INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INSUPRÍVEL
INCOMPATIBILIDADE SUBSTANCIAL DE PEDIDOS
RECTIFICAÇÃO DOS PEDIDOS
Sumário

I- A ineptidão da petição inicial não dá lugar ao aperfeiçoamento, constituindo, em regra, exceção dilatória insuprível;
II- A incompatibilidade substancial dos pedidos que implica a ineptidão da petição inicial (al. c) do nº 2 do art. 186 do C.P.C.) só releva no âmbito da cumulação real, pois tratando-se de pedidos subsidiários ou alternativos a cumulação é apenas aparente, na medida em que a apreciação de um excluirá o conhecimento do outro, não sendo considerados em conjunto;
III- Afigurando-se existir uma incompatibilidade substancial de pedidos, tal vício será sanável, designadamente através de um convite ao autor para que opte por um dos pedidos ou esclareça se os mesmos foram formulados em cumulação real, para serem todos eles atendidos em simultâneo (art. 555 do C.P.C.), ou, afinal, em cumulação alternativa (art. 553 do C.P.C.) ou subsidiária (art. 554 do C.P.C.);
IV- Tal convite dirigido ao autor poderá constituir uma forma de retificar, de forma expedita, um simples lapso ou uma mera deficiência na formulação dos pedidos, constituindo resposta adequada ao princípio da economia processual e ao da prevalência das decisões de mérito sobre as formais.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:
A [ .....Produtos Químicos e Farmacêuticos, Lda ] e OUTROS , propuseram, em 27.2.2019, contra B [ .....-Companhia de Seguros,S.A. ] , e C [ ...., Unipessoal, Lda,]  ação declarativa comum, pedindo a condenação das RR.:

a) A ver determinado, como preço efectivo de venda de cada um dos imóveis dos autos, para efeitos da ação de preferência a intentar, aquele que resultar da análise dos documentos cuja junção, por parte das RR., ora se requer, para efeitos do disposto nos artºs. 416.º a 418.º e 1410.º do CC;
b) Na declaração de nulidade dos contratos de compra e venda constantes dos Documentos 2 e 4 supra, por violação das normas legais imperativas constantes dos arts. 416.º a 418.º e 1410.º do CC e art.º 7.º do CIMT, nos termos do disposto no art.º 294.º do CC.”
Alegam, para tanto e em síntese, que os primeiros cinco AA. são o conjunto de inquilinos dos diversos espaços locados que integram o imóvel sito na Rua do Forno do Tijolo, nº ...a .... e ... a ...., inscrito na matriz predial urbana sob o art. 3646 da Freguesia de Arroios, Concelho de Lisboa, o qual é propriedade da Ré C após o ter adquirido à Ré B por escritura outorgada no dia 29.8.2018, sendo os restantes AA. o conjunto de inquilinos dos diversos espaços locados que integram o imóvel sito na Av. Manuel da Maia, nº 50, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 787 da Freguesia do Areeiro, Concelho de Lisboa, o qual é propriedade da Ré C após o ter adquirido à Ré B por escritura outorgada no dia 31.8.2018. Mais referem que os indicados prédios se encontram em regime de propriedade total, constituídos por andares ou divisões suscetíveis de utilização independente locados aos AA..
Afirmam que a Ré B rejeitou a pretensão dos AA. de adquirir em conjunto cada um dos imóveis de que são arrendatários, tendo sido ficcionados os valores atribuídos aos imóveis alienados pelas ditas escrituras de 29.8.2018 e 31.8.2018 com o objetivo de criar mais um obstáculo a que os AA. pudessem vir a juízo reclamar e exercer o direito de preferência que se arrogam, na medida em que, por força do disposto no art. 1410 do C.C., teriam de caucionar valores exorbitantes e irreais (tanto na perspetiva do negócio em causa, como na do mercado em geral). Dizem que essa distorção da realidade, caso se comprove, é gravemente lesiva dos direitos e interesses que os AA. pretendem salvaguardar, em ação de preferência a intentar, na medida em que lhes imporia um esforço financeiro, para conseguir adquirir os imóveis dos autos, muito superior àquele que resultaria dos correspondentes valores efetivamente considerados pelas RR. na montagem do negócio, pelo que se impõe a verificação destes valores e a determinação de que serão esses aqueles que devem ser considerados como preço de alienação dos edifícios dos autos em sede da ação de preferência.
Referem que, pelo menos na escritura pública de compra e venda realizada em 31.12.2018, o preço foi pago contra o que fora anunciado na oferta para preferência e que em ambas as escrituras públicas foi violado o disposto nos nºs 2 e 3 do art. 7 do CIMT, uma vez que não foi liquidado e pago o imposto devido (IMT), apesar da 2ª Ré compradora, C, apenas constituída em 19.12.2017, não ter comprovado o exercício da sua atividade no ano anterior.
Sustentam ainda que a antecipação das datas de outorga das escrituras públicas de compra e venda dos autos para os dias 29 e 31.8.2018, relativamente ao período compreendido entre 7.9.2018 e 31.12.2018 anunciado na carta de oferta para exercício do direito de preferência, constitui outra fraude ao mesmo regime de exercício desse direito, importando violação das normas legais imperativas que o regulam e, portanto, a nulidade do contrato celebrado nesses termos, por força do disposto no art. 294 do C.C..
Contestou a Ré C, por exceção e por impugnação. Defende, no que aqui interessa, a ineptidão da p.i., invocando que os pedidos formulados na ação são substancialmente incompatíveis, visto que os AA. apenas poderiam exercer o seu direito de preferência se a alienação dos imóveis se mantivesse válida e em vigor. Mais invoca a falta de interesse em agir, dado que os AA. configuram a ação como mero expediente “preparatório” da ação de preferência que, entretanto, instauraram contra as RR. (a correr termos sob o nº 4527/19.2T8LSB), constituindo esta o meio processual próprio para tutelarem o direito de preferência de que se arrogam titulares. Defende, igualmente, que os AA. atuam em abuso de direito e a ilegitimidade substantiva daqueles. Conclui pela procedência de cada uma das exceções e pela improcedência da causa.
A Ré Fidelidade veio aderir à contestação da Ré C.
Convidou o Tribunal os AA. a responder às exceções arguidas na contestação, referindo ainda expressamente: “(…) A fim de prevenir a prolação de decisão surpresa, e com vista a permitir um melhor exercício do contraditório, mais ficam notificados os autores de que, estudados os autos, se configura a possibilidade de procedência da exceção de ineptidão da petição, por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, (art.º 186º n2 al. c) do CPC).(…).”
Vieram, então, os AA. apresentar articulado de resposta à matéria de exceção,  invocando, além do mais, que os pedidos formulados nestes autos não são cumulativos entre si, para os efeitos do art. 555 do C.P.C., mas sim subsidiários, para os efeitos do art. 554 do C.P.C., “sendo manifesto e evidente que o pedido formulado sob a alínea b) apenas deve ser considerado no caso de improcedência do pedido formulado sob a alínea a)” (art. 4º), que “Esse é o único relacionamento compaginável com o interesse propugnado pelos AA, de verem determinado o preço efetivo de venda dos imóveis de que são arrendatários, a fim de, noutros autos, exercerem o direito de preferência que lhes assiste” (art. 5º) e que “Apenas na (improvável) circunstância de esta pretensão vir a ser inviabilizada se coloca o interesse de ver destruídos os efeitos jurídicos dos contratos de compra e venda outorgados pela RR, porque só então manteriam relevância os fundamentos de nulidade invocados” (art. 6º). Mais referem que não pretendem exercer nesta ação o seu direito de preferência, pelo nunca existiria incompatibilidade de pedidos.
Em 10.12.2020, foi proferido despacho que, apreciando da invocada ineptidão da petição inicial, decidiu: “(…) Vieram as rés arguir a exceção de ineptidão, porquanto os pedidos formulados pelos autores são substancialmente incompatíveis.
Dispõe o artigo 186º do Código de Processo Civil:
“2- Diz-se inepta a petição:
a) (…);
b) (…);
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”
Conforme já se expôs supra, os pedidos formulados pelos autores são os seguintes:
a) A ver determinado, como preço efetivo de venda de cada um dos imóveis dos autos, para efeitos da ação de preferência a intentar, aquele que resultar da análise dos documentos cuja junção, por parte das RR, ora se requer, para efeitos do disposto nos art.ºs 416.º a 418.º e 1410.º do CC;
b) Na declaração de nulidade dos contratos de compra e venda constantes dos Documentos 2 e 4 supra, por violação das normas legais imperativas constantes dos art.ºs 416.º a 418.º e 1410.º do CC e art.º 7.º do CIMT, nos termos do disposto no art.º 294.º do CC.
Nos termos do disposto no nº1 do art.º 555º do CPC, "(p)ode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação."
Como dispõe o nº1 do art.º 554º do CPC, "(p)odem formular-se pedidos subsidiários. Diz-se subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior"; sendo que, no caso de pedidos subsidiários, a oposição entre ambos não é, genericamente, obstáculo à sua dedução, (nº2 do mesmo normativo).
No caso ora em análise os autores formulam dois pedidos distintos, sendo que pelo primeiro pretendem seja determinado o preço real da venda dos imóveis em relação aos quais pretendem exercer direito de preferência; e, pelo segundo, que seja declarada a nulidade de tais vendas.
Entre os pedidos formulados não foi aposta qualquer expressão da qual se deduza que sejam alternativos ou sequer subsidiários, como é uso e prática forense; ou seja, entre a formulação dos pedidos não foi dito, expressamente, "ou, em alternativa", nem "subsidiariamente, caso não proceda o pedido antecedente". Não foi sequer escrita qualquer expressão da qual se pudesse deduzir, com elevada probabilidade, estarmos perante pedidos alternativos / subsidiários, como "ou", ou "assim não procedendo".
Do articulado da petição também não se retira que exista uma relação de subsidiariedade entre pedidos. Com efeito, os factos que constituem a causa de pedir subjacente ao pedido formulado em b) são alegados no seguimento dos demais, que são fundamento do pedido formulado em a); e surgem alegados como acrescendo a estes, (cf. art.º s 37º e 40º da petição), e sendo complementares dos mesmos (cf. art.ºs 83º e 85º da petição).
Do exposto resulta que, analisado o texto da petição e dos pedidos formulados, estes o são cumulativamente, ou seja, os autores formulam uma pluralidade de pretensões.
Ora os efeitos jurídicos dos pedidos formulados são contrários ou opostos. De facto, a pretensão de determinação do valor real e efetivo da venda, que tem como propósito habilitar os autores a saber o valor a depositar em ação de preferência a intentar (e que, na verdade, já intentaram e corre termos sob o número de processo 4527/19.2T8LSB, no Juiz 5 do Juízo Central Cível de Lisboa) apenas faz sentido se o negócio de venda for válido e eficaz.
Conclui-se, portanto, que o pedido de declaração de nulidade dos contratos de compra e venda é substancialmente incompatível com o pedido de determinação do preço da venda.
Tal incompatibilidade substancial acarreta, como disposto na al. c) do nº2 do art° 186º do Código de Processo Civil, a ineptidão da petição. Sendo inepta a petição, é nulo todo a processo, (art.º 186º nº1 do CPC).
Destarte, absolvem-se as rés B e C da instância, (art.º 186º nº2 al. c) e 278º nº1 al. b) do CPC).
Custas pelos autores, (art. 527º do CPC).”
Inconformados, interpuseram recurso os AA., apresentando as respetivas alegações que culminam com as conclusões a seguir transcritas:

A- O presente recurso vem interposto da douta Sentença proferida nos autos à margem identificados, a qual julgou procedente a excepção de ineptidão da Petição Inicial, por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis entre si, nos termos dos artigos 186.°, n.°s 1 e 2 c) e 278.°, n.° 1 b) do CPC.
B- Por sua própria natureza, os pedidos formulados pelos AA não são cumulativos entre si, para os efeitos do art.° 555.° do CPC, mas antes subsidiários, para os efeitos do art.° 554.° do CPC, sendo manifesto e evidente que o pedido formulado sob a alínea b) apenas deve ser considerado no caso de improcedência do pedido formulado sob a alínea a).
C- Contra este entendimento não milita a circunstância de não ter sido aposta expressão como "ou, em alternativa" ou "subsidiariamente", uma vez que o uso de tais expressões constitui mera formalidade, perante a qual não cede a própria natureza dos pedidos em causa e do seu relacionamento mútuo, como vem sendo uniformemente decidido pelos Tribunais superiores, do que é exemplo a jurisprudência citada supra.
D- Uma vez que o uso de expressão adversativa se trata de mera formalidade, cuja falta é insusceptível de afastar o contexto e finalidades que relacionam os pedidos em causa, para mais quando qualquer dúvida que se pudesse colocar já se encontrava plenamente esclarecida por meio da pronúncia dos AA sobre a matéria desta excepção, a decisão adoptada pela douta Sentença recorrida incorre em violação do disposto nos artigos 186.° e 554.° do CPC, além de constituir falha de observância dos princípios de economia processual e de privilégio da justa e efectiva composição do litígio, consagrados no art.° 6.° do CPC.
E- Face aos princípios da economia processual e da prevalência do objectivo de justa composição do litígio sobre as formalidades (art.° 6.° do CPC), encontrando-se plenamente clarificada a questão da subsidiariedade dos pedidos, não poderia deixar de ser considerada repugnante uma solução que exigisse instaurar nova acção inteiramente idêntica a esta — apenas com a intercalação da expressão "ou, em alternativa" entre as alíneas a) e b) do pedido -, volvidos que são 2 anos desde a instauração dos presentes autos, quando nada obsta a que estes sejam aproveitados.
F- Além disso, outro motivo impõe a falência desta excepção, qual seja a simples constatação de que, nestes autos, os AA não vêm exercer o seu direito de preferência.
G- Entre os pedidos formulados nestes autos — de determinação do preço efectivo de venda de cada um dos imóveis dos autos e de declaração de nulidade desses contratos de compra e venda — não se verifica a incompatibilidade apontada pelas RR e pela douta Sentença recorrida, entre a declaração de nulidade de um contrato e a preferência na celebração desse mesmo contrato. Tanto assim que, para justificar a afirmação de existência dessa incompatibilidade, a douta Sentença recorrida teve de recorrer, não ao pedido formulado pelos AA, mas à sua intencionalidade, estabelecendo a incompatibilidade entre esta e o pedido de declaração de nulidade.
H- A ineptidão da petição inicial apenas é cominada, pela alínea c) do n.° 2 do art.° 186.° CPC, para os casos de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, pelo que necessário seria demonstrar a existência de incompatibilidade substancial entre o pedido de determinação do preço efectivo de venda de cada um dos imóveis dos autos (independentemente da sua intenção ou propósito mediato) e o de declaração de nulidade desses contratos de compra e venda.
I- A douta Sentença recorrida incorre, por erro de aplicação, em violação do disposto no art.° 186.°, n.° 2 c) do CPC, por ter estabelecido incompatibilidade, não entre os dois pedidos formulados pelos AA, mas entre um desses pedidos e a intenção circunstancial do outro pedido.”
Pedem seja revogada a decisão e determinado o prosseguimento dos autos.
Não se mostram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentos de Facto:
A factualidade a ponderar é a que acima consta do relatório.
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III- Fundamentos de Direito:
São as conclusões que delimitam o objeto do recurso (art. 635, nº 4, do C.P.C.). Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
Compulsadas as conclusões da apelação, verificamos que cumpre apenas apreciar se os pedidos formulados pelos AA. são compatíveis entre si, por dever, designadamente, entender-se que existe entre eles uma relação de subsidiariedade, não ocorrendo, por isso, a ineptidão da petição inicial.
Analisando.
Na decisão recorrida concluiu-se pela ineptidão da petição, por haver incompatibilidade substancial entre os pedidos, absolvendo-se as RR. da instância.
Os pedidos formulados são os indicados no relatório supra, sustentando os apelantes que não se verifica incompatibilidade entre eles.
Dispõe o art. 6 do C.P.C., sob a epígrafe, “Dever de gestão processual”, que: 1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável. 2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”
Por sua vez, de acordo com o disposto no art. 590, nº 2, als. a) e b), do C.P.C., no final dos articulados, o juiz deve providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do nº 2 do artigo 6, e pelo aperfeiçoamento dos articulados.
A ineptidão da petição inicial (art. 186 do C.P.C. de 2013, que corresponde, sem alterações, ao anterior art. 193 do C.P.C. de 1961) conduz à nulidade de todo o processo (art. 186, nº 1), constituindo exceção dilatória de conhecimento oficioso (arts. 577, al. b), e 578 do C.P.C.).
Nos termos do nº 2 do art. 186 do C.P.C., a petição é inepta: “a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.”
O vício respeitante à falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir (art. 186, nº 2, al. a), do C.P.C.) será passível de superação se, tendo o réu contestado, se verificar que o mesmo interpretou convenientemente a petição inicial, ainda que tenha arguido a ineptidão com esse fundamento, caso em que não se julgará procedente a arguição (art. 186, nº 3).
Com exceção desta, todas as demais situações de ineptidão serão, em princípio, insanáveis.
A esta conclusão não obstará, à partida, o disposto no nº 2 do art. 6 do C.P.C. de 2013 (em parte correspondente ao anterior nº 2 do art. 265 do C.P.C. de 1961) visto que ao juiz apenas cumpre providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação.
Segundo Abrantes Geraldes, ainda que no domínio do C.P.C. revogado([1]):“(...) a única situação de ineptidão que é passível de superação através de actuações processuais deriva expressamente do art. 193, nº 3.
No que concerne às demais situações de ineptidão são insanáveis, não cabendo, pois, ao juiz empreender qualquer diligência nesse sentido face ao disposto no art.º 265º, nº 2. (…).”
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre assinalam também como efetiva situação passível de sanação a constante da a) do nº 2, face ao teor expresso do nº 3 do preceito([2]).
Diga-se ainda que compete igualmente ao juiz endereçar convite às partes para aperfeiçoar os seus articulados (art. 590, nº 2, al. b)), mas apenas para estas suprirem irregularidades (art. 590, nº 3) e insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (art. 590, nº 4), o que significa que a ineptidão da petição inicial não dará lugar ao aperfeiçoamento.
A ineptidão da petição inicial persiste, por isso, no C.P.C. de 2013, em regra, como uma exceção dilatória insuprível([3]).
Questão é saber se, ainda assim, e para além da dita exceção expressamente prevista no nº 3 do art. art. 186 do C.P.C., afigurando-se existir uma incompatibilidade substancial de pedidos, tal vício não será sanável, designadamente através de um convite ao A. para que opte por um dos pedidos ou esclareça se os mesmos foram formulados em cumulação real, para serem todos eles atendidos em simultâneo (art. 555 do C.P.C.), ou, afinal, em cumulação alternativa (art. 553 do C.P.C.) ou subsidiária (art. 554 do C.P.C.).
Com efeito, a incompatibilidade substancial dos pedidos que implica a ineptidão da petição inicial (al. c) do nº 2 do art. 186 do C.P.C.) só releva no âmbito da cumulação real, pois tratando-se de pedidos subsidiários ou alternativos a cumulação é apenas aparente, na medida em que a apreciação de um excluirá o conhecimento do outro, não sendo considerados em conjunto([4]).
Acresce que à verificação da incompatibilidade substancial de pedidos interessa apenas a contradição lógica, a incompatibilidade material entre os que conduzam à ambiguidade da pretensão e do efeito pretendido([5]).
Sobre este tema, diz-nos Lebre de Freitas([6]): “(…)  o disposto no art. 6-2 leva a que o tribunal deva convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que tenha deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na ação ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade (32A). Fora destes casos, a ineptidão da petição inicial dificilmente deixará de constituir nulidade insanável(…).”
Refere ainda o mesmo autor na assinalada nota de rodapé 32A: “(…) Assim, está certo o acórdão do TRP de 7.6.10 (...), www.dgsi.pt, proc. 477/09 quando entende que o autor deve ser convidado a corrigir uma petição inicial em que deduz como principais pedidos que, porque incompatíveis, deviam ter sido deduzidos em relação de subsidiariedade; e está errado o acórdão do TRC de 14.12.10 (...), www.dgsi.pt, proc. 2604/08, quando entende ser insanável o vício da petição inicial consistente em se ter deduzido, lado a lado, o pedido de declaração da nulidade do negócio por simulação e o de impugnação pauliana, em vez de deduzir um como principal e o outro como subsidiário."
Defendem, por sua vez, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre([7]) que no caso da dedução de pedidos substancialmente incompatíveis, deve ser aplicada, por analogia, a mesma solução prevista no art. 38 do C.P.C. (escolha pelo autor, em caso de coligação ilegal, do pedido com o qual o processo deve prosseguir)([8]).
Parecendo apontar em sentido idêntico, afirmam António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa([9]): “(…) Com exceção dos casos em que os pedidos são materialmente incompatíveis, gerando a ineptidão da petição inicial (art. 186º, nº 2, al. c)), a cumulação ilegal, à semelhança da coligação ilegal, para onde é feita a remissão (arts. 36º e 577º, al. f)), corresponde a uma exceção dilatória sanável com posterior aproveitamento do pedido que se enquadre nos requisitos materiais e formais dos arts. 36º e 37º, não determinando de imediato uma decisão de absolvição total da instância. (…).”
Como se argumenta no Ac. da RC de 31.5.2016 citado em rodapé, a propósito do convite ao autor para que opte por um dos pedidos havendo incompatibilidade substancial entre eles: “(…) Não discutimos que a solução que tem vindo a dar tradicionalmente pela nossa jurisprudência e doutrina vai no sentido de que tal vício constituir uma nulidade insanável, importando, necessária e automaticamente, a nulidade de todo o processado.
Entendemos, contudo, que tal ponderação deverá ser reavaliada face à revisão do CPC de 2013 e ao espírito que lhe subjaz ao nível de preocupações de economia processual e do reforço dos poderes processuais do juiz.
Tal questão mais força ganha se atentarmos em que, o nº3 do artigo 186º (agora e tal como o antigo 193º), apenas determina que a ineptidão da petição inicial baseada em incompatibilidade de pedidos não cessa por um deles ficar sem efeito por incompetência do tribunal ou erro na forma do processo, nada dizendo quanto às hipóteses de um deles ficar sem efeito por desistência da instância ou do pedido.
A solução do nº 3 do artigo 186º (antigo 193º), é explicada pelo facto de a petição em si continuar a ser inepta – continua sem se saber qual a verdadeira vontade do autor -, pelo que, reputá-la apta equivalia a dar ao tribunal o poder de, entre dois pedidos incompatíveis, desprezar um deles e conhecer somente do outro[12]. Ainda que um dos pedidos fique sem efeito por qualquer uma das causas aí previstas (incompetência absoluta ou erro na forma de processo), o objeto do processo não pode ter-se por automaticamente fixado no outro pedido, pois tal representaria ofensa do princípio do dispositivo[13].(…).”
Cremos ser de seguir este entendimento, especialmente se tivermos em conta que tal convite dirigido ao autor poderá constituir uma forma de retificar, de forma expedita, um simples lapso ou uma mera deficiência na formulação dos pedidos, constituindo resposta adequada ao princípio da economia processual e ao da prevalência das decisões de mérito sobre as formais.
Na verdade, não se trata, em bom rigor, de reparar a ineptidão da petição inicial, mas de verificar se existe, de facto, e à partida, uma efetiva e inultrapassável incompatibilidade substancial de pedidos, essa sim geradora de ineptidão da petição inicial.
Isto é, subsistindo o vício após o convite, cumprirá apreciar dos respetivos efeitos de acordo com as circunstâncias de cada caso([10]).
Na situação em apreço, o Tribunal a quo, após os articulados, convidou os AA. a responder às exceções arguidas na contestação, referindo ainda expressamente: “(…) A fim de prevenir a prolação de decisão surpresa, e com vista a permitir um melhor exercício do contraditório, mais ficam notificados os autores de que, estudados os autos, se configura a possibilidade de procedência da exceção de ineptidão da petição, por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, (art.º 186º n2 al. c) do CPC).(…).”
Respondendo ao convite, vieram os AA. apresentar articulado de resposta à matéria de exceção,  invocando, além do mais, que os pedidos formulados não são cumulativos entre si, para os efeitos do art. 555 do C.P.C., mas sim subsidiários, para os efeitos do art. 554 do C.P.C., “sendo manifesto e evidente que o pedido formulado sob a alínea b) apenas deve ser considerado no caso de improcedência do pedido formulado sob a alínea a)” (art. 4º), que “Esse é o único relacionamento compaginável com o interesse propugnado pelos AA, de verem determinado o preço efetivo de venda dos imóveis de que são arrendatários, a fim de, noutros autos, exercerem o direito de preferência que lhes assiste” (art. 5º) e que “Apenas na (improvável) circunstância de esta pretensão vir a ser inviabilizada se coloca o interesse de ver destruídos os efeitos jurídicos dos contratos de compra e venda outorgados pela RR, porque só então manteriam relevância os fundamentos de nulidade invocados” (art. 6º). Mais referem que não pretendem exercer nesta ação o seu direito de preferência, pelo nunca existiria incompatibilidade de pedidos.
Vieram, assim, os AA. afirmar, com toda a clareza, naquele articulado de resposta, que pretenderam na petição inicial colocar os dois pedidos numa relação de subsidiariedade, sendo o segundo apenas a considerar para o caso de não proceder o primeiro, o que resultaria, segundo dizem, forçosa e implicitamente daquele mesmo articulado, e que não formulam na causa qualquer direito de preferência, pelo que não existe incompatibilidade entre os pedidos.
Não pode retirar-se, a nosso ver, da formulação dos pedidos na petição inicial que haveria entre ambos uma qualquer relação de subsidiariedade. Não o disseram, em boa verdade, os AA., de forma explícita ou implícita nem tal emerge do texto daquele articulado, contra o que se argumenta no recurso, sendo evidente que não poderiam proceder ambos se apreciados em conjunto, ainda que a presente ação vise constituir-se, no que se refere ao pedido formulado sob a al. a), como preliminar ou antecâmara de ação de preferência entretanto proposta.
Com efeito, e como se refere na decisão recorrida, não poderiam os AA. pretender acautelar qualquer direito na perspetiva da instauração de uma ação de preferência (determinação do valor real e efetivo da venda) e invocar, ao mesmo tempo, a nulidade do próprio contrato de compra e venda em que pretenderiam vir a exercer essa preferência.
No entanto, ao responderam à exceção arguida, os AA. retificaram o erro e esclareceram a sua verdadeira intenção de apenas pretenderem ver apreciado o pedido formulado sob a al. b) no caso de improcedência do pedido formulado sob a al. a).
Afastada, deste modo, pelos AA. a cumulação real e colocados ambos os pedidos numa relação de subsidiariedade – ainda que sem aplicação analógica do art. 38 do C.P.C., mas com o mesmo efeito – a petição inicial tornou-se clara, sendo eliminado o eventual vício, a aparente contradição entre os pedidos formulados.
Nestas condições não poderia deixar de aproveitar-se a ação intentada, afigurando-se manifestamente excessivo impor aos AA. a obrigação de instaurar uma outra causa, quase dois anos depois, ainda que ao abrigo do nº 2 do art. 279 do C.P.C..
Em suma, não se nos afigura que, nestas circunstâncias, devesse concluir-se pela ineptidão da petição inicial e subsequente nulidade de todo o processado, absolvendo-se as RR. da instância, como se entendeu em 1ª instância.
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IV- Decisão:
Termos em que e face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar a decisão recorrida que concluiu pela ineptidão da petição inicial e absolveu as RR. da instância. 
Custas pelas RR./apeladas.
Notifique.
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Lisboa, 28.9.2021([11])
Maria da Conceição Saavedra      
Cristina Coelho                    
Edgar Taborda Lopes
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[1] “Temas da Reforma do Processo Civil”, 1997, Vol. II, pág. 67.
[2] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 4ª ed., 2018, pág. 380.
[3] Cfr. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2018, Vol. I, pág. 222, e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., 2017, pág. 623.
[4] Ainda António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., pág. 615.
[5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 4ª ed., 2018, págs. 379/380.
[6] “A Ação Declarativa Comum”, 4ª ed., págs. 59 e 60.
[7] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 4ª ed., 2018, pág. 382.
[8] Tal entendimento é sustentado, designadamente, no Ac. da RG de 27.5.2021, Proc. 101/20.9T8CBC.G2, e no Ac. da RC de 31.5.2016, Proc. 7033/14.8T8CBR-A.C1, ambos em www.dgsi.pt.
[9] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 615.
[10] Ainda que na perspetiva do C.P.C. de 1961, ver Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, Vol. II, 1997, págs. 88 a 90.
[11] Acórdão assinado digitalmente, conforme certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.