INSOLVÊNCIA
PLANO DE RECUPERAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CREDOR GARANTIDO
CREDOR COMUM
Sumário

I) O plano de recuperação em processo de insolvência deve respeitar princípio da igualdade entre os credores, a não ser que razões objectivas justifiquem a sua derrogação por medidas fundadas em razões de adequação das mesmas aos fins prosseguidos, de necessidade ou exigibilidade delas e de proporcionalidade em sentido estrito ou “justa medida”.
II) Viola o princípio da igualdade e por isso deve ser recusada a sua homologação, o plano de recuperação que trata de forma igual, sem justificação para o efeito, um crédito comum e um crédito subordinado.
III) Credores de diferentes classes podem ser objecto de tratamento diferenciado no plano de recuperação sem que tal implique, por si, uma violação do princípio da igualdade.
IV) Apesar do referido em III), viola o princípio da igualdade e por isso deve ser recusada a sua homologação, o plano de recuperação que mantém incólume um crédito garantido, quer quanto ao montante quer quanto às respectivas garantias, e reduz em 50% um crédito comum, perdoa a totalidade dos correspondentes juros e sujeita-o a um prazo de pagamento de 200 meses.

Texto Integral








            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A… e mulher B… , já identificados nos autos, instauraram o presente processo especial de acordo de pagamento (PEAP), nos termos do disposto no art. 222º-A e seg.s do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Depois de proferido despacho liminar, que admitiu o pedido, foi nomeado administrador judicial provisório, que elaborou a lista provisória de créditos, que não foi impugnada.

Foi junto o plano/acordo de pagamento (fl.s 49 e v.º).

Após o que, veio o Sr. Administrador Judicial Provisório dar conta de que o plano de pagamentos tinha sido aprovado com 61,84% de votos favoráveis, correspondente a créditos no valor de 84.347,09 €, sendo que o total de votos emitidos ascende a 84.387,09 €, equivalendo a 90,21% dos credores com direito a voto, ascendendo os votos desfavoráveis a 28,37%.

Apenas dois credores tinham direito a voto, tendo votado a favor a CGD, que detém um crédito garantido, no montante de 84.307,09 € e a credora que votou contra a aprovação do plano foi a CCAM de …, com um crédito no montante de € 38.720,13, de natureza comum.

Para além destes existe um crédito subordinado, no montante de 13.358,08 €, a favor de C… , filho dos requerentes.

Conclui o AJP que o plano foi votado favoravelmente por credores cujos créditos representam mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto e mais de metade destes votos correspondentes a créditos não subordinados, inexistindo dúvidas que o plano foi aprovado pelos credores.

Conclusos os autos à M.ma Juiz, foi proferida a decisão de fl.s 59 (aqui recorrida), na qual, a final, se homologou o plano apresentado pelos requerentes, ficando as custas a seu cargo, nos moldes que se passam a reproduzir:

“A… e B… , instauraram o presente processo especial para acordo de pagamento (cf. artigo 222-º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)).

O administrador judicial provisório nomeado juntou lista provisória de créditos, que não foi impugnada (cf. artigos 222.º-C n.º 4 e 222.º-D n.os 3 e 4 do CIRE).

Concluído o prazo de negociações, o acordo de pagamentos foi submetido a votação, tendo votado credores cujos créditos representam mais de um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto contidos na lista definitiva de créditos (90,21%), tendo recolhido o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados (61,84%) (cf. artigos 222.º-D, n.º 5 e 222.º-F n.os 3, al. a) e 4 do CIRE).

Não ocorre violação não negligenciável de normas procedimentais ou aplicáveis ao conteúdo do plano que impeçam a sua homologação, não se prevendo quaisquer condições suspensivas ou atos ou medidas que devem preceder a homologação (cf. artigos 215.º e 222.º-F, n.º 5 do CIRE).

Não foi solicitada a não homologação nos termos do disposto no artigo 216.º do CIRE (cf. artigo 222.º-F, n.º 5 do CIRE).

Pelo exposto, nos termos do artigos 222.º-F, n.º 5 do CIRE, homologa-se o acordo de pagamento dos devedores A… e B… junto aos autos em 27/07/2021 (ref. 7895294).

A presente decisão vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações (cf. artigo 222.º-F, n.º 8 do CIRE).

Valor da ação: € 30.000,00 (cf. artigo 301.º do CIRE).

Custas processuais pelos devedores (cf. artigos 222.º-F, n.º 9, 301.º e 302.º, n.º 1 do CIRE).

Registe, notifique e publicite (artigo 222.º-F, n.º 8 do CIRE).”.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso, a credora CCAM de …, o qual foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 93), finalizando as suas alegações de recurso, com as seguintes conclusões:

(…)

Dispensados os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Se o plano de pagamentos apresentado pelos requerentes não deve ser homologado, por violar o princípio da igualdade entre credores ao determinar, injustificadamente, um tratamento comum para o crédito da recorrente, CCAM de … e o crédito subordinado e mantém incólume o crédito da CGD, quer quanto ao montante quer quanto às respectivas garantias, por contraposição ao da recorrente, a quem é imposto um perdão total de juros e  redução do capital a 50%, o que é desproporcional e a deixa numa posição mais desfavorável do que aquela com se depararia em caso de insolvência e;

B. Não se revogando a sentença recorrida, se esta foi proferida antes de ter terminado o prazo legal para os interessados solicitarem a não homologação do acordo de pagamentos, o que constitui uma nulidade processual, de acordo com o disposto no artigo 195.º, n.º 1, do CPC, com a consequente anulação da sentença recorrida e ser dada aos interessados a possibilidade de requererem a sobredita não homologação.

A factualidade a ter em consideração é a que consta do relatório que antecede, a que acresce a seguinte (uma vez que a sentença recorrida, na prática, é omissa quanto à descrição dos factos em que se fundamenta):

1. Desacompanhado de qualquer “relatório” ou “considerações/explicações/justificações”, foi apresentado o que se designa por “Proposta de Acordo de Pagamentos”, constante de fl.s 49 e v.º, que aqui de dá por integralmente reproduzido e do qual consta o seguinte:

Proposta de Acordo de Pagamentos

Créditos Comuns e Subordinados

Nome - Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de …, CRL, Morada/Sede, …l, Contribuinte/NIPC ….; Total em Dívida (€38.720,13) € 19.360,07; Prazo 200 Meses, Condições – Perdão de 50% de capital e juros em dívida; - Pagamento em 200 prestações mensais consecutivas; Prestação Mensal € 96,80.

Nome –C… , Morada/Sede, Rua …; Contribuinte/NIPC ….; Total em dívida (€ 13.358,08) € 6.679,04, Prazo 200 Meses; Condições - Perdão de 50% de capital e juros em dívida; - Pagamento em 200 prestações mensais consecutivas; Prestação Mensal € 33,40.

Créditos Garantidos

Nome – Caixa Geral de Depósitos, SA; Morada/Sede, ….; Contribuinte/NIPC ….; Total em dívida € 84.307,09; Prazo - ; Condições – Contratos PT …, PT …e PT ….;

a) 3 meses de carência de capital;

b) alteração do indexante para Euribor a 12 meses;

c) permanência das demais condições contratualizadas actualmente em vigor, nomeadamente prazos e garantias já prestadas, para os 3 contratos”.

2. O referido plano de pagamentos foi aprovado, nos moldes e percentagens acima já referidos, apenas com o voto da CGD, tendo-se pronunciado contrariamente à aprovação a CCAM, não tendo votado o credor subordinado.

3. Os requerentes residem em habitação própria, sita em ….

4. O crédito da CCAM de … resulta de contrato de abertura de crédito em conta corrente, a favor dos requerentes, celebrado em 20 de Maio de 2008, pelo limite inicial de 55.000,00 €, encontrando-se em dívida, em 19 de Outubro de 2020, a quantia de 37.829,82 € - cf. doc. de fl.s 25, aqui dado por reproduzido.

5. O requerente aufere de reforma a quantia de 270,00 €, mensais - cf. doc. de fl.s 27, aqui dado por reproduzido.

6. A requerente, no último ano, auferiu, a título de subsídio de doença, a quantia média mensal de 675,00 €, indo retomar a sua actividade profissional, em França, onde auferirá, em média, 1.250,00 €, mensais – cf. doc.s de fl.s 26 e v.º, aqui dados por reproduzidos.

7. A dívida para com a CGD resultou de crédito para habitação própria, sendo que cf. doc.s de fl.s 27 e 28, aqui dados por reproduzidos, com referência a Janeiro de 2021, inexistia qualquer incumprimento por parte dos requerentes.

8. A dívida a C… , segundo alegação dos requerentes, resultou da concessão de sucessivos mútuos aos requerentes, para estes fazerem face às despesas correntes do agregado familiar.

9. O requerente tem 55 anos de idade e a requerente 56, sendo casados entre si, no regime de bens supletivo, cf. doc.s de fl.s 20 a 24, aqui dados por reproduzidos.

10. Juntaram anexo de relação de bens de sua pertença (fl.s 14/15, aqui dada por reproduzida), de que fazem parte o prédio urbano onde residem; 6 verbas relativas a prédios rústicos (3, em propriedade plena e 3 na proporção de metade); 2 motociclos; um ciclomotor e dois veículos automóveis.

A. Se o plano de pagamentos apresentado pelos requerentes não deve ser homologado, por violar o princípio da igualdade entre credores ao determinar, injustificadamente, um tratamento comum para o crédito da recorrente, CCAM de …. e o crédito subordinado e mantém incólume o crédito da CGD, quer quanto ao montante quer quanto às respectivas garantias, por contraposição ao da recorrente, a quem é imposto um perdão total de juros e  redução do capital a 50%, o que é desproporcional e a deixa numa posição mais desfavorável do que aquela com se depararia em caso de insolvência.

Como resulta do relatório que antecede, a recorrente entende que o plano apresentado e aprovado, ofende o princípio da igualdade, com base em duas ordens de razões:

- concede um tratamento comum para o crédito da recorrente, CCAM de…  e o crédito subordinado, sem que isso se justifique, atenta, desde logo, a natureza dos créditos em confronto e;

- porque, no confronto do seu crédito com o crédito da CGD, este, não sofre quaisquer cortes/reduções, quer quanto ao seu montante quer quanto às respectivas garantias, por contraposição ao da recorrente, a quem é imposto um perdão total de juros e redução do capital a 50%, o que é desproporcional e, em ambos os casos, a deixa numa posição mais desfavorável do que aquela com se depararia em caso de insolvência.

Na sentença recorrida, acima integralmente transcrita, nada se referiu/considerou, quanto a estas concretas questões, apenas se concluindo que não existiam razões para que o acordo não fosse homologado, por não ocorrer violação não negligenciável de normas procedimentais ou aplicáveis ao conteúdo do plano, até porque, acrescentou-se, não foi solicitada a não homologação.

É indubitável que, no âmbito de uma situação de insolvência ou pré-insolvência, nos termos do disposto no artigo 194.º do CIRE, se consagra o princípio da igualdade entre credores, ali se consagrando no seu n.º 1, a regra de que “O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas”, acrescentando-se no seu n.º 2 que o tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, que se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.

Nos termos do disposto no artigo 215.º do CIRE, aplicável ex vi, seu artigo 222.º-F, n.º 6, refere-se que “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza…”.

Assim, impõe-se uma abordagem do que se deve entender por “violação não negligenciável” (e, no reverso da situação, o que se entende por violação negligenciável) dos procedimentos ou de normas substantivas aplicáveis ao plano de recuperação/pagamento apresentado.

Por outro lado, importa não esquecer que a possibilidade de conformação do plano de recuperação (no caso, de pagamentos) aprovado pelos credores, limita, restringe, ou pode fazê-lo, a esfera dos direitos de cada um, ou alguns, dos credores da devedora, na medida em que o plano fixa em que medida se opera a redução ou o perdão dos créditos e juros, a constituição de garantias e validade e relevância das anteriormente constituídas, nos termos do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CIRE.

Isto porque, como se refere, entre outros, nos Acórdãos do STJ, de 10/04/2014, Processo 83/13.3TBMCD-B.P1.S1 e de 25/03/14, Processo 6148/12.1TBBRG.G1.C1, disponíveis no respectivo sítio do itij, depois da reforma operada pela Lei 16/2102, de 20/4, o CIRE tem como objectivo principal, a recuperação, a revitalização da empresa em estado de pré-insolvência, relegando para segundo plano a respectiva liquidação.

Dá-se relevância à recuperação da empresa ou devedor singular, em detrimento do anterior objectivo primordial, que era o de, em primeira linha, obter a satisfação dos direitos dos credores, por sobreposição às possibilidades de recuperação da devedora.

Como refere Menezes Cordeiro, in “Perspectivas Evolutivas do Direito da Insolvência”, Thémis, Ano XII, n.os 22/23, 2012, pág.s 40 a 42, como linha inovadora da citada reforma surge “a primazia da satisfação dos credores; a ampliação da autonomia privada dos credores; a simplificação do processo … a recuperação surge à frente como mera eventualidade, totalmente dependente da vontade dos credores. Mas esta primazia não funciona apenas em detrimento da empresa: ela exige, também, o sacrifício de terceiros que tenham contratado com a entidade insolvente.”.         

É no âmbito dos poderes de conformação do plano por parte da maioria dos credores de uma empresa em estado de pré-insolvência que surge a possibilidade de, nos termos do disposto no artigo 196.º do CIRE, lançar mão das (ou alguma (s)) providências nele referidas, designadamente o perdão ou redução do valor dos créditos, de capital ou de juros; condicionamento de reembolso de créditos; modificação de prazos de vencimento e taxas de juros; constituição de garantias e cessão de bens aos credores e outras ali não previstas, uma vez que, cf. seu n.º 1, se refere que “O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências …”, o que, fora de dúvidas faz transparecer a ideia de que será possível usar outras providências, para além das ali expressamente indicadas, desde que contidas e descritas no plano de recuperação.

Por idênticas razões, se permite, conforme estipulado no artigo 197.º do CIRE, desde que expressamente estatuído no plano de insolvência, a afectação dos direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios que versem sobre bens da empresa pré-insolvente.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 25/03/14, acima já citado “A expressão “na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência”, atribui cariz supletivo ao preceito, o que implica que pode haver regulação diversa, contendendo com os créditos previstos nas al.s a) e b) o que deve ser entendido como afloração do princípio da igualdade e reconhecimento que, dentro da legalidade exigível, o plano pode regular a forma como os credores estruturam o Plano de Insolvência. Só assim não será se não houver expressa adopção de um regime diferente.”.

No mesmo sentido se pronunciam Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, 2013, a pág. 762 que ali defendem que “sendo o plano um meio alternativo de prossecução do interesse dos credores, que afasta o recurso à liquidação universal do património do devedor, ele deve conter, na plenitude, a regulação sucedânea dos interesses sob tutela, seja para evitar incertezas que sempre poderiam advir da concorrência de acordos ou estipulações estranhas ao instrumento geral, seja por razões de transparência, que aconselham que tudo fique devidamente explicitado para todos os credores poderem conhecer plenamente a situação e assim apreciá-la e valorá-la de modo a melhor fundamentarem a sua opção.

Adrede, está ainda a salvaguarda do princípio da igualdade.”.

Ali acrescentando a fl.s 762 e 763 que “Corolário fundamental do regime fixado no preceito é o de que os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios existentes podem ser atingidos, desde que a afectação conste do plano, e nos termos nele especialmente previstos (…)

Naturalmente, a exigência da dispensa do acordo de cada um dos credores que perca garantias ou privilégios, bastando a observação da maioria comum, constitui um importante instrumento de facilitação da aprovação de planos de insolvência.”.

Daqui resulta que os credores, melhor dito, da sua maioria, dispõem de uma ampla autonomia quanto à forma como podem recuperar os seus créditos, ponderando a possibilidade de liquidação da empresa ou a sua viabilidade/recuperação, de acordo com o plano aprovado, sem que, como é óbvio, possam violar o princípio da igualdade entre credores, consagrado no artigo 194.º do CIRE.

Princípio, este que, como já referido, não tem um carácter absoluto, uma vez que na parte final do n.º 1 do artigo 194.º do CIRE se estabelece a possibilidade de o mesmo poder ser derrogado por “razões objectivas”.

Derrogação, esta, que assenta em razões de proporcionalidade, princípio que, igualmente, goza de matriz constitucional, baseado em razões de adequação das medidas aos fins; necessidade ou exigibilidade das medidas e proporcionalidade em sentido estrito ou “justa medida”.

Como refere Jorge Reis Novais in “Princípios Estruturantes da República Portuguesa”, pág. 171, citado no Acórdão do STJ, em referência, “a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspectiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável.”.

Por último, nesta sede, de considerar que, como defende Gisela Fonseca in “Direito da Insolvência – Estudos”, Coordenação de Rui Pinto, Coimbra Editora, 2011, no texto “A Natureza do Plano de Insolvência”, o plano de insolvência tem uma natureza complexa, configurável como uma transacção, um verdadeiro contrato, que não exige, para ter eficácia, a concordância de todos os intervenientes, bastando para tal a aprovação ou consentimento de uma simples maioria deles.

Como ali se refere “A concretização do plano de insolvência permite aos credores a composição dos interesses emergentes do processo, de acordo com a sua própria vontade, revestindo-se, assim, de uma natureza negocial.”.

Esta ponderação de interesses, tendo em vista a salvaguarda do princípio da igualdade entre credores, violado este, no plano aprovado, deve conduzir a que o juiz recuse oficiosamente a aprovação do plano sempre que exista uma violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, conforme se acha disposto no artigo 215.º do CIRE, em que se enquadra a injustificada, desadequada, arbitrária ou injusta, violação do direito à igualdade entre credores, nos moldes em que este se encontra consagrado no artigo 194.º, n.º 1, do CIRE.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., de pág.s 826 a 828, devem considerar-se “não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido.

(…)

O que importa é, pois, sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta.

(…)

Apenas cabe uma nota complementar para alertar não poder deixar de se ponderar o facto de a lei propender a pôr nas mãos dos credores a decisão sobre o destino do processo, e, nessa medida, o tribunal deve mostrar generosidade na sindicação da bondade do por ele deliberado, na ponderação de que ninguém melhor do que os credores saberá o modo de mais adequadamente defender os seus próprios interesses.”.

Ora, tendo em vista o que ora se deixou dito e analisando o que consta do plano de pagamentos aprovado, relativamente ao plano de pagamentos proposto, impõe-se concluir, salvo o devido respeito, que a decisão recorrida não ponderou devidamente se as diferenças de tratamento dadas a cada um dos credores, respeitam os comandos legais acima referidos, designadamente se as mesmas não acarretam um tratamento excessivo, desproporcionado e irrazoável entre eles, o que a assim ser, configura violação do princípio da igualdade entre credores, importando, pois, averiguar se o plano aprovado tem, na sua génese, vícios que configuram violações não negligenciáveis a nível do seu conteúdo.

Efectivamente, como acima já se referiu, nos termos do disposto no artigo 215.º do CIRE:

“O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza …”.

Volvendo à invocada violação de regras relativas ao conteúdo do plano, importa ter em linha de conta que, de acordo com o disposto no artigo 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE, deve ser recusada a homologação do plano, se tal lhe for solicitado por algum credor que se lhe haja oposto, se a sua situação ao abrigo de tal plano for previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

Entendendo-se como normas relativas ao conteúdo, tanto as respeitantes à parte dispositiva do plano, como aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve apresentar – cf. autores e ob., por último, acima já, cit. a pág. 826.

No entanto, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., a pág.s 832 e 833, para aferir de tal situação, importa proceder “a um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele.

Relativamente aos credores, isto reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima que receberiam sem ele.

(…)

Ora, é exactamente a concretização da comparação que muitas vezes se revelará de extrema dificuldade exatamente porque importa avaliar a priori o que a massa insolvente pode render no caso de venda universal.

(…)

Bem vistas as coisas, pois, o que substancialmente importa é a comparação entre a situação emergente da homologação do plano e a que interviria na sua ausência.”.

Ora, quanto a tal prognose, como já referido, a ora recorrente alega que não se vislumbram razões para que o seu crédito seja tratado de igual forma que o crédito subordinado e porque, mesmo por comparação com o crédito garantido, este se mantenha incólume em todas as suas vertentes (capital, garantias e todas as demais condições contratualizadas), com a única ressalva a ser feita é a de carência de 3 meses de capital e o seu crédito sofre redução a metade, perdão da totalidade dos juros em dívida e a ser pago em 200 prestações mensais.

Do que conclui que o plano de pagamentos aprovado acarreta que fique numa situação mais desfavorável do que aquela em que ficaria se não houvesse plano, pelo que, desde logo, se terá de ter como verificada a situação prevista no citado artigo 216.º, n.º 1, al. a) e se mostra violado o princípio da igualdade.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 03/03/2015, Processo n.º 1480/13.0TYLS.L1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, o plano de recuperação, que se impõe mesmo aos que o não aprovaram e mesmo aos que não participaram das negociações, cf. artigo 17.º-F, n.º 6, do CIRE “não vai deixar tudo na mesma, sob pena de ser inútil. Implicará alterações no que respeita aos prazos de cumprimento das obrigações a que o devedor estava vinculado e, porventura, nos montantes pecuniários devidos, seja na sua globalidade, seja quanto ao valor e ao número de prestações parcelares.”.

Ali se acrescentando que:

“É natural que um plano de recuperação implique alterações, designadamente, quanto aos prazos de cumprimento das obrigações a que o devedor esteja vinculado, aos montantes devidos e ao número de prestações parcelares.

Assim, o simples facto de não se concordar com tais alterações não justifica o pedido de não homologação do plano em causa. E muito menos se justifica a não homologação oficiosa, a não ser que se verifique algum dos condicionalismos previstos no artigo 215.º”.

Ora, com a aprovação do plano em causa, efectivamente, somos de opinião que a recorrente fica numa situação menos favorável do que aquela em não existisse qualquer plano.

Esta conclusão, no que respeita ao confronto entre o crédito da recorrente e o do credor subordinado é irrefutável.

Efectivamente, no acordo de pagamentos aprovado, estes dois créditos são sujeitos a condições de pagamento rigorosamente iguais. O que não se pode aceitar dadas as especificidades a que é sujeito um crédito subordinado.

Os créditos subordinados, cf. proémio do artigo 48.º e artigo 177.º, n.º 1, ambos do CIRE, são graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência e o respectivo pagamento só tem lugar depois de integralmente pagos os créditos comuns.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. Cit., 3.ª Edição, a pág. 655 “A matriz caracterizadora essencial do crédito subordinado reside exatamente no facto de ele apenas ser pago após a liquidação integral de todos os créditos comuns, figurando, assim, numa posição hierárquica inferior”.

Assim, apresenta-se como injustificada, desproporcionada, desrazoável, arbitrária e injusta a igualdade de tratamento entre estes dois créditos, o que acarreta a sua não homologação.

De resto, nem sequer se pode afirmar que sem a aprovação do plano, cair-se-ia, de imediato, numa situação de insolvência dos devedores, com a consequente venda universal dos bens que constituiriam a massa insolvente.

Como resulta da factualidade provada, os devedores não se encontram em incumprimento relativamente a nenhum dos seus credores, limitando-se a alegar que em 2014, por razões de mercado a facturação da actividade comercial do requerente sofreu significativa diminuição pelo que “começaram a sentir dificuldades no cumprimento de todas as suas responsabilidades de crédito” – cf. artigos 6.º a 8.º do requerimento inicial, tendo intentado os presentes autos “com vista a diminuir o valor das prestações mensais a que se encontram vinculados” – cf. artigo 9.º do citado requerimento.

Por outro lado, dispõem dos bens acima elencados.

Pelo que, apesar da existência do crédito privilegiado da CGD e atento os montantes dos créditos em causa, nem sequer é seguro, que em caso de insolvência, a recorrente não visse satisfeito o seu crédito ou, pelo menos, a sua maior parte, o que mais reforça a violação do princípio da igualdade relativamente ao tratamento dado ao crédito (comum) da ora recorrente e o subordinado de que é titular o filho dos requerentes.

Resta apreciar a alegada desigualdade de tratamento entre o crédito da recorrente e o da CGD, que é garantido e, por isso goza da prioridade de pagamento que lhe é conferida pelo artigo 175.º, n.º 1, do CIRE, relativamente aos comuns.

Mercê desta prioridade no pagamento, resultante da existência de garantias que lhe subjazem, a diferença de tratamento entre credores de diferentes classes, pode e como regra assim acontece, não importa a violação do princípio da igualdade.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 24 de Novembro de 2015, Processo n.º 212/14.0TBACN.E1.S1, disponível no respectivo sítio do itij “o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente para derrogar o princípio da igualdade dos credores de uma mesma classe quando faz recair sobre alguns deles, de forma desproporcionada, as perdas, ou  seja, quando a revitalização do devedor é conseguida à custa do sacrifício grave ou severo de apenas alguns credores da mesma classe.

Ali se acrescentando que:

“as diferenciações entre credores não podem radicar na própria necessidade de aprovação do plano. Pelo contrário, é este que, na sua substância, tem que respeitar, tanto quanto possível, o princípio da igualdade entre credores”.

Mais se referindo que não pode aceitar-se a afirmação de que:

“a importância dos votos de certos credores para que o plano seja aprovado deve poder influenciar ou condicionar o regime de satisfação dos créditos, isto é, deve poder influenciar ou condicionar o princípio da igualdade entre os credores”.

Isto porque:

“o vetor que regula para o caso é o da igualdade entre credores e não o da importância ou essencialidade dos votos de certos credores para que o plano possa ser aprovado”.

No caso em apreço, o plano foi apenas aprovado pelo credor garantido, a CGD, cujo crédito se mantém nos termos e condições existentes, com a única excepção da carência de 3 meses de capital e alteração da indexante da Euribor (o que até poderia levantar a questão de saber se a mesma poderia votar, dado que, na prática, o seu crédito resulta imodificado com o plano), ao passo que o da CCAM, sofre as drásticas alterações acima já referidas.

Não se nega que um credor comum não pode ser tratado de igual forma do que um privilegiado, que goza, nos termos previstos, das garantias de que beneficia.

A questão não reside aí, mas sim no facto de sem qualquer justificação, explicação ou motivação, se reduzir, na assinalada proporção, o crédito da CCAM de… , bem como porque razão o pagamento proposto se iria prolongar durante 200 meses.

Por isso é que logo na descrição dos factos provados (item 1.º) se assinalou que a Proposta de Pagamento apresentada, está desacompanhada, contrariamente ao habitual, de qualquer relatório, ou exposição de onde se possa extrair a razão pela qual, o crédito da recorrente sofre as condicionantes já referidas ao passo que o da CGD se mantém incólume.

Cremos que não basta apresentar a proposta de pagamentos, sendo necessário justificar e explicar a opção apresentada, por reporte às condições sócio-económicas dos requerentes, designadamente quais os meios que possuem para a cumprir, bem como o porquê de as condições apresentadas serem estas e não outras.

Designadamente, no que se refere ao crédito da CCAM, ficamos sem saber a razão pela qual se propõe o perdão de 50% do capital e da totalidade dos juros e não mais ou menos, bem como a justificação para tão dilatado prazo de pagamento.

Impunha-se a explicação/justificação para tão acentuada diferença de tratamento entre a CGD e a CCAM de… , a qual não encontra respaldo apenas na diferença, espécie ou classe de créditos. Não obstante a diferente natureza de tais créditos fica sem se perceber o motivo de tão acentuada diferença de tratamento, com maior acuidade, reitera-se, no facto de absoluta inexistência de justificação/motivação para o tratamento dado ao crédito de que é titular a ora recorrente.

O que nos leva a concluir que se trata de uma medida excessiva, desproporcionada, arbitrária, por não justificada e, por isso, injusta, para com a recorrente, que o julgador não pode sancionar e que, consequentemente, nos termos expostos, acarreta a não homologação do plano de pagamentos apresentado pelos requerentes, não podendo manter-se a decisão recorrida.

Em suma, o plano de pagamentos apresentado pelos requerentes, configura um tratamento mais desfavorável, discriminatório (pela negativa) e injustificado da CCAM de …, relativamente aos restantes créditos, pelo que se mostra violado o princípio da igualdade entre credores, tal como plasmado no artigo 194.º do CIRE e que acima já se mostra analisado.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., 3.ª Edição, a pág. 713 “o princípio da igualdade dos credores configura-se como uma trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência. A sua afectação traduz, por isso, seja qual for a perspectiva, uma violação grave – não negligenciável – das regras aplicáveis.

O tribunal deve, por isso, se não for atempadamente recolhido o assentimento do lesado, recusar a homologação do plano”.

Assim, face ao exposto, quanto a esta questão, procede o presente recurso.

Em face da procedência desta questão do recurso, por inutilidade, não se conhece da questão acima elencada em B.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que não homologa o plano de pagamentos apresentado.

Custas pelos apelados.

Coimbra, 12 de Outubro de 2021.