TESTAMENTO
INTERPRETAÇÃO
VONTADE REAL DO TESTADOR
PROVA COMPLEMENTAR
QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO DE DIREITO
SEGURADORA
INTERMEDIÁRIO
CREDOR REAL
CREDOR APARENTE
EFICÁCIA LIBERATÓRIA
Sumário

I) Na interpretação do testamento busca-se a vontade real do testador a apurar conforme o contexto do testamento – o sentido a dar a cada cláusula deve ter atenção o conjunto das disposições testamentárias que fazem uma unidade e têm um sentido próprio, constituindo tendencialmente um acto de disposição global da herança.
II) O recurso a prova complementar para determinação daquela vontade real visa atribuir às expressões constantes do testamento o significado que mais se ajuste à pessoa do testador e à sua vontade, com base nos resultados obtidos na investigação sobre quem foi o testador, a sua vida, as suas relações e os seus hábitos linguísticos.
III) A interpretação do testamento constitui questão de facto se a vontade real do testador for apurada com recurso a prova complementar, constituindo questão de direito se for feita unicamente com recurso ao texto do testamento ou quando se trate de saber se o sentido correspondente à vontade real do testador satisfaz a exigência de um mínimo de correspondência com o contexto do testamento.
IV) Se uma seguradora se socorre de um intermediário que não é seu trabalhador para efeitos de apresentação dos produtos financeiros e, além disso, para a própria subscrição dos mesmos e recepção de pedidos de conferência de assinaturas, a mesma responderá pela eventual ausência de diligência do intermediário tal como se tais actos houvessem sido praticados pelos seus trabalhadores.
V) A prestação realizada ao credor aparente não tem, em geral, eficácia liberatória, sendo ineficaz perante o credor real.

Texto Integral

 

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

Respeitam os presentes autos a duas ações, a ação 6198/12.8TBLRA, à qual foi determinada a apensação e nela incorporada a ação nº 3737/17.7TBLRA, por despacho de 07.02.2018.:

A. Ação 6198/12.8TBLRA

1. A…,

2. B…,

3. C…

4. D…

5. E...

6. F….

7. G… ,   

Instauraram ação sob a forma de processo ordinário contra:

1. H… , S.A.,
2. I…, S.A.,

Pedindo:

a) Que o testamento seja interpretado no sentido de que o testador pretendeu legar, em partes iguais aos AA. e restantes legatários identificados no testamento de 9 de Agosto de 2010, todos os seus dinheiros, aplicações financeiras, seguros e PPR. em quaisquer bancos, incluindo os que se encontram nas RR;

b) Serem as RR. condenadas no cumprimento de tais legados, restituindo imediatamente aos ora AA. a parte que estes têm direito, ou seja, um/catorze avos para cada um, bem como no pagamento dos respetivos juros, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento;

c) Serem as RR. condenadas a vir juntar aos autos cópia dos documentos referentes aos depósitos, apólices e/ou contratos identificados no artigo 14 da P.I. e, em consequência, considerarem-se revogadas quaisquer declarações de vontade do testador aí prestadas, que sejam contrárias à vontade manifestada no testamento de 9 de Agosto de 2010.

B. Ação n. 3734/17.7T8LRA

1. J… e mulher L…, e

 2. M… ,

Instauram ação sob a forma de processo ordinário, precisamente contra os mesmos Réus:

1. H… , S.A.,
2. I…, S.A.,

Pedindo:

Nestes termos e melhores de direito, deve a presente ação ser julgada procedente e em consequência serem os Réus solidariamente condenados a pagar aos ora Autores a quantia de € 31.944,12 (trinta e um mil novecentos e quarenta e quatro Euros e doze cêntimos), acrescida dos juros à taxa legal que se vencerem desde a data da citação até integral e efetivo pagamento e bem assim das custas que forem devidas.

Tal como é salientado na sentença recorrida, encontra-se em causa em ambas as ações apurar quem são os beneficiários das quantias tituladas pelos contratos dos sutos subscritos pelo falecido junto da 2ª Ré, ao balcão da 1ª Ré.

Nesta primeira ação, alegam os autores serem herdeiros legatários do falecido e que, por testamento de 9 de agosto de 2010, este lhes deixou as quantias que resultassem das diversas aplicações financeiras, seguros e PPR, que subscreveu junto da segunda ré, ao balcão da primeira ré, reclama cada um dos autores a sua quota parte dessas quantias (correspondentes a 1/14).

Contestou a 1ª Ré H… alegando, em síntese, que os PPR’s e aplicações financeiras do falecido N… não se encontram, nem nunca se encontraram depositadas no Banco Reu, tendo tido como única intervenção a comercialização destes produtos financeiros ao falecido N… , produtos esses que são da R. I… e por si integralmente geridos.

A Ré I… , contestou alegando, em síntese:

Aquando da subscrição dos contratos de seguro sub judice ficou consignado que os beneficiários seriam: a) em caso de vida, a Pessoa Segura, b) em caso de morte, os Herdeiros Legais da Pessoa segura; podendo a designação de beneficiário ser feita diretamente na apólice, no caso a designação dos herdeiros legais como Beneficiários nos contratos de seguro ocorreu de forma indireta, porquanto, na falta de indicação expressa dos Beneficiários, assim opera supletivamente;

podendo o N… , em qualquer altura, altear a clausula beneficiária, designou então em caso de morte, nos contratos de seguros nos autos, O…, conforme Dos. 8 e 8, sendo esta a única beneficiária dos contratos de seguro em apreço, conforme dos. nº10 a nº20;

carecerem os autores de legitimidade para a ação, já que o falecido  N… solicitou à R. que procedesse à alteração dos Beneficiários nas Apólices contratadas com esta, e designou, então, como beneficiária em caso de morte, O…, a quem já liquidou as importâncias seguras ora reclamadas pelos AA.;

de qualquer modo, o testamento nunca lhes foi comunicado.

Conclui pela improcedência da ação, pedindo ainda a Intervenção Principal Provocada da referida O… , para intervir nos presentes Autos, intervenção esta que não foi admitida.

Interposta a ação 3734/17, os autores invocam também eles serem legatários do falecido, e que, por testamento de 9 de agosto de 2010, o falecido legou aos autores, e todos os demais sobrinhos, “todos os seus depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR”; aquando da celebração dos contratos que titulavam as aplicações financeiras dos autos o falecido N… , na qualidade de segurado, designou como beneficiários das ditas aplicações financeiras em caso de morte O…, e marido N… , mas todos estes contratos celebrados entre o falecido N… e os aqui Primeiro Réu e Segunda Ré, o foram em data anterior à outorga do testamento mencionado; nos meses que se seguiram à outorga do testamento e que precederam o seu decesso, o testador sempre demonstrou e exteriorizou claramente ser sua intenção, em caso de morte, que todas as suas economias fossem equitativamente repartidas pelos seus sobrinhos melhor identificados no aludido instrumento notarial de 09 de Agosto de 2010. Também estes legatório pretendem a condenação das rés no pagamento da parte que lhes compete em tais valores.

Nesta segunda ação, a 2ª Ré I… contesta, alegando que a disposição testamentária em apreço apenas releva para efeitos dos bens deixados pelo de cujus que tenham sido contratados em quaisquer bancos, nada referindo quanto aos contratados em Seguradoras; em 09/02/2007, foi rececionado pela aqui ré, um pedido de alteração de beneficiários para as apólices identificadas P.I., com exceção das apólices 99559927 e 99559943, indicando como beneficiária a Sra.O… ; em 06/12/2010, foi rececionado pela Seguradora, ora ré, um pedido de alteração de beneficiários para a apólice 99559943, indicando como beneficiária em caso de morte a Sra. O….; de igual modo, para a apólice 99559927 foi emitido certificado individual designado como beneficiária a Sra. O… ; todos os pedidos de designação/alteração de beneficiário em caso de morte foram efetuados pelo próprio N… e apresentados por escrito à ora Ré; nunca foi comunicado à ora ré o testamento subjacente à causa de pedir dos autores.

Determinada a apensação de ambas as ações, foi proferido despacho a admitir a intervenção principal de terceiros de:

1. P…;

2. Q…,

3. R… ,

4. F… ,

5. S… e

6. O… (em representação de N… ).

O… apresentou articulado próprio em que refere que “não aceita intervir no processo (…) associada aos autores”, antes “faz seu” o alegado, nalguns pontos, pela ré I… neste processo principal e no apenso, pretendendo “fazer valer o seu direito próprio totalmente incompatível com a pretensão deduzida pelos autores”, e culmina pedindo para “ser admitida a sua intervenção oponente”, sendo “a final julgada a ação improcedente e não provada”.

Nessa sequência, por decisão proferida em 18.10.2028, foi “Admitido o articulado da interveniente, que ocupará, no processo, lugar associado à ré I… SA.


*

Realizada da audiência final, foi a ser proferida a Sentença de que agora se recorre e que termina com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgo as ações parcialmente procedentes e

A- Absolvo a ré H… S.A., de todos os pedidos contra si formulados; e

B- Condeno a ré I… , S.A., e a associada O… a pagarem aos autores, nas devidas proporções, o capital dos contratos descritos em 10 dos factos provados, acrescidos dos juros civis devidos desde a data da citação.

Custas pelos autores e réus na proporção dos respetivos decaimentos.


*

Não se conformando com tal sentença, a Associada da Ré,  O… , dela interpõe recurso de Apelação, concluindo a respetiva motivação, com as seguintes conclusões:

(…)


*

Também a Ré  I… S.A., não se conformando com o decidido, interpõe recurso de Apelação, cujas alegações termina com as seguintes conclusões que aqui se reproduzem, por súmula[1]:

(…)


*

Os Autores de cada uma das ações apresentaram contra-alegações, no sentido da improcedência de ambos os recursos.

Cumpridos os vistos legais ao abrigo do nº2 do artigo 657º CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.  


*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Código de Processo Civil –, as questões que se colocam a este tribunal são as seguintes:
Apelação da Interveniente O…
1. Impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto constante das als. c) e d) dos factos dados como não provados:
         1.a. Se a assinatura aposta em nome do falecido nos documentos respeitantes à alteração de beneficiário deveria ter-se por reconhecida.
1.b. Se a disposição testamentária constante do testamento datado de 09.08.2010, deve ser interpretada no sentido de abarcar os valores resultantes dos contratos de seguro e, em caso afirmativo, se deve prevalecer sobre a instituição de beneficiário efetuada pelo falecido relativamente a cada um deles.
Apelação da Ré,  I… , S.A.,
1. Impugnação da decisão proferida quanto à matéria de facto:
1.a. constante das als. c) e d) dos factos dados como “não provados”;
1.b. constante das als. 17. e 19. dos factos dados como provados;
1.c. retificação do montante líquido pago pela apelante à O… , alterando-se os pontos 9), 10) e 18), em conformidade;
2. Se face à prova produzida, o juiz deveria ter interpretado a disposição testamentária em análise no sentido de não incluir o capital resultante dos contratos de Seguro objeto dos presentes autos.
3. Nulidades da sentença:
a. por contradição entre reconhecer que a seguradora rececionou os pedidos de alteração de beneficiário – e se as assinaturas eram falsificadas tal não era do conhecimento da seguradora – e a condenação a pagar aos autores o que já pagou à O… .
b. por contradição, uma vez que a condenação da Ré dependia de ter sido dado como provado que esta tomou conhecimento do teor do testamento em tempo útil, prova que não foi feita.
5. Se a condenação dependia de ter sido dado como provado que a Ré  I… teve conhecimento da falsidade das assinaturas ou esta tomou conhecimento do testamento em tempo útil.
*
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

(…)


**
São os seguintes, os factos dados como provados na sentença recorrida, que se mantêm inalterados:

1. No dia 20 de Julho de 2011, na freguesia de …, concelho de …, faleceu, no estado de viúvo, N… e não deixou descendentes nem quaisquer ascendentes vivos.

2. O falecido N… deixou dois testamentos, nos quais instituiu herdeiros e legatários dos seus bens.

3. Por Testamento de 10 de Outubro de 2006, exarado a folhas 96 do livro de notas para testamentos número 1 do Cartório Notarial de … a cargo da Notária …., instituiu como únicos herdeiros as seguintes pessoas:

SEUS IRMÃOS:

1.) T…,  (…),

2.) U…, (…),

3.) V…, (…)

4.) X… , (…)

SEUS SOBRINHOS:

5.) B…, (…),

6.) K…, (…),

7.) W… , (…),

SUA CUNHADA

8.) Y… , (…),

4. Por Testamento de 9 de Agosto de 2010, exarado a folhas 41 v.º do livro 7 do Cartório Notarial de ….. a cargo do Notário Z…, instituiu legatários as seguintes pessoas, a quem lega alguns dos seus bens:

1.) A…,

2.) B…,

3.) C…,

4.) D…,

5.) E…,

6.) F… ,.

7.) G…

8.) N… , (…)

9.) P…, (…).

10.) Q… «, (…)

11.) R… , (…)

12.) J… , (…)

13.) M… , (…)

14.) S… , residente na ….

5. Neste testamento de 9 de Agosto de 2010, a estes legatários acabados de identificar, o falecido N… legou os seguintes bens:

I) Todos os seus objectos em ouro;

II) Todos os seus depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR.

6. Neste testamento de 9 de Agosto de 2010, o falecido revogou o testamento que havia feito a 9 de Fevereiro de 2007, exarado a folhas 49 do livro 1 do Cartório Notarial de …. a cargo da Notária …, mantendo o testamento de 10 de Outubro de 2006.

7. No Testamento revogado (o de 9 de Fevereiro de 2007) o falecido havia legado, exatamente aos mesmos legatários, o seguinte:

- todos os seus objetos em ouro;

- todos os seus depósitos à ordem ou a prazo, domiciliados nos Bancos “KK…,,SA” e H…, S.A.

- todo o recheio da sua casa de habitação;

8. O falecimento foi objeto de averbamento em ambos os aludidos testamentos no dia 26 de Julho de 2011.

9. por comunicação efetuada pela 1.ª R, em 22/03/2012, a T… , o falecido N… possuía e era detentor à data do óbito, de várias aplicações e produtos financeiros, PPR, seguros de capitalização/poupança e unit linked, no montante global de € 215.273,82 (duzentos e quinze mil duzentos e setenta e três euros e oitenta e três cêntimos).

10. Estes PPR, seguros e aplicações financeiras no montante total de € 215.273,82 (duzentos e quinze mil duzentos e setenta e três euros e oitenta e três cêntimos) estavam assim discriminados:

SEGUROS DE CAPITALIZAÇÃO/POUPANÇA

PRODUTO - N.º APÓLICE - VALOR

PPR 3% MAIS 10103089 6.156,11 €

PPR 10227629 53.511,42 €

PPR 10262317 26.692,69 €

PPR 3% MAIS 18150837 6.323,12 €

POUPANÇA 125 2008-1.ª 99559927 29.620,56 €

POUPANÇA GARANTIDA 99559943 22.301,95 €

UNITED LINKED

PRODUTO N.º APÓLICE VALOR

RENDA CERTA 10A Ul03293807 4.987,98 €

RENDA CERTA 2002 10A Ul11743530 10.000,00 €

RENDA CERTA 2002 10A Ul11809485 10.000,00 €

RENDA CERTA 2002 10A Ul11809493 13.680,00 €

RENDA CERTA 2005 8 A45 Ul15413217 32.000,00 €

11. O Autor J… , diligenciou, desde logo, no sentido de ser cumprida a última vontade do de cujus expressa no testamento.

Para tanto, logo no dia 27 de Julho de 2011, o Autor  J… solicitou junto da Sucursal da ….. (concelho de ….) do Réu H… , S.A. - Sociedade Aberta, para que lhe fossem facultados todos os extratos relativos a todos os depósitos bancários e aplicações financeiras de qualquer natureza de que o seu falecido tio N… fosse titular à data do óbito naquela instituição de crédito e/ou empresas do Grupo H… (Documento N° 8).

Na sequência da solicitação em tais termos efetuada, veio o Réu H… , S.A. - Sociedade Aberta responder ao Autor  J… através de oficio de 02 de Novembro de 2011, ao qual anexou extratos bancários combinados relativos ao mês em que ocorreu o óbito de  N… e aos dois meses imediatamente anteriores,

12- Por exigência expressa daquela Sucursal do Réu H… , S.A pelo Autor J… foi instruído com uma certidão do testamento.

13. Por carta dirigida à mandatária dos aqui AA., a 2.ª R. I… informou que “… da herança aberta por óbito do Exmo. Senhor N… , somos a informar que as apólices de seguro vida que o mesmo possuía à data do seu falecimento registam, designados em caso de morte, beneficiários diferentes dos herdeiros legais”.

Os Réus não entregaram aos Autores as importâncias aqui pedidas.

14. Os PPR’s e aplicações financeiras do falecido N… não se encontram, nem nunca se encontraram depositadas no Banco R..

15. o Banco R. teve apenas e só como intervenção a comercialização destes produtos financeiros ao falecido N… , produtos esses que são da R. I… e por si integralmente geridos. No momento da subscrição dos seguros, é criada uma conta bancária a que os mesmos estão associados, motivo pelo qual aparece nos extratos bancários, no entanto, a gestão, o lucro e o risco são da exclusiva responsabilidade da seguradora com a qual o segurado contrata.

16. Os AA. receberam por parte do Banco R. todas as quantias que se encontravam nas contas bancárias do de cujus na parte a que estes cabia.

17. Aquando da subscrição dos Contratos de Seguro sub judice ficou consignado que os Beneficiários dos mesmos seriam:

a) Em caso de vida, a Pessoa Segura;

b) Em caso de morte, os Herdeiros Legais da Pessoa Segura;

Conf. docs. n.º 1 a n.º 7 que ora se juntam e que se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

18. A ora 2ª R. já liquidou as importâncias seguras ora reclamadas pelos AA. À O… , tudo num total de € 184.792,95 (cento e oitenta e quatro mil e setecentos e noventa e dois euros e noventa e cinco cêntimos.

19. Em 10/04/2007, foi rececionado pela Seguradora, ora ré, um pedido de alteração de beneficiários para as apólices identificadas na douta P.I., com exceção das apólices 99559927 e 99559943, tendo sido indicada como beneficiária a Sra. O… , portadora do NIF ….

20. Em 06/12/2010, foi rececionado pela Seguradora, ora ré, um pedido de alteração de beneficiários para a apólice 99559943, indicando como beneficiária em caso de morte a Sra. O… supra identificada.

21. De igual modo, para a apólice 99559927 foi emitido certificado individual designado como beneficiária a Sra. O… supra identificada.


*

E o tribunal deu como “não provados”, os seguintes factos:

a. Os PPR’s e aplicações financeiras do falecido N… não se encontram, nem nunca se encontraram depositadas no Banco R.

b. Logo no dia 27 de Julho de 2011, o Autor J… instruiu o pedido com uma certidão do testamento.

c. O ora falecido N… solicitou à R. que procedesse à alteração dos Beneficiários em caso de morte nas Apólices contratadas com esta.

d. Designou, então, como beneficiária em caso de morte nos Contratos de Seguro dos Autos, O… ,

e. O testamento subjacente à causa de pedir dos presentes Autos nunca foi comunicado à ora R..


**

2. Interpretação do testamento outorgado a 09 de agosto de 2010, na parte em que declara deixar, aos legatários aí instituídos, “Todos os seus depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR

 A uma das questões centrais que se coloca nos presentes autos – determinar se, quando o N…, no seu testamento de 09 de agosto de 2010, declara deixar, aos legatários aí instituídos, “Todos os seus depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR”, teve por vontade incluir o capital das várias aplicações financeiras, PPR, Seguros de Capitalização/poupança e United Linked, id. no ponto 9 da matéria de facto dada como provada –, o tribunal recorrido deu a seguinte resposta:

A ré (I…) alegou que “a designação dos Herdeiros Legais como Beneficiários dos Contratos de Seguro dos Autos ocorreu por determinação indirecta” (art. 8.º da contestação) e que, mais tarde, a designação do beneficiário foi feita em declaração escrita. Contudo, pelas razões já indicadas e que escusamos de repetir, não logrou provar tal alegação.

Os autores, por seu turno, defendem que a designação foi feita em testamento, designadamente quando o testador (N… ) lhes deixou “Todos os seus depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR.”

Da interpretação que fazemos deste testamento, apoiada, designadamente, na revogação do testamento de 9.2.2007, entendemos que o testador quis deixar aos autores o capital resultante dos contratos dos autos. Não só o elemento literal manifesta essa intenção, ao referir-se a “aplicações financeiras, nomeadamente PPR” como não é impeditivo o facto de tais “aplicações financeiras, nomeadamente PPR” não se encontrarem, na verdade, “em quaisquer bancos”. É certo que a ré não é um banco, mas não deixamos de entender que para uma pessoa normal que comercializou tais produtos num balcão de um banco, do qual recebe os extratos, se tenha expressado dessa forma, deficiente, mas a abranger, em nossa opinião, os produtos dos autos.”

Insurge-se a Apelante O… contra a interpretação que é dada a tal cláusula na sentença recorrida com a seguinte argumentação:

- sendo o falecido pessoa conhecedora dos seus negócios, depósitos e contratos, como aliás é referido pelas testemunhas AA… e BB… , ambas funcionárias do H… ; querendo legar tais seguros ou alterar a designação de beneficiário por testamento, sempre o falecido deixaria expressa tal vontade, não recorrendo a uma clausula genérica de “aplicações financeiras em bancos”;

- se essa fosse a vontade do falecido, não teria o mesmo, em data posterior aos autos, solicitado à Ré I… , a alteração dos contratos de seguro dos autos.

Por sua vez, a Apelante I… faz assentar as suas discordâncias com a interpretação que é dada pelo tribunal a tal cláusula, nas seguintes ordens de razões:

- o tribunal ignorou completamente o contexto do testamento: i) podendo parecer, à primeira vista, que, com o testamento de 09 de agosto de 2010, o falecido N… tenha pretendido alterar o anterior, deixando aos AA. mais do que os depósitos à ordem e a prazo já legados, é a própria B… quem confessa que o tio só alterou o testamento para retificar o nome de um legatário, mantendo-se no resto igual; ii) a diferente redação deve-se unicamente ao facto de os testamentos terem sido elaborados por notários distintos, tendo o Notário Z… afirmado que a expressão “todos os seus depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR” é da sua exclusiva iniciativa e que se soubesse da existência de seguros contratados ou da suposta intenção do autor em alterar a clausula beneficiária, teria redigido a clausula de um outra forma, aí fazendo constar instituições financeiras em vez de bancos, mencionando expressamente a intenção de alterar a clausula beneficiária dos seguros;

- o tribunal faz uma interpretação abusiva sem qualquer correspondência no texto, uma vez que a disposição não faz qualquer referência a Seguros ou à Seguradora ou à pretensão de alterar a clausula beneficiária;

- o falecido era uma pessoa sabedora dos seus negócios, razão pela qual não seria crível que querendo legar tais seguros aos sobrinhos ou nomeá-los seus beneficiários por morte através deste testamento recorresse à clausula genérica “aplicações financeiras em quaisquer bancos, nomeadamente, PPR;

- ao solicitar a alteração dos beneficiários nas apólices em caso de morte, uma das quais após a elaboração do testamento, toda a conduta do falecido aponta sentido contrário ao defendido pelos AA.

Conclui que “face a toda a prova produzida devia o Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo ter interpretado a disposição testamentária em análise no sentido de não incluir o capital resultante dos Contratos de Seguro objeto dos presentes autos”.

Cumpre decidir da bondade da interpretação levada a cabo pelo tribunal, face à críticas que lhe são dirigidas pelas Apelantes.

Dispõe o artigo 2187º do Código Civil, sob a epígrafe “Interpretação dos testamentos”:

“1. Na interpretação das disposições testamentárias, observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.

2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.

Como é doutrina pacífica, esta norma consagra abertamente a posição subjetivista em matéria de disposições testamentárias, no sentido em que o que se pretende apurar é a real vontade do testador.

A descoberta da intenção do declarante como alvo da interpretação da disposição de ultima vontade deverá ser efetuada[2]:

i) atendendo ao contexto do testamento, ou seja, ao conjunto das disposições que integram, na sua globalidade, o ato testamentário, não se considerando suficiente o texto, antes se impôs o recurso ao contexto;

ii) autorizando-se o recurso à prova complementar, auxiliar ou extrínseca, ou seja, a todos os elementos estranhos ao testamento que possam contribuir para o esclarecimento de quanto o testador nele declarou.

O testamento deve ser analisado como um todo e não cada disposição isoladamente[3]: o recurso ao contexto do testamento como auxiliar no esclarecimento do sentido do testamento, justifica-se na medida em que “o conjunto das disposições testamentárias fazem uma unidade e têm um sentido próprio e o testamento é tendencialmente um acto de disposição global da herança[4]”.

 Quanto ao recurso ao contexto do testamento, afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, “É no testamento, e não nas conversas ou comentários com familiares ou amigos acerca dele, que o autor exprime, ou pelo menos tenta, em regra exprimir a sua vontade. E sabe-se também que a cada passo só se consegue decifrar com segurança o sentido de uma clausula, mediante o confronto ponderado com outras clausulas do mesmo testamento, porque este é, muitas vezes, na ignorância do a lei dispõe sobre as regras da sucessão legal, o único instrumento de através do qual a pessoa dispõe de tudo quanto lhe pertence para além da sua morte. É por virtude do caracter global que o testamento tende a assumir que o artigo 2187º manda considerar, na interpretação de cada disposição, não apenas o texto da respetiva clausula, mas todo o contexto do testamento[5]”.

Sendo o testamento um negócio jurídico solene e sendo a forma a o revestimento ou exteriorização da vontade do declarante, Maria Raquel Antunes Rei sustenta que, a par do contexto do testamento, a lei estabelece um outro ponto de apoio no apuramento da vontade do testador – o próprio testador[6].

A descoberta da vontade do testador exteriorizada nas palavras escritas no testamento, não dispensa a investigação, pelo intérprete, de quem foi o testador – a sua vida as suas relações, os seus hábitos linguísticos, de modo a poder ler-se o testamento com os olhos do testador.

Na previsão do recurso à prova complementar trata-se de demonstrar factos que esclareçam o interprete quanto ao testador e à sua vida, permitindo, assim, o juízo sobre qual o significado das expressões do testamento que mais se ajusta à vontade do testador[7].

“Como prova complementar, admite-se o recurso a todos os tipos de prova previstos (arts. 349º a 396º), desde a prova testemunhal, à confissão, documentos, presunções, inspeção e prova pericial[8]”.

Nesta sequência, os tribunais[9] têm vindo a entender que a interpretação do testamento no sentido da averiguação da vontade real do testador constituirá questão de facto se for feita com recurso a prova complementar e constituirá questão de direito se for feita unicamente com recurso ao texto do testamento ou quando se trate de saber se o sentido correspondente à vontade real do testador satisfaz a exigência de um mínimo de correspondência com o contexto do testamento.

Quando a lei se reporta à autorização do recurso à prova complementar, significa apurar, em sede de matéria de facto, qual a vontade querida pelo testador, seja recorrendo a prova testemunhal, caso tal vontade tenha sido expressa perante amigos, conhecidos ou familiares, seja através de alguma carta ou documento em que o de cuius se tenha referido ao destino que queria dar aos seus bens em caso de morte.

Ora, no caso em apreço, nada é alegado a tal respeito nos articulados, nem nenhum facto é levado à matéria de facto dada como “provada” ou como “não provada” na sentença recorrida – nomeadamente, quais as habilitações literárias do falecido, quais os seus conhecimentos bancários ou financeiros, qual a sua relação com a alegada beneficiária, se o falecido alguma vez tenha expressado verbalmente a sua intenção de fazer alguma distinção entre as aplicações que tinha no banco, deixando para os legatários o capital respeitante unicamente às contas bancárias e o capital respeitante aos Seguros de Capitalização/Poupança – PPRs, Poupança 125, Poupança Garantida, Renda Certa, etc., –, como pretendem as Rés, ou que a sua vontade seria deixar este tipo de produtos para a O…, e em caso afirmativo, se haveria alguma motivação especial para beneficiar esta O…, mulher de um dos sobrinhos legatários, dos demais.

E aqui, em sede de recurso, vêm as apelantes invocar o depoimento de testemunhas para, a partir deles, retirar que o falecido quando declarou deixar aos legatários “Todos os seus depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR”, não pretendia neles abranger o capital respeitante a estes “Seguros de Capitalização/Poupança – que incluíam produtos denominados PPR, Poupança 125, Poupança Garantida, Renda Certa”, sem que reclamem que seja dado qualquer facto como provado a tal respeito e que possa servir de auxiliar de interpretação à vontade real do falecido e exarada no testamento.

De qualquer modo, não seria de lhes dar razão.

Argumentam as Apelantes que, sendo o falecido pessoa conhecedora dos seus negócios, depósitos e contratos, como seria referido pelas testemunhas AA…  e B… , querendo legar tais seguros ou alterar a designação de beneficiário por testamento, sempre o falecido deixaria expressa tal vontade, não recorrendo a uma clausula genérica de “aplicações financeiras em bancos”.

Em primeiro lugar, a prova produzida não nos deixa essa ideia de que o falecido fosse pessoa “conhecedora dos seus negócios”, pelo menos no sentido de ser capaz de distinguir um depósito a prazo de uma aplicação financeira, de ter alguma noção do que pudesse ser um seguro de capitalização/poupança ou um seguro ligado a Fundos de Investimento (United Linked), e, muito menos, ser capaz de distinguir um PPR dos demais produtos financeiros aqui em causa, denominados de “Renda Certa”, “Poupança Garantida” ou “Poupança 125”.

Com efeito, a referida B… , sobre o conhecimento que o falecido teria sobre estes produtos, limitou-se a afirmar que “sabia que eram da I… tanto mais que recebia os extratos”; ora, desde logo, tais extratos eram enviados para a sua antiga morada e não para o Lar onde terá passado a residir, se não antes, pelo menos a partir de finais de 2006, inícios de 2007. Quanto à (i)literacia do falecido, se BB… afirma que ele sabia ler e escrever, o que deduz do facto de ele às vezes ele aparecer com papeis e fazer perguntas (embora confirmado que vinha sempre acompanhado da O… ), a testemunha AA… nem sequer consegue dizer se ele sabia ler e escrever, limitando-se a afirmar que pelo menos sabia assinar o seu nome. Quanto à A. B… declarou que o seu tio “para além de ter 83 anos, escolaridade, não tinha, só sabia ler”. Nascido a 31 de dezembro de 1927 (fls. 299 do suporte físico), um dos documentos junto aos autos pelo H… , datado de 03.04.87 (fls. 296 do suporte físico), de que dispunha relativamente à sua identificação, consta como profissão, “pedreiro”, enquanto que no pedido de B.I., datado de 01.01.67, junto a fls. 299, consta como “agricultor”. Era este o perfil do N… .

Por outro lado, e ainda que tivesse ficado demonstrado que algum conhecimento tivesse sobre o assunto – e, em nosso entender, não ficou –, teremos de ter em conta, qual o significado que é normalmente atribuído em linguagem bancária à expressão “Aplicações financeiras”. E, quanto a esta questão – sobre se “Os seguros, nomeadamente estes seguros de capitalização, renda certa, são considerados aplicações financeiras?, isto porque o vosso extrato distingue “carteiras de seguros, contas e títulos e aplicações financeiras”, o depoimento da AA… , gestora de conta do falecido à dada da sua morte, foi demolidor: “Para nós, enquanto bancários, e na nossa linguagem diária, são aplicações financeiras, agora elas podem é estar divididas por segmentos, aplicações financeiras de títulos ou depósitos a prazo, e as aplicações financeiras dos seguros, os chamados seguros de capitalização e PPR”.

Por outro lado, atentar-se-á em que a expressão usada no testamento não é propriamente genérica, como nos querem fazer crer as Apelantes, não se limitando o N… a referir a “aplicações financeiras em bancos”. Ao declarar deixar aos legatários “Todos os seus depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR”, é perfeitamente claro em esclarecer que não lhes pretende deixar apenas os depósitos a prazo ou à ordem, em sentido restrito, mas ainda e também ou, “nelas incluindo”, aplicações financeiras e ao acrescentar “nomeadamente” PPR, daqui sobressai igualmente que, para ele, nessa deixa se encontravam incluídos produtos como por ex., os PPR, o que leva a daí retirar, pretender o falecido deixar-lhes todos os “produtos financeiros” em sentido lato, “existentes nos Bancos”.

Quanto ao argumento de que o falecido não fala em seguradoras, não faz qualquer sentido, pois estes “seguros” são negociados ao balcão do  H… e por ele geridos, exatamente nos mesmos termos em que qualquer depósito a prazo, sendo tota a informação a eles respeitantes feita constar dos extratos mensais emitidos pelo Banco, podendo afirmar-se serem aplicações financeiras existentes no H… .

Relativamente ao argumento de que, se fosse essa a vontade do falecido não teria ele, em data posterior, solicitado à I… a alteração dos contratos de seguros dos autos, falece por falta de prova do pressuposto em que assenta – o tribunal não deu como provado que os pedidos de alteração de beneficiário tenham sido subscritos pelo N…  (as assinaturas apostas nos doc. 8 e 9, juntos com a contestação da I… , comprovativos de tais pedidos de alteração foram objeto de impugnação, não tendo as Rés logrado a prova da autenticidade de tais assinaturas).

Quanto ao argumento de que o tribunal ignorou o “contexto” do testamento, uma vez que com o testamento de 9 de agosto de 2010, o falecido apenas tinha pretendido retificar o nome de um dos legatários, e a diferente redação se dever unicamente ao facto de ter sido elaborado por notários distintos, tendo o Notário Z… afirmado que a expressão “Todos os seus depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR” é da sua iniciativa, a Apelante I… esquece, ou omite que a testemunha Z… , notário que elaborou o testamento em causa, de 09.08.2010, começa o seu depoimento por afirmar, e quando lhe perguntam, “O Dr. não se lembra nada disto?”, “Não faço ideia, não me lembro de nada, não conheço a pessoa”, pelo que, todo o seu restante depoimento foi prestado tendo em consideração situações genéricas e hipotéticas, face à sua prática habitual.

Ainda assim, a audição do seu testemunho deixa-nos uma convicção exatamente oposta à defendida pela Apelante I… . Quando o juiz lhe pergunta, “essa referência a «aplicações e PPRs», lembra-se alguma coisa do que se tenha passado no Cartório?”, ele responde, “Eu sobre isto, o que posso dizer, não me recordo de nada, pela forma como isto está escrito, portanto, o «nomeadamente PPR», eu tenho a certeza que terei falado com ele especificamente sobre PPRs, se não, não escreveria aqui, «nomeadamente, PPRs», porque é assim, na forma habitual que eu costumo fazer isto, se as pessoas me dizem que querem deixar o dinheiro que têm no banco X, eu limito-me a escrever , «lego o meu dinheiro que tenho no banco tal, normalmente acrescento, o dinheiro e aplicações financeiras e explico à pessoa que ela pode querer aplicar o dinheiro nalgum produto do Banco e assim já fica preparado, não tem de estar a mudar o testamento, só porque depois aplicou o dinheiro que lá tem numa aplicação qualquer, numa formulação mais genérica, mas, normalmente, fico-me por aí. E à pergunta se tal “significa que teve uma conversa com a pessoa a explicar o que é isso”, respondeu “Sim, com certeza, explico que, ao acrescentar aplicações financeiras, fica aqui contudo qualquer produto que ela subscreveu lá no banco com aquele dinheiro e que está a deixar isso tudo, está a deixar o conjunto; se fosse para excluir algum produto eu também o dizia expressamente. Se eu pus lá, “nomeadamente PPRs” é porque ele também me terá dito que tinha lá PPRs; mais não sei dizer”. E a nova insistência sobre se, havendo alguma exceção ou outro beneficiário, teria aí ficado a constar, responde: “Sim, não teria usado essa expressão genérica, teria dito com exceção de alguma aplicação concreta ou com exceção do que tem no banco X, que, afinal, fica para Y”.

Ou seja, o que se retira de tal depoimento – chamando-se a atenção de este elemento de interpretação não se enquadra propriamente no “contexto do testamento”, mas na tal prova complementar enquanto auxiliar de interpretação –, é que, segundo o Notário que redigiu o testamento, a expressão “aplicações financeiras”, sem referencia a qualquer exceção, significaria que englobaria toda e qualquer aplicação financeira, e, por outro lado, se aí acrescentou, “nomeadamente, PPRs” foi porque o testador terá referido expressamente a existência de PPRs.

Por outro lado, ao contrário do sustentado pela Apelante, não é verdade que este testamento seja uma mera retificação do nome de um dos herdeiros, quando nele foi expressamente eliminada dos bens legados a referencia ao recheio da casa de habitação do falecido, passando, assim a fazer para dos bens da herança por si deixada aos herdeiros instituídos no testamento de 2006.

Vejamos, em resumo, de que elementos de interpretação dispomos para determinar se o testador, ao declarar deixar aos legatários aí instituídos “Todos os seus depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR”, quis abranger “os PPRs, seguros e aplicações financeiras”, aqui em causa e que se encontram discriminados no ponto da matéria de facto dada como provada, como pretendem os autores, ou se dele se encontram excluídos.

1. Contexto do testamento

A 9 de Agosto de 2010, o N… outorga o Testamento que contém a cláusula testamentária qui em questão, declarando:

“Que não tem ascendentes nem quais descendentes vivos;

Que revoga o testamento que fez a 9 de fevereiro de 2007 (…) mas mantém em vigor o testamento que fez a 10 de outubro de 2006

- Que lega aos seus sobrinhos:

a) (…)

(…)

          o) (…)

os seguintes bens, em comum e partes iguais:

i) todos os objetos em outro;

ii) todos os depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR.

- Que, em consequência, o remanescente da sua herança ficará a pertencer aos herdeiros instituídos no testamento de 2006.”

Tal como o já referido em sede de julgamento da matéria de facto, tendo o falecido outorgado vários testamentos ao longo da sua vida – como faz expressamente constar do seu ultimo testamento aqui em causa –, resulta que, com ele pretendeu reunir num único documento a sua ultima declaração de vontade, para que, relativamente a ela, não restassem quais dúvidas. Se, por Testamento de 10 de outubro de 2006, determinara quem eram os “herdeiros” dos bens da sua herança e, se, posteriormente, por Testamento de 09 de fevereiro de 2007, veio a determinar a identidade dos seus legatários, neste último Testamento de 10 de agosto de 2010, para além de introduzir algumas alterações nas alíneas respeitantes aos bens legados – elimina dos legados, a al. c) relativamente ao recheio da sua casa de habitação, que, como tal passou para os herdeiros por instituídos no testamento de 2006, alterando a redação relativamente à al. b), de modo a que, onde constava “Todos os depósitos bancários, à ordem ou a prazo, domiciliados nos Bancos KK…, S.A., e H…,  S.A., passou a dizer-se “todos os depósitos a prazo ou à ordem, em quaisquer bancos, incluindo aplicações financeiras, nomeadamente PPR.” – fez questão de declarar que mantem em vigor o testamento que fez a 10 de outubro de 2006, acrescentando que “em consequência, o remanescente da sua herança ficará a pertencer aos herdeiros instituídos no testamento de 2006.”

Daqui retiramos, assim, que o contexto do testamento aponta no sentido de ser vontade do N… nele deixar expresso o destino a dar a todo e cada um dos seus bens após a sua morte (ainda que parte por remissão, para anterior testamento de 2006), o que apontaria no sentido de que, com a clausula testamentária em causa, pretenderia abranger todos os seus depósitos, à ordem ou a prazo, todas as aplicações financeiras e PPRS. E, ao acrescentar a expressão “aplicações financeiras, nomeadamente PPRs”, é indiscutível que, pretende deixar claro que, com tal deixa, lega: i) algo mais do que os seus depósitos bancários (à ordem ou a prazo); ii) lega os seus PPRs; iii) que considera os PPRs aplicações financeiras; iv) que, para além dos PPRs, lega também as demais aplicações financeiras.

2. Vejamos agora, o que nos pode dizer a prova complementar, sobre a interpretação a dar a tal disposição testamentária:

- na linguagem bancária comum, todos os “produtos” financeiros aqui em causa e discriminados no ponto 10. da matéria de facto – seguros de capitalização/poupança, (PPR, Poupança 125, Poupança garantida), United Linked (Renda Certa), são englobados no conceito genérico de “Aplicações financeiras”;

- o N… , que assumiu as profissões de agricultor, e depois, pedreiro, não dispunha de conhecimentos que lhe permitissem distinguir os “produtos financeiros” que foi subscrevendo aos balcões do H… , e que se encontram aqui em questão, seja uns dos outros seja de qualquer outra “aplicação financeira”.

A única prova complementar de que as Rés se pretendiam socorrer para fazer excluir de tal deixa testamentária estas aplicações financeiras, residia nos pedidos de designação da  O… como beneficiária, apresentados junto do H… . Contudo, não lograram as rés demonstrar a autenticidade das assinaturas neles apostas.

E, mais uma vez, chamamos a atenção de que as Rés: i) não juntam os documentos através dos quais o N… subscreveu tais aplicações, desconhecendo-se se neles foi, desde logo, designado especificadamente algum beneficiário, ou se, em caso negativo, remetendo para as clausulas gerais, em caso de morte, seriam os “herdeiros legais”; ii) as Rés e a Interveniente O… são completamente omissas em relação às circunstâncias em que esta se teria tornado beneficiária destes produtos financeiros, omitindo, inclusivamente, que a O… se teria, a certa altura, tornado co-titular das contas do N… , facto do qual o tribunal apenas toma conhecimento em sede de instrução, através do depoimento da testemunha AA… .

A interpretação dada pelo tribunal à disposição testamentaria em causa não nos merece, assim, qualquer censura.


***
(…)
*
4. se a falta de conhecimento da falsidade das assinaturas ou a falta de conhecimento atempado da existência de um testamento que podia por em causa a designação da O… como beneficiária, constituirão fatores impeditivos da condenação da Ré a pagar, pela segunda vez, os valores que havia já pago à  O…
Alega a apelante que, embora o tribunal tenha entendido não ter resultado provado que algum dos pedidos de alteração de beneficiário em caso de morte proviesse efetivamente do seu titular,  N… , o certo é que tais pedidos estavam assinados essas assinaturas vinham reconhecidas como tendo sido feitas na presença de quem assim o atestou, pelo que, sendo esta a vontade conhecida do segurador, não podia ser condenada a pagar aos autores quanto já pagou a O… .
É certo que os pedidos de alteração da cláusula beneficiária terão sido apresentados aos balcões do H… , face à aposição neles efetuada dos carimbos a atestar a conferência das assinaturas por parte desta instituição bancária.
Contudo, não podemos dar razão à Apelante I… quando afirma que, tendo confiado na conferência das assinaturas efetuada pelo  H… teria de ter tais pedidos como válidos, sendo a O… a única beneficiária perante os documentos a que teve acesso, não pode ser responsabilizada e condenada a pagar uma segunda vez.
A prestação deve ser feita ao credor ou ao seu representante – artigo 769º do Código Civil –, pelo que a prestação feita a terceiro não extingue a obrigação a não ser num dos casos previstos no artigo 770º do Código Civil.
Encontrando-se em causa produtos financeiros que são da Apelante I… e por si integralmente geridos (ponto 15.), mas relativamente aos quais, as suas relações com o subscritor N… , quer na respetiva comercialização, quer na receção de pedidos de alteração de beneficiário, foram sempre mediadas pela intervenção do H… , a Seguradora será responsável pelos atos do mediador, dentro das tarefas que lhe confiou no âmbito destes contratos, artigo 145º do CC, agora pela via da responsabilidade objetiva ou pelo risco.
Se a Segurara se serve de outrem – a quem confia não só as fases preparatórias, de apresentação e dos produtos financeiros, mas a própria subscrição dos mesmos, receção de pedidos de conferência de assinaturas, e enquanto beneficiário da atuação alheia, sempre o mesmo responderá pela eventual ausência de diligência do intermediário, tal como se tais atos houvessem sido praticados pelos seus funcionários.
Como tal, não se eximirá à responsabilidade de conferência de tais assinaturas, sendo para efeito indiferente que tenha sido efetuada pelos funcionários do banco intermediário, ou pelos seus próprios funcionários, não se podendo refugiar no argumento de que, se tais assinaturas foram falsificadas tal não era do seu conhecimento.
Por fim, temos a questão levantada pela I… de que a condenação da Ré I… dependia de ter sido dado como provado que teve conhecimento da falsidade das assinaturas ou esta tomou conhecimento do testamento em tempo útil.
Segundo a Apelante, não dando a decisão recorrida como provado que o testamento subjacente à causa de pedir nos autos alguma vez tenha sido comunicado à ora Apelante – o tribunal somente julgou “não provado” em e) que “o testamento subjacente à causa de pedir dos presentes autos nunca foi comunicado à ora Ré”, não se podendo extrair o seu oposto. A comunicação integral do testamento à Seguradora era essencial para que esta pudesse pagar as importâncias seguras aos AA., como o reclamado nos presentes autos.
Também aqui não podemos dar razão à Apelante.
Nos autos foi dado como provado que, por testamento outorgado a 09 de agosto de 2010, o falecido deixou aos legatários (aqui AA. e intervenientes) “todos os seus depósitos, à ordem ou a prazo, todas as aplicações financeiras e PPRS”, considerando-se em sede de interpretação que tal disposição testamentária abrangia as aplicações financeiras aqui em questão.
A Ré/Apelante I… opôs-se à pretensão de entrega aos autores dos valores resultantes do resgate de tais produtos alegando ter procedido já ao pagamento dos mesmos à beneficiária nomeada de tais produtos, O… .
Contudo, a Ré não logrou demonstrar, desde logo, que tais aplicações financeiras alguma vez tenham tido como beneficiária a identificada O… – nem aquando da sua subscrição, nem posteriormente (não juntou os documentos respeitantes à subscrição dos contratos, nomeadamente as condições particulares, nos quais pudesse ter sido efetuada a indicação de beneficiário, sendo que não logrou provar a autoria dos pedidos de alteração de beneficiário que juntou aos autos).
Ora, na falta de prova da concreta identificação de beneficiário que contrariasse a clausula constante das respetivas condições gerais de que, “Na falta de indicação expressa de beneficiários, consideram-se como tal, em caso de vida, o Cliente e, em caso de morte, os seus herdeiros legais”, os beneficiários seriam os seus herdeiros, pelo que a I… , tendo pago a um terceiro não herdeiro, pagou mal.
Não era, assim, aos autores que incumbia a prova de que deram conhecimento ao autor da existência do testamento, mas à Ré que incumbia a prova de que teria entregue o produto do resgate de tais produtos a quem efetuasse prova bastante de que se tratava do respetivo “herdeiro legal”, e não o fez. A I… terá partido do pressuposto de que a  O… havia sido efetivamente instituída beneficiária em todas as apólices em causa, razão pela qual lhe entregou o produto de tal resgate.
A nossa lei não atribui, em geral, eficácia liberatória à prestação realizada pelo credor aparente – sendo a problemática da aparência creditória suscitada quando o solvens é induzido em erro geral ou comum sobre a qualidade do credor, não sabendo, nem devendo saber que a aparência escondia a verdade de um outro e verdadeiro credor.
“Em detrimento da defesa do tráfego jurídico e da tutela do devedor que, de boa-fé, realiza a prestação ao credor aparente, o legislador optou por consagrar a disciplina que melhora satisfaz o interesse do credor real[10]”.
Ou seja, não figurando na lista do artigo 770º o caso de cumprimento feito a um credor aparente, ser-lhe-á aplicável a regra da ineficácia perante o credor real. Entre nós, com a ajuda do enriquecimento sem causa, que permitirá ao devedor reaver o que pagou indevidamente ao terceiro, o legislador entendeu “favorecer o credor real”, em detrimento do tráfico económico, só tutelando a boa fé do devedor (que não sabia sem devia saber que a aparência escondia a realidade de um outro credor) em casos especiais[11].
Como tal, toda a alegação da Apelante no sentido de que face os elementos de que dispunha apontavam na veracidade dos pedidos de alteração de beneficiário e de que não terá tido tomado conhecimento da existência desta clausula testamentária antes dos pagamentos que efetuou à O… , sempre seria irrelevante para o efeito pretendido pela Apelante de se eximir a pagar (embora pela segunda vez) ao verdadeiro credor.

As Apelações são de improceder.


*

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em, julgando ambas as Apelações improcedentes, confirmar a decisão recorrida.

Cada uma das Apelantes suportar as custas da sua Apelação.

                                                                 Coimbra, 12 de outubro de 2021

(…)


[1] Face ao nítido incumprimento do dever de sintetizar os fundamentos do recurso, em violação do disposto no nº1 do artigo 639º do CPC, constituindo uma mera reprodução das alegações a que atribuiu números.
[2] Cfr., Inocêncio Galvão Teles, “Sucessão Testamentária”, Coimbra Editora, p.24.
[3] Rossana Martingo Cruz, Código Civil Anotado, Livro V, Cristina Araújo Dias (Coord.), anotação ao artigo 2187º, p.265.
[4] Rabindranath Capelo de Sousa, “Lições de Direito das Sucessões”, I Vol., Coimbra Editora, p. 197.
[5] Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora 1998, pp.304-305.
[6] Maria Raquel Aleixo Antunes Rei, “Da Interpretação da Declaração Negocial no Direito Civil Português”, Tese de doutoramento 2010, in https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/4424/1/ulsd61308_td_Maria_Rei.pdf.
[7] Maria Raquel Antunes Rei, obra e local citado, pp.345-346.
[8] Rossana Martingo Cruz, Código Civil Anotado, Livro V, Cristina Araújo Dias (Coord.), anotação ao artigo 2187º, p.265.
[9] Cfr., entre outros, Acórdãos do STJ de 01.10.96, de 25.11.2004, relatado por Bettencourt de Faria, e de 08-05-2013, relatado por Fernando Bento, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[10] Fernando Pereira Pinto, “Comentário ao Código Civil”, Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral (Coord., Brandão Proença, Universidade Católica Editora, pp 1049.
[11] José Carlos Brandão Proença, “Lições de Cumprimento e não cumprimento das Obrigações”, Coimbra Editora, pp.60-70.