CONTRATO DE SEGURO
PROVA DESPORTIVA
SEGURO OBRIGATÓRIO
Sumário

Se estamos perante uma prova desportiva e uma prova desportiva em que a organizadora celebrou um contrato de seguro, seguro esse obrigatoriamente previsto para esse tipo de evento, ou seja, se estamos perante um acidente em prova desportiva (com seguro da organização da mesma) e não perante um acidente de viação, o Fundo Garantia Automóvel não é responsável pela reparação dos danos sofridos, do decurso dessa prova, por um espetador.

Texto Integral

Processo n.º 1171/18.5T8LOU-B.P1

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.


Recorrente – B…
Recorrido – Fundo de Garantia Automóvel …

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

1 - B… instaurou a presente ação contra a C…, a D… e o Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia de 7.420€ a título de perdas salariais, da quantia de 745,54€ de despesas, 15.000€ de danos não patrimoniais e do valor de indemnização referente à incapacidade permanente que vier a ser apurada em sede de incidente de liquidação.

2 – Alegou, para tanto, que a primeira ré organiza anualmente as festas de …, nas quais tem sido comum a realização de uma prova para motos, com caráter desportivo e em circuito por si delineado, nas vias públicas da freguesia. No dia 15.08.2016, entre as 14H00 e as 20H00 teve lugar uma prova, licenciada pela Câmara Municipal e onde a Guarda Nacional Republicana cortou as vias e distribuiu elementos, separando os locais de assistência. Contudo, a determinado momento ocorreram dois despistes e o segundo deles, corrido às 18H50, quando o piloto … (E…) e o piloto …(F…) colidiram, atingiu o autor, atropelando-o. Pela primeira ré, foi contratado seguro obrigatório para a prova (art. 6.º, n.º 5 do DL. 291/2007). No entanto, o acidente ocorreu por culpa dos condutores das motas … e … e estas, apenas utilizadas na prova, não são matriculadas nem possuem seguro de responsabilidade civil. Daí a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel, como terceiro réu.

3 – O réu Fundo de Garantia Automóvel (FGA) contestou. Sustentou que os danos cujo ressarcimento se pretende estão liminarmente excluídos do âmbito da garantia legal do FGA, devendo este ser absolvido logo no saneador, sendo certo que, sem conceder, é também parte ilegítima.

4 – No saneador – e no que importa ao recurso – o réu foi absolvido dos pedidos contra si formulados, “nos termos do disposto no artigo 576.º, n.º 3 do Código de Processo Civil”. Fundamentou-se assim o decidido: “(...) o evento trazido à consideração do tribunal ocorreu no contexto das Festas da ...a, numa prova para motorizadas, “A grande prova de velocidade da Romaria da…”. À luz do art. 2.º do Decreto Regulamentar 2-A/2005, de 24 de março, que regulamenta a utilização das vias públicas para a realização de atividades de carácter desportivo, festivo ou outras que possam afetar o trânsito normal, são provas desportivas, para efeitos desse normativo, as manifestações desportivas realizadas total ou parcialmente na via pública com carácter de competição ou classificação entre os participantes. E tal foi o caso”.

II – Do Recurso
5 – Inconformado, o autor apelou, pretendendo a revogação do decidido e concluindo:
…………………………
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6 - O recorrido respondeu ao recurso e sustentou a bondade da decisão apelada, defendendo que a o recurso deve improceder.

7 – O recurso foi recebido nos termos legais e, na Relação, os autos correram Vistos, nada se observando que obste à apreciação do mérito do recurso, cujo objeto, atentas as conclusões do apelante, consiste em saber se a decisão deve ser revogada, porquanto o FGA pode ser responsabilizado pela reparação dos danos invocados pelo autor.

III – Fundamentação

III.I – Fundamentação de facto
8 – Os factos descritos no relatório que antecede mostram-se bastantes ao conhecimento do mérito da apelação.

III.II – Fundamentação de Direito
9 – Em abono do seu entendimento, e no sentido da responsabilidade do FGA, o autor, embora o faça de molde em que nem sempre se perceba o que é e o que não é transcrição, cita dois acórdãos, um desta Relação do Porto e outro do Supremo Tribunal de Justiça[1].

10 – O acórdão desta Relação do Porto é o proferido a 26.11.2019 [relatora, Desembargadora Alexandra Pelayo, dgsi] e tem o seguinte sumário: “I - O veículo automóvel que ao participar numa prova de “Perícia Automóvel”, sai da pista numa curva e vai embater numa pessoa que se encontrava na assistência, “esmagando-o” contra um outro veículo que ali se encontrava, é um acidente ocorrido no âmbito de uma “prova desportiva.” II - A velocidade do desporto automóvel, associada à natureza dos meios utilizados, faz com que tal prova desportiva constitua uma “atividade perigosa” pela sua própria natureza (493.º, nº2 do Código Civil). III - Na sequência desse acidente de viação respondem solidariamente pelos danos causados o condutor do automóvel e os organizadores do evento, sendo que estes não contrataram o seguro obrigatório para provas desportivas e não asseguraram as condições de segurança da corrida. IV - O seguro “especial” de provas desportivas é o único suscetível de cobrir o risco da circulação automóvel no âmbito de provas desportivas, tendo caráter obrigatório, sem o qual a prova desportiva não pode ser autorizada. V - O Fundo de Garantia Automóvel, em caso de omissão do seguro obrigatório pelos organizadores da prova desportiva, garante a reparação dos danos sofridos por um espectador duma prova desportiva, envolvido num acidente rodoviário ocorrido no decurso de tal evento”.

11 – Refere-se no citado acórdão, além do mais, o que ora se transcreve e sublinha: “(...) Todas estas circunstâncias apontam para que estejamos perante uma prova desportiva. Não é o facto da mesma se não encontrar devidamente licenciada pelas entidades competentes, ou seja a Câmara Municipal do concelho e a Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting ou da entidade que tiver competência legal, no âmbito do desporto automóvel, para aprovar as provas (cide [sic] art.3º do Decreto Regulamentar n.º 2-A/2005, de 24 de Março citado), que lhe retira a natureza de prova desportiva, apenas a remetendo para o conceito de “prova desportiva ilegal”, ou seja, de prova desportiva realizada à margem das legais imposições (...) O Tribunal a quo, no que concerne ao peticionado em relação ao FGA, afastou sumariamente a responsabilidade daquele organismo, com o seguinte argumento: “No caso sub judice temos por assente que o acidente dos autos ocorreu no âmbito de uma prova desportiva, onde não funciona o seguro de responsabilidade civil obrigatório, tendo que existir um seguro próprio como se viu, pelo que o FGA não responde neste tipo de situação (cfr., também, o Ac. da RC de 26/03/96, CJ, A.21, Tomo II (1996), pp. 24/31).” Ora, ponderando-se a relevância do papel do Fundo de Garantia Automóvel na satisfação das indemnizações aos lesados, que constituem manifestamente a parte mais vulnerável e desprotegida no âmbito dos acidentes de viação, pensamos que a questão merece uma maior reflexão. Temos de concordar com o Fundo de Garantia Automóvel quando diz que o seguro obrigatório de circulação automóvel exclui indemnização por “danos ocorridos durante provas desportivas e respetivos treinos oficiais.” É isso que resulta expressamente do disposto no art. 14º nº 4 al e) do DL 291/2007 de 21 de Agosto (com teor equivalente ao que dispunha o art. 7º nº 4 al f) do DL 522/85 de 31.12.). Ou seja, o seguro obrigatório de circulação automóvel do veículo causador do acidente dos autos, exclui a cobertura de danos ocorridos em provas desportivas e treinos. Isto é compreensível em face daquilo que já foi dito, do aumento considerável do risco que ocorre por causa da velocidade nas provas desportivas. Daí que a lei exija para este tipo de atividade desportiva, um seguro diferente, que não o mero seguro de circulação automóvel. Apenas o seguro especial de provas desportivas é suscetível de cobrir o risco da circulação automóvel no âmbito de provas desportivas. Daí que argumentação do Apelante não possa colher com este fundamento. Porém, porque o seguro de provas desportivas é também ele um seguro obrigatório, torna-se pertinente questionar se o FGA é chamado ou não a garantir as indemnizações, no caso de omissão do seguro obrigatório pelos organizadores de uma prova desportiva. O art, 14º citado, ressalva expressamente os seguros celebrados ao abrigo do art. 8º, dizendo “Excluem-se da garantia do seguro quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respetivos treinos oficiais, salvo tratando-se do seguro celebrado ao abrigo do art. 8º”. Isto significa que apenas o seguro “especial” de provas desportivas é suscetível de cobrir o risco da circulação automóvel, no âmbito de provas desportivas. Resta saber se o Fundo de Garantia Automóvel responde subsidiariamente no caso de tal seguro de provas desportivas ter sido omitido pelos responsáveis pela sua celebração, no caso os RR organizadores da prova desportiva (...) Em recente acórdão do STJ de 12.6.2017, relatado pelo Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas e disponível in dgsi, (no qual foi a seguradora do veiculo automóvel causador dos danos, responsabilizada pelos danos causados a pessoas que assistiam a uma “street racing” ilegal, tendo-se entendido que as “street racings” não são provas desportivas), o Supremo Tribunal de Justiça chama a atenção para a evolução da dogmática do seguro de responsabilidade civil, decorrente nomeadamente da legislação europeia e da jurisprudência do TJUE (...) O FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL surgiu na sequência da diretiva 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda diretiva), tendo por missão reparar os danos materiais ou corporais causados por veículo não identificado ou relativamente ao qual não tenha sido cumprida a obrigação de segurar (art.º 1º, n.º 4). Nas normas relativas à obrigatoriedade do seguro automóvel, ressalta a Diretiva 72/166/CEE do Conselho de 24.04.1972 (...) cumprirá agora debruçarmo-nos sobre o Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que transpôs para a ordem jurídica nacional a 5ª diretiva e que revogou no seu art. 94º o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro que instituiu o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (...) O art. 4.º estabelece a obrigação de seguro relativamente a: Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei, apenas excluindo desta norma a circulação dos veículos de caminhos de ferro, com exceção, seja dos carros elétricos circulando sobre carris, veículos ao serviço dos sistemas de Metro e veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais (nº 2, 3 e 4 da norma citada).
O artigo 6.º estabelece de seguida, sobre quem recai a obrigação de seguro obrigatório (...) 5 - Quaisquer provas desportivas de veículos terrestres a motor e respetivos treinos oficiais só podem ser autorizados mediante a celebração prévia de um seguro, feito caso a caso, que garanta a responsabilidade civil dos organizadores, dos proprietários dos veículos e dos seus detentores e condutores em virtude de acidentes causados por esses veículos. Podemos daqui concluir, que se mostra instituído neste diploma legal que tem como objeto a aprovação do “regime do sistema obrigatório de responsabilidade civil automóvel” (cfr. art. 1º do diploma) um seguro obrigatório de responsabilidade civil que podemos apelidar de “especial” diretamente direcionado para a cobertura dos danos ocorridos no âmbito daquilo que classificamos supra como sendo uma “atividade perigosa” , que são as “provas desportivas e treinos oficiais” que garanta a responsabilidade civil dos organizadores, dos proprietários dos veículos e dos seus detentores e condutores em virtude de acidentes causados por esses veículos (...) vejamos agora quais as exclusões legais deste seguro. Do seguro obrigatório de provas desportivas automóveis encontra-se excluída a responsabilidade dos organizadores relativamente aos participantes na corrida e suas equipas e veículos por aqueles utilizados, bem como os danos causados aos próprios organizadores e pessoas ao seu serviço e colaboradores. Estes danos estão excluídos da proteção do seguro obrigatório de provas desportivas. Não estão, porém, excluídos da cobertura deste seguro obrigatório, os danos causados aos espetadores da prova desportiva, ou meros peões que se encontrem no local, os quais constituem, reconhecidamente a parte mais vulnerável no acidente que possa ocorrer. Conclui-se assim que, a ter sido realizado o seguro obrigatório pela Comissão Organizadora da prova desportiva em causa, como deveria ter acontecido, os danos sofridos pelo Autor estariam cobertos pelo mesmo. Aqueles organizadores porém, omitiram a realização do seguro, respondendo como pessoas civilmente responsáveis pelo mesmo, restando agora saber se o FGA responde subsidiariamente relativamente àqueles Organizadores, que é questão fulcral que ora se coloca (...) Nos termos do n.º 1 do artigo 48.º do citado diploma, o FGA satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados (...) No caso das provas desportivas o responsável pela circulação dos veículos nas pistas que reservaram para o efeito é a comissão organizadora da prova, entidade sobre quem recai a obrigação e segurar, nos termos do já citado art. 6º nº 5. Daqui decorre a nosso ver que instituindo a lei obrigatoriedade de seguro para as provas desportivas, o FGA só não será responsável pela ocorrência de um acidente rodoviário ocorrido durante tal evento – veículo que sai da pista descontrolado e embate num espetador - se a lei expressamente excluir da responsabilidade do FGA tal responsabilidade. E é verdade é que a lei estabelece várias exclusões, elencadas no art. 52º, que desde logo manda aplicar as exclusões previstas para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. Como vemos este seguro exclui no seu art. 14º nº 4 al e), “Quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respetivos treinos oficiais, salvo tratando-se de seguro celebrados ao abrigo do artigo 8º.” Expressamente a lei ressalva desta exclusão, os seguros celebrados ao abrigo do artigo 8º e este como vimos não exclui da garantia do seguro previsto no n.º 5 do artigo 6.º, os danos ocorridos no decurso de uma prova desportiva causados aos espetadores da mesma. Também não se mostram tais danos excluídos pelo nº 2 do art. 52º, concluindo-se assim pela responsabilidade subsidiária do Réu FGA no pagamento da indemnização ao aqui Autor, com posterior sub-rogação dos direitos do lesado, nos termos do disposto no art. 54º do DL 291/2007”.

12 – Por seu turno, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que é citado [acórdão de 12.06.2017; relator, Conselheiro Sebastião Póvoas, dgsi] tem, no que aqui releva, o seguinte sumário: “(...) 7) O seguro desempenha uma relevante função social a ser vista na perspetiva do lesado. 8) Atualmente, e com a nova lei do contrato de seguro da responsabilidade civil automóvel (Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 da Agosto a transpor a 5.ª Directiva – Directiva 2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio) com tónica na quase irrestrita proteção do lesado é de afirmar que o seguro em apreço se traduz num contrato a favor de terceiro. 9) Fica, em consequência, indiscutível que o legislador quis precipuamente defender/proteger os interesses e os direitos dos lesados em acidentes de viação, sendo estes caracterizados como eventos consequentes da “má” condução automóvel ou dos riscos próprios da circulação de veículos, quer nas vias públicas quer nas abertas à livre circulação independentemente da respetiva afetação ou domínio. 10) O conceito de “acidente de viação” tem de ser bosquejado, perspetivado, a partir da vítima, ou seja, da pessoa que sofre danos (patrimoniais ou morais) com nexo causal entre esses e o evento (...) 13) As corridas não legais – “street racings” – por organizados sem sujeição à disciplina do Decreto-Regulamentar n.º 2-A/2005 de 24 de Março, não são consideradas provas desportivas de automóveis”.

13 – E refere-se, além do mais, no texto do aludido acórdão, o que ora se transcreve e sublinha: “(...) O Decreto Regulamentar n.º 2-A/2005, de 24 de Março dispõe as regras das provas desportivas de automóveis. E são de salientar o relatório preambular e os três primeiros artigos (...) Ora, “in casu”, o que ocorreu foi uma mera “corrida” ilegal, por não licenciada , mas apenas acordada entre os participantes. Não se demonstrou a existência de qualquer organização, mas de simples e anárquica “street racing”, com a consequente violação ostensiva das normas que regem a circulação rodoviária, designadamente em termos de velocidade, consideração, diligência, tendo, a montante, uma habilitação legal para conduzir (...) Do exposto, resulta a validade do seguro e a consequente responsabilidade da Ré-seguradora, sem prejuízo desta poder exercer o direito de regresso contra o condutor por este estar indocumentado e, caso o demonstre, ter agido com dolo”.

14 – No acórdão da Relação de Guimarães de 7.11.2019 [relator, Desembargador José Amaral, dgsi], e tal como resulta do seu sumário, conclui-se pela responsabilidade do FGA, por se ter considerado que o evento em causa não era uma prova desportiva: “1. Pelas consequências, derivadas para um terceiro lesado, de um acidente ocorrido no contexto e dinâmica de um Raid com a participação de veículos motorizados mas que, à luz do artigo 2º, do Decreto Regulamentar nº 2-A/2005, de 24 de Março, não é considerado prova desportiva, por não ter carácter de competição nem classificação entre os participantes, e cujo veículo e condutor não foram identificados, responde o Fundo de Garantia Automóvel, nos termos do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, não se aplicando a exclusão a que se refere o artigo 14º, nº 4, alínea e), mas sim o nº 1, do artº 47º. 2. Não se tendo provado que o evento tinha carácter de competição ou classificação, nem que, portanto, alguma razão especial houvesse para, da circulação dos veículos nele participantes, ainda que num contexto algo fora do normal e não imune à violação, quiçá até mais atreita, de regras estradais, no percurso que dele fazia parte, resultasse expectável qualquer perigo próprio especificamente decorrente da sobre utilização das máquinas e do emprego da perícia dos seus timoneiros em vista e na porfia por cada um suplantar os outros enquanto adversários e alcançar a melhor classificação, o mesmo não é de considerar prova desportiva para o efeito de ser exigido seguro específico”, sendo exatamente esse o objeto relevante do recurso, porquanto – e citamos – tratava-se de “averiguar e decidir se o evento de que tratam estes autos e espelhado na factualidade pertinente retratada no elenco supra transcrito, eclodiu no contexto e dinâmica de uma “prova desportiva” (ou constitui, quanto ao autor como terceiro lesado, um acidente de viação que extravasa a “prova” descrita, imputável a participantes cuja identidade se desconhece) e, por isso, não é o FGA (ao contrário do que se decidiu na sentença) por ele responsável, nos termos do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto, aplicando-se a exclusão prevista na alínea e), do nº 4, do artº 14º, e não o disposto no nº 1, do seu artº 47º, já que in casu o risco próprio da referida atividade (decorrente de o veículo causador estar então a funcionar como “veículo desportivo/competição”) devia estar coberto pelo específico seguro obrigatório de “provas desportivas” a que alude o artigo 8º” (sublinhado nosso).

15 – As citações da jurisprudência que antecedem permitem-nos apreciar o mérito do presente recurso de modo claro e, salvo melhor opinião, evidente.

16 – Tenha-se presente que o autor demandou a entidade organizadora da prova, a seguradora que com esta celebrou um contrato de seguro, e o FGA, esclarecendo que o evento em causa era uma prova desportiva devidamente autorizada, licenciada e vigiada pela autoridade policial. Esclareceu igualmente – e repetidamente[2]– que foi celebrado, entre a primeira ré e a seguradora (segunda ré) um contrato de seguro nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 291/2007 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel).

17 – Assim, estamos perante uma prova desportiva (ao contrário do que sucedia nas situações apreciadas pelo Supremo e pelo Tribunal da Relação de Guimarães, citadas) e estamos perante uma prova desportiva em que a organizadora celebrou um contrato de seguro, seguro obrigatoriamente previsto para esse tipo de evento (ao contrário do que sucedia na situação apreciada por este Tribunal da Relação, igualmente citada).

18 – Note-se ainda que o apelante, ao longo do seu recurso, nunca infirma a realidade (prova desportiva e seguro) antes referida, o que bem se compreende, porquanto as sustenta ao longo da ação.

19 – Dito isto, parece-nos evidente que a eventual responsabilidade do FGA só podia decorrer do facto de estarmos, não perante um acidente em prova desportiva, mas de um acidente de viação.

20 – De acordo com o disposto no artigo 151 do Código da Estrada (Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio), “A autorização para realização, na via pública, de provas desportivas de veículos a motor e dos respetivos treinos oficiais depende da efetivação, pelo organizador, de um seguro que cubra a sua responsabilidade civil, bem como a dos proprietários ou detentores dos veículos e dos participantes, decorrente dos danos resultantes de acidentes provocados por esses veículos”.

21 – Conforme dispõe o n.º 5 do artigo 6.º do Decreto–Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, “Quaisquer provas desportivas de veículos terrestres a motor e respetivos treinos oficiais só podem ser autorizados mediante a celebração prévia de um seguro, feito caso a caso, que garanta a responsabilidade civil dos organizadores, dos proprietários dos veículos e dos seus detentores e condutores em virtude de acidentes causados por esses veículos”, esclarecendo o artigo 8.º do mesmo diploma que “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 14.º, excluem-se da garantia do seguro previsto no n.º 5 do artigo 6.º os danos causados aos participantes e respetivas equipas de apoio e aos veículos por aqueles utilizados, bem como os causados à entidade organizadora e pessoal ao seu serviço ou a quaisquer seus colaboradores. 2 - Quando se verifiquem dificuldades especiais na celebração de contratos de seguro de provas desportivas, o Instituto de Seguros de Portugal, através de norma regulamentar, define os critérios de aceitação e realização de tais seguros”.

22 – O artigo 52, n.º 1, ainda do mesmo diploma legal, dispõe que “São aplicáveis ao Fundo de Garantia Automóvel as exclusões previstas para o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel” e o artigo 14 (Exclusões) prevê, na alínea e) do seu n.º 4 que [se excluem] “Quaisquer danos ocorridos durante provas desportivas e respetivos treinos oficiais, salvo tratando-se de seguro celebrados ao abrigo do artigo 8.º”.

23 – Dos normativos citados resulta, salvo melhor entendimento, a irresponsabilidade do FGA para a reparação dos danos invocados pelo autor e, por isso, nada vemos a censurar à decisão recorrida.

24 – Atenta a improcedência do recurso, as custas são a cargo do apelante, mas sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.

IV – Dispositivo
Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em conformidade, confirma-se o despacho recorrido.

Custas pelo apelante.

Porto, 6.09.2021
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
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[1] Quanto a este, do Supremo Tribunal de Justiça, não se percebe com clareza se o cita diretamente, se cita o acórdão desta Relação, que expressamente o cita.
[2] Dizemo-lo assim, porquanto, tendo a seguradora demandada invocado a sua ilegitimidade, sustentando a existência de um seguro em benefício da organizadora e meramente facultativo, o autor respondeu a essa exceção (que veio a ser julgada improcedente) vincando a natureza obrigatória do seguro em causa e a possibilidade de a seguradora ser diretamente demandada.