DEI - (DECISÃO EUROPEIA DE INVESTIGAÇÃO)
LEI DO CIBERCRIME
Sumário

I. A DEI tem como objecto o estabelecimento do regime jurídico da emissão, transmissão e do reconhecimento e execução de decisões europeias de investigação, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação (DEI) em matéria penal (artº1). E aplica-se à obtenção de novos elementos de prova e à transmissão de elementos de prova na posse das autoridades competentes do Estado de execução, em todas as fases do processo.

II. Estamos perante questões relativas a aquisição probatória, que se mostram definidas na Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro) e, no caso dos autos, no âmbito de prova eletrónica preservada ou conservada em sistemas informáticos – isto é, já obtida e existente em processo que corre seus termos em jurisdição não nacional.

III. Nesses casos, o sistema processual penal aplicável é o previsto nos artigos 12º a 17º da Lei nº109/2009, de 15-09, Lei do Cibercrime (coadjuvado pela Lei nº 32/2008, neste caso se estivermos face à prova por “localização celular conservada”), pois estes artigos constituem um completo regime processual penal para os crimes que, nos termos das alíneas do nº 1 do artº 11º, ou estão previstos nessa lei, ou foram cometidos por meio de um sistema informático, ou em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico.

IV. À situação dos autos não é aplicável o disposto no artº 18 da Lei do Cibercrime, razão pela qual se mostra inadmissível (quer pela sua própria natureza, quer pela ausência de norma que o suporte) proceder-se nestas situações (prova preservada ou conservada) à aplicação do regime previsto no nº6 do artº 187 do C.P. Penal.

Texto Integral

Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

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I–RELATÓRIO


1.Por despacho de 4 de Julho de 2021, foi determinado que qualquer obtenção de prova realizada a partir de 28 de Abril de 2021, ao abrigo da autorização judicial de 28-1-2021, constituirá prova proibida, nos termos do artigo 126° n° 3 do CPP, por falta de autorização judicial, dado que esta caducou no dia 28 de Abril de 2021.

2.Inconformado, veio o Mº Pº interpor recurso, pedindo que o despacho do Mm° JIC que determinou que a “obtenção de prova realizada a partir de 28-1-2021” ao abrigo de autorização judicial de 28/1/2021 fosse considerada prova proibida nos termos do artº 126° n° 3 do CPP seja revogado e substituído por outro que considere a referida prova válida nestes autos.

3.O recurso foi admitido.

4. Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.

II–QUESTÃO A DECIDIR.

Da validade da prova obtida, decorridos 3 meses após a prolação do despacho de autorização judicial prolatado em 28 de Janeiro de 2021.

III–FUNDAMENTAÇÃO.

1.Em 28 de Janeiro de 2021, foi determinado, por despacho judicial, o seguinte:
Veio o detentor da acção penal promover que seja concedida autorização ao M.° P.° para expedir DEI às autoridades Francesas, nos seguintes termos que infra se transcrevem:
«Os factos denunciados são susceptíveis de integrar a prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), e do crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.°, ambos do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro.
Nos presentes autos foi a Polícia Judiciária informada via Europol, através do pacote SIENA 1......-...2-1, de actividades desenvolvidas em território nacional por vários indivíduos pertencentes a esta Organização criminosa que usam equipamentos de comunicação encriptados, denominados Encrochat.
Resulta dos autos a necessidade de emitir uma DEI para obtenção de vários elementos de prova referente aos suspeitos sob investigação, a obter junto do processo resultante da JIT realizada entre as autoridades Francesas e Holandesas, sob referência OP. EMMA, e as autoridades Holandesas, sob a referência OP. 26 Lemont, em virtude de tais elementos serem imprescindíveis para a descoberta da verdade dos factos sob investigação nestes autos.
Resulta da investigação, mais concretamente informal provinda da Europol que os suspeitos já identificados, mais concretamente RO____, JA____, DO_____, HR_____, PN_____, RM_____ e VS_____  têm vindo a comunicar entre si através da aplicação Encrochat, de forma a não serem detectados pelas autoridades polícias e judiciais dos respectivos países em que actuam.
Através de uma equipa de investigação conjunta (JIT) realizada com a Holanda e França foi relevada a "Encrochat" e recolhida relevante informação relativamente a várias organizações criminosas que usavam aquele sistema de comunicação, tendo-se detetado que os suspeitos nestes autos sob investigação usavam tal sistema de comunicação para comunicar entre si e com outros indivíduos pertencentes à organização criminosa, sobre os factos sob investigação.
Em face do exposto, por se mostrar indispensável ao prosseguimento da investigação, nos termos do disposto no artº 187°, n° 1, al. b) e n° 2, al. a) e n° 4, al. a), 189° n° 1 e 2, do CPP, e art.°s 13°, 14° n° 1, 16°, 18°, n° 2, 3 e 4, e 19° da Lei n° 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime), promove-se que o Mm° Juiz de Instrução determine a quebra de sigilo de dados e das comunicações do "Encrochat", relativamente aos suspeitos infra identificados, mais se promove que seja autorizada apreensão, a pesquisa e remessa dos elementos que a seguir se indicam, relativamente aos suspeitos infra identificados, em concreto o registo de transmissões de dados informáticos, comunicações electrónicas, de dados de tráfego e de conteúdo associados a comunicações específicas transmitidas através de um sistema informático, localização celular, obtenção de trace-back, obtenção de códigos de imeis, ficheiros, mensagens de texto, de imagem, audiovisuais e de audio, IMEI, imsi, IP associados com respectivo grupo data/hora geolocalização associados aos seguintes nicnames:
1- Reliantbus; starkherder; vanillamutant; mysticshrub — associados a RO_____  nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 1......0, residente na, P... S... I...;
2- Comprimido; richsky— associados a JA_____, nascido a .../.../...., portador do catão de cidadão n° 1......1, residente na, 3° C, B... C..., L______;
3- Perkyrabbit; cageypickle — associados a  VO_____, nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 1......2, residente na, O..., L______;
4-Rivaracing — associado a HR_____, nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 1......4, residente em rua, F.../P_____.
5 - Robustknee; Supremedragon; Innocenthippo — associados a PN______, nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 12......, residente na rua L_____;
6- Tallestrose — associado a RM______, nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 10......, residente na, B..., L_______;
7 - Awesometwig — associado a VS_____ , nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 13......, residente na rua, Q... F..., V______.
Pelo que se promove ao Mm° Juiz de Instrução que autorize o MP a expedir a DEI às autoridades Francesas, nos termos supra referidos e ainda que autorize que tais elementos valham plenamente em termos probatórios nos presentes autos.» (sic).
Estando em causa a eventual prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 21.°, n.° 1 e 24.°, al. c), e do crime de associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.°, ambos do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro e por se afigurar indispensável ao prosseguimento da investigação, sendo também proporcional à gravidade dos crimes em investigação, nos termos do disposto no artº187°, n° 1, al. b) e n° 2, al. a) e n° 4, al. a), 189° n° 1 e 2, do CPP, e art.°s 13°, 14° n° 1, 16°, 18°, n° 2, 3 e 4, e 19° da Lei n° 109/2009, de 15/09 (Lei do Cibercrime), defere-se ao doutamente promovido pelo detentor da acção penal e determino a quebra de sigilo de dados e das comunicações do "Encrochat", relativamente aos suspeitos infra identificados e autoriza-se a apreensão, a pesquisa e remessa dos elementos que a seguir se indicam, relativamente aos suspeitos infra identificados, em concreto o registo de transmissões de dados informáticos, comunicações electrónicas, de dados de tráfego e de conteúdo associados a comunicações específicas transmitidas através de um sistema informático, localização celular, obtenção de trace-back, obtenção de códigos de imeis, ficheiros, mensagens de texto, de imagem, audiovisuais e de audio, IMEI, imsi, IP associados com respectivo grupo data/hora geolocalização associados aos seguintes nicnames:
1- Reliantbus; starkherder; vanillamutant; mysticshrub — associados a RO_____  nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 1......0, residente na, P... S... I...;
2- Comprimido; richsky— associados a JA____, nascido a .../.../...., portador do catão de cidadão n° 1......1, residente na C, B... C..., L______;
3- Perkyrabbit; cageypickle — associados a  VO_____, nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 1......2, residente na, L_____;
4-Rivaracing — associado a HR______, nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 1......4, residente em rua F.../P_____;
5- Robustknee; Supremedragon; Innocenthippo — associados a PN_____, nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 12......, residente na rua B... A... - L______;
6- Tallestrose — associado a RM_____, nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 10......, residente na, L______;
7- Awesometwig — associado a VS______, nascido a .../.../...., portador do cartão de cidadão n° 13......, residente na rua, V______.
Autorizando-se, consequentemente, o M.° Pº a expedir a DEI às autoridades Francesas, nos termos promovidos e a utilização de tais elementos, em termos probatórios no âmbito dos presentes autos.

2. O despacho alvo de recurso tem o seguinte teor (na parte que releva a este respeito):
Obtenção de dados telefónicos em plataforma informática
Veio o MP requerer a quebra do sigilo de dados das comunicações do Encrochat, relativamente aos suspeitos LC____ e AL_____ e que seja autorizada a apreensão, pesquisa e remessa do registo de transmissão de dados informáticos, comunicações electrónicas, de dados de tráfego e de conteúdo associados a comunicações específicas transmitidas através de um sistema informático, localização celular, obtenção de trace-back, obtenção de códigos IMEI, imsi, IP associados com o respectivo grupo data/hora geolocalização associados aos nicnames sleeknail (associado ao suspeito -__) e saddesthyena (associado a _____).
Para o efeito alegou que existem suspeitas da prática de factos susceptíveis de configurar um crime de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa.
Que a PJ foi informada via Europol de um conjunto de actividades desenvolvidas em território nacional por vários indivíduos e que usam equipamentos de comunicação encriptados, denominados Encrochat.
Que resulta a necessidade de emitir um pedido de complemento à DEI para obtenção de elementos de prova relativos aos suspeitos, a obter junto do processo resultante da JT realizada entre as autoridades francesas e holandesas em virtude de tais elementos serem imprescindíveis para a descoberta da verdade dos factos sob investigação nestes autos.
Mais alega que os suspeitos _________ têm vindo a comunicar entre si e com outros membros da organização criminosa através da aplicação Encrichat, por forma a não serem detectados pelas autoridades dos respectivos países onde actuam.

Cumpre decidir.

Por despacho judicial de 28-1-2021 (fls. 1878) foi autorizado a quebra de sigilo de comunicações do Encrochat quanto aos suspeitos RO____, JA_____,  HR_____, PN_____, RM____, VS_____e mais foi autorizada a expedição de uma DEI às autoridades francesas.
O despacho judicial em causa não fixou prazo para a duração deste meio de obtenção de prova.
Nos termos do artigo 187° n° 6 do CPP, aplicável ao caso concreto por força do artigo 189° do CPP, o recurso ao método de obtenção de prova em causa tem como prazo máximo o prazo de 3 meses, renováveis por iguais períodos.
Assim sendo, tendo em conta o despacho judicial de 28-1-2021, uma vez que não foi fixado prazo isso significa que o prazo em causa é de 3 meses, o que faz com que autorização judicial tenha caducado no dia 28 de Abril de 2021.
Deste modo, qualquer obtenção de prova realizada a partir de 28 de Abril de 2021 ao abrigo da autorização judicial de 28-1-2021, constituirá prova proibida, nos termos do artigo 126° n° 3 do CPP, por falta de autorização judicial, dado que esta caducou no dia 28 de Abril de 2021.
Quanto ao pedido relativo aos suspeitos _____ verifica-se que existem nos autos factos concretos que sustentam a existência de suspeitas fundadas da prática de um crime de tráfico de estupefacientes e da ligação dos referidos suspeitos aos factos em causa.
 
Mais resultam suspeitas que os factos em causa são praticados com dispersão territorial, nomeadamente ao estrangeiro, o que dificulta ainda mais a obtenção de prova dada a mobilidade dos suspeitos.
Resulta, ainda, que os suspeitos utilizam na sua actividade sob investigação meios de comunicação encriptados, denominados Encrochat, para estabelecerem contactos relacionados com a actividade criminosa em investigação e por forma a não serem detectados pelas autoridades policiais.
Tendo em conta a actividade em investigação, a dispersão territorial da mesma e a forma de comunicação utilizada pelos suspeitos, faz com que existam razões concretas para crer que a diligência solicitada pelo MP é indispensável para a descoberta da verdade e a prova seria, de outra forma impossível de obter.
Em face do exposto, mostram-se reunidos os pressupostos formais e materiais para autorizar o recurso ao meio de prova intrusivo sugerido pelo MP, motivo pelo qual, ao abrigo do disposto nos artigos 187° n° 1 al. b), 4 al. a), 6, 189° n° 1 e 2, do CPP, 2 al. e), 11 al. c), 13° da lei 109/2019, de 15- 09 e tendo em conta ainda os princípios da necessidade e da proporcionalidade, autorizo a apreensão, pesquisa e remessa do registo de transmissão de dados informáticos, comunicações electrónicas, de dados de tráfego e de conteúdo associados a comunicações específicas transmitidas através de um sistema informático, localização celular, obtenção de trace- back, obtenção de códigos IMEI, imsi, IP associados com o respectivo grupo data/hora geolocalização associados aos nicnames sleeknail (associado ao suspeito LC-_____) e saddesthyena (associado a AL-____).
Mais autorizo que o MP emita uma DEI, dado que a autorização da anterior caducou no dia 28 de Abril de 2021, a remeter às autoridades francesas para execução da decisão judicial acabada de proferir.
 
3.O recorrente aduz as seguintes conclusões, em discórdia quanto ao decidido:
1- A rede ENCROCHAT foi alvo de uma operação conjunta levada a cabo pelas autoridades judiciárias francesas e holandesas, no âmbito da qual se apreendeu o conteúdo das comunicações realizadas através de tal sistema informático.
2- Através de uma equipa de investigação conjunta (JIT) realizada entre Holanda e França foi revelado o “Encrochat” e recolhida relevante informação relativamente a várias organizações criminosas que usavam aquele sistema de comunicação, tendo-se detectado que os suspeitos nestes autos, usavam tal sistema de comunicação para comunicar entre si, importando à investigação aceder ao conteúdo das referidas comunicações.
3- O “Encrochat” é uma espécie de “Watsapp” utilizado por organizações criminosas.
4- Os IM ou programas de mensagens instantâneas (e. g., Facebook messenger, Skype, Whatsapp. Viber, Snapchat, Telegram) são programas que, como o próprio nome indica, permitem aos utilizadores o envio e recebimento imediato de mensagens, em tempo real, não exigindo ao destinatário qualquer acto (a não ser ter em funcionamento o seu sistema informático).
5- Questão que não abordámos originalmente, mas que tem aqui alguma aplicação é a semelhança com os conhecimentos fortuitos.
6- A Lei do cibercrime adiante designada como LCC não tem previsão expressa sobre esta matéria.
7- Aliás, a nossa lei processual penal apenas expressamente prevê a transmissão de prova entre processos (conhecimentos fortuitos em sentido estrito) quanto ao meio de obtenção de prova ‘escutas telefónicas’ (artigo 187.°, n.°s 7 e 8, do CPP78) e, ainda assim, apenas tal sucede desde as alterações neste diploma introduzidas pela Lei n.° 48/2007.
8- A ausência de expressa previsão legal não significa que essa transmissão apenas seja admissível no caso das escutas telefónicas (e, por força do disposto no n.° 4 do artigo 18.° da LCC, também para a intercepção de comunicações).
9- Sendo a prova originalmente válida, a admissibilidade da transmissão verificar-se-á, sem qualquer limitação, sempre que não exista qualquer restrição de âmbito objectivo (catálogo de crimes) ou subjectivo quanto ao concreto meio de obtenção de prova, por razões de economia processual e em obediência a um primado de justiça e procura da verdade material.
10- Apesar de a LCC não ter previsão expressa sobre os conhecimentos fortuitos, sendo a prova originalmente válida, a admissibilidade da transmissão para a prova dos novos crimes verificar-se-á, por razões de economia processual e em obediência a um primado de justiça e procura da verdade material, sem qualquer limitação que não a do critério material do artigo 17.° (grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova), que será apreciado pelo juiz do processo ‘receptor’, pois não existe qualquer restrição de âmbito objectivo (catálogo de crimes) ou subjectivo.
11- A questão aqui é que não se trata de transmissão de prova entre processos nacionais, mas sim de um processo Francês para um Português.
12- Os dados que se pretendem obter encontram-se incluídos na previsão do artigo 17.° da LCC (dados armazenados) e não na do artigo 18.° (intercepção em tempo real).
13- É indiscutível a correcção da opção da nossa lei: no nosso sistema (artigos 187.° e 188.° do CPP e artigo 18.° da LCC) só os dados em trânsito podem ser interceptados.
14- Há que proceder à conjugação do artigo 17.° da LCC com o artigo 179.° do CPP.
15- O artigo 17.° da LCC determina a correspondente aplicação do regime de apreensão de correspondência do CPP, não a aplicação integral.
16- Esta aplicação só deve ser feita naquilo que não contrariar o já previsto na própria LCC; a remissão para o CPP não pode sobrepor-se ao regime especial de prova electrónica previsto na LCC, tendo sido intenção do legislador adaptar às novas realidades a busca e a apreensão previstas no CPP, não aplicá-los integral e acriticamente.
17- Em qualquer caso, a posterior junção aos autos dos dados transmitidos limitar-se-á aos dados que tenham relevo e não firam os direitos acautelados pelo artigo 16°, n° 3 da Lei n° 109/2009, o que implicará controlo judicial.
18- Assim sendo, o despacho judicial de 26/1/2021 que determinou a quebra de sigilo e a remessa de tais elementos por parte das autoridades Francesas para o inquérito a correr termos em Portugal, não sujeitou a mesma a qualquer prazo;
19- Porque na realidade tal transmissão de prova não está sujeita a qualquer prazo, uma vez que não se trata de transmissão de dados em tempo real, mas sim a transmissão de prova conservada, aplicando-se para o efeito o disposto nos artigos 11°, n° 1, alíneas b) e c), 16°, n° 3, 17° e 24° da Lei do Cibercrime e 179° do Código de Processo Penal.
20- Nestes termos deverá o despacho do Mm° JIC que determinou que a “obtenção de prova realizada a partir de 28-1-2021” ao abrigo de autorização judicial de 28/1/2021 fosse considerada prova proibida nos termos do artº 126° n° 3 do CPP ser, revogado e substituído por outro que considere a referida prova válida nestes autos.
21- Com tal decisão violou o Mm° JIC o disposto nos artigos nos artigos artigos 11°, nº 1, alíneas b) e c), 16°, n° 3, 17° e 24° da Lei do Cibercrime e 179° do Código de Processo Penal.

4. Apreciando.

O despacho inicial de 28 de Janeiro de 2021 determinou a quebra de sigilo de dados e das comunicações do "Encrochat", relativamente aos suspeitos infra identificados e autorizou a apreensão, a pesquisa e remessa de uma série de elementos (registo de transmissões de dados informáticos, comunicações electrónicas, de dados de tráfego e de conteúdo associados a comunicações específicas transmitidas através de um sistema informático, localização celular, obtenção de trace-back, obtenção de códigos de imeis, ficheiros, mensagens de texto, de imagem, audiovisuais e de audio, IMEI, imsi, IP associados com respectivo grupo data/hora geolocalização), autorizando o Mº Pº a expedir a DEI (decisão europeia de investigação (dei) em matéria penal, Lei n.º 88/2017, de 21 de Agosto) às autoridades Francesas, nos termos promovidos e a utilização de tais elementos, em termos probatórios no âmbito dos presentes autos.

5. A DEI tem como objecto o estabelecimento do regime jurídico da emissão, transmissão e do reconhecimento e execução de decisões europeias de investigação, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva 2014/41/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Abril de 2014, relativa à decisão europeia de investigação (DEI) em matéria penal (artº1).
O seu âmbito de aplicação abrange, como se estipula no artº 4º da mencionada Lei n.º 88/2017, de 21 de Agosto, qualquer medida de investigação, com excepção da criação de equipas de investigação conjuntas e da obtenção de elementos de prova por essas equipas, assim como as medidas de investigação destinadas à realização dos objectivos de uma equipa de investigação conjunta, a executar num Estado membro que nela não participa, por decisão da autoridade judiciária competente de um dos Estados membros que dela fazem parte.
E aplica-se à obtenção de novos elementos de prova e à transmissão de elementos de prova na posse das autoridades competentes do Estado de execução, em todas as fases do processo.

6. No caso, estamos perante prova obtida, não no âmbito de um processo que corra seus termos em Portugal, mas antes perante um processo resultante da JIT (equipa de investigação conjunta) realizada entre as autoridades Francesas e Holandesas, sob referência OP. EMMA, e as autoridades Holandesas, sob a referência OP. 26 Lemont.
No decurso dessa investigação conjunta, que se debruçou sobre actividades criminosas praticadas em diversos países, surgiram elementos que indiciavam a existência de uma organização criminosa, que também desenvolvia essa actividade em território nacional, fazendo uso de equipamentos de comunicação encriptados, denominados Encrochat. Portugal tomou conhecimento desses factos através da Polícia Judiciária, que de tal foi informada via Europol, através do pacote SIENA 1.....8-...2-1.
 
7. Uma vez que os elementos de prova, recolhidos no âmbito da acima referida operação conjunta França/Holanda, teriam relevância para apreciação e eventual prossecução, em Portugal, pela prática dos crimes de tráfico aqui cometidos, de suspeitos devidamente identificados, pediu o Mº Pº que fosse autorizado a emitir uma DEI, junto de tais autoridades estrangeiras, de modo a que se procedesse à apreensão, pesquisa e remessa de uma série de elementos de prova, relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte electrónico.

8. Estamos pois, perante, questões relativas a aquisição probatória, que se mostram definidas na Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro), sendo por isso (trata-se de lei especial que, como tal, arreda a aplicação da norma geral) dentro do âmbito desse diploma que a questão proposta nestes autos deverá ser resolvida.

9. No caso, a autorização dada pelo despacho de Janeiro de 2021, reporta-se ao pedido de apreensão, pesquisa e remessa, de dados dessa natureza: isto é, não se pedem escutas em tempo real, nem se requer a produção de certos e determinados meios de prova. O objectivo é apenas um – permitir que, em Portugal, no âmbito de um processo-crime, elementos probatórios relativos a cibercrime possam ser cedidos pelas autoridades estrangeiras que procederam à sua recolha, de modo a que aqui possam ser usados.

10. Assim, não só o despacho proferido em Janeiro de 2021 se mostra correctamente substanciado nas normas que indica como, claramente, o despacho ora alvo de recurso, datado de Junho de 2021, se mostra sem bases que o sustentem.
Na verdade, o Mº juiz “a quo” aí entendeu – erradamente – que seria aplicável à mera transmissão de dados já preservados e conservados (isto é, já obtidos por entidades estrangeiras) o disposto no artº 187 nº6 do C.P. Penal (por remissão do artº 189 do mesmo diploma legal), como se o que se estivesse a pedir fosse que tais autoridades estrangeiras procedessem a inovatórias intercepções de conversas telefónicas em tempo real ou à obtenção de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações. E, assim sendo, entendeu que o prazo de 3 meses previsto em tais normas se mostrava esgotado.

11. Não se compreende sequer o raciocínio que subjaz a tal operação. Na verdade, não está em causa, neste segmento do despacho, qualquer ordem de intercepção, de início de apreensão ou de intercepção de comunicações ou dados, ordenadas por autoridades judiciárias portuguesas, a serem realizadas por entidades estrangeiras. A autorização dada pelo despacho de 28 de Janeiro de 2021 é para a formulação de um pedido de transferência, para Portugal, de elementos de prova que foram recolhidos por autoridades estrangeiras; isto é, defere-se a que seja pedido a um processo estrangeiro a transmissão de elementos probatórios aí já recolhidos e conservados.

12. Como se refere no despacho de Janeiro de 2021, o propósito dessa decisão é, por um lado, o de determinar a quebra de sigilo e, por outro, na sua sequência, autorizar o M.° Pº a expedir a DEI às autoridades Francesas, pedindo a transmissão desses elementos probatórios. Salvo o devido respeito, pese embora tivéssemos lido e relido a legislação aplicável, em parte alguma descortinámos a fixação de qualquer prazo máximo de validade de autorização dessa DEI.

13. Diga-se, aliás, que a propósito desta questão, se mostra já publicado o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Processo nº 648/14.6GCFAR-A.E1, de 20-01-2015 (consultável in www.dgsi.pt), em que se afirma o seguinte:
1- O regime processual das comunicações telefónicas previsto nos artigos 187º a 190º do Código de Processo Penal deixou de ser aplicável por extensão às “telecomunicações electrónicas”, “crimes informáticos” e “recolha de prova electrónica (informática)” desde a entrada em vigor da Lei 109/2009, de 15-09 (Lei do Cibercrime) como regime regra.
2- Esse mesmo regime processual das comunicações telefónicas deixara de ser aplicável à recolha de prova por “localização celular conservada” – uma forma de “recolha de prova electrónica – desde a entrada em vigor da Lei 32/2008, de 17-07.
3- Para a prova electrónica preservada ou conservada em sistemas informáticos existe um novo sistema processual penal, o previsto nos artigos 11º a 19º da Lei 109/2009, de 15-09, Lei do Cibercrime, coadjuvado pela Lei nº 32/2008, neste caso se estivermos face à prova por “localização celular conservada”.
4- Nessa Lei do Cibercrime coexistem dois regimes processuais: o regime dos artigos 11º a 17º e o regime dos artigos 18º e 19º do mesmo diploma. O regime processual dos artigos 11º a 17º surge como o regime processual “geral” do cibercrime e da prova electrónica. Isto porquanto existe um segundo catálogo na Lei n. 109/2009, o do artigo 18º, n. 1 do mesmo diploma a que corresponde um segundo regime processual de autorização e regulação probatória. Só a este segundo regime – o dos artigos 18º e 19º - são aplicáveis por remissão expressa os artigos 187º, 188º e 190º do C.P.P. e sob condição de não contrariarem e Lei 109/2009.
5- As normas contidas nos artigos 12º a 17º da supramencionada Lei contêm um completo regime processual penal para os crimes que, nos termos das alíneas do n. 1 do artigo 11º, estão (a) previstos na lei nº 109/2009, (b) são ou foram cometidos por meio de um sistema informático ou (c) em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico.
6- A diferenciação de regimes assenta na circunstância de os dados preservados nos termos dos artigos 12º a 17º se referirem à pesquisa e recolha, para prova, de dados já produzidos mas preservados, armazenados, enquanto o artigo 18º do diploma se refere à intercepção de comunicações electrónicas, em tempo real, de dados de tráfego e de conteúdo associados a comunicações específicas transmitidas através de um sistema informático

14. Estamos em plena sintonia com o que aí se mostra vertido, no que concerne à existência de dois diversos regimes processuais, consoante as circunstâncias do caso.
Efectivamente, no que concerne a prova electrónica preservada ou conservada em sistemas informáticos – isto é, já obtida e existente em processo que corre seus termos em jurisdição não nacional - o sistema processual penal é o previsto nos artigos 11º a 17º da Lei nº109/2009, de 15-09, Lei do Cibercrime (coadjuvado pela Lei nº 32/2008, neste caso se estivermos face à prova por “localização celular conservada”). Assim, os artºs 12º a 17º da Lei do Cibercrime constituem um completo regime processual penal para os crimes que, nos termos das alíneas do nº 1 do artº 11º, ou estão previstos nessa lei, ou foram cometidos por meio de um sistema informático, ou em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico.
15. Temos pois que nos casos em que os pedidos se reportam a dados já preservados, já obtidos, já armazenados (no caso, por autoridades estrangeiras), em que se pretende a sua transmissão para o universo processual penal nacional, regem exclusivamente os mencionados artºs 12º a 17º da Lei do Cibercrime.

16. Já não será assim quando estamos perante um pedido de intercepção de comunicações electrónicas, de dados de tráfego e de conteúdo associados a comunicações específicas transmitidas através de um sistema informático, em tempo real, situação que se mostra inserida no artº 18 desse mesmo diploma legal. Aí, se tal for o caso, já o nº 4 desse preceito determina a aplicabilidade do regime da intercepção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas constantes dos artigos 187.º, 188.º e 190.º do Código de Processo Penal. Mas apenas nesse caso.

17. Ora, como supra já se referiu, a situação dos autos não se insere no âmbito do dito artº 18, razão pela qual se mostra inadmissível (quer pela sua própria natureza, quer pela ausência de norma que o suporte) proceder-se à aplicação do regime previsto no nº6 do artº 187 do C.P. Penal, por este se tratar de norma geral, derrogada pela norma especial (artºs 12 a 17 da Lei do Cibercrime).

18. Acresce que, nos termos do artº 125.º do C.P. Penal, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei. Não existindo, no que se refere
à transmissibilidade de elementos probatórios já adquiridos, ao abrigo da Lei do Cibercrime, em país estrangeiro, qualquer norma que a proíba, teremos de concluir, como alega o recorrente que sendo a prova originalmente válida, a admissibilidade da transmissão verificar-se-á, sem qualquer limitação, sempre que não exista qualquer restrição de âmbito objectivo (catálogo de crimes) ou subjectivo quanto ao concreto meio de obtenção de prova, por razões de economia processual e em obediência a um primado de justiça e procura da verdade material.

19. Assim, resta-nos concluir que, inexistindo qualquer limite temporal de expiração, no que concerne a elementos probatórios cuja transmissão se pediu ao estado de execução, o despacho prolatado, que declarou nula qualquer prova obtida a partir de 28 de Abril de 2021, não se poderá manter, por se mostrar sem sustentação.
 
IV–DECISÃO.

Face ao exposto, acorda-se em considerar procedente o recurso interposto pelo Mº Pº e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, quanto ao seguinte segmento (O despacho judicial em causa não fixou prazo para a duração deste meio de obtenção de prova. Nos termos do artigo 187° n° 6 do CPP, aplicável ao caso concreto por força do artigo 189° do CPP, o recurso ao método de obtenção de prova em causa tem como prazo máximo o prazo de 3 meses, renováveis por iguais períodos. Assim sendo, tendo em conta o despacho judicial de 28-1-2021, uma vez que não foi fixado prazo isso significa que o prazo em causa é de 3 meses, o que faz com que autorização judicial tenha caducado no dia 28 de Abril de 2021. Deste modo, qualquer obtenção de prova realizada a partir de 28 de Abril de 2021 ao abrigo da autorização judicial de 28-1-2021, constituirá prova proibida, nos termos do artigo 126° n° 3 do CPP, por falta de autorização judicial, dado que esta caducou no dia 28 de Abril de 2021.), que se elimina, mantendo-se válida a autorização dada ao M.° Pº, pelo despacho de 28 de Janeiro de 2021, de expedir a DEI às autoridades Francesas, nos termos promovidos e a utilização de tais elementos, em termos probatórios no âmbito dos presentes autos.
Sem tributação.
Dê imediato conhecimento do teor desta decisão ao tribunal “a quo”.
 


Lisboa, 29 de Setembro de 2021


Assinaturas Digitais:
Margarida Ramos de Almeida (relatora)
Ana Paramés