DECRETO LEGISLATIVO REGIONAL N.º 29/2008/A
PRAZO DE RECURSO
PROCESSO URGENTE
ERRO NA CITAÇÃO
Sumário

1 - O art. 30º Decreto Legislativo Regional nº 29/2008/A não suscita dúvidas de interpretação quanto ao carácter urgente do processo.
2 - Terem os RR. sido citados para contestar com a menção de que o prazo se suspendia nas férias judiciais é uma irregularidade cometida por funcionário judicial que não tem por detrás qualquer despacho judicial.
3 - Tendo as contestações sido apresentadas dentro do prazo legal, é natural que a irregularidade cometida tenha passado despercebida aos olhos da A. e do juiz, pelo que do silêncio quanto a ela nada se pode extrair.
4 - O tempo decorrido entre a data da propositura da ação e a data da prolação da sentença não basta para se considerar fundada a confiança de que era aplicável o prazo “normal” para recorrer.
5 - Perante sentença proferida na vigência da L 1-A/2020, de 19 de março, e notificação de sentença às partes elaborada em férias judiciais, os RR. deveriam ter tido o cuidado de verificar se, face à lei, o processo era ou não urgente.

Texto Integral

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conferência

M…, J…, H…, Jo…, L…, Ma… e D…, RR. nos autos principais, reclamaram contra o despacho que não admitiu o recurso por eles interposto da sentença que julgou totalmente procedente a ação contra eles instaurada por P…
O despacho objeto da reclamação é do seguinte teor:
Vieram os Réus recorrer da sentença final que conheceu do mérito da causa.
A decisão de que se recorre insere-se em processo de natureza urgente, atento o objeto do litígio e nos termos do artigo 30.º, n.º 2 do Decreto Legislativo Regional n.º 29/2008/A, e, bem assim, do artigo 35.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de outubro, pelo que o prazo de interposição de recurso é de 15 dias [ artigo 638.º, n.º 1 do C.P.C.] ao qual acrescem 10 dias quando tiver por objeto a reapreciação da prova [número 7 do citado artigo].
Considerando que a decisão em crise foi notificada em 06/04/2020, presume-se feita em 09/04/2020, começando a correr o prazo de recurso em 10/04/2020 [ artigo 248.º do C.P.C., devendo-se notar que tal “prazo” de presunção não se suspende nas férias judiciais ].
Assim e uma vez que o prazo de recurso corre em férias judiciais, atenta a natureza urgente do processo e nos termos do artigo 138.º, n.º 1 do C.P.C., e havendo que frisar nenhuma relevância ter o quadro normativo aplicável no período de pandemia Covid-19, posto que decorre da concatenação do artigo 7.º, n.º 7 [na versão introduzida pela Lei n.º 4-A/2020 de 6 de abril] da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, e artigo 6.º, n.º 2 da Lei n.º 4-A/2020 de 6 de abril, que os prazos aplicáveis aos processos urgentes correm normalmente desde 07/04/2020,
Teremos de considerar que se esgotou o prazo de recurso em 04/05/2020, podendo ainda ser praticado o ato nos três primeiros dias úteis subsequentes, ou seja, até 07/05/2020.
O recurso, todavia, foi interposto em 25/06/2020.
E tanto basta para considerar ser o mesmo extemporâneo.
Razões pelas quais, não se admite o recurso [artigo 641.º, n.º 2, al. a) do C.P.C.].”
Na reclamação contra o despacho de não admissão do recurso, os RR. formularam as seguintes conclusões:
«1- A presente reclamação é apresentada no seguimento do despacho de não admissão do recurso proferido pelo Tribunal da Comarca dos Açores - Juiz Local Cível - J1, que julgou extemporâneo o recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
2- No despacho recorrido o Tribunal a quo incorreu em erro de interpretação e aplicação da lei substantiva e processual na apreciação da decisão que determinou a extemporaneidade do recurso de apelação, com fundamento exclusivo no carácter urgente dos autos ao abrigo do art. 30.º, n.º 2 do Decreto Legislativo Regional n.º 29/2008/A, e, bem assim, do art. 35.º, nº 2 do Decreto Lei n.º 294/2009, de 13 de outubro.
3- O processo, iniciado em 2012 e julgado em 2020 (note-se, decorreram oito anos!!), foi tratado sempre como não urgente, como se de uma acção normal se tratasse, quer em termos de tramitação dos actos, quer na marcação de diligências, quer na contagem dos prazos.
4- Facto que era, pelo menos, adequado a criar nos Recorrentes, aqui Reclamantes a convicção de que o prazo de que dispunham não corria em férias, convicção essa legítima e merecedora, por isso, da tutela do direito, tal como foi preconizado, em situação similar, na fundamentação do Acordão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) do STJ, datado de 31.03.2009.
5- Neste mesmo sentido, também o Acórdão STJ, relativo ao Proc. n° 2577/05.5TBPMS-P.C3.S1, 6ª secção, datado de 06-07-2014 “Existe justificação para essa confiança, uma vez que. como se disse, era razoável e plausível que a Recorrente aderisse a essa aparência, que tinha por legitima. por a referida tramitação ocorrer durante longo período e sob a direcção do Juiz” (sublinhado nosso).
6- Tendo o processo sido tratado sempre como não urgente e tendo os Recorrentes a legítima expectativa que assim fosse tratado, à luz dos princípios legais e constitucionais da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé, da proporcionalidade, do acesso ao direito, a uma tutela efectiva e a um processo equitativo.
7- O Tribunal a quo decidiu julgar aplicável o prazo de recurso para os processos urgentes em dissintonia com os actos praticados no processo.
8- O STJ já se pronunciou em acordão de uniformização de jurisprudência no sentido da protecção da confiança da parte que atua segundo a atuação do Tribunal, tomando um ato como não sujeito ao regime dos processos urgentes porque o Tribunal assim o determinou, e admitindo a prática de um acto que, se o processo fosse urgente e os respetivos prazos corressem em férias judiciais, seria extemporâneo.
9- O Tribunal Constitucional tem sido especialmente zelador da garantia do direito ao recurso, tendo vindo a decidir que sempre que a perda do direito ao recurso ocorra numa circunstância em que a parte não pudesse com ela contar, a sanção da perda do direito ao recurso é desproporcional.
10- Há ofensa do princípio da proporcionalidade por a norma da preclusão ser interpretada e aplicada rigidamente, sem ter em conta que a finalidade da preclusão é o andamento célere do processo e que este não é atingido quando o Tribunal excede largamente os seus prazos.
11- Por outro lado, relativamente aos prazos judiciais, a Lei n° 16/2020 não estabelece qualquer regime para a sua recontagem.
12- Assim, relativamente aos prazos que estavam em curso em 09.03.2020 e que se suspenderam com o regime especial de suspensão em vigor desde essa data, retoma-se a respetiva contagem com a entrada em vigor da presente Lei 16/2020, em 03.06.2020.
13- Quanto aos prazos cujo termo inicial ocorreu durante o período de suspensão de prazos e cuja contagem não se iniciou em virtude do regime de suspensão em vigor, inicia-se a sua contagem com a entrada em vigor da presente Lei 16/2020, em 03.06.2020.
14- Ora no caso em apreço, a sentença foi notificada aos Recorrentes/ reclamantes no dia 6 de Abril de 2020 e o recurso deu entrada no dia 25.06.2020, versando sobre matéria de direito e de facto, pelo que o mesmo tem de se considerar tempestivo.
15- A Lei 4-A/2020 veio estabelecer (ou, pelo menos, esclarecer) que, a partir do dia 7 de abril de 2020, os processos urgentes continuam a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências, e ainda determinar os processos que também se consideram urgentes, para efeitos de aplicação do regime descrito:
16- Ora, in casu, estamos perante uma acção de processo sumário, no âmbito de arrendamento rural, instaurada em 08.10.2012. que apenas foi julgada durante o ano de 2020. que não foi tramitada com a celeridade que um processo de natureza urgente requer, nem tão pouco em momento algum foi suscitada a sua urgência, seja pela banda da Autora seja pelo Tribunal.
17- E, como tal, atento o iter processual adoptado, por um lado, e o contexto deveras peculiar e atípico da pandemia, não é admissível e razoável tratar agora como se de um processo de natureza verdadeiramente “urgente” fosse.
18- Sendo perfeitamente razoável e plausível que os Recorrentes/ Reclamantes admitissem que o entendimento do Tribunal fosse no sentido de que o processo não era urgente e que dispunham para apresentar as alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa até ao dia 29.06.2020.
19- Esta convicção é fundada e legítima e merece a tutela do direito, pois estamos perante uma situação de confiança justificada, assente na boa fé e gerada pela aparência, que, como tal, deve ser protegida.
20- In casu, a “urgência” apenas implicaria que o prazo corresse continuamente, sem suspensão no período que decorreu entre 09.03.2020 e 03.06.2020 - prazo esse, diga-se, que não é igual ao prazo de férias judiciais (mas sim devido a uma situação excecional que o país viveu e que implicou necessariamente que se legislasse para esse fim, com todas as implicações que isso acarretou).
21- Assim, face ao todo exposto, o Tribunal a quo incorreu na violação dos princípios legais e constitucionais da certeza, segurança jurídica, tutela da confiança, boa-fé, proporcionalidade, acesso ao direito, a uma tutela efectiva e a um processo equitativo, ao proferir a decisão de não admissão do recurso, com fundamento exclusivo no carácter urgente dos autos, quando, como já se disse supra, ação foi tramitada sempre como processo não urgente, e tendo os Recorrentes a legítima expectativa de que assim fosse tratado igualmente, ainda para mais nesta fase crucial.
22- Nestes termos deve a presente reclamação ser julgada procedente e, em consequência, ser o recurso interposto da sentença final admitido, por tempestivo, permitindo assim conhecimento do objeto da apelação, prosseguindo os seus termos até final.»
A 6 de outubro de 2020, a relatora proferiu despacho pelo qual, julgando a reclamação procedente, admitiu o recurso interposto pelos RR.
A A. reclamou para a conferência, concluindo do seguinte modo:
«1. O carácter urgente do processo referente a arrendamento rural está expressamente fixado na lei, e decorre directamente do regime legal aplicável sem qualquer necessidade de tal natureza ser objecto de uma declaração liminar do Tribunal, defluindo dos princípios básicos da tramitação pré-ordenada, neste caso, que as regras aplicáveis à contagem dos prazos são diversas.
2. Deve ser integralmente mantido o despacho que não admitiu o recurso interposto pelos Réus.
3. Nos termos do artigo 30º, nº 2 do Decreto Legislativo Regional nº 29/2008/A, de 24 de Julho (Regime Jurídico do Arrendamento Rural na Região Autónoma dos Açores), os processos judiciais referentes a arrendamentos rurais “têm carácter de urgência”.
4. Tal previsão legal é absolutamente expressa e cristalina, e a conclusão da qualificação de tais processos como urgentes resulta Ope Legis.
5. O recente Acórdão do STJ, datado de 25.10.2018, processo 492/07.7TTCSC- A.L1.S1., sendo posterior ao Acórdão do STJ de 17.05.2016 (proc. 1185/13.1T2AVR.P1.S) mencionado na douta decisão singular, não deixa de o referir expressamente, mas para concluir a final em sentido distinto da douta decisão ora impugnada.
6. Relativamente à natureza urgente do processo a lei foi sensível à especial situação de vulnerabilidade em que se encontram os arrendatários rurais e à conveniência em dirimir rapidamente, tanto quanto possível, o conflito e definir os seus eventuais direitos.
7. Trata-se de uma opção expressa do legislador (a de conferir a natureza urgente a esses processos), ponderados os interesses em disputa.
8. Resultando a qualificação como urgente da lei, a mesma não é, em princípio, posta em causa pelo comportamento dos vários intervenientes no processo.
9. “É confundir o plano do ser e do dever ser sustentar que o incumprimento dos prazos legais pelos Magistrados ou pelos Funcionários Judiciais suprime a natureza urgente do processo”.
10. O incumprimento dos prazos pelos intervenientes no processo pode relevar para outros efeitos – como seja para a avaliação do seu desempenho e eventual responsabilidade disciplinar – mas não para suprimir a qualificação legal do processo como urgente, em prejuízo do arrendatário rural.
11. O presente processo se distingue claramente da situação decidida pelo Acórdão do STJ proferido no processo 1185/13.1T2AVR.P1.S1 (Ana Paula Boularot), a 17/05/2016 (em que o Tribunal tinha aceitado uma contestação, apesar de esta ter sido deduzida fora de prazo, pretendendo subsequentemente rejeitar o recurso interposto pela outra parte por intempestivo).
12. “A existência de prazos para a interposição de recursos, bem como a existência de processos de natureza urgente, em nada põem em causa o direito de defesa e o recurso aos tribunais, constitucionalmente consagrados”.
13. No presente processo, a Autora/ recorrida ora expoente (arrendatária rural) já foi manifestamente penalizada pela demora do processo, inerente ao funcionamento dos tribunais, à qual sempre foi absolutamente alheia.
14. Nos presentes autos, não há qualquer notícia de que a delonga do processo se tenha devido a qualquer actuação da Autora.
15. Permitir que os diversos motivos que conduziram à delonga da tramitação por parte do Tribunal em 1ª instância justifiquem, ipso facto, um alargamento do prazo legalmente previsto (de forma expressa) para a contraparte interpor um recurso, seria penalizar duplamente a Autora, sem que a mesma tal a tanto tenha dado azo.
16. Justificar o incumprimento por banda de uma das partes do prazo que lhe está legalmente estipulado apenas com base num “incumprimento” por parte do Tribunal seria de facto uma dupla penalização para a Autora, a única, pelos vistos, que sempre cumpriu com a sua parte.
17. Se fosse de entender a dada altura que o processo já não seria urgente, tal teria de ser invocado/ declarado antes do momento em que foi praticado o ato de interposição de recurso, e não a posteriori.
18. Não teria que ser a Autora (ou qualquer parte) a invocar que fosse consignado em processo algo que a lei dispõe expressamente (a natureza do processo), sob pena de perder-se essa natureza!!!
19. Não sendo a qualificação como urgente da lei, em princípio, posta em causa pelo comportamento dos vários intervenientes no processo; a verdade é que nos presentes autos (ao contrário do referido Acórdão 1185/13.1T2AVR.P1.S1) a aqui Autora/recorrida nunca beneficiou de qualquer prazo do qual agora queira coarctar os RR/ Recorrentes; nem nunca praticou qualquer ato no processo que desse a entender que considerava que o processo por alguma razão teria deixado de ter a qualificação que a lei lhe atribuía.
20. Não havendo qualquer comportamento da Autora nesse sentido, de maneira alguma se pode conceber que o incumprimento dos prazos legais pelos Magistrados ou pelos Funcionários Judiciais suprime a natureza urgente do processo!»
É a seguinte a questão a decidir:
- da admissibilidade do recurso.
*
Os RR., na reclamação contra o despacho de não admissão do recurso, invocaram o Acórdão do STJ proferido a 31 de março de 2009, no processo 07B4716, publicado em www.dgsi.pt, na fundamentação do qual pode ler-se:
“a fls. 81 dos autos foi proferido o seguinte despacho, que foi notificado e não mereceu qualquer reacção das partes:
«Fls.78 e segs.
A apreciar na acção principal e no momento próprio (após férias judiciais - o presente processo não tem já natureza urgente).
Não obstante, notifique-se a requerente nos termos de fls. 54, penúltima parte.»

Levanta-se o problema de saber qual é a confiança que deve merecer às partes um despacho judicial e as declarações nele contidas. Por outras palavras, têm elas o direito processual de confiar em que o julgador irá actuar conforme declarou que era sua intenção fazê-lo? No que ao caso concreto respeita, declarado que o processo deixara de ter natureza urgente, tinha a agravante o direito de agir, nomeadamente no que se referia a prazos e à sua contagem, como se, efectivamente tivesse cessado a urgência deste procedimento cautelar?
A resposta é afirmativa, de acordo com um princípio da boa fé, que não pode ser exclusivo dos actos das partes, mas terá de abranger igualmente os actos dos magistrados.

Por um lado, trata-se de uma afirmação proferida no âmbito dos poderes de condução do processo por parte do juiz, aliás expressamente reforçados pela Reforma de 1995-1996; e feita no mesmo despacho que determinou a notificação da requerida para, querendo, deduzir oposição, sendo certo que é justamente a forma de contagem do prazo correspondente que está em causa.
Por outro, está em causa a admissibilidade de um acto particularmente importante, do ponto de vista dos direitos substanciais da requerida: a dedução de oposição a uma providência cautelar decretada sem contraditório prévio, com base em provas de primeira aparência.
Do ponto de vista da requerente, não há, nem lesão das regras do contraditório, nem violação de qualquer expectativa que se sobreponha à confiança gerada na requerida por acto do juiz. O princípio da prevalência do fundo sobre a forma, ditado pela concepção do processo «como um instrumento de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo», nas palavras do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, não deve, assim, ser afastado em nome da tutela de eventuais vantagens que a requerente pudesse alcançar com a não consideração da oposição apresentada.
Finalmente, seria contrária à regra de que todos os intervenientes no processo devem cooperar em ordem à «justa composição do litígio» (n.º 1 do artigo 266.º do Código de Processo Civil) e à exigência de que as partes actuem «de boa fé» (artigo 266.º-A), observando a regra da cooperação, não tutelar a confiança que uma delas depositou num acto do juiz, que lhe foi notificado, e em função do qual definiu a sua actuação processual. Note-se que nada no processo revela outra qualquer actuação apta a criar na requerida sequer a convicção de que o prazo da oposição corria em férias; e este recurso é a demonstração de que a lei nem sempre foi interpretada uniformemente nesse sentido.
Deste modo, a apresentação da oposição pela agravante, em prazo apenas compatível com a não urgência do processo, tem de ser considerada tempestiva, apesar de ser de entender que, na fase da oposição, o procedimento cautelar mantém a natureza urgente”.
Não há similitude entre o caso apreciado no acórdão citado e o caso dos presentes autos.
O processo principal é um processo referente a arrendamento rural na Região Autónoma dos Açores.
O carácter urgente de tal processo resulta claramente do art. 30º Decreto Legislativo Regional nº 29/2008/A. Este artigo não suscita dúvidas de interpretação quanto ao carácter urgente do processo.
Os RR. não invocaram nenhum despacho proferido pelo juiz da 1ª instância em que este tivesse considerado que o processo não tinha natureza urgente.
Compulsados os autos principais, constata-se que a sentença foi proferida a 25 de março de 2020, ou seja, na vigência da L 1-A/2020, de 19 de março.
Acresce dizer que a notificação da sentença às partes foi elaborada a 6 de abril de 2020, ou seja, em férias judiciais.
Os RR., na reclamação contra o despacho de não admissão do recurso, invocaram também o Acórdão do STJ proferido a 6 de julho de 2014, no processo 2577/05.5TBPMS-P.C3.S1, publicado em www.dgsi.pt, na fundamentação do qual pode ler-se:
“percorrendo a tramitação da acção, iniciada em 1996, é manifesto que a mesma não sofreu qualquer alteração, no que respeita à celeridade, após a aludida apensação. Tudo se continuou a fazer como até aí, como se de uma acção normal e autónoma se tratasse, apesar de, pela própria antiguidade, já ser exigível um outro cuidado a esse respeito. Mas não: quer em termos de tramitação dos actos, quer na marcação de diligências, quer na contagem dos prazos, a acção foi tratada sempre como um processo normal, não urgente.
A forma como a acção foi tratada tem, pois, (pelo menos) implícito o entendimento de que o processo não era urgente (entendimento que não é, aliás, contrariado no aludido despacho), o que torna compreensível o modo como o acto foi praticado pela Recorrente, em termos de contagem do prazo de recurso.
Acresce que o referido entendimento não é, apesar do que acima se expôs, inteiramente descabido – no sentido de excluir manifestamente a sua aplicação –, considerando a natureza da acção, diferente da dos típicos apensos do processo de insolvência, especialmente previstos na lei, instaurados e processados na pendência desse processo.
Neste condicionalismo, sendo a acção processada nos termos referidos durante mais de seis anos após a apensação, sem que a questão da urgência fosse suscitada, é razoável e perfeitamente plausível que a recorrente admitisse que o entendimento do Tribunal fosse realmente aquele e que tivesse actuado em conformidade.
Aquele facto era, pelo menos, adequado a criar na Recorrente a convicção de que o prazo de que dispunha não corria em férias, de acordo com o regime previsto no art. 144º nº 1 do CPC (então em vigor).
Esta convicção é fundada e legítima e merece, por isso, a tutela do direito…”
“Assim, a apresentação das alegações pela Recorrente, em prazo apenas compatível com a não urgência do processo, têm de ser consideradas tempestivas, apesar do que acima se expôs sobre a interpretação do art. 9º nº 1 do CIRE.”
Compulsados os autos principais, constata-se que a ação principal foi proposta a 30 de agosto de 2012 e a sentença foi proferida a 25 de março de 2020. Desde a propositura da ação que o processo tem carácter de urgente e esse carácter resulta de norma que não suscita dúvidas de interpretação.
Não há, pois, similitude entre o caso apreciado no último acórdão citado e o caso dos presentes autos.
Na decisão proferida a 6 de outubro de 2020, é mencionado o Acórdão do STJ proferido a 17 de maio de 2016, no processo 1185/13.1T2AVR.P1.S1, publicado em www.dgsi.pt, na fundamentação do qual pode ler-se:
“O Autor, aqui Recorrente, ao longo de todo o processado, confiou, tendo razões para confiar, que os prazos aplicáveis seriam os «normais», já que nunca a primeira instância suscitou qualquer problema, não lhe sendo, pois, exigível qualquer outro cuidado adicional e daí a apresentação recursiva no prazo de trinta dias…
A não se entender assim, estar-se-ia a violar frontalmente o principio do acesso ao direito prevenido no artigo 20º, nº 1 da CRP, impedindo-se o Recorrente de contradizer, através da sua impugnação recursiva, o direito que foi fixado à Ré contestante, com base numa contestação que no bom rigor dos princípios deveria ter sido mandada desentranhar, porque extemporânea e apenas não o foi porque o Tribunal não se apercebeu da problemática, tendo deixado correr o processo como se se se tratasse de uma normal acção de processo ordinário, e de igual modo se estaria a violar o artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, na medida em que estabelece que todas as pessoas têm direito, numa situação de plena igualdade, a que a sua causa seja objecto de um exame equitativo por parte de um órgão judicial, independente e imparcial, o que sairia frustrado se não se concedesse, em termos de paridade com o anteriormente acontecido em primeira instância, que a interposição de recurso foi apresentada no tempo (in)certo mas atempado, porque assim foi configurado pelo Tribunal de primeira instância.

O fair trial e/ou due process, integra vários vectores, sendo que o principal é enformado pela confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual, não podendo os interessados sofrer quaisquer limitações, exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem, sequer, vir a ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar, o que aconteceu na espécie, com o não conhecimento, inopinado, do objecto do recurso de Apelação, por extemporaneidade da apresentação das alegações, num processo que embora sendo urgente, até então, os prazos não haviam sido contabilizados em função de tal qualificação.”
Compulsados os autos principais, verifica-se que os RR. Ma, D… e M… foram citados a 10 de outubro de 2012, os RR. J… e H… foram citados a 11 de outubro de 2012 e os RR. Jo… e L… foram citados a 6 de dezembro de 2013; e que os RR. Ma… e D… apresentaram contestação a 29 de outubro de 2012 e os demais RR. apresentaram contestação a 30 de outubro de 2012.
Ao contrário do que se verificou no caso apreciado pelo terceiro acórdão citado, as contestações foram apresentadas dentro do prazo legal para contestar.
Na decisão proferida pela relatora, foi salientado que os RR. foram citados para contestar com a menção de que o prazo se suspendia nas férias judiciais.
Trata-se de uma irregularidade cometida por funcionário judicial que não tem por detrás qualquer despacho judicial.
Tendo as contestações sido apresentadas dentro do prazo legal, é natural que a irregularidade cometida tenha passado despercebida aos olhos da A. e do juiz, pelo que do silêncio quanto a ela nada se pode extrair.
A A., na reclamação para a conferência, invocou o Acórdão do STJ proferido a 25 de outubro de 2018, no processo 492/07.7TTCSC-A.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt, na fundamentação do qual pode ler-se:
«Resultando a qualificação como urgente da lei, a mesma não é, em princípio, posta em causa pelo comportamento dos vários intervenientes no processo. É confundir o plano do ser e do dever ser sustentar que o incumprimento dos prazos legais pelos Magistrados ou pelos Funcionários Judiciais suprime a natureza urgente do processo. Seja como for, e como o Acórdão recorrido bem refere, o incumprimento dos prazos pelos intervenientes no processo pode relevar para outros efeitos – como seja para a avaliação do seu desempenho e eventual responsabilidade disciplinar – mas não para suprimir a qualificação legal do processo como urgente, em prejuízo do sinistrado.
Cabe, ainda, realçar que o presente processo se distingue claramente da situação decidida pelo Acórdão do STJ proferido no processo 1185/13.1T2AVR.P1.S1 (Ana Paula Boularot), a 17/05/2016, e em que, aliás, o Relator do presente processo participou na qualidade de Adjunto. Tratou-se de uma situação em que o Tribunal tinha aceitado uma contestação, apesar de esta ter sido deduzida fora de prazo, pretendendo subsequentemente rejeitar o recurso interposto pela outra parte por intempestivo. Perante tais factos o Tribunal decidiu que tal recusa representaria “uma violação inadmissível dos princípios da cooperação, da boa fé processual, da tutela da confiança, da igualdade e da auto responsabilização, quer das instituições, quer das partes”. Tal situação não é equiparável à do caso vertente, não existindo qualquer lesão do princípio da igualdade, nem qualquer comportamento contraditório do Tribunal.»
Na reclamação contra o despacho de não admissão do recurso, os RR. afirmaram que “o processo, iniciado em 2012 e julgado em 2020 (note-se, decorreram oito anos!!), foi tratado sempre como não urgente, como se de uma acção normal se tratasse, quer em termos de tramitação dos actos, quer na marcação de diligências, quer na contagem dos prazos.”
No entanto, nada concretizou.
O tempo decorrido entre a data da propositura da ação e a data da prolação da sentença não basta para se considerar fundada a confiança de que era aplicável o prazo “normal” para recorrer.
Conforme atrás referido, a sentença foi proferida na vigência da L 1-A/2020, de 19 de março, e a notificação da sentença às partes foi elaborada em férias judiciais.
Perante isso, os RR. deveriam ter tido o cuidado de verificar se, face à lei, o processo era ou não urgente.
*
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, em conferência, em deferir a reclamação, mantendo o despacho da 1ª instância de não admissão do recurso.
Custas da reclamação contra a não admissão do recurso pelos RR.
Lisboa, 23 de setembro de 2021
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
 Eleonora Viegas (vencida nos termos da declaração infra)
***
Voto de vencido
Admitiria o recurso, pelos fundamentos expostos na decisão objecto da presente reclamação. Considero que toda a tramitação e duração do processo foram de molde a criar no recorrente a convicção sobre a regularidade da tramitação não urgente do processo, criando-lhe fundadas expectativas, de confiança, nessa tramitação. Tudo na esteira da concepção desenvolvida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.05.2016, proc. 1185/13.1T2AVR.P1.S1.
(Eleonora Viegas)