Processo n.º 850/14.0YRLSB.S3-A
Incidente de reclamação para a conferência
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Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):
Transitado em julgado que foi o acórdão proferido neste Supremo Tribunal de Justiça em 9 de março de 2021, que conheceu da revista interposta por AA, apresentou-se esta a interpor contra tal acórdão recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.
Disse, para o efeito, que o acórdão recorrido estava em contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de abril de 2017, proferido no Processo n.º 75193/05.0YYLSB-A.L1.S1, de que juntou cópia e certificação do trânsito em julgado.
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O relator proferiu decisão a rejeitar o recurso, com fundamento em não existir qualquer contradição relevante entre o acórdão proferido nos presentes autos e este último acórdão.
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Reclama agora a Recorrente para a conferência, pretendendo que o seu recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência seja admitido.
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A parte contrária, Banco Comercial Português, S.A., respondeu à reclamação, pronunciando-se pelo seu indeferimento.
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Cumpre apreciar e decidir.
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A decisão do relator é do seguinte teor:
«Como decorre claro do art. 688.º, n.º 1 do CPCivil, condição do recurso extraordinário para a uniformização de jurisprudência é que o acórdão do Supremo de que se pretende recorrer esteja em contradição com outro acórdão anteriormente proferido pelo Supremo sobre a mesma questão fundamental de direito.
Conforme jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal de Justiça, uma questão fundamental de direito considera-se decidida de forma oposta quando corresponde a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica fundamental. As decisões são divergentes se têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo - tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito - são análogas ou equiparáveis.
O conflito jurisprudencial pressupõe uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, e a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência deve assumir um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (isto é, deve integrar a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto, não sendo suficientes para o efeito considerações jurídicas marginais ou acessórias com natureza simplesmente de obiter dicta. Também não relevam para o caso as decisões implícitas ou pressupostas.
Daqui que, e como resulta do que diz Amâncio Ferreira (Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª ed., pp. 116 e 117), o requisito da mesma questão fundamental de direito não se verificará quando o núcleo da situação decidenda, à luz da norma aplicável, não seja idêntico. Do que resulta, conclui, que o conflito jurisprudencial se verifica apenas quando os mesmos preceitos são interpretados e aplicados diversamente a enquadramentos factuais idênticos.
Ora, no caso vertente constata-se que o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento não se pronunciaram sobre a mesma questão fundamental de direito assim delineada.
Claramente.
Diz a Recorrente que “No caso concreto, a questão fundamental de direito é a divergência jurisprudencial que incide sobre a interpretação a dar ao instituto do contrato promessa, quanto à sua aptidão para a produção de efeitos, que não os de obrigar à celebração do contrato prometido”.
Assim objetivada ou circunscrita a questão fundamental de direito, vê-se à evidência que não há o menor ponto de conflito entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento.
No caso do acórdão-fundamento o tribunal decidiu sobre a relação entre um contrato-promessa (no caso, de cessão de quotas sociais) e o contrato definitivo, isto com vista a determinar se, tendo sido celebrado contrato definitivo, o contrato-promessa podia funcionar como título executivo quanto a certas obrigações nele fixadas (cláusulas definitivas).
No caso do acórdão recorrido, e no que para aqui importa, o tribunal decidiu sobre o sentido de uma declaração emitida pelo Banco.
Embora o acórdão recorrido se reporte ao contrato-promessa de dação em cumprimento estabelecido entre o Banco e terceiro (a sociedade Haveres) e ao subsequente contrato prometido, nada decidiu que extravase o âmbito da interpretação da referida declaração.
Nada decidiu sobre matéria de contrato-promessa, nomeadamente sobre a sua relação com o contrato definitivo relativamente a obrigações estabelecidas no primeiro.
E nem podia decidir, visto que, diferentemente do que sucedia com o acórdão-fundamento, no acórdão recorrido não estavam em discussão quaisquer obrigações clausuladas num contrato-promessa.
Em sítio algum foi alegado ou está provado que o dito contrato-promessa, de que a ora Recorrente nem sequer foi ou tinha que ser parte, incorporasse uma cláusula referente à obrigação para o Banco de respeitar o comodato de que se fala nos autos.
Sendo que o contrato prometido, o contrato de dação em cumprimento, também nada contém sobre esse comodato.
É essa constatação que o acórdão recorrido evidencia na p. 26.
Portanto, e diferentemente do que sucedia no acórdão-fundamento, no acórdão recorrido não se punha a questão de fazer projetar para o contrato definitivo qualquer obrigação de comodato decorrente do contrato-promessa, pois que este pura e simplesmente que não continha ou previa essa obrigação.
E daqui que carece de qualquer nexo a afirmação da Recorrente no sentido de que “O acórdão recorrido promove a análise do contrato promessa como sendo juridicamente autónomo do contrato prometido, não existindo qualquer análise que incida sobre o cumprimento contratual quando as obrigações constantes do contrato promessa não são vertidas no prometido, como foi o caso”.
De que análise do contrato-promessa estará a Recorrente a falar?
Nada disso foi objeto, ou tinha que ser, do acórdão recorrido.
Aliás, com tal afirmação a Recorrente mais não está a fazer que fabricar um certo ambiente tendente a ajustar o substrato fáctico-jurídico do acórdão recorrido ao do acórdão-fundamento, criando assim artificialmente uma imaginada contradição. Labor mal sucedido.
Diga-se, por último, que embora o acórdão-fundamento se reporte também ao art. 236.º do CCivil, fá-lo no contexto da interpretação, a partir do que foi exarado no contrato-promessa, daquilo que vem depois a ser clausulado no contrato prometido.
Assunto que nada tem a ver com as circunstâncias em que o acórdão recorrido se moveu, na medida em que neste (e repetindo) não estava em causa decidir sobre a interpretação de declarações de vontade exaradas em qualquer contrato-promessa ou em qualquer contrato prometido.
Mas sim decidir sobre o teor da referida declaração, tudo fora do contexto do contrato-promessa e do contrato definitivo.
Conclusão: o acórdão-fundamento e o acórdão recorrido moveram-se em contextos fácticos e jurídicos totalmente distintos, não havendo entre eles o menor ponto de intersecção, razão pela qual nada decidiram que conflitue entre si.»
Esta decisão do relator apresenta-se juridicamente acertada, pelo que não pode deixar de ser mantida.
Efetivamente, não se surpreende a menor contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento seja lá em que dimensão for, nomeadamente na dimensão a que aludiu a Recorrente: “No caso concreto, a questão fundamental de direito é a divergência jurisprudencial que incide sobre a interpretação a dar ao instituto do contrato promessa, quanto à sua aptidão para a produção de efeitos, que não os de obrigar à celebração do contrato prometido”.
Exatamente como se aponta no despacho reclamando, no caso do acórdão-fundamento o tribunal decidiu sobre a relação entre um contrato-promessa (de cessão de quotas sociais) e o contrato definitivo, isto com vista a determinar se, tendo sido celebrado contrato definitivo, o contrato-promessa podia funcionar como título executivo quanto a certas obrigações nele fixadas (cláusulas definitivas).
Ora, é por demais visível que esta temática nada tem a ver com o objeto sobre que incidiu o acórdão recorrido, pois que neste, e no que para aqui importa, o tribunal decidiu sobre o sentido de uma declaração emitida pelo Banco.
Embora o acórdão recorrido se reporte ao contrato-promessa de dação em cumprimento estabelecido entre o Banco e terceiro (a sociedade Haveres) e ao subsequente contrato prometido, nada decidiu que extravase o âmbito da interpretação da referida declaração.
Nada decidiu sobre matéria de contrato-promessa, nomeadamente sobre a sua relação com o contrato definitivo relativamente a obrigações estabelecidas no primeiro.
E também como se aponta no despacho reclamando, é certo que nada decidiu sobre tal matéria nem podia decidir, visto que, diferentemente do que sucedia com o acórdão-fundamento, no caso sobre que incidiu o acórdão recorrido não estavam em discussão quaisquer obrigações clausuladas num contrato-promessa.
Em sítio algum foi alegado ou está provado que o dito contrato-promessa, de que a ora Recorrente nem sequer foi ou tinha que ser parte, incorporasse uma cláusula referente à obrigação para o Banco de respeitar o comodato de que se fala nos autos, sendo que o contrato prometido, o contrato de dação em cumprimento, também nada contém sobre esse comodato. É essa constatação que o acórdão recorrido evidencia na p. 26.
Portanto, e diferentemente do que sucedia no acórdão-fundamento, no acórdão recorrido não se punha a questão de fazer projetar para o contrato definitivo qualquer obrigação de comodato decorrente do contrato-promessa, pois que este pura e simplesmente não continha ou previa essa obrigação.
De igual forma se apresenta acertado o despacho reclamando quando observa que carece de justificação a afirmação da Recorrente no sentido de que “O acórdão recorrido promove a análise do contrato promessa como sendo juridicamente autónomo do contrato prometido, não existindo qualquer análise que incida sobre o cumprimento contratual quando as obrigações constantes do contrato promessa não são vertidas no prometido, como foi o caso”.
Não se logra inteligir de que análise do contrato-promessa estará a Recorrente a falar. Nada disso foi objeto, ou tinha que ser, do acórdão recorrido.
A conclusão óbvia a retirar é que com tal afirmação a Recorrente mais não está a fazer que fabricar um certo ambiente tendente a ajustar o substrato fáctico-jurídico do acórdão recorrido ao do acórdão-fundamento, visando desse modo criar artificialmente uma contradição de julgados.
Como também se pondera no despacho sob reclamação, embora o acórdão-fundamento se reporte ao art. 236.º do CCivil, fá-lo no contexto da interpretação, a partir do que foi exarado no contrato-promessa, daquilo que vem depois a ser clausulado no contrato prometido. Assunto que nada tem a ver com as circunstâncias em que o acórdão recorrido se moveu, na medida em que neste (e repetindo) não estava em causa decidir sobre a interpretação de declarações de vontade exaradas em qualquer contrato-promessa ou em qualquer contrato prometido (mas sim decidir sobre o teor da referida declaração, tudo fora do contexto do contrato-promessa e do contrato definitivo).
Por tudo isto, apresenta-se adequada a conclusão que a decisão sob reclamação encerra: o acórdão-fundamento e o acórdão recorrido moveram-se em contextos fácticos e jurídicos totalmente distintos, não havendo entre eles o menor ponto de intersecção, razão pela qual nada decidiram que conflitue entre si.
O que vem de ser dito denega imediata, direta e frontalmente a bondade da totalidade das afirmações vertidas na reclamação, que insiste na ideia de criar uma contradição de julgados onde ela não existe.
Nada contendo a reclamação de útil e de pertinente que vá para além daquilo que é contrariado pelo que fica exposto, resta concluir simplesmente pela sua improcedência.
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Decisão
Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a reclamação, sendo rejeitado o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência que foi interposto.
Regime de custas
A Recorrente é declarada responsável pelas custas inerentes ao incidente. Taxa de justiça: 3 Uc´s.
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Lisboa, 22 de setembro de 2021
José Rainho (Relator)
Graça Amaral
Henrique Araújo