IMPUGNAÇÃO DE ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
LEGITIMIDADE ACTIVA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
HERANÇA
PETIÇÃO DA HERANÇA
FILIAÇÃO
MEIOS DE PROVA
REGISTO CIVIL
REGISTOS PAROQUIAIS
Sumário

I) A acção de impugnação judicial de uma escritura de justificação notarial pode ser proposta por apenas alguns dos herdeiros da herança a que alegadamente pertence o bem que foi objecto daquela escritura, não existindo litisconsórcio necessário activo de todos os herdeiros.
II) A relação de filiação decorrente de nascimento anterior a 1911 pode ser demonstrada, no âmbito de uma acção de petição de herança, com recurso a meios de prova diferentes dos previstos no registo civil, designadamente com recurso aos registos paroquiais.

Texto Integral







            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

A…, por si e na qualidade de herdeira e cabeça de casal da herança de B… e C… , instauraram a presente acção declarativa, de condenação, com processo comum, contra E… e mulher F… (1.º réus), G…, H… (2.º réus) e I… e mulher J… (3.º réus), já todos identificados nos autos, peticionando o seguinte:

A. se declare que a autora é herdeira na herança indivisa de B… ; e, por lesivo dessa herança,

B. se considere impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de 26.01.2018, referente à invocada aquisição pelos 1.ºs réus, por usucapião, do prédio que nela identificam; e, em consequência, por nela serem reproduzidas falsas declarações,

C. se declare inválida e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os réus não possam, através dela, registar, ou estando registados, sejam cancelados, quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação;

D. seja ordenado o cancelamento de todos os registos operados com base no documento aqui impugnado,

E. neles incluído o acto de doação celebrado entre os 1.ºs réus e os 3.ºs réus, considerada a invalidade desse acto;

F. se declare que o prédio identificado na dita escritura, com exclusão da parte referida nos artigos 3.º, 5.º e 6.º da petição inicial, integra a herança aberta de B… ;

G. que, por causa da celebração da escritura, segundo a qual foi propósito do 1.º réu retirar à herança de B… , de forma fraudulenta, o prédio ou parte dele, devendo ser condenado como sonegador;

H. seja reconhecido aos autores, por si, o direito de se ressarcirem das consequências morais dos actos praticados pelos réus na referida escritura, devendo os 1.ºs e 2.ºs réus serem condenados a pagar àqueles, a título de danos não patrimoniais, a quantia de €750,00.

Para tanto, alegam, em síntese, que a autora, por direito de representação da sua mãe, L… é herdeira da herança aberta por óbito de M… , que, juntamente com N… , era herdeira da herança aberta por óbito de B… , irmã de M… e N… , mais alegando que é cabeça-de-casal da herança aberta por óbito da sua mãe e de B… , e que nesta herança, ainda indivisa, integra-se a parte de um prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 68.º [constituída pelas construções nºs 2, 3 e 4], tendo a outra parte desse prédio sido vendida em 1970 por  B… a O… [constituído por duas pequenas construções de xisto a que correspondem as partes n.ºs 1 e 5].

Mais alegam os autores que as partes do prédio não vendidas, ou seja, as correspondentes aos n.ºs 2, 3 e 4, são ocupadas pelos herdeiros de N… , irmão de B… , salientando que essa parte do prédio não foi transmitida nem partilhada, permanecendo no acervo hereditário e indiviso de B… ; porém, o 1.ºs réus – E… [filho de N… ] e mulher F…-, através de escritura notarial de 26.01.2018, arrogaram-se donos do referido prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 68.º, afirmando que adveio à sua titularidade por doação meramente verbal celebrada no ano de 1993 com L… e O… , facto que os autores alegam ser falso e cuja intenção dos 1.ºs réus era a de prejudicar a herança de B… , retirando da mesma um prédio ou parte de um prédio que era sua pertença, devendo o 1.º réu ser declarado sonegador do bem declarado na justificação.

Referem ainda os autores que cada um dos réus intervenientes na escritura deve ser responsabilizado pelos danos causados com tal acto ilícito e culposo, pois os 1.ºs réus sabiam que, ao fazerem tal escritura, com declarações falsas, causariam desgostos, afrontas e arrelias aos autores, como causaram, assim como os demais réus, pois ao confirmarem as declarações que bem sabiam serem falsas, provocaram um dano a terceiro, neste caso os autores.

Terminam os autores, peticionando ainda a nulidade da doação efectuada pelos 1.ºs réus aos 3.ºs réus, uma vez que se trata de doação de coisa alheia, in casu, de um prédio pertencente à herança indivisa de B… . Os réus, regular e pessoalmente citados, não apresentaram contestação.

Foi proferido despacho saneador (fl.s 68 a 71), no qual se proferiu decisão de absolvição dos réus da instância quanto aos pedidos formulados pelos autores nas alíneas b), c) e d) da petição inicial, por ilegitimidade activa dos autores, por preterição de litisconsórcio necessário activo; se apreciou a validade e regularidade da instância e se declararam confessados os factos alegados na petição inicial.

Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os autores A… e marido, D…, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida conjunta, com o recurso que, eventualmente, viesse a ser interposto da sentença a proferir, de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 96), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

No prosseguimento dos autos, com vista à apreciação dos demais pedidos formulados pelos autores, foram as partes notificadas nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 567.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, não tendo junto alegações.

Foram os autores convidados a juntar aos autos os assentos de nascimento de L… e M… , uma vez que tais documentos se revelam essenciais à prolação da decisão, vindo os autores aduzir que o assento de nascimento de L… se encontra junto aos autos e, no que concerne ao assento de nascimento de M… , alegam que não conseguem encontrar o mesmo; no entanto, referem que, mesmo não tendo documento a atestar a filiação, dispõem do facto de N… e herdeiros manterem a ocupação do prédio de B… , identificado na petição inicial, sendo ainda do conhecimento do réu E… e das pessoas do meio que B… ,  M… e  N… eram irmãos, indicando para tal, se necessário, prova testemunhal.

 

Após o que foi proferida a sentença de fl.s 96 a 103, na qual, previamente, com a mesma fundamentação expendida na decisão, quanto a tal, proferida no despacho saneador, se absolveram os réus da instância quanto aos pedidos formulados em e), g) e h), da petição inicial, se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Face ao exposto, decide-se:

A. ABSOLVER os réus da instância quanto aos pedidos formulados em e), g) e h) da petição inicial;

B. ABSOLVER os réus do pedido quanto aos pedidos formulados pelos autores nas alíneas a) e f) da petição inicial.

*

Custas:

- a cargo dos autores - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.”.

Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os autores A… e marido, D… , recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo – (cf. despacho de fl.s 120), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.         

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir (que são comuns a ambos os recursos, pelo que se apreciam conjuntamente):

A. Se se verifica a ilegitimidade activa, por preterição de litisconsórcio necessário, relativamente aos pedidos relacionados com a impugnação judicial da escritura de justificação notarial e doação outorgada pelos 1.os réus e;

B. Se, no que respeita aos pedidos relacionados com a petição da herança, têm os mesmos de improceder, com fundamento em a autora não ter demonstrado a sua qualidade de herdeira de  B… e, ainda, se tal qualidade in casu só pode ser provada através das certidões do registo civil.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. B… nasceu em data não apurada e consta no seu assento de óbito que é filha de Q… e R… .

2.  B… faleceu no dia 15.06.1971, no estado de solteira e sem filhos.

3. A autora A… nasceu em 25.09.1953 e encontra-se registada como sendo filha de O… e L… .

4. L… nasceu em 08.05.1911 e encontra-se registada como sendo filha de M… e P….

5. L… faleceu em 30.07.1983.

6. O réu E… nasceu em 09.04.1972 e encontra-se registado como sendo filho de N… e S… .

7.  N… nasceu em 27.01.1933 e encontra-se registado como sendo filho de T….

8. N… faleceu em 13.04.1997.

9. T… ou TT… nasceu em 24.04.1910 e encontra-se registada como sendo filha de N… e U… , constando do documento de fls. 86, verso, e 87 que será neta de  Q… e R…

10. Encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 68.º e omisso na Conservatória de Registo Predial, o prédio urbano, sito ao …, …, com área total de 142 m2, que confronta do norte com rua do canto, sul com herdeiros de MO…, nascente com O… e poente com FF… sendo a titular do rendimento inscrito A….

11. Por escrito particular intitulado contrato promessa de compra e venda, outorgado em 14.04.1970,  B… , na qualidade de primeira outorgante, declarou:

i. “promete vender a O… uma casa na povoação de Vale de paredes, a confrontar do nascente com MO…, poente e sul com a sua, do norte com O… e do sul com herdeiros de T… ;

ii. que a venda foi feita pela importância de 2.500$00 (dois mil e quinhentos escudos), importância que já foi recebida.”

12. O prédio aludido em 10. é constituído pelas construções denominadas de quarto do avô – ex-habitação de B… ; habitação em ruína de T… e de U…, currais em ruína de  T… e U… ; garagem comprada a B… (sua antiga adega) e logradouro descoberto que dá serventia aos currais e garagem (construções n.ºs 1 a 6), representadas na planta junta a fls.16 verso, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

13. A parte do prédio aludido em 10. transmitida a O… é constituído por duas construções em xisto, separadas entre si, fazendo parte do conjunto coberto, representados pelos n.ºs 1 a 5 da planta referida em 12.

14.O… , por si e pelos seus sucessores, utilizam o prédio aludido em 13, há mais de 40 anos, de boa-fé, de forma pública, pacífica, sem oposição de ninguém.

15. As partes do prédio aludido em 10, denominada como habitação em ruína de T… e de U… , currais em ruína de  T… e  U… (construções sob o n.º 2, 3 e 4 da planta junta a fls. 16 verso), são ocupadas pelos herdeiros de N… .

16. Até à presente data, não foi transmitida, nem partilhada a parte do prédio aludido em 15.

17. É a autora A… que procede ao pagamento das respectivas contribuições relativas ao prédio aludido em 10.

B) FACTOS NÃO PROVADOS

Com relevo para a questão ainda em apreciação, não resultou provado que:

i.  M… seja filha de Q… e R… .

ii.N… , pai de T… , seja filho de  Q… e R… .

A. Se se verifica a ilegitimidade activa, por preterição de litisconsórcio necessário, relativamente aos pedidos relacionados com a impugnação judicial da escritura de justificação notarial e doação outorgada pelos 1.os réus.

Como resulta do relatório que antecede, nas decisões recorridas considerou-se que os autores, na qualidade de herdeiros da herança de B… , não têm legitimidade para intentar a presente acção, desacompanhados dos demais herdeiros, por preterição de litisconsórcio necessário activo, sob pena de a decisão a proferir não produzir o seu efeito útil normal, porque qualquer dos outros herdeiros, em caso de improcedência, poderia vir demandar os ora réus, sem que estes pudessem opor a força de caso julgado.

Contra o que se insurgem os autores, contrapondo que o disposto no artigo 101.º, n.º 1, do Código do Notariado lhes confere legitimidade para, desacompanhados dos demais herdeiros, proporem a presente acção.

A decisão recorrida, no que a esta questão respeita, seguiu o decidido no Acórdão desta Relação, de 21/02/2018, Processo n.º 1235/16.0T8LMG.C1 e da Relação de Guimarães, de 07/12/2016, Processo n.º 1718/15.9T8CHV.G1, ambos disponíveis no respectivo sítio do itij, nos quais se defendeu que numa acção de impugnação de escritura de justificação notarial, há que observar o disposto no artigo 2091.º, n.º 1, do CC, pelo que terá de ser intentada por todos os herdeiros, sob pena de preterição de litisconsórcio necessário, sob pena de a decisão não proferir o seu efeito útil normal.

Com o devido respeito pelo aqui decidido, não perfilhamos a orientação neles seguida.

É certo que o disposto no artigo 33.º do CPC, define os termos em que é exigida a intervenção de todos os interessados, quando a mesma é necessária por imposição legal, atento o negócio efectuado e quando pela natureza da própria relação jurídica aquela intervenção seja necessária para que a decisão a proferir produza o seu efeito útil normal, o que se obtém quando a mesma possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.

Esta questão não tem tido tratamento uniforme por parte da jurisprudência, como resulta do teor das decisões recorridas e das alegações dos recorrentes, podendo, ainda, indicar-se, para além das aí citadas, os Acórdãos da Relação do Porto, de 13/10/2005, Processo n.º 0533037 (que defende que um dos herdeiros, desacompanhado dos restantes, tem legitimidade para intentar a acção de impugnação de escritura de justificação) e o da Relação de Guimarães, de 15/11/2018, Processo n.º 56/17.7T8BGC.C1 (que decidiu em sentido contrário, com voto de vencido), ambos disponíveis no mesmo sítio dos anteriores.

O artigo 33.º do CPC, constitui uma norma de carácter geral, que tem de ceder perante outras que regulam especificamente a legitimidade para certas e determinadas causas, a maioria das quais têm carácter substantivo por estarem insertas no Código Civil ou outra legislação especial, de carácter substantivo e entre as quais se contam as que definem a legitimidade para a propositura da acção de impugnação de escritura de justificação notarial e as acções de petição de herança ou do exercício de outros direitos da herança.

Fora de dúvidas que os pedidos formulados nas alíneas b) a e) e g) e h), são típicos de uma acção de impugnação de escritura de justificação notarial.

E quanto a esta acção, a legitimidade substantiva está fixada no artigo 101.º, n.º 1, do Código do Notariado, que a confere a qualquer “interessado em impugnar em juízo o facto justificado”.

Ora, a autora sendo herdeira da supra identificada herança, tem interesse, é “interessada” para efeitos da impugnação judicial da escritura de justificação notarial que se pretende ver impugnada.

Assim, sendo, com o devido respeito, não se vislumbra que para intentar a presente acção, tenha de estar acompanhada dos demais herdeiros. A legitimidade substantiva para a propositura da acção é definida pelo citado artigo 101.º, n.º 1, que, como referido, não exige a intervenção de todos os interessados, mas apenas de “um” deles, singularmente considerado. Exigir, ao contrário do que se dispõe neste preceito, a participação de todos os herdeiros, seria ir para além e contra o que a lei determina com vista à legitimidade para a propositura deste tipo de acções.

O que não obsta a que, se assim o entender, para acautelar a eficácia do caso julgado da acção a proferir, o demandado possa requerer a intervenção provocada dos demais herdeiros, na posição de autores. O que não se pode é, salvo o devido respeito, exigir que todos (conjuntamente) tenham de a propor, por o contrário resultar do disposto no artigo 101.º, n.º 1, do Código do Notariado.

Em conclusão, não tem aplicação in casu o disposto no artigo 33.º do CPC, não se verificando a apontada ilegitimidade activa, por preterição de litisconsórcio necessário, do que decorre serem os autores partes legítimas para a presente acção.

Pelo que, quanto a esta questão, procede o recurso, declarando-se os autores partes legítimas para a propositura da presente acção.

 

B. Se, no que respeita aos pedidos relacionados com a petição da herança, têm os mesmos de improceder, com fundamento em a autora não ter demonstrado a sua qualidade de herdeira de  B… e, ainda, se tal qualidade in casu só pode ser provada através das certidões do registo civil.

Relativamente a esta questão, considerou o Tribunal a quo que a autora não conseguiu provar a sua qualidade de herdeira de B… , pelo que a acção teria de improceder nessa parte (pedidos formulados nas alíneas a) e f), da petição inicial).

A autora refere que fez tudo para conseguir provar a sua qualidade de herdeira de tal herança, o que não conseguiu através do registo civil, o que o Tribunal também não conseguiu fazer, pretendendo fazer prova disso através de outros meios de prova, o que o Tribunal recorrido não lhe permitiu.

Os pedidos contidos nas alíneas a) e f) do petitório, referem-se ao reconhecimento de que a autora é herdeira de  B… e que o prédio justificado pertence à herança de  B… e seja restituído a tal herança.

Assim, nesta parte, tal como considerado na sentença recorrida, estamos perante uma acção de petição de herança, a qual tem como factos constitutivos o reconhecimento judicial do título ou estatuto/qualidade de herdeiro de uma certa e determinada herança e a integração/restituição dos bens que o demandado possui (sem título), no activo dessa herança.

Esta acção pressupõe a declaração prévia da qualidade de herdeiro e subsequente demonstração de que alguém se apropriou de bens da herança, que se pretendem integrar na respectiva massa hereditária.

Ou seja, a declaração judicial da qualidade de herdeiro, integra a causa de pedir da acção de petição da herança, sem cuja demonstração a acção não pode proceder.

Por seu turno, a legitimidade substancial para a propositura de tal tipo de acções, está definida nos artigos 2091.º, n.º 1 e 2078.º, ambos do Código Civil.

A regra geral é a contida no artigo 2091.º, n.º 1, de acordo com a qual, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.

Como todas as regras, comporta excepções e uma delas é a acção de petição da herança, a que se alude no artigo 2078.º, do Código Civil, cf. n.º 1, do artigo 2091.º.

Segundo R. Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra Editora, 1980, pág.s 40/43, a acção de petição da herança, visa o reconhecimento judicial da qualidade sucessória do demandante e a consequente restituição de bens ou parte deles contra os seus possuidores, acrescentando que como “autores, têm legitimidade para a acção de petição da herança não apenas o herdeiro único mas também, sendo vários, qualquer um dos herdeiros, que, nos termos do n.º 1 do art. 2078.º do Código Civil, podem cada um de per si «pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro»”.

Efectivamente, cf. artigo 2078.º, n.º 1, do Código Civil, qualquer dos herdeiros, no caso de serem vários, tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro.

Como acima já referido, não se deu por provado que a autora seja herdeira de B… , com o fundamento em que inexiste certidão do registo civil que o prove, sendo que a prova da filiação só pode ser feita pelos meios previstos no Código de Registo Civil (acesso à base de dados do registo ou por meio de certidão), sendo inadmissível a produção de outra prova, designadamente, testemunhal.

No entanto, cf. consta dos factos provados e reproduzidos nos itens 1.º e 9.º, os factos em causa são anteriores a 1911 (cf. artigo 1.º da p.i., os autores alegam que M… nasceu em 1885 e  N… em 1882).

O primeiro Código de Registo Civil em Portugal, aprovado pelo Decreto com força de lei de 18 de Fevereiro de 1911, foi apenas publicado em 20 de Fevereiro de 1911, cf. Diário do Governo n.º 41, de 20 de Fevereiro de 1911.

Consequentemente, não se pode colher do actual Código de Registo Civil, a solução para o problema da falta ou omissão de registo, porque, às datas em apreço ainda não havia registo civil mas apenas os registos paroquiais.

Por isso é que, cf. informação de fl.s 81, datada de 13 de Julho de 2020, se fez constar que não obstante “várias pesquisas nas bases de dados disponíveis bem como junto da Conservatória de Registo Civil a fim de serem juntos aos autos … (assentos de nascimento) … não foi possível obter tais assentos”.

Como já se referiu, antes do registo civil, os factos relativos ao estado das pessoas constavam dos registos paroquiais, que deixaram de ser utilizados para tal no dia seguinte à entrada em vigor do Código de Registo de 1911 – cf. seu artigo 8.º.

Prevendo-se a necessidade de prova dos factos sujeitos a registo que constavam dos livros paroquiais efectuados até então, concedeu-se, para futuro, o uso dos livros paroquiais e demais meios de prova até então admitidos – cf. seu artigo 7.º.

Por outro lado, no caso de omissão ou erro de registo até então efectuado, nos termos do seu artigo 5.º, permitiu-se o uso de “qualquer outra espécie de prova”, para demonstração ou correcção desse facto sujeito a registo, como excepção ao preceituado no seu artigo 4.º que passou a exigir que, no futuro, tais factos só passariam a poder provar-se pelo registo civil.

Ou seja, contrariamente ao decidido, atento a que se trata de factos sujeitos a registo ocorridos antes de 1911, é possível o recurso a outros meios de prova que não apenas os previstos no registo civil, para demonstrar a veracidade de um facto omisso ou incorrectamente registado.

Em 1.ª linha os livros paroquiais, se ainda existirem, dos quais existe arquivo. Bastará averiguar onde os livros paroquiais em causa se encontram. No caso de assim não ser possível, poderá recorrer-se a outros meios de prova, conforme exposto, designadamente prova testemunhal, tal como requerido pela autora.

De resto, a assim não se considerar, estar-se-ia a violar o disposto no artigo 20.º da CRP, na medida em que se impediria a autora de poder provar o facto em que assenta a sua pretensão.

Consequentemente, impõe-se a revogação da sentença proferida, permitindo-se à autora a demonstração da qualidade de herdeira a que a mesma se arroga, por meios de prova que não apenas os previstos no registo civil.

Pelo que, nesta parte e nesta medida, procede, igualmente, o recurso.

 

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso de apelação, interposto do despacho saneador e da sentença recorrida, na parte em que absolveu os réus da instância, por ilegitimidade activa, declarando-se que os autores são partes legítimas para a presente acção e;

Julgar procedente o recurso de apelação interposto da sentença, revogando-se a sentença recorrida, na parte em absolveu os réus do pedido, quanto aos pedidos formulados pelos autores nas alíneas a) e f), da petição inicial; que se substitui por outra que permite à autora a demonstração da qualidade de herdeira a que a mesma se arroga, por meios de prova que não apenas os previstos no registo civil, como requereu, após o que os autos seguirão os seus ulteriores termos.

Custas, a fixar a final.

Coimbra, 12 de Outubro de 2021.