DEVER DE ASSISTÊNCIA DOS CÔNJUGES
PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
CÔNJUGES SEPARADOS
PROVIDÊNCIA CAUTELAR DE ALIMENTOS PROVISÓRIOS
Sumário

I) Na constância do casamento a prestação de alimentos decorre do dever de assistência, que se traduz num dever de auxílio e de contribuição para os encargos da vida familiar – cfr. artigos 1675.º, n.º 1 e 2015.º do CC – dever que se mantém durante a separação de facto, se esta não for imputável a qualquer dos cônjuges – cfr. artigo 1675.º, n.º 2, do CC.
II) Enquanto os alimentos decorrem da necessidade de garantir a subsistência da pessoa desprovida de rendimentos, o dever de contribuir para os encargos da vida familiar radica na ideia de solidariedade entre os membros da família.
III) A prestação de alimentos entre os cônjuges, vivendo estes em conjunto, é absorvida nos encargos da vida familiar, mas adquire autonomia, no caso de os cônjuges se encontrarem separados (de direito ou de facto).
IV) O meio processual previsto no artigo 992.º do CPC pressupõe que persista uma economia comum entre os cônjuges/existência de vida familiar. Deste modo, inexistindo tal economia comum, em virtude de separação de facto, deve o cônjuge carecido de alimentos instaurar procedimento cautelar de alimentos provisórios e não socorrer-se deste processo especial.
V) Sendo instaurado indevidamente o processo especial previsto no artigo 992.º do CPC, em vez do procedimento cautelar de alimentos provisórios (regulado no artigo 384.º e ss. do CPC), deve ser ponderada a convolação oficiosa para este procedimento, nos termos do artigo 193.º, n.º 3, do CPC, sendo a tramitação sobreponível (cfr. artigo 992.º, n.º 2, do CPC) e não obrigando à prática de atos processuais concretamente inconciliáveis.

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
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1. Em 17-12-2020, a recorrente instaurou contra o recorrido a presente ação com processo especial, pedindo o reconhecimento do seu direito à participação do réu nos encargos domésticos próprios da vida familiar, sendo o mesmo condenado a entregar-lhe quantia não inferior a € 250,00 mensais.
Alegou, para tanto e em síntese, que nasceu em 28-11-1959, tendo atualmente 70 anos de idade, sendo casada com o réu, no regime supletivo de comunhão de adquiridos, desde 17-10-1975, tendo um filho em comum, nascido em 11-07-1976, que se encontra desempregado e sem subsídio ou prestação social, residindo com os pais de quem é financeiramente dependente. Há alguns meses, o requerido abandonou a casa de morada de família, deixando desde então de contactar com a autora e de concorrer para os encargos domésticos próprios da vida familiar do casal que identificou e que totalizou em € 640,00, valor substancialmente superior ao rendimento mensal da Autora, decorrente de pensão de velhice, no valor actual de € 334,00.
Concluiu que se encontra manifestamente impossibilitada de suportar as despesas domésticas comuns do casal e garantir a satisfação de necessidades básicas suas e do filho comum, incumbindo ao réu o dever de assistência e de alimentos previstos nos artigos 1675º e 2015º do Código Civil, aos quais se encontra obrigado durante a constância do matrimónio e que o mesmo pode prestar, em função da pensão de velhice de € 630,00 por si percebida.
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2. Em 06-01-2021, a autora veio juntar aos autos a decisão – transitada em julgado - proferida, em 16-…-2020, no processo n.º …/20…., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Local Cível de … – Juiz …, que, julgando procedente a exceção da incompetência absoluta do referido Juízo Local em razão da matéria, indeferiu liminarmente a petição inicial.
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3. Em 27-01-2021, nos presentes autos foi proferida a seguinte decisão:
“Vem a Requerente, ao abrigo do artigo 992.º do Código de Processo Civil, propor o presente processo de jurisdição voluntária de contribuição do cônjuge para as despesas domésticas.
Para o efeito, alega que, desde há alguns meses, e por motivo que a Autora não pôde apurar, o Requerido abandonou a casa de morada de família e que, desde então, deixou de contactar a Autora e de concorrer para os encargos domésticos próprios da vida familiar do casal. Atentas as dificuldades económicas alegadas, decorrente do filho maior se encontrar desempregado e de auferir € 334,00 de pensão de alimentos, conclui despender em encargos mensais (para si, para o filho e referentes à casa), cerca de € 640,00. Conclui que impende sobre o Requerido a obrigação de contribuir para as despesas domésticas elencadas no requerimento inicial, pelo que pede que o Requerido contribuía com quantia mensal nunca inferior a € 250,00.
Cumpre apreciar liminarmente:
Estabelece o artigo 992.º, n.º 1 do Código do Processo Civil que «O cônjuge que pretenda exigir a entrega direta da parte dos rendimentos do outro cônjuge, necessária para as despesas domésticas, indica a origem dos rendimentos e a importância que pretenda receber, justificando a necessidade e razoabilidade do montante pedido.».
Por sua vez, estipula o artigo 1675.º do Código Civil que:
«1. O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar.
2. O dever de assistência mantém-se durante a separação de facto se esta não for imputável a qualquer dos cônjuges.
(…)».
Pode, assim, concluir-se que do dever de assistência decorrem duas obrigações distintas: o dever de prestar alimentos e o dever de contribuir para os encargos da vida familiar. E a esses dois tipos de obrigações correspondem meios processuais distintos para a sua efetivação pelo cônjuge que acione o seu direito (a alimentos ou à contribuição do outro para os encargos da vida familiar):
a)a ação por alimentos, sem prejuízo de peticionar alimentos provisórios;
b)o processo de jurisdição voluntária com pedido de contribuição do cônjuge para as despesas domésticas.
Coloca-se a questão de saber quando se deve optar por um ou outro meio processual!
Entende-se que, tendo ocorrido uma situação de separação de facto, com a saída de um dos cônjuges de casa e, não obstante o dever de assistência se manter, o dever de contribuir para os encargos da vida familiar deixa de fazer sentido na medida em que a vida familiar desapareceu, deixando de haver a comunhão de vida que baseava a existência de despesas ocorridas nessa mesma comunhão. Nestes casos, em nosso entendimento, subsiste o dever de prestar alimentos nos termos do artigo 1675.º nº 1 do Código Civil. Para esse efeito, deverá o cônjuge carenciado propor uma ação de alimentos contra o outro cônjuge peticionando alimentos que a si serão devidos e, se necessário, o procedimento prévio de alimentos provisórios.
Nos restantes casos em que não tenha ocorrido separação de facto, mas em que haja incumprimento de um dos cônjuges do dever de assistência, o meio processual próprio a utilizar, em caso de necessidade, é o previsto no artigo 992.º do Código de Processo Civil, ou seja, o recurso ao processo de jurisdição voluntária traduzido na contribuição do cônjuge para as despesas domésticas.
Neste processo, o cônjuge visado pelo incumprimento do outro pode exigir a entrega direta da parte dos rendimentos deste que corresponda a quanto se mostra necessário para fazer face às despesas domésticas, situação que se deverá manter enquanto subsistir o incumprimento e enquanto se mantiver a vida em comum.
Assim, atenta a alegação apresentada pela Requerente e uma vez que as partes se encontram separadas de facto, não recai sobre o Requerido o dever de contribuir para os encargos da vida familiar, já que esta terminou.
Face a todo o exposto, e por a pretensão formulada pela Requerente ser manifestamente improcedente/infundada à luz da causa de pedir invocada, ao abrigo do artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, indefere-se liminarmente o requerimento inicial apresentado.
Custas pela Requerente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Valor da causa: o indicado.
Registe e notifique (Requerente e Ministério Público) (…)”.
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4. Não se conformando com a referida decisão, a requerente EF, em 28-01-2021, apresentou requerimento de interposição de recurso de apelação e respetiva alegação, concluindo pela revogação da decisão e sua substituição por decisão que determine a citação do demandado e a subsequente tramitação do processo, tendo formulado as seguintes conclusões:
“I. O entendimento invocado na Sentença Recorrida para justificar o indeferimento liminar do pedido da Autora – a impossibilidade de recorrer ao meio processual previsto no artigo 992º do CPC (Acção Especial de Contribuição do Cônjuge para Despesas Domésticas) quando as partes se encontrem separadas de facto – infringe lei expressa que determina precisamente o contrário.
II. O número 1 do artigo 1675º do Código Civil determina como conteúdo do dever de assistência a cônjuge, inerente à subsistência do matrimónio, as obrigações de prestar alimentos e contribuir para as despesas domésticas. O número 2 do mesmo artigo ressalva expressa e inequivocamente a manutenção daquele dever durante a separação de facto do casal, sem excluir ou excepcionar nenhuma das obrigações daí decorrentes, designadamente a de contribuir para as despesas comuns do casal.
III. A descrita interpretação do Tribunal Recorrido revela-se abusiva e totalmente desfasada da letra da norma consagrada no artigo 1675º do Código Civil e, portanto, legalmente inadmissível nos termos previstos no artigo 9º.2 do mesmo código: Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.
IV. A descrita interpretação não contende apenas com a letra mas com o espírito da lei, já que da sua aplicação resultaria uma solução necessariamente aberrante, que a esvaziaria de qualquer alcance prático: o beneficiário do dever de assistência só poderia accionar o cônjuge obrigado, mediante processo especial de contribuição para as despesas domésticas, quando mantivessem a plena comunhão de vida (1577º) e coabitação (1672º) conjugal!
V. Careceria, com efeito, de qualquer utilidade prática um meio de litigância processual que só poderia ser accionado entre cônjuges que mantenham a coabitação e a cooperação próprias da plena comunhão conjugal.
VI. Ao considerar que com a separação de facto cessam todas as despesas domésticas susceptíveis de integrar o carácter comum abrangido pelo dever de assistência, a Sentença Recorrida conclui pela exclusão de outras que, podendo assumir aquele carácter, não são necessária nem directamente decorrentes da coabitação entre os cônjuges.
VII. Perante este quadro genérico e naturalmente sujeito a discussão, ao substituir-se ao Demandado no ónus de alegação, fundamentação e demonstração do carácter não doméstico ou conjugal das despesas concretamente invocadas pela Autora, a Sentença Recorrida infringiu os princípios processuais previstos nos artigos 5º.1, 574º, 579º, 608º.2 do CPC e 342º.2 do Código Civil (…)”.
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5. Em 02-02-2021 foi proferido despacho de admissão do recurso, como apelação, a subir nos autos e com efeito devolutivo.
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6. Não foi apresentada resposta.
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7. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , a única questão a decidir é a de saber:
A) Se deve ser revogada a decisão recorrida de 27-01-2021, por violação do disposto nos artigos 5º, n.º 1, 574º, 579º, 608º n.º 2 e 992.º do CPC e nos artigos 342.º, n.º 2 e 1675.º do CC?
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3. Fundamentação de facto:
Com pertinência para a decisão do presente recurso e com fundamento nos actos praticados no presente processo, mostra-se assente a factualidade constante do relatório.
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4. Fundamentação de Direito:
De acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 2, do CPC, “versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Vejamos, pois, o recurso apresentado, apreciando a questão enunciada.
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A) Se deve ser revogada a decisão recorrida de 27-01-2021, por violação do disposto nos artigos 5º, n.º 1, 574º, 579º, 608º n.º 2 e 992.º do CPC e nos artigos 342.º, n.º 2 e 1675.º do CC?
A decisão recorrida indeferiu liminarmente a pretensão da recorrente.
Concluiu-se na decisão recorrida que do dever de assistência decorrem os de prestação de alimentos e de contribuição para os encargos da vida familiar, correspondendo a esses dois tipos de obrigações correspondem meios processuais distintos: a)a ação por alimentos, sem prejuízo de peticionar alimentos provisórios; b)o processo de jurisdição voluntária com pedido de contribuição do cônjuge para as despesas domésticas.
Mais se considerou, na decisão recorrida, que “tendo ocorrido uma situação de separação de facto, com a saída de um dos cônjuges de casa e, não obstante o dever de assistência se manter, o dever de contribuir para os encargos da vida familiar deixa de fazer sentido na medida em que a vida familiar desapareceu, deixando de haver a comunhão de vida que baseava a existência de despesas ocorridas nessa mesma comunhão. Nestes casos, em nosso entendimento, subsiste o dever de prestar alimentos nos termos do artigo 1675.º nº 1 do Código Civil. Para esse efeito, deverá o cônjuge carenciado propor uma ação de alimentos contra o outro cônjuge peticionando alimentos que a si serão devidos e, se necessário, o procedimento prévio de alimentos provisórios”, pelo que, encontrando-se as partes separadas de facto, concluiu-se que “não recai sobre o Requerido o dever de contribuir para os encargos da vida familiar, já que esta terminou”.
Considera a recorrente que há três argumentos que concorrem para a invalidade legal do entendimento levado a efeito na decisão recorrida: “(…) (i) desde logo, e essencialmente, ser absolutamente contrário a lei expressa; (ii) conduzir a uma solução prática absolutamente aberrante; (iii) traduzir-se numa substituição indevida ao ónus de alegação e impugnação que compete ao demandado.
3. Quanto ao primeiro: é a própria Sentença Recorrida que identifica e transcreve a norma legal constitutiva do direito exercido pela Autora: O número 1 do artigo 1675º do Código Civil que, ao prever o dever de assistência do cônjuge na constância do matrimónio, o decompõe em duas obrigações essenciais: (i) prestar alimentos e (ii) contribuir para as despesas domésticas.
4. No número 2 do mesmo artigo, e conforme igualmente reconhecido na Sentença Recorrida, o legislador teve o cuidado de ressalvar expressamente que aquele dever de assistência se mantinha – em ambas as suas vertentes obrigacionais (alimentos e contribuição para despesas domésticas), já que não excepciona nenhuma – durante a separação de facto entre os cônjuges.
5. Concluir que uma delas, afinal, não se mantém durante a separação de facto, constitui uma interpretação jurídica gratuita, abusiva e absolutamente desfasada da letra da norma consagrada no artigo 1675º do Código Civil.
6. Interpretação que estava manifestamente vedada ao Tribunal Recorrido nos termos do princípio previsto no artigo 9º.2 do Código Civil: Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal.
7. Acresce ainda que a descrita interpretação não contende apenas com a letra da lei mas também com o seu espírito, na exacta medida em que da sua aplicação resultaria uma solução necessariamente aberrante: o beneficiário do dever de assistência só poderia accionar o cônjuge obrigado a comparticipar nas despesas domésticas quando mantivessem a plena comunhão de vida (1577º) e coabitação (1672º) conjugal!
8. Cumpre perguntar – e o Tribunal Recorrido tem a faculdade de o esclarecer – qual seria a utilidade de um meio processual que só pode ser accionado contra um cônjuge com o qual se mantém a coabitação e a cooperação próprias da plena comunhão conjugal? Não ficaria esse meio processual absolutamente vazio de qualquer alcance prático? Terá sido essa a intenção do legislador ao prevê-lo expressamente no artigo 992º do CPC?
10.Finalmente, ao considerar que com a separação de facto cessam todas as despesas domésticas susceptíveis de integrar o carácter comum abrangido pelo dever de assistência, a Sentença Recorrida conclui pela exclusão de outras que, assumindo aquele carácter, não são necessaria nem directamente decorrentes da coabitação entre os cônjuges.
11. Perante este quadro genérico e naturalmente sujeito a discussão, será ónus do demandado, e não do Tribunal Recorrido, a alegação, fundamentação e demonstração do carácter não doméstico ou conjugal das despesas concretamente invocadas pela Autora (…)”.
Vejamos:
Líquido se verifica que requerente e requerido são casados entre si, muito embora se encontrem separados de facto.
No artigo 1671.º do CC consagra-se o fundamental princípio da igualdade dos cônjuges, no que respeita ao exercício de direitos e deveres.
De acordo com o disposto no artigo 1672.º do CC, “os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência”.
De harmonia com o previsto no n.º 1 do artigo 1675.º do CC, “o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar”.
O dever de assistência - que o artigo 1675.º do CC desmembra do dever de cooperação - abrange apenas a assistência material a que os cônjuges estão reciprocamente vinculados.
O dever de assistência decompõe-se, assim, em duas vertentes: a obrigação de prestação de alimentos e a obrigação de contribuição para os encargos da vida conjugal.
Pode dizer-se, como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-11-2009 (Pº 235/09.0TMMTS.P1, rel. RAMOS LOPES) que “a obrigação de alimentos entre cônjuges (…) dilui-se, na vigência do matrimónio, no dever de mútua assistência, consagrado nos arts. 1672º, 1675º, nº 1 e 2015º do C.C., mas pode vigorar para lá da vigência da sociedade conjugal, nos termos do art. 2016º do C.C. (que, na actual redacção, emergente da Lei 61/2008, de 31/10 – aplicável ao caso dos autos –, determina que cada cônjuge deve prover à sua subsistência, mantendo porém o direito a alimentos, independentemente do tipo de divórcio) – sendo certo que o cônjuge credor não tem o direito de exigir a manutenção do padrão de vida de que beneficiou na constância do matrimónio (art. 2016-A, nº 3 do C.C. – artigo aditado pela Lei 61/2008)”.
Assim, na constância do casamento a prestação de alimentos decorre do dever de assistência, que se traduz num dever de auxílio e de contribuição para os encargos da vida familiar – n.º 1, do artigo 1675.º do CC.
“com o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens nasce a obrigação legal de alimentos, mas desaparece o dever de auxílio mútuo.
Percebe-se, assim, que o dever de prestar alimentos se distingue do dever de contribuir para os encargos da vida familiar.
Enquanto os alimentos decorrem da necessidade de garantir a subsistência da pessoa desprovida de rendimentos, o dever de contribuir para os encargos da vida familiar radica na ideia de solidariedade entre os membros da família.
Os alimentos têm como pressuposto a necessidade do alimentado, enquanto o dever de contribuir para os encargos da vida familiar pressupõe uma comunhão de vida entre os membros da família.
Por último, os alimentos reduzem-se ao que se mostrar necessário à subsistência do credor de alimentos, enquanto o dever de contribuir para os encargos da vida familiar pode envolver encargos com despesas supérfluas do agregado” (assim, Pedro Dias Ferreira; “A pensão alimentar na sequência de divórcio, separação e dissolução da união de facto, sua alteração e cessação”, in III Jornadas de Direito da Família – Diálogo Teórico-Prático; CEJ/Ordem dos Advogados; 2019, pp. 26-27, cujo respetivo e-book se encontra disponível em https://crlisboa.org/docs/publicacoes/jornadas-familia2019/ebook.pdf).
Dito de outro modo: “O dever de assistência, assim substancialmente restringido no seu conteúdo, compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar.
A prestação de alimentos refere-se, neste caso, apenas aos cônjuges, enquanto os encargos da vida familiar se estendem também aos filhos, parentes ou empregados a cargo dos cônjuges.
A prestação de alimentos entre os cônjuges, vivendo estes em conjunto, é absorvida (com a reciprocidade e a globalidade da sua imposição no seio da comunhão de vida matrimonial) nos encargos da vida familiar e só adquire autonomia, em regra, no caso de os cônjuges se encontrarem separados, seja de direito, seja apenas de facto. Nesse caso, em que a prestação alimentícia fica a descoberto por causa da falta de coabitação, a obrigação passa concretamente a recair apenas sobre um dos cônjuges (visando o sustento do outro) e a revestir a forma de uma renda periódica (mensal, semanal, raras vezes anual) pecuniária, pagável antecipadamente.
Se a separação de facto for puramente transitória e acidental, resultando de circunstâncias de força maior ou de facto de terceiro (marido que é mobilizado pelo Exército ou destacado pela empresa para realizar um estágio no estrangeiro, como condição de promoção), o dever recíproco de assistência mantém-se, sofrendo apenas as adaptações adequadas às circunstâncias. No caso de a separação ser duradoura e devida a facto imputável a um dos cônjuges, só este será, em princípio, obrigado a prestar assistência ao outro cônjuge (cônjuge inocente ou menos culpado) (…); se for imputável a ambos, obrigado será o principal culpado. Mas pode, excepcionalmente, o deve de assistência ser imposto a favor também do único ou principal culpado, atendendo o julgador, de modo especial, à duração do casamento ou à colaboração que esse cônjuge tenha prestado à economia do casal (art. 1675.º, 2 e 3)” (assim, Antunes Varela; Direito da Família, Petrony, 1987, pp. 337-338).
O preceito em referência – artigo 1675.º do CC - encontra-se em linha com o disposto no artigo 2015.º do CC, onde se prescreve que, “na vigência da sociedade conjugal, os cônjuges são reciprocamente obrigados à prestação de alimentos, nos termos do artigo 1675.º”.
Como se disse, no caso de separação de facto, a prestação de alimentos e a contribuição para os encargos da vida familiar adquirem autonomia.
Assim, “o dever de assistência entre cônjuges separados de facto compreende a prestação de alimentos por aquele que não prove não lhe ser imputável a separação” (neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-05-2009, Pº 5385/07.5TBALM.S1, rel. SALVADOR DA COSTA).
Como precisam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. IV, Coimbra Editora, 2.ª ed., p. 265), “na expressão legal alimentos cabe tudo quanto seja necessário não apenas ao sustento, mas também à habitação e vestuário do titular do direito (art. 2003.º, n.º 1). E mais do que isso. A plena comunhão de vida que o casamento cria entre os cônjuges implica de algum modo a ilação do seu trem de vida económico e social”.
Por seu turno, “entre os encargos da vida familiar avultam as despesas com a alimentação (compra de géneros, confecção das refeições, bebidas, etc.), vestuário, calçado, higiene, limpeza, roupas, diversões, luz, aquecimento, mobiliário, decoração da casa, pagamento a empregadas, artigos escolares, frequência de aulas no colégio, explicadores para os filhos, etc. (…)” (cfr., Pires de Lima e Antunes Varela; Código Civil Anotado, Vol. IV, Coimbra Editora, 2.ª ed., p. 269).
Em caso de separação de facto, a obrigação de prestar alimentos mantém-se entre os cônjuges em decorrência do dever de assistência que a Lei lhes impõe – artigos 1675.º e 2015.º do CC.
Na verdade, como sabemos, a separação de facto não produz qualquer efeito jurídico de modificação ou extinção da relação matrimonial.
Daí que, conforme se tenha concluído no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01-07-2003 (Pº 3933/2003-7, rel. PROENÇA FOUTO), “a separação de facto não imputável a qualquer dos cônjuges não extingue o dever recíproco de assistência - contribuição para os encargos da vida familiar”.
Todavia, “para deferimento do pedido de contribuição para as despesas domésticas, se houver uma separação de facto entre os cônjuges, deverá o requerente alegar e provar – para além dos demais requisitos – que aquela separação não procede de culpa sua, constituindo esse um facto constitutivo do seu direito (vide artigo 1675.º, n.ºs 2 e 3, do Código Civil)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27-03-2014, Pº 574/13.6TMSTB.E1, rel. CANELAS BRÁS).
Por outro lado, se é certo que, “com as alterações introduzidas pela Lei nº 61/2008, de 31 de Outubro, a culpa dos cônjuges deixou de ser fator relevante, quer para efeitos de decretamento de divórcio - arts. 1781º e 1782º do C. Civil -, quer, ainda, para a atribuição de alimentos – art. 2016º do mesmo diploma. Tendo ficado intocado o regime do art. 1675º do C. Civil, a culpa continua a ter relevância para a fixação de alimentos durante a separação de facto. Nesta, o dever de assistência persiste, apenas cessando nas circunstâncias referidas nos nºs 2 e 3 do citado art. 1675º , pelo que, querendo eximir-se daquele dever, o cônjuge a quem são pedidos os alimentos, tem o ónus de alegar e provar que a separação de facto é imputável ao cônjuge demandante, nos termos do art. 342º, nº 2 do C. Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-03-2015, Pº 6222/14.OT8LRS-A.L1-7, rel. ROSA RIBEIRO COELHO).
Assim, conforme se sintetizou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-02-2021 (Pº 597/19.1T8ETR-A.P1, rel. PAULO DIAS DA SILVA): “Vigorando o casamento, mas estando os cônjuges separados de facto, o dever de assistência, em que se compreende o de prestar alimentos, mantém-se, se a separação não for imputável a qualquer dos cônjuges. Se o for a um deles ou a ambos, nos termos do artigo 1675º, nº 3, do Código Civil, aquele dever só incumbe, em princípio, ao único ou principal culpado, embora o tribunal possa, excepcionalmente, por motivos de equidade, impor esse dever ao cônjuge inocente ou menos culpado, considerando as particulares circunstâncias ali referidas. Na acção de alimentos entre cônjuges separado de facto, compete ao requerente alegar e provar, além dos requisitos da sua necessidade e possibilidade do outro, que a separação não é imputável a qualquer deles; e compete àquele que alegar a culpa ou principal culpa do outro, prová-la.”
Deste modo, mantendo-se o casamento, na situação de separação de facto – cfr. artigo 1675.º, n.º 2, do CC – o dever de assistência mantém-se, se esta não for imputável a qualquer dos cônjuges, sendo que, se a separação for imputável a qualquer deles, o dever de assistência caberá, em principio, ao único ou principal culpado, sem prejuízo de, excecionalmente e por motivos de equidade, o tribunal impor esse dever ao cônjuge inocente ou menos culpado, considerando, em particular, a duração do casamento e a colaboração que o outro cônjuge tenha prestado à economia do casal (cfr. artigo 1675.º, n.º 3, do CC).
Nesta medida, estando requerente e requerido separados de facto (não tendo ainda cessado o vínculo conjugal), a obrigação de alimentos integra-se no dever de assistência conjugal (art. 1675º, nº 2 e 3 do CC) – obrigação que tem natureza e conteúdo diferentes da obrigação de alimentos após a dissolução do vínculo conjugal (arts. 2016º e 2016º-A do C.C.), pois que na separação de facto, a obrigação de alimentos tem a mesma extensão que teria se eles continuassem a viver em comum, recaindo sobre o cônjuge obrigado à prestação de alimentos o dever de assegurar ao outro, não só o indispensável ao sustento, habitação e vestuário, mas ainda, tudo o que seja suficiente para lhe garantir o nível de vida correspondente à condição económica e social da família.
Relativamente ao meio processual para efetivar as correspondentes obrigações, a decisão recorrida seguiu o entendimento formulado, designadamente, por Teresa Silva Tavares e Sofia Vaz Pardal (Alimentos ou contribuição para os encargos da vida familiar?”, Setembro 2017, disponível em: https://familiacomdireitos.pt/alimentos-ou-contribuicao-para-os-encargos-da-vida-familiar/) que se expressaram do seguinte modo:
“De acordo com o artigo 1675.º do Código Civil, um dos deveres decorrentes do casamento é o dever de assistência, o qual se encontra definido no n.º 1 deste artigo, nos seguintes termos:
«1. O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar.»
Mais, prevê o n.º 2 deste artigo que o dever de assistência se mantém durante a separação de facto.
Resulta, pois, de quanto previsto no artigo 1675.º n.º 1 do Código Civil que do dever de assistência decorrem duas obrigações distintas: o dever de prestar alimentos e o dever de contribuir para os encargos da vida familiar.
A estes dois tipos de obrigações correspondem meios processuais distintos para a sua efetivação pelo cônjuge que acione o seu direito (a alimentos ou à contribuição do outro para os encargos da vida familiar): a ação por alimentos – que pode ser precedida ou correr em simultâneo com uma providência cautelar de alimentos provisórios- e o pedido de contribuição do cônjuge para as despesas domésticas.
Quando optar por um e por outro meio processual?
Estando consumada uma situação de separação de facto, com a saída de um dos cônjuges de casa e, não obstante o dever de assistência se manter, a verdade é que o dever de contribuir para os encargos da vida familiar deixa de fazer sentido na medida em que a vida familiar desapareceu, deixando de haver a comunhão de vida que baseava a existência de despesas ocorridas nessa mesma comunhão.
Nestes casos, subsiste o dever de prestar alimentos nos termos do artigo 1675.º nº 1 do Código Civil devendo, para tanto, o cônjuge carenciado propor uma ação contra o outro cônjuge a pedir alimentos, podendo ainda, pedir alimentos provisórios, no quadro de um procedimento cautelar, previsto no artigo 384.º do Código de Processo Civil, requerendo ao tribunal que seja fixada uma quantia mensal a que terá direito e a ser entregue pelo outro cônjuge. Os alimentos provisórios mantêm-se enquanto não houver o pagamento da primeira prestação definitiva fixada na ação definitiva de alimentos.
O recurso ao procedimento cautelar de alimentos provisórios visa colmatar os inconvenientes que decorrem da delonga da ação de alimentos, na medida em que tratando-se de um procedimento cautelar, a sua tramitação é célere, permitindo ao cônjuge carenciado de alimentos fazer face às necessidades do seu dia-a-dia, ainda que o valor que seja fixado no quadro do procedimento cautelar de alimentos provisórios tenda a ser mais baixo do que aquele que vier a ser fixado na ação definitiva de alimentos tomando, nomeadamente em conta que, nos procedimentos cautelares, o tribunal decide com base no que se mostre indiciariamente provado, pelo que a decisão é tomada com menos elementos e com uma prova mais superficial do que aquela que será produzida na ação definitiva.
Nos restantes casos em que não tenha ocorrido separação de facto, mas em que haja incumprimento de um dos cônjuges do dever de assistência, o meio processual próprio a utilizar, em caso de necessidade, é o previsto no artigo 992.º do Código de Processo Civil, ou seja, o recurso ao processo de jurisdição voluntária traduzido na contribuição do cônjuge para as despesas domésticas.
Neste processo, o cônjuge visado pelo incumprimento do outro pode exigir a entrega direta da parte dos rendimentos deste que corresponda a quanto se mostra necessário para fazer face às despesas domésticas, situação que se deverá manter enquanto subsistir o incumprimento e enquanto se mantiver a vida em comum”
Em face deste entendimento - que a decisão recorrida acolheu - formulou-se o juízo de que, perante o alegado pela requerente e uma vez que as partes se encontram separadas de facto, “não recai sobre o Requerido o dever de contribuir para os encargos da vida familiar, já que esta terminou”, indeferindo-se liminarmente o requerimento inicial, por se concluir pela manifesta improcedência da pretensão formulada.
Será assim?
Dispõe o artigo 992.º do CPC (com a epígrafe “Contribuição do cônjuge para as despesas domésticas”) que:
“1 - O cônjuge que pretenda exigir a entrega direta da parte dos rendimentos do outro cônjuge, necessária para as despesas domésticas, indica a origem dos rendimentos e a importância que pretenda receber, justificando a necessidade e razoabilidade do montante pedido.
2 - Seguem-se, com as necessárias adaptações, os termos do processo para a fixação dos alimentos provisórios e a sentença, se considerar justificado o pedido, ordena a notificação da pessoa ou entidade pagadora dos rendimentos ou proventos para entregar diretamente ao requerente a respetiva importância periódica”.
Este normativo sucedeu ao artigo 1416.º do CPC de 1961, que tinha semelhante redação.
No âmbito de vigência deste artigo 1416.º, concluiu-se que, “na situação se separação de facto de cônjuges (…) tem aplicação o instituto estabelecido no art.º 1416 do CPC, sobre contribuição do cônjuge para as despesas domésticas. Processualmente, a providência do art.º 1416 do CPC está para a obrigação de contribuição para os encargos da vida familiar, como a providência da fixação dos alimentos provisórios está para os alimentos definitivos, pelo que respeita à sua satisfação célere” (assim, o Acórdão do STJ de 16-04-1998, Agravo n.º 74/98 - 2.ª Secção, rel. LÚCIO TEIXEIRA, sumariado em Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça- Gabinete dos Juízes Assessores, Anual, 1998, p. 191, disponível no endereço: https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-1998.pdf).
Parece, pois, admitir-se nesta jurisprudência, a possibilidade de, mesmo em caso de separação de facto entre os cônjuges, se lançar mão da providência especial contida no então artigo 1416.º do CPC de 1961, correspondente ao vigente artigo 992.º do CPC de 2013.
Ulteriormente, porém, encontra-se jurisprudência em sentido diverso.
É desta índole o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-02-2013 (Pº 1335/12.5TMLSB.L1-6, rel. TERESA SOARES) onde se concluiu que: “No âmbito da separação de facto entre os cônjuges, saindo um dos cônjuges do lar, embora o dever de assistência se mantenha -art.º 1675 n.º2 e 3.º CC -, a prestação a título de “contribuição para os encargos da vida familiar” deixa de ter justificação, subsistindo nesses casos apenas a prestação da título de alimentos, uma vez que com a separação de facto a vida familiar desmorona-se, deixando de haver a comunhão de vida que implicava a existência de despesas feitas com vista a essa comunhão”.
Explica-se, neste aresto, detidamente o entendimento formulado:
“A providência cautelar de fixação de alimentos provisórios destina-se a dar rápida e temporária concretização ao direito que assistirá ao requerente da providência, de obter do requerido uma prestação alimentícia e enquanto esta não for definitivamente fixada –art.º 399.º n.º1 CPC
Por isso, esta providência é sempre dependente duma acção principal, onde se vá invocar uma relação jurídica que seja constitutiva duma obrigação de prestar alimentos e isso mesmo alega a requerente - que irá instaurar “acção de alimentos”.
No âmbito duma relação conjugal este direito a alimentos tem diferentes manifestações, por via do art.º 1675.º ou do art.º 2009.º, ambos do CC.
No primeiro caso, ele surge em conjunto com a “contribuição para os encargos da vida familiar”, mas tratam-se de duas obrigações distintas, decorrentes da concretização do “dever legal de assistência”, consagrado no art.º 1675.º CC., que é um dos deveres a que os cônjuges ficam vinculados quando celebram o contrato de casamento - art.º 1672.º CC.
Desde logo, são dois tipos de prestação a que correspondem meios processuais próprios para a sua efectivação.
Assim, enquanto ao pedido de “alimentos” corresponde a acção própria comum, que pode ser precedida ou acompanha da providência cautelar nominada de “alimentos provisórios”, o pedido de “contribuição para os encargos da vida familiar” terá que ser exercitado no âmbito de processo de jurisdição voluntária, cujo mecanismo processual está previsto no art.º 1416.º do CPC.
Estudo feito, temos por adquirido que, embora o dever de assistência se mantenha no decorrer da separação de facto dos cônjuges, como expressamente se consagra no art.º 1675 n.º2 e 3.º, a prestação a título de “contribuição para os encargos da vida familiar” deixa de ter justificação, nesses casos, subsistindo apenas a prestação da título de alimentos.
É que, com a separação de facto, saindo um dos cônjuges do lar, a vida familiar desmorona-se, deixa de haver a comunhão de vida que implicava a existência de despesas feitas com vista a essa comunhão.
Se um dos cônjuges deixa de viver na casa que até então era a sua casa de família, para ir viver com outra pessoa, ou sozinho, mas sem fito de voltar a integrar a união desfeita, passando a ter outro lar próprio, não tem justificação válida continuar a impor-se, ao cônjuge que sai, a obrigação de contribuir para uma vida familiar da qual se apartou. Resta então apenas a sua obrigação de prestar alimentos ao cônjuge, ainda no âmbito do dever de assistência -art.º 1675.º - e não ainda ao abrigo do dever geral de alimentos previsto no art.º2009.º a) do CC. e aos demais que a ele tenham direito, por regra, filhos comuns menores.
Este o entendimento partilhado por P.Coelho / Guilherme Oliveira, in Curso de Direito da Família, vol. I, onde, a propósito do dever de alimentos e de contribuição para os encargo da vida familiar, se escreve:” a primeira destas obrigações só tem autonomia em face da segunda quando os cônjuges vivem separados, de direito ou mesmo de facto. Se vivem juntos, o dever de “prestação de alimentos” toma a forma de “dever de contribuição para os encargos da vida familiar”. No caso de separação de pessoas e bens, judicial ou administrativa, e de simples separação de facto, não existe “vida familiar” e não tem sentido falar na obrigação de contribuir para os respectivos encargos” pag. 359.
Igual entendimento é manifestado por Remédio Marques in Algumas Notas sobre Alimentos, pag. 72, nota 99, quando, a propósito do dever de assistência entre cônjuges –art.º 1675.º - e entre pais e filhos, este consagrado no art.º 1874.º, e da satisfação das necessidades de sobrevivência da família, a ser coercivamente exigida, nos termos do art.º 1416.º do CPC, sobre a duração da medida decretada nesse processo, escreve: “O legislador português mostra-se, igualmente, omisso, no tocante à duração desta medida de asseguramento ou consignação judicial (hoc sensu) de parte dos rendimentos (… ) do outro cônjuge para satisfação dos encargos familiares, nas hipótese em que não tenha havido ruptura da vida comum.
De todo o modo, constituindo este expediente um simples paliativo de uma situação de crise familiar gerada pelo incumprimento, por parte de um dos cônjuges, de um dos deveres conjugais, assume-se como uma medida essencialmente interina ou temporária, justificável enquanto se mantiver a vida em comum e o incumprimento do visado.” (sublinhados nossos).
Em idêntico sentido se pronúncia Maria Nazareth Lobato Guimarães, in Reforma do Código civil, 1981, p.191, citada por A.Neto in C.C.Anot. 15.ª ed. em anotação ao art.º 1675.º.
Revertendo para o caso dos autos, assente que está a separação de facto entre as partes e a saída do requerido do lar conjugal, não está o mesmo já sujeito à “contribuição para os encargos da vida familiar.”
Logo, substantivamente não podia ter sido fixada a prestação a esse título.
Também viola as regras de processo a decisão de convolação da providência, pois, como se viu, a contribuição para as despesas domésticas tem processo próprio, que é o do art.º 1416.º do CPC, assumindo também o mesmo natureza de providência cautelar, dado remeter para a tramitação dos alimentos provisórios, donde errado foi o transmudar a presente providência em providência cautelar comum, por a tal obstar, desde logo, o art.º381.ºn.º3 do CPC. Quanto muito poderia era equacionar-se a cumulação das duas providências supracitadas (…)”.
A pretensão formulada pela recorrente expressa-se – e independentemente de qualquer posição do requerido sobre tal alegação, que ainda não ocorreu - no sentido de ser reconhecido o seu direito à participação pelo requerido nos encargos domésticos próprios da vida familiar, em quantia não inferior a € 250,00 mensais.
Vida familiar que, como se viu, em função da separação cessou.
Contudo, se bem se atentar, entre os “encargos domésticos” invocados pela requerente, encontram-se os referentes ao seu sustento, habitação e vestuário, próprios da prestação alimentícia, tal como definida no n.º 1 do artigo 2003.º do CC, pelo que, quanto a estes, se adequaria a utilização do meio processual consistente na providência cautelar de alimentos provisórios, prevista no artigo 384.º e ss. do CPC.
A providência cautelar de alimentos provisórios é daquelas que mais justifica a necessidade da ordem jurídica proteger, devida e antecipadamente, situações de risco, enquanto noutro campo (em sede da ação principal) se faz a discussão serena e a apreciação segura e definitiva da matéria em litígio.
“Os alimentos provisórios funcionam como “primeiro socorro” prestado a quem, em função da idade, das condições físicas ou de circunstâncias de ordem económica ou familiar, se encontra numa situação de carência no que concerne à satisfação do que é essencial para a condição humana” (assim, Abrantes Geraldes; Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. IV, Almedina, 2001, p. 104).
A obrigação (legal) de alimentos provém de um facto ou de uma situação jurídica complexa que se pode analisar em três elementos: um estado de necessidade, de carência, do alimentando; um estado de possibilidade ou de ajuda por parte de outrem (o alimentante); e uma relação jurídica que se estabelece entre esses dois sujeitos, que justifica a imposição pela lei de um dever de ajuda e a atribuição de um direito correspondente (cfr., Castro Mendes; “L’ Obligation Alimentaire en Droit Comparé”, in Rev. da Faculdade de Direito da Univ. de Lisboa, vol. XXIV, 1972, p. 58; vd. tb. Moitinho de Almeida; “Dos alimentos”, in Scientia Iuridica, tomo XVI, pp. 269 a 296).
“Para que a providência cautelar de alimentos provisórios possa ser acolhida pelo tribunal, torna-se necessário o preenchimento de dois requisitos cumulativos: Probabilidade de o requerente ser titular de um direito a alimentos; Carecer o requerente da prestação, a título provisório, de alimentos, por não se encontrar em condições de aguardar por alimentos definitivos” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-09-2020, Pº 12078/19.9T8LSB-A.L1-2, rel. NELSON BORGES CARNEIRO).
A questão que se coloca, neste ponto, é a da eventual convolação da pretensão deduzida nos presentes autos, no âmbito do meio processual previsto no artigo 992.º do CPC, em pretensão de alimentos provisórios, providência cautelar prevista nos artigos 384.º e ss. do CPC, por verificação de erro na qualificação do meio processual utilizado?
De facto, conforme dão avisadamente nota Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2020, p. 446), “[d]o regime dos arts. 1675.º e 1676.º do CC resulta que o dever de contribuição para os encargos da vida familiar tem como propósito salvaguardar a igualdade, mas deve corresponder às possibilidades de cada cônjuge (princípio da proporcionalidade). Em caso de incumprimento de tal dever, cabe ao outro cônjuge socorrer-se deste processo.
(…) Este processo pressupõe que persista uma economia comum entre os cônjuges, isto é, exige a existência de vida familiar. Deste modo, inexistindo tal economia comum, em virtude de separação de facto, deve o cônjuge carecido de alimentos instaurar procedimento cautelar de alimentos provisórios e não socorrer-se deste processo especial (cf. RL, 7-2-13, 1335/12; Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5ª ed., pp. 385-386). Sendo instaurado indevidamente este processo, em vez de procedimento cautelar de alimentos, deve ser ponderada a convolação oficiosa para o procedimento aplicável (art. 193.º, n.º 3), tanto mais que a tramitação é sobreponível”.
Sobre a possibilidade de tal convolação oficiosa importa recordar o entendimento expresso no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-04-2016 (Pº 842/10.9TBPNF.P2.S1, rel. LOPES DO REGO):
“O que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objecto diverso do peticionado.
Assim, é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular”.
Aliás, o n.º 3 do artigo 193.º do CPC expressamente salvaguarda a possibilidade que se vem referindo ao dispôr: “O erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados”.
No caso dos autos, conforme se adiantou, pelo menos uma parcela do alegado pela requerente reconduz-se à formulação de uma pretensão alimentícia:
“(…) 6. Deixou, desde então, de contactar a Autora e de concorrer para os encargos domésticos próprios da vida familiar do casal, os quais se passam a identificar, e que não se reduziram de forma proporcional à falta de contribuição do Requerido:
7. Com a habitação, por arrendamento da casa de morada de família, a Autora suporta uma renda mensal de € 170,00 (Doc.4).
8. O valor em causa pode considerar-se reduzido atendendo às actuais condições do mercado, não se antevendo que seja possível encontrar uma alternativa com condições mínimas e indispensáveis de habitação por um valor inferior ao indicado.
9. Em sede de consumos de electricidade, água, gás (por aquisição de botijas de gás e portanto sem fornecedor de serviço) e operador de comunicações, e atendendo às últimas facturas disponíveis e documentadas em anexo (Docs.5), a Autora estimar suportar um encargo mensal aproximado de € 130,00.
10. Tratam-se de despesas relativas a consumos indispensáveis à execução das tarefas básicas do quotidiano e portanto essenciais à subsistência de qualquer pessoa.
11. Na sua alimentação (…), a Autora estima despender um valor aproximado de € (…),
12. sendo que em vestuário esse valor, embora variável, aproximar-se-á de € 50,00 mensais, quantias quanto às quais se dispensa de apresentar prova por serem consentâneas com as regras da experiência comum.
13. Ademais, a Executada vê-se ainda na necessidade de suportar despesas com consultas médicas e medicamentos, os quais representarão um encargo mensal médio, embora variável, de € 50,00 (…).
16. Em resultado, a Autora mostra-se manifestamente impossibilitada de suportar as despesas domésticas comuns do casal acima descritas e garantir a satisfação de necessidades básicas suas (…).
17. Só com a ajuda de amigos e familiares próximos lhe tem sido possível, embora não integralmente, fazer face às mesmas.
18. Assistência à qual não estão obrigados e que competia ao Requerido prestar – nos termos do dever de assistência e de alimentos previstos, respectivamente, nos artigos 1675º e 2015º do Código Civil, aos quais se encontra obrigado durante a constância do matrimónio,
19. e que o mesmo pode prestar, em função da pensão de velhice de € 630,00 por si percebida, de valor manifestamente superior à auferida pela Autora (€ 334,00).” (cfr. artigos 6 a 19 da petição inicial).
De facto, excluídas as referências às despesas que pressupõem a convivência familiar dos cônjuges e excluídas aquelas alusões aos encargos com o filho - maior de idade, com mais de 40 anos de idade (e que poderá, se assim o entender, demandar autonomamente o respetivo progenitor)– do casal, que não se reconduzem ao conceito de “alimentos”, na pretensão formulada pela requerente remanesce um núcleo atinente aos alimentos que a recorrente lhe considera serem devidos e que poderá, sem dúvida, ser objeto de apreciação.
Conclui-se, pois, que, ao invés de julgar, desde já, improcedente a pretensão formulada pela requerente - juízo radicado apenas na inadequação da forma processual utilizada - incumbiria ao Tribunal recorrido, apreciar a mesma, de acordo com o efeito prático-jurídico pretendido, de acordo com a sua formulação materialmente efetuada.
Tanto assim é que, a tramitação de ambos os procedimentos (cautelar de alimentos provisórios – cfr. artigos 384.º e ss. do CPC - e especial de contribuição do cônjuge para as despesas domésticas – cfr. artigo 992.º do CPC) é sobreponível (cfr. artigo 992.º, n.º 2, do CPC) e não obriga à prática de atos processuais concretamente inconciliáveis (cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-04-2021, Pº 5962/20.9T8VNG.P1, rel. JOSÉ IGREJA MATOS).
A decisão recorrida deverá, pois, ser revogada e substituída pela presente, determinando o prosseguimento dos autos, em conformidade com o disposto no artigo 193.º, n.º 3, do CPC, como autos de alimentos provisórios e com observância da tramitação aplicável, designadamente do disposto no n.º 1 do artigo 385.º do CPC.
*
No artigo 527.º, n.º 1, do CPC estipula-se que: “A decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito”.
As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cfr. artigo 529.º, n.º 1, do CPC).
As custas assumem, grosso modo, a natureza de taxa paga pelo utilizador do aparelho judiciário, reduzindo os custos do seu funcionamento no âmbito do Orçamento Geral do Estado (assim, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2°, 3.ª ed., p. 418).
A conjugação do disposto no art.º 527.º, n.ºs. 1 e 2 com o n.º 6 do art.º 607.º e no n.º 2 do artigo 663.º do CPC permite aferir que a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito, mas tal não sucede quanto à taxa de justiça, cuja responsabilidade pelo seu pagamento decorre automaticamente do respectivo impulso processual.
De acordo com o estatuído no n.º 2 do art. 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. A condenação em custas rege-se pelos aludidos princípios da causalidade e da sucumbência, temperados pelo princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição de excesso e da justa medida (cfr. Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, p. 359).
“Dá causa à acção, incidente ou recurso quem perde. Quanto à acção, perde-a o réu quando é condenado no pedido; perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância. Quanto aos incidentes, paralelamente, é parte vencida aquela contra a qual a decisão é proferida: se o incidente for julgado procedente, paga as custas o requerido; se for rejeitado ou julgado improcedente, paga-as o requerente. No caso dos recursos, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento (…)” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre; Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª ed., p. 419).
Assim, deve pagar as custas a parte que não tem razão, litiga sem fundamento ou exerce no processo uma actividade injustificada, pelo que interessa apurar o teor do dispositivo da decisão em confronto com a posição assumida por cada um dos litigantes.
O princípio da causalidade continua a funcionar em sede de recurso, devendo a parte neste vencida ser condenada no pagamento das custas, ainda que não tenha contra-alegado, tendo presente, contudo, a especificidade acima apontada quanto à constituição da obrigação de pagamento da taxa de justiça, pelo que tal condenação envolve apenas as custas de parte e, em alguns casos, os encargos (cfr. Salvador da Costa; As Custas Processuais - Análise e Comentário, 7.ª edição, pp. 8-9).
Como tal, sempre que haja um vencido, com perda de causa, é sobre ele que deve recair, na precisa medida desse decaimento, a responsabilidade pela dívida de custas. Fica vencido quem na causa não viu os seus interesses satisfeitos; se tais interesses ficam totalmente postergados, o vencimento é total; se os interesses são parcialmente satisfeitos, o vencimento é parcial.
“"Vencidos" são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou pacial dos seus interesses, ficando, pois, a seu cargo, a responsabilidade total ou parcial pelas custas” (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-1997, P.º 97S079, rel. MATOS CANAS).
Tendo em conta o referido e o vencimento havido, com total procedência da apelação, a responsabilidade tributária inerente ao presente recurso deveria incidir sobre o recorrido, não fora o benefício de apoio judiciário de que, presentemente, beneficia (cfr. ofício rececionado em 19-08-2021).
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5. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível em, na procedência da apelação, revogar a decisão recorrida, que se substitui pela presente, determinando o prosseguimento dos autos, em conformidade com o disposto no artigo 193.º, n.º 3, do CPC, como autos de alimentos provisórios e com observância da tramitação aplicável, designadamente do disposto no n.º 1 do artigo 385.º do CPC.
Sem custas, atento o apoio judiciário de que o recorrido beneficia.
Notifique e registe.
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Lisboa, 23 de setembro de 2021.
Carlos Castelo Branco
Lúcia Celeste da Fonseca Sousa
Magda Espinho Geraldes