EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA OFICIOSA
CESSAÇÃO ANTECIPADA
DEVER DE INFORMAÇÃO
FALTA INJUSTIFICADA
AUDIÊNCIA
Sumário

I) O juiz só pode encerrar oficiosamente o incidente de exoneração do passivo restante se se mostrarem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência.
II) Fora da situação referida em I), o juiz não pode recusar oficiosamente a exoneração do passivo restante antes de terminado o período da cessão, assim como não pode fazê-lo com fundamento em factos diferentes dos que são invocados pelo interessado que a veio requerer.
III) – A cessação antecipada do incidente com fundamento em violação pelo devedor do dever de prestação de informações solicitadas ou de comparência à audiência em que as deveria prestar pressupõe, cumulativamente, que: i) tenha sido requerida a cessação antecipada da exoneração do passivo com fundamentos que se enquadrem nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 243.º do CIRE ; ii) as informações que se pretendiam obter do devedor tenham sido solicitadas no âmbito e por causa do incidente que se iniciou com o requerimento a pedir a cessação antecipada do procedimento de exoneração e que se relacionem com a pretensão aí formulada e com os respectivos fundamentos.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

No âmbito dos autos de insolvência referentes a A… e mulher B… , cuja insolvência foi declarada por sentença de 09/05/2019, foi proferido despacho – em 21/10/2019 – que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que havia sido formulado pelos devedores, determinando que, nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (“período de cessão”), o rendimento disponível que os insolventes viessem a auferir (determinado nos termos constantes do artigo 239.º, n.º 3) fosse cedido ao fiduciário designado, com exclusão, para cada um dos insolventes, do montante mensal correspondente a um salário mínimo nacional, que para cada ano seja legalmente determinado.

Em 24/09/2020, o Banco C…, S.A. veio pedir a cessação antecipada do procedimento de exoneração, ao abrigo do art. 243.º, 1.º a) do CIRE, com fundamento no facto de os Insolventes terem vendido um veículo apesar de saberem que o mesmo estava apreendido e que estavam obrigados a entregá-lo ao administrador da insolvência.

O Sr. Administrador da Insolvência veio declarar nada ter a opor à cessação antecipada do procedimento da exoneração nos termos requeridos pelo Banco C…, SA

Entretanto – em 05/12/2020 – o Sr. Administrador veio apresentar relatório referente ao 1.º ano da cessão, dizendo que, durante esse período, os devedores: não cederam qualquer quantia; não prestaram qualquer informação quanto à actual situação profissional e quanto aos rendimentos auferidos naquele período e não disponibilizaram cópia da declaração mod. 3 – IRS e da nota de liquidação daquele imposto.

Por despacho de 14/01/2021, foi determinada a notificação dos devedores e dos credores para se pronunciarem sobre a cessação antecipada do procedimento de exoneração que havia sido requerida, determinando-se ainda a notificação dos devedores “…para, no prazo de cinco dias, remeterem ao Sr. Fiduciário os documentos comprovativos dos rendimentos recebidos no primeiro ano do período da cessão, com a advertência de que, por força do disposto na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a exoneração é recusada nos casos em que o(a) devedor(a), sem motivo razoável, não fornece no prazo fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações”.

Não obstante terem sido notificados nos termos referidos, os devedores não deram qualquer resposta nos autos e não entregaram os documentos em causa ao Sr. Fiduciário.

Por se ter entendido que poderiam estar em causa factos adicionais que determinam a cessação antecipada da exoneração do passivo restante, foi determinado que se desse conhecimento daquela situação aos devedores e aos credores para, querendo, se pronunciarem.

O Banco C… veio reiterar o conteúdo do requerimento que havia apresentado em momento anterior.

Foi então proferida decisão – em 20/05/2021 – onde se declarou cessado antecipadamente o procedimento de exoneração, com a consequente recusa da exoneração do passivo restante, por violação do dever previsto na alínea a) do n.º 4 do artigo 239.º do CIRE.

Inconformados com essa decisão, os Insolventes, A… e B…, vieram interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

- Saber se cessação antecipada do procedimento de exoneração poderia ter sido determinada com fundamentos diferentes dos que haviam sido invocados pelo credor que a veio requerer, o que, no caso, equivale a saber se a 2.ª parte do n.º 3 do art. 243.º do CIRE atribui (ou não) ao juiz o poder de determinar oficiosamente tal cessação quando o devedor, sem justificação razoável, não preste alguma informação que lhe seja solicitada;

- Saber se os Insolventes/Apelantes actuaram como dolo ou grave negligência na violação do dever com fundamento na qual foi recusada a exoneração;

- Saber se, com a violação desse dever, os Insolventes/Apelantes prejudicaram a satisfação dos créditos sobre a insolvência.


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III.

Na decisão recorrida, consideraram-se os seguintes factos:

1. A… e mulher B… apresentaram-se à insolvência em 23 de Abril de 2019, tendo relacionado o veículo automóvel de matrícula …XV (petição inicial e respetiva relação de bens).

2. Em 9 de Maio de 2019 foi proferida sentença a declarar a insolvência dos Requerentes A… e  B… (ref.ª 84182441).

3. Em 27 de Junho de 2019 o Administrador da insolvência procedeu à elaboração do auto de apreensão do veículo de matrícula …XV, com a indicação do desconhecimento do seu paradeiro (auto de apreensão junto em 26-12-2019 ao apenso A).

4. No dia 3 de Julho de 2019, os Insolventes venderam o veículo de matrícula …XV pelo valor de €1.300,00, que não entregaram ao Administrador da Insolvência (ref.ª 4433347 [37392418] de 07-12-2020).

5. Em 20 de Maio 2019 a propriedade do veículo de matrícula …XV estava registada a favor da Insolvente e a partir de 7 de Agosto de 2019 passou a estar registada a favor de D… (ref.ª 4433347 [37392418] de 07-12-2020 e 87086238 de 23-11-2020).

6. Em 10 de Setembro de 2019 foi indeferido o pedido de dispensa de apreensão do veículo de matrícula …XV (ref.ª 84737014).

7. Em 21 de Outubro de 2019 foi admitido liminarmente o pedido de exoneração formulado pelos insolventes, tendo sido fixado o rendimento indisponível no montante correspondente ao salário mínimo nacional por cada devedor e foi declarado encerrado o processo de insolvência nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º e 233.º, n.º 7 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (ref.ª 85031136).

8. Com a advertência de que, por força do disposto na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º do CIRE, a exoneração é recusada nos casos em que o devedor, sem motivo razoável, não fornece no prazo fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, os insolventes foram notificados para remeter ao fiduciário os documentos comprovativos dos rendimentos recebidos no primeiro ano do período da cessão e não prestaram qualquer informação (ref.ª 87360721, 87360723 e 4600529 [38454789] de 05-04-2021)


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IV.

Apreciemos então o objecto do recurso.

Conforme se disse supra, o Banco C… , S.A. havia pedido a cessação antecipada do procedimento de exoneração, ao abrigo do art. 243.º, 1.º a) do CIRE, com fundamento no facto de os Insolventes terem vendido um veículo apesar de saberem que o mesmo estava apreendido e que estavam obrigados a entregá-lo ao administrador da insolvência.

A decisão recorrida veio a deferir essa pretensão – declarando cessado o procedimento de exoneração – mas com fundamento diferente daquele que havia sido invocado pelo credor; declarou cessado o procedimento por violação do dever previsto na alínea a) do n.º 4 do artigo 239.º e, mais concretamente, pelo facto de os devedores, apesar de para tal terem sido notificados, não terem prestado informação sobre os rendimentos que auferiram no primeiro ano do período da cessão.

Tal decisão assentou nos seguintes fundamentos/argumentos:

i) Ao procederem à venda do veículo – apropriando-se do respectivo valor – os Insolventes, além de terem violado o disposto no artigo 81.º, n.º 1, do CIRE, violaram também – dolosamente – uma das obrigações previstas no art. 239.º do mesmo diploma e, mais concretamente, a obrigação imposta pelo artigo 239.º, n.º 4, alínea a);

ii) A violação dolosa desse dever não podia, no entanto, determinar a cessação antecipada da exoneração do passivo, na medida em que não era possível concluir (pelo menos sem diligências e investigações adicionais) pela existência de prejuízo para os credores (aquele negócio poderia ser considerado ineficaz e não haviam sido alegados e provados quaisquer factos relativos à possibilidade ou impossibilidade de recuperar o veículo);

iii)  Resultava, todavia, dos autos que os Insolventes não haviam respondido às notificações que lhes foram efectuadas para prestarem informação acerca dos rendimentos recebidos no primeiro ano do período da cessão e não haviam apresentado qualquer justificação para essa omissão;

iv)  Que, nos termos do n.º 3 do artigo 243.º, essa situação – falta de comprovação do cumprimento das suas obrigações no prazo que lhes havia sido fixado (que traduz a violação do dever previsto na alínea a) do n.º 4 do artigo 239.º) – poderia ser considerada oficiosamente pelo Tribunal para o efeito de declarar a cessação antecipada da exoneração do passivo.

Os Apelantes contestam a decisão, argumentando: 

i) Que não poderia ter sido declarada a cessação do procedimento de exoneração com fundamento diferente daquele que havia sido invocado pelo credor, sendo certo que, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, a violação do dever que fundamentou a decisão não podia ser conhecida oficiosamente para o efeito de declarar cessado o procedimento de exoneração;

ii) Que, de qualquer forma, não resultou demonstrado que os Recorrentes tivessem actuado dolosamente ou com grave negligência;

iii) Que também não existe nos autos qualquer elemento que aponte para o facto de que, com esse comportamento, tenham prejudicado a satisfação dos créditos sobre a insolvência;

iv) Que esse prejuízo não existiria, tendo em conta que os rendimentos que auferem têm sido sempre inferiores ao valor que ficou reservado para o seu sustento e, portanto, não teriam qualquer rendimento a ceder.

Comecemos então por analisar a primeira questão, apurando se poderia (ou não) ser declarada a cessação do procedimento com o fundamento invocado na decisão recorrida.

No sentido de enquadrar e delimitar a questão a resolver, importa ter presente que a conduta omissiva dos devedores que veio a fundamentar a decisão recorrida – a falta de resposta à notificação que lhes havia sido efectuada no sentido de remeterem os documentos comprovativos dos rendimentos recebidos no 1.º ano do período da cessão – não tinha relação com os factos que haviam sido invocados pelo credor para requerer a cessação do procedimento. Os factos invocados pelo credor relacionavam-se com a venda de um veículo que estava apreendido (os devedores não haviam procedido à entrega do veiculo que estava apreendido e haviam procedido à sua venda, ocultando esse património e violando, por isso, a obrigação prevista na alínea a) do n.º 4 do art. 239.º). Apesar de o dever cujo incumprimento fundamentou a decisão recorrida ser também o dever previsto nessa alínea a) do n.º 4 do art. 239.º, o bem que estava em causa (que teria sido omitido ou ocultado) não era o veículo nem o rendimento proveniente da sua venda, mas sim a globalidade dos rendimentos auferidos durante o 1.º ano do período da cessão e a eventual existência de rendimentos que devessem ser cedidos ao fiduciário, informação que os devedores não prestaram quando para tal foram notificados na sequência da apresentação do relatório onde se dava conta que, no 1.º ano, nenhuma quantia havia sido entregue ao fiduciário.

A decisão recorrida reconhece, aliás, que o fundamento da decisão não corresponde ao fundamento que havia sido invocado pelo credor (o Banco C… , SA), considerando – de modo expresso e claro – que não estavam reunidos os pressupostos necessários para declarar a cessação do procedimento com os fundamentos que haviam sido invocados pelo referido credor – uma vez que não estava demonstrado que a venda do veículo (e a apropriação do respectivo valor) tivesse determinado prejuízo para os credores – e que a cessação do procedimento era determinada por fundamentos diferentes que, conforme considerou, poderiam ser conhecidos oficiosamente, tendo em conta o disposto na 2.ª parte do n.º 3 do art. 243.º.

Nessas circunstâncias, o que importa saber é se esses factos (fundamentos) poderiam, de facto, ser conhecidos oficiosamente.

A resolução da questão remete-nos, portanto, para o disposto no art. 243.º, n.º 3 (em particular, a 2.ª parte).

A norma citada dispõe nos seguintes termos: “Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las” (sublinhado nosso).

Se bem entendemos, a decisão recorrida interpretou a 2.ª parte da norma citada (acima sublinhada) com o sentido de ela permitir que o juiz declare oficiosamente (independentemente de requerimento nesse sentido por parte de algum dos legitimados) a cessação do procedimento de exoneração sempre que o devedor, sem motivo razoável, não forneça, no prazo que lhe seja fixado, informações que comprovem o cumprimento de qualquer uma das suas obrigações ou falte injustificadamente à audiência em que as deveria prestar.

É uma interpretação possível (e legítima) que, como se refere na decisão recorrida, parece corresponder à adoptada por Cláudia Oliveira Martins[1] quando afirma, relativamente à cessação antecipada do procedimento de exoneração, que “…o juiz está impedido de, oficiosamente, a decretar, exceto se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer ao tribunal, no prazo fixado, as informações que lhe forem solicitadas ou faltar injustificadamente à audiência para que tenha sido convocado”.

Entendemos, no entanto, que tal interpretação não é a que melhor se adequa ao pensamento e ao texto legislativo, sendo certo que não encontra na letra da lei o necessário apoio.

Vejamos.

Antes de mais, convém ter presente que, conforme resulta do n.º 1 do art. 243.º, a cessação antecipada do procedimento de exoneração não está na disponibilidade do juiz e apenas pode ser decretada a requerimento fundamentado de uma das pessoas ali mencionadas (um credor da insolvência; o administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou o fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor). E isso significará também, naturalmente – conforme também se depreende do art. 11.º - que aqui não vigora o princípio do inquisitório e que o juiz apenas poderá fundar a decisão em factos que tenham sido alegados pelas partes (os factos/fundamentos invocados por quem requer a cessação do procedimento e os factos que sejam invocados em defesa contra essa pretensão), não lhe sendo permitido que declare a cessação antecipada desse procedimento com fundamentos diferentes daqueles que haviam sido invocados.

A única excepção a essa regra que foi expressamente prevista pelo legislador corresponde à situação prevista no n.º 4 do citado art. 243.º e, nesse caso, por razões óbvias, já que, perante a satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência, seria totalmente inútil o prosseguimento do procedimento; a eventual concessão da exoneração do passivo já não poderia ter qualquer efeito útil porque já não existiram créditos que não estivessem pagos e relativamente aos quais o devedor pudesse ser exonerado. Na verdade, a situação aí descrita corresponderá, em bom rigor, a uma inutilidade superveniente da lide que sempre determinaria, nos termos gerais, a extinção do procedimento, ainda que não existisse a norma em questão.

Ora, partindo do princípio que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – como mandam as regras de interpretação da lei (cfr. n.º 3 do art. 9.º do CC) – parece não haver razões para acolher a interpretação acima mencionada. Com efeito, se o legislador tivesse pretendido estabelecer outra excepção à regra acima referida – no sentido de o juiz poder recusar a exoneração do passivo antes de terminado o período da cessão sempre que, de forma injustificada, o devedor não fornecesse as informações que lhe fossem solicitadas ou faltasse à audiência em que as deveria prestar – não deixaria de o fazer, de modo expresso, em número ou alínea próprio, como fez na situação prevista no n.º 4.

Importa notar, por outro lado, que a 2.ª parte do n.º 3 do art. 243.º está inserida numa previsão mais alargada (o n.º 3 no seu conjunto) que se reporta inequivocamente aos casos em que existe um requerimento de um dos legitimados a pedir a cessação antecipada do procedimento de exoneração com fundamento nas alíneas a) e b) do n.º 1 e, portanto, é nesse contexto que tem que ser lida e interpretada a segunda parte do citado n.º 3; ela só é aplicável quando a cessação do procedimento tenha sido requerida por algum dos legitimados com aqueles fundamentos, não permitindo, portanto, que o juiz possa, oficiosamente e independentemente de qualquer requerimento dos legitimados, declarar a cessação antecipada do procedimento sempre que o devedor, de forma injustificada, não preste qualquer informação que lhe seja solicitada. E, se é certo que aquela previsão só é aplicável quando a cessação do procedimento tenha sido requerida por algum dos legitimados com fundamento nas alíneas a) e b) do n.º 1, não poderemos deixar de considerar – porque o contrário não faria sentido – que as informações solicitadas ao devedor – que podem dar causa à aplicação da 2.ª parte do n.º 3 – têm que estar relacionadas com o requerimento apresentado com vista à cessação do procedimento e inerente recusa da exoneração do passivo e com os fundamentos que nele foram invocados. Ou seja, a previsão contida na 2.ª parte é algo que se insere na tramitação e no âmbito do incidente que se iniciou com aquele requerimento – determinando a procedência da pretensão formulada em tal requerimento nas circunstâncias aí mencionadas – e não uma disposição de carácter geral que permita ao juiz, em qualquer caso e independentemente de requerimento nesse sentido, determinar, oficiosamente, a recusa antecipada da exoneração sempre que, em qualquer contexto e por qualquer razão, o devedor, de forma injustificada, não tenha prestado quaisquer informações que lhe tenham sido solicitadas ou não compareça à audiência onde as deveria prestar.

Na prática, o sentido a dar à norma em questão, segundo a interpretação que temos por correcta, será o seguinte: sempre que seja requerida – por quem tenha legitimidade para o efeito – a cessação do procedimento com fundamento em qualquer situação que se enquadre na previsão das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 243.º e o devedor não preste as informações (que lhe tenham sido solicitadas) destinadas a comprovar o cumprimento da concreta obrigação com fundamento na qual aquela pretensão foi requerida, a cessação do procedimento será (sempre) determinada e a exoneração recusada independentemente de prova efectiva dos fundamentos que haviam sido invocados, entendendo o legislador que a falta de colaboração do devedor no sentido de comprovar o cumprimento das suas obrigações, é razão bastante para dar procedência à pretensão que havia sido formulada (eventualmente por se considerar que essa “falta” do devedor equivale a um reconhecimento tácito dos fundamentos que haviam sido invocados para fundamentar tal pretensão).

Tendo em conta o contexto e os termos em que está regulada e prevista na lei – relacionada com a existência de um requerimento baseado nas alíneas a) e b) do n.º 1 – pensamos que não poderá ser outra a correcta interpretação da previsão constante da 2.ª parte do n.º 3 do citado art. 243.º.

Tal previsão não poderá, portanto, ser interpretada com o sentido de permitir ao juiz determinar – oficiosamente e sem qualquer requerimento nesse sentido – a cessação antecipada do procedimento de exoneração sempre que o devedor, de forma injustificada, não preste alguma informação que lhe tenha sido solicitada ou não compareça à audiência em que as deveria prestar e, portanto, também não poderá permitir que tal cessação seja determinada pelo juiz quando, apesar de existir requerimento de pessoa legitimada a pedir a cessação antecipada do procedimento e a recusa da exoneração, as informações solicitadas – que o devedor não presta de forma injustificada – não têm relação com os concretos fundamentos que haviam sido invocados para requerer aquela cessação antecipada e não se destinam, portanto, a comprovar (ou afastar) esses fundamentos. O que ali se determina é apenas que a pretensão formulada (por um dos legitimados) com base nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 243.º será considerada procedente, independentemente de prova efectiva dos respectivos fundamentos, quando o devedor, de forma injustificada, não preste as informações que, no âmbito e por causa do incidente que se iniciou com o requerimento a pedir a cessação antecipada do procedimento de exoneração, lhe sejam solicitadas (seja porque não o faz no prazo que lhe foi concedido, seja porque não comparece à audiência onde deveria prestá-las) no sentido de comprovar o cumprimento das concretas obrigações cujo incumprimento era invocado naquele requerimento.

No caso em análise, o Banco C… , S.A. veio pedir a cessação antecipada do procedimento de exoneração, ao abrigo do art. 243.º, 1.º com fundamento (apenas) no facto de os Insolventes terem vendido um veículo apesar de saberem que o mesmo estava apreendido e que estavam obrigados a entregá-lo ao administrador da insolvência.

Nessas circunstâncias, a exoneração poderia ser recusada, ao abrigo do disposto na 2.ª parte do n.º 3 do art. 243.º, se os devedores tivessem sido chamados a prestar informações acerca da venda daquele veículo e se, de forma injustificada, não tivessem prestado essas informações (comprovando o cumprimento da concreta obrigação cujo incumprimento lhes estava a ser imputado) no prazo que lhes tivesse sido concedido ou não comparecessem à audiência onde deveriam prestar essas informações; nesse caso, a exoneração seria automaticamente recusada sem necessidade de prova efectiva dos factos que haviam sido invocados pelo credor.

Não foi isso que aconteceu.

As informações solicitadas aos Insolventes não tinham qualquer relação com o pedido do Banco C… e com os factos que este havia indicado (a falta de entrega ao administrador da insolvência e subsequente venda de um veículo que estava apreendido) e não foram determinadas por causa desse requerimento e no âmbito do incidente a que ele deu causa com vista à cessação do procedimento de exoneração do passivo. Tais informações foram solicitadas aos Insolventes na sequência da apresentação do relatório do Sr. Fiduciário onde este dava conta de que, no 1.º ano do período de cessão, os devedores não haviam cedido qualquer quantia e não haviam prestado qualquer informação quanto aos rendimentos auferidos naquele período e foi na sequência desse relatório (e não por causa do requerimento apresentado pelo Banco C… ) que eles foram notificados para remeterem ao Sr. Fiduciário os documentos comprovativos dos rendimentos recebidos no primeiro ano do período da cessão, tendo em vista, naturalmente, o efectivo controlo acerca da existência (ou não) de rendimentos a ceder ao fiduciário.

Assim, não obstante seja certo que a falta de prestação dessas informações corresponde a violação da obrigação – a que os Insolventes estavam vinculados – prevista na alínea a) do n.º 4 do art. 239.º e não obstante seja certo que essa violação era susceptível de determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do art. 243.º, o juiz não poderia determinar tal cessação de modo oficioso e sem que algum dos legitimados o requeresse, já que – reafirma-se – não é esse o sentido – segundo a interpretação que temos como correcta – da 2.ª parte do n.º 3 do art. 243.º.

Nessas circunstâncias, porque a situação não se inseria no âmbito de previsão da norma citada (a 2.ª parte do n.º 3 do art. 243.º) – na medida em que as informações em causa não tinham qualquer relação com os factos que haviam sido invocados para requerer a cessação do procedimento, nem haviam sido solicitadas por causa e no âmbito do incidente que se havia iniciado com esse requerimento (haviam sido determinadas pelo relatório apresentado pelo Sr. Fiduciário) – não poderia ter sido recusada antecipadamente – como foi – a exoneração do passivo restante sem que algum legitimado o requeresse (o que, no caso, não aconteceu, importando notar que, não obstante tenha sido notificado dessa situação, o Banco C… limitou-se a reiterar o conteúdo do requerimento que havia apresentado e não invocou estes novos factos para nele fundamentar o pedido de cessação antecipada do procedimento).

Em face do exposto, sem necessidade de maiores considerações e sem necessidade de apreciar as demais questões suscitadas no recurso – que ficam prejudicadas – impõe-se julgar procedente o recurso e revogar a decisão recorrida.


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(…)


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V.
Pelo exposto, concedendo-se provimento ao presente recurso, revoga-se a decisão recorrida, mantendo-se, em consequência, o procedimento de exoneração do passivo restante.
Custas a cargo da massa insolvente.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                      (Helena Melo)                    


[1] Especificidades do processo de insolvência de pessoas singulares – publicado em e-book do CEJ “Insolvência e Processo Especial de Revitalização” - (Março de 2017)