263/2009, de 25 de Maio, processo n.º 240/09-1.ª Secção (Acórdãos do Tribunal Constitucional – ATC –, volume 75, pág. 249), acórdão n.º 551/2009, de 27 de Outubro - 3.ª Secção, versando a questão, inclusive, ao nível do artigo 5.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 do artigo 5.º do CPP (ATC, volume 76, pág. 566), acórdão n.º 645/2009, de 15 de Dezembro, processo n.º 846/2009 - 2.ª Secção (ATC, volume 76.º, pág. 575 - em sumário e com referência ao artigo 5.º, n.º 2, do CPP), o infra mencionado acórdão n.º 649/2009, de 15 de Dezembro - 3.ª Secção, confirmando decisão sumária que emitiu juízo de não inconstitucionalidade (ATC, volume 76, pág. 575, igualmente em sumário), e acórdão n.º 174/2010, de 4 de Maio, processo n.º 159/10-1.ª Secção.

Por seu turno, o acórdão n.º 424/2009, de 14 de Agosto, proferido no processo 591/09-2.ª Secção, decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), conjugada com a norma do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 48/2007, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso para o STJ de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efectiva.

E, mais recentemente, no acórdão n.º 385/2011, de 27 de Julho de 2011, proferido no processo n.º 470/11, da 2.ª Secção, foi decidido “Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do CPP, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado.”

Por tudo, no recurso da arguida resta para apreciação a medida da pena única. E nesta, o conhecimento da impugnação circunscreve-se estritamente a matéria de direito.

Assim, não cumpre apreciar de nenhuma questão suscitada e relativa à condenação nas penas parcelares precedentes. Adite-se que a impugnação da matéria de facto sempre seria inadmissível, uma vez que o Supremo conhece apenas de direito (art. 434.º, do CPP), e mesmo no respeitante aos invocados vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, constitui jurisprudência firmada que o Supremo não conhece dos mesmos como fundamento de recurso, mas sim apenas oficiosamente.  E in casu não se detectam quaisquer vícios da decisão recorrida.

Não cumpre igualmente apreciar os fundamentos do pedido de redução da pena única desenvolvidos na estrita decorrência da impugnação das penas parcelares, penas de que não se conhece, como se disse.

2.2. Da medida da pena única

Assim delimitados os poderes de cognição do Supremo quanto a este recurso, reveja-se a argumentação que a recorrente desenvolveu no que respeita à medida da pena. Sumariamente referiu que “deverá a pena ser revista em consonância e substituída por uma pena mais justa, adequada e proporcional, no máximo de 3 anos de prisão por cada crime e, em cúmulo jurídico, numa pena única máxima de 5 anos, aplicando-se o instituto da suspensão de pena em face do relatório social e das condições socio-económicas da arguida, do facto de ser primária, estar social e profissionalmente inserida, de ter uma filha portadora de deficiência que necessita dos cuidados constantes da mãe.”

O Ministério Público respondeu que “considerando as penas parcelares impostas, a merecer censura a pena única imposta é pela sua bondade”.

A moldura penal do cúmulo jurídico a ter em consideração é a de cinco anos a quinze anos de prisão.

No acórdão da Relação, que procedeu já à sindicância de todo o iter aplicativo da pena, designadamente da pena única, considerou-se que o processo determinativo da pena desenvolvido pela 1.ª instância não merecia reparo. E como tribunal de recurso, a Relação exerceu os seus poderes de cognição ciente do modelo de recurso-remédio e, não, de recurso re-julgamento da causa.  

Assim, também o Supremo se posiciona no papel de detecção de eventuais erros de decisão, não se tratando nunca de um pensar da pena única como se inexistisse uma já fixada.

Na verdade, o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico também em matéria de pena, e a sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso, abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, e “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP. As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197).

E no presente caso, impõe-se reconhecer que a pena única fixada é adequada às exigências de prevenção geral e especial, e respeita o limite da culpa. Sendo certo que, atento o sentido do recurso (interposto apenas pela arguida) cumpre apenas sindicar se ela excede esses limites, se se contém neles, e, não, se fica aquém deles.

As “razões de culpa”, “de prevenção” e “da personalidade da pessoa” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p. 280) justificam o cúmulo jurídico de penas e afastam um sistema de cúmulo material de penas. A pena única determina-se dentro de uma moldura penal de cúmulo, casuisticamente encontrada após fixação de todas as penas parcelares integrantes de uma certa adição jurídica. E na sua fixação, o tribunal tem de proceder à reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77º, nº 1 do Código Penal), o que exige uma especial fundamentação na sentença, a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção” (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 291).

Na situação sub judice resulta muito claro que essas razões não levam a detectar que a pena única, de oito anos e seis meses de prisão, se revele aqui, e em concreto, excessiva e desproporcionada ou ultrapasse o limite da culpa da arguida. Pelo contrário, essas exigências de prevenção geral e especial apresentam-se aqui elevadíssimas. Note-se que as exigências de prevenção especial não têm forçosamente de resultar dos antecedentes criminais do agente, e neste caso resultam logo do próprio episódio global em apreciação. E se bem que tais exigências já se mostrem mesuradas aquando da ponderação das penas parcelares, cumpre agora proceder à avaliação do “grande facto”, ou do “ilícito global”, procedendo a uma sua avaliação em conjunto com a personalidade da arguida.

Sobre a personalidade da arguida, os factos delituosos falam por si. Eles revelam uma personalidade altamente desvaliosa. E referimo-nos sempre à personalidade revelada nos factos, porque é desta que sempre se trata – o arguido é julgado pelo que fez e não pelo que é enquanto pessoa. E apesar da evidente gravidade enorme do ilícito global perpetrado, constata-se que a pena única se encontra aqui situada abaixo do seu ponto médio.

Em suma, a avaliação da concreta gravidade da ilicitude global, “que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso”, e considerar a personalidade do agente e “o modo como esta se projecta nos factos ou é por estes revelada”, ou seja, a “nova culpa” ou a “culpa pelos factos em relação” (STJ 16-12-2010, Henriques Gaspar), no presente caso, justificam (amplamente) a pena única de oito anos e seis meses de prisão aplicada na 1.a instância e já mantida na Relação.


3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar por inadmissibilidade legal o recurso da arguida na parte referente à matéria de facto e às penas aplicadas a cada um dos crimes por que vinha condenada (art. 432.º, n 1, al. b) e art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP), julgando-o improcedente na parte restante.

Custas pela recorrente (art. 513.º, n.º 1 do CPP), fixando-se a taxa de justiça em 6 UC´s, acrescendo a importância de 3 UC’s  (art. 420.º, n.º 3, do CPP).


Lisboa, 15.09.2021


Ana Barata Brito (relatora)

Tem voto de conformidade da Sra. Conselheira Adjunta Maria Helena Fazenda