INSOLVÊNCIA
RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
ATO ONEROSO
EQUILÍBRIO DAS PRESTAÇÕES
IMPUGNAÇÃO
NULIDADE
INEFICÁCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
EFICÁCIA REAL
Sumário


I – A alínea h) do nº 1 do artigo 121º do CIRE é aplicável aos actos de carácter oneroso, praticados no ano anterior ao início do processo de insolvência, que consubstanciem situações em que se verifique manifesta desproporção entre as obrigações assumidas pelo insolvente relativamente às da contraparte, reflectidas na expressiva, objectiva e gritante ausência de equivalência entre as prestações patrimoniais firmadas, em nítido desfavor da insolvente e, reflexamente, dos interesses dos seus credores no processo de insolvência iminente.
II - Conforme resulta do artigo 120º, números 2 e 4, do CIRE, tais actos presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário (presunção juris et de jure), não existindo necessidade da demonstração da má fé do terceiro que celebrou os actos com o insolvente.
III – Encontra-se preenchida a previsão da alínea h) do nº 1 do artigo 121º do CIRE, sendo válido o exercício da resolução em benefício da massa insolvente, no caso de a insolvente ter celebrado, cerca de mês e meio antes de se apresentar à insolvência, na qualidade de promitente vendedora, um aditamento a um contrato promessa que tinha por objecto a transferência, em conjunto, de um prédio misto e de um prédio rústico, e em que abdica agora de receber a parte restante do preço inicialmente fixado para a venda (do preço inicial de € 750.000,00 só havia sido pago o total de € 396.000,00), deixando de ter a obrigação de transferir, em contrapartida, o prédio rústico, com a área aumentada e diminuindo também a do prédio misto, mas em que o significado económico deste último (prédio misto) é muito superior ao primeiro (prédio rústico).
IV - Tendo em conta os factos dados como provados, não existe qualquer tipo de explicação lógica e racional para a ora insolvente anuir na alteração contratual em causa, que só a prejudicava, aceitando uma nova posição muitíssimo mais desequilibrada e desvantajosa do que a anterior, que lhe retirava o direito ao recebimento de uma importância muito significativa (€ 354.000,00, correspondente a um valor próximo da metade do preço total), em troca somente de uma maior área de terreno rústico, de expressão económica muito inferior ao do prédio misto a transmitir, a que acresce o efeito translativo imediato que foi garantido pela nova cláusula de fixação de eficácia real ao contrato promessa, nos termos do artigo 413º do Código Civil, e o reconhecimento formal da posse do promitente comprador, condicionando, por esse meio, a futura actuação do administrador da insolvência, face ao disposto no artigo 106º, nº 1, do CIRE.

Texto Integral





Revista nº 1072/18.7T8VNF-D.G2.S1.

 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.

AA instaurou contra a Massa Insolvente de BB acção de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente, pedindo que fosse declarada a nulidade da resolução levada a cabo pelo administrador, por a mesma não se mostrar devidamente fundamentada, conduzindo à sua ineficácia nos termos previstos nos artigos 280.º, 294.º e 295.º do Código Civil, ou, caso assim não se entendesse, que fosse declarada a invalidade ou ineficácia da resolução levada a cabo pelo administrador, por não se mostrarem verificados os requisitos necessários e inerentes, quer à resolução condicional, quer à resolução incondicional, nos termos previstos nos artigos 120.º e 121.º, n.º 1, alíneas c) e h), do CIRE.
A ré contestou pedindo que se declarasse válida a resolução do negócio efectuado no que compete ao acto praticado, devendo ser julgado improcedente todo o pedido formulado pelo autor.
Após a realização de audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente o pedido formulado pelo autor e válida e eficaz a resolução em benefício da massa insolvente operada pelo Senhor Administrador da Insolvência quanto ao negócio formalizado por documento designado com a epígrafe “Aditamento ao Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado a 29 de abril de 2009”, outorgado em 4 de Janeiro de 2018 entre aquele e a insolvente BB.
O A. AA recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação .........., o qual, através de acórdão proferido em 25 de Fevereiro de 2021, julgou a apelação procedente e revogou a decisão apelada, declarando a ineficácia da resolução em benefício da massa insolvente, operada pelo senhor Administrador da Insolvência, quanto ao negócio formalizado por documento designado com a epígrafe “Aditamento ao Contrato Promessa de Compra e venda celebrado a 29 de Abril de 2009”, outorgado entre o autor e a insolvente.
Apresentou agora a R. recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Concluiu nos seguintes termos:
 I.   AA intentou contra a Massa Insolvente de BB, acção de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente pedindo que seja declarada a nulidade da resolução levada a cabo pelo administrador, por a mesma não se mostrar devidamente fundamentada, o que deverá conduzir à sua ineficácia nos termos previstos nos artigos 280.º, 294.º e 295.º do Código Civil, ou, caso assim não se entenda, que seja declarada a invalidade ou ineficácia da resolução levada a cabo pelo administrador, pornão se mostrarem, verificados os requisitos necessários e inerentes, quer à resolução condicional, quer à resolução incondicional, nos termos previstos nos artigos 120.º e 121.º, n.º 1 c) e h) do CIRE.
II.   A récontestou,pedindo quesedeclareválida aresolução do negócio efetuado,no quecompete o acto praticado pela insolvente e o autor e a esta comunicada, devendo ser julgado improcedente todo o pedido formulado pelo autor.
III.  Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou improcedente o pedido formulado pelo autor e válida e eficaz a resolução em benefício da massa insolvente operada pelo Senhor Administrador da Insolvência.
IV. O autor interpôs recurso, vindo a ser proferido Acórdão que julgou procedente a apelação e anulou a sentença recorrida para que “seja cumprido o contraditório relativamente ao relatório pericial junto pelo Administrador da Insolvência ao processo principal e que foi utilizado na mo-tivação da decisão de facto, seguindo, depois, os autos os seus regulares termos”.
V.  De regresso à primeira instância, foi o relatório pericial notificado às partes, que se pronunciaram sobre o mesmo e, em audiência de julgamento, tiveram oportunidade de produzir alegações.
VI. Foi proferida nova sentença que decidiu julgar totalmente improcedente o pedido formulado pelo autor e válida e eficaz a resolução em benefício da massa insolvente operada pelo senhor Administrador da Insolvência.
VII. O Autor não se conformando com a decisão proferida pelo Tribunal ad quo, dela interpôs novo recurso de Apelação para o Tribunal da Relação ..........,
VIII.           Tendo sido proferido Acórdão, do qual ora se recorre, datado de 25 de Fevereiro de 2021, que decidiu julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e declarando a ineficácia da resolução em beneficio da massa insolvente operada pelo Senhor Administrador de Insolvência.
IX. Ao decidir como decidiu, violou de modo crasso o Acórdão Recorrido o disposto no artigo 121, n.º 1 alínea h) do CIRE.
X.  Não pode a Recorrente concordar e conformar-se com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação .........., uma vez que à sociedade demonstrado quedou, pela factualidade dada como provada, encontrarem-se verificados os pressupostos do direito à resolução desse negócio, no caso concreto previstos no artigo 121º, n.º 1 alínea h) do CIRE (Resolução incondicional).
XI. As acções de impugnação da resolução em benefício da massa têm vindo a ser pacificamente qualificadas pela Jurisprudência como uma ação de simples apreciação negativa, sendo que com as mesmas apenas se pretende obter a declaração da inexistência do direito à resolução exercido pelo Sr. Administrador de Insolvência, vale dizer que compete ao Sr. Administrador de Insolvência provar os factos que invoca como fundamento da resolução e que são constitutivos do direito a resolver.
XII. Na presente ação (de simples apreciação negativa) pretende-se, repete-se, obter a declaração da inexistência do direito à resolução exercido pelo Sr. Administrador de Insolvência, ou seja, compete ao Sr. Administrador de Insolvência provar os factos que invoca como fundamento da resolução e que são constitutivos do direito a resolver.
XIII.           Conforme consta dos autos e da própria sentença proferida em 1ª instância, o Sr. Administrador de Insolvência, para a resolução em benefício da massa que declarou, justificou-a nos seguintes termos:
a) Na resolução incondicional, (nomeadamente) nos termos do disposto no artigo 121, n.º 1 h) do CIRE;
b) Na resolução condicional nos termos do disposto no artigo 120º do CIRE;
XIV.           Dispõe o artigo 121º, n.º 1 alínea h) do CIRE – Resolução incondicional- que “São resolúveis em benefício da massa insolvente os actos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos: h) Actos a título oneroso realizados pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte;
XV.            O Venerando Tribunal da Relação .......... entendeu que não se verificava preenchido o requisito previsto na alínea h) do n.º 1 do artigo 121º do CIRE.
XVI.           Cabe desde logo percutir o raciocínio prosseguido no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação .........., o Tribunal de primeira instância não efectuou qualquer conclusão simplista dos dados do aditamento ao contrato.
XVII. A questão a responder é: praticou a insolvente um acto oneroso dentro do ano anterior ao início do processo de insolvência, em que as suas obrigações tenham excedido manifestamente as da contraparte?
XVIII.         Encontramo-nos perante um contrato promessa de compra e venda válido e eficaz perante as partes, e sobre o qual foi celebrado um aditamento no mês anterior ao da declaração de Insolvência da Insolvente, este que configura, afinal, um acordo bilateral em ordem à redução do objeto do prometido negócio.
XIX.           Analisando o dito aditamento, sobre o qual versou a resolução operada pelo Sr. Administrador de Insolvência, verifica-se, a Insolvente prescindiu de receber 354.000,00€, tendo como contrapartida manter na sua esfera jurídica um prédio rústico que com a reestruturação de áreas passaria a ter 8.477,50m2, me vez dos originais 1.730,00m2.
XX.            O raciocínio que prossegue o Acórdão Recorrido desconsiderou totalmente um elemento absolutamente essencial para aferir do (des)equilíbrio das reciprocas prestações que, afinal deixavam as partes de ter de cumprir por força do aditamento posto em crise, quanto à determinação dos valores dos prédios – a sua capacidade ou não capacidade construtiva, porque, mesmo com a retificação de áreas, o prédio que a insolvente deixava de ter de entregar era terreno apenas com aptidão agrícola, de valor que em muito pouco acresceria ao que foi avaliado pelo Sr. Perito CC, aqui nos autos testemunha, pelo que nunca se poderia concluir pelo “cálculo” que o Tribunal da Relação fez perante a reestruturação de áreas a que alude o aditamento objeto de resolução.
XXI.           O Acórdão Recorrido não teve em consideração que o prédio que ficaria para a insolvente era terreno apenas com aptidão agrícola, de valor que em muito pouco acresceria ao avaliado pelo Sr. Perito CC.
XXII.          De igual modo, não foi tido em consideração pelo Acórdão Recorrido um elemento subjetivo essencial, queo énão poder ser olvidada a mais valia querepresenta para qualquer empresário, como o Autor, a aquisição de um bem imóvel limítrofe com aquele que o mesmo já explora.
XXIII.         Uma vez mais, a atribuição desse valor não tem que ver, apenas, com os bens imóveis intrinsecamente avaliados, mas sim com a complementaridade que cada um desses bens imóveis terá para o outro, ou seja, com a geometria que a associação desses dois bens atribui à atividade comercial e económica do Autor.
XXIV.        Foi nesse sentido que sempre o Autor teve interesse na aquisição desse bem imóvel, uma vez que a actividade que desenvolve de organização de eventos na sua quinta necessitava daqueles terrenos para uma maior rentabilização do negócio, bem como pela própria capacidade construtiva dos mesmos, motivo pelo qual, à data da celebração do contrato promessa de compra e venda, conforme até admitido por este em sede de audiência de julgamento, lhe pareceu mais do que justo o valor deaquisição de€ 750.000,00 por aquelesbensimóveis,atentaaenvolvência dos mesmos (e mesmo sem quaisquer mais valias realizadas).
XXV. No mais, não pode ser olvidado nunca que o negócio posto em crise constitui o aditamente efectuado a um contrato promessa de compra e venda válido e eficaz.
XXVI. Conforme muito bem refere o tribunal de 1ª instância na sua sentença, o A. em declarações de parte prestadas em audiência de julgamento, admite que os terrenos no contrato promessa valiam os € 750.000,00, e quando o diz refere-se aos terrenos ainda sem as alegadas benfeitorias que efectuou nos mesmos.
XXVII. Assim, tendo que os terrenos objecto do contrato promessa valiam realmente os € 750.000,00, perante o aditamento atacado através da resolução em benefício da massa insolvente efectuado pelo senhor administrador de insolvência, que refere um alegado acerto de áreas dos terrenos e a desobrigação da insolvente em vender um dos prédio em causa, que tem somente o valor de mercado de € 10.600,00, torna verdadeiramente escandalosa a desproporção das obrigações assumidas pelas partes nesse aditamento.
XXVIII. O acórdão recorrido analisou isoladamente e de forma assaz simplista as áreas dos terrenos em causa, sem que para o efeito se verificasse a aptidão que nutria de cada um dos imóveis e respectivas áreas, tendo consequentemente calculado valor de mercado para o prédio que a insolvente deixaria de ter de entregar como se igual fosse ao valor de mercado do prédio que assim quedaria como objecto da promessa de compra e venda, ou seja, calculou o valor do metro quadrado exactamente igual para prédio com capacidade construtiva e para prédio com mera aptidão agrícola.
XXIX. Mesmo com a rectificação de áreas, o prédio que ficaria para a insolvente era terreno apenas com aptidão agrícola, de valor que em muito pouco acresceria ao avaliado pelo senhor perito CC.
XXX. A alegada rectificação de áreas, através da qual o A. pretende fundamentar a justeza do aditamento em causa nos autos, não era de todo suficiente para concluir pela proporcionalidade das obrigações que assim foram assumidas pelas partes.
XXXI. Temos por certo, assim, que os terrenos objecto do contrato promessa valiam realmente € 750.000,00 o que, perante o aditamento atacado através da resolução em benefício da massa insolvente efectuada pelo senhor administrador da insolvência que refere um alegado acerto de áreas dos terrenos e a desobrigação da insolvente em vender um dos prédios em causa, o qual tão somente o valor mercado de € 10.600,00, torna escandalosa a desproporção das obrigações assumidas pelas partes.
XXXII. O acórdão ora recorrido com o raciocínio prosseguido, desconsiderou totalmente o contrato promessa validamente celebrado e eficaz entre as partes e perante o qual, livre e conscientemente, acordaram eles o preço para a sua alienação, conformando-se em que o valor do negócio nos termos em que o realizaram, os imóveis valiam efectivamente o montante de € 750.000,00 e que o fizeram ainda sem as benfeitorias efectuadas.
XXXIII. Tal como já referido em 1ª instância, o que há de juridicamente estabilizado é a obrigação incumprida do A. de entregar à insolvente (ou agora à massa insolvente) a quantia de mais € 354.000,00, caso pretendesse assegurar a realização da escritura definitiva de compra e venda do imóvel em causa e a seu direito a insolvente renunciou, com a contrapartida de não ter de vender um imóvel ao A. o qual tem seguramente valor de mercado manifestamente inferior a esse de € 354.000,00.
XXXIV. Tal renúncia ocorreu no “período crítico” anterior à data de início do processo de declaração de insolvência, vale dizer no ano anterior à data do início do processo de insolvência – artigo 121º, nº 1, alínea h), do CIRE.
XXXV. Sublinha-se, no que se encontra em crise nos autos para aferir da oportunidade da avaliação dos pressupostos da resolução desse negócio, o que vale é a data em que foi formalizado o aditamento em causa e que foi objecto de resolução, não quaisquer alegadas negociações entre 2014 e a data da sua formalização.
XXXVI. O aditamento posto em crise ocorreu em 4 de Janeiro de 2018, tendo a declaração de insolvência sido proferido em 19 de Fevereiro de 2018, é a data da assinatura do aditamento a que tem validade para efeitos do artigo 121º, nº 1, alínea h), do CIRE.
XXXVII. O douto acórdão proferido, aliás, desviando-se do fulcro sobre o que deveria decidir, oferece-se à recorrente, extravasou até os seus poderes de decisão, transparecendo, afinal, que estará a pronunciar-se sobre a justeza ou não do negócio primitivamente combinado, o que não é de todo o que nos autos de discute, sequer tal pedido formulou o Autor na acção instaurada.
XXXVIII. O que foi posto em crise nos autos e que para tanto o tribunal é efectivamente solicitado para decidir é, tendo em conta que foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, pelo qual, em contrapartida da promessa de alienação dos imóveis aí elencados, a insolvente receberia na conclusão do negócio prometido o preço de € 750.000,00, se foi prejudicial para a massa insolvente que aquela em perídoo crítico haja abdicado de vir a receber € 354.000,00, sendo contrapartida desobrigar-se de vender um dos prédios em causa, ainda que com áreas rectificadas, que tem valor de mercado em muito, mas muito, inferior a essa quantia.
XXXIX. Tudo o que torna evidente e escandalosa a desproporção das obrigações assumidas pelas partes no aditamento celebrado em 4 de Janeiro de 2018 e por isso foi declarado resolvido, o bastante para se concluir, aliás como bem o fez a douta sentença proferida em 1ª instância, rigorosamente preenchidos dos pressupostos previstos na alínea h) do nº 1, do artigo 121º do CIRE, vale dizer resolúvel acto a título oneroso realizado pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que a obrigação assumida por ele excede manifestamente o do contraparte.
XL - É por demais evidente, renova-se até à exaustão, violou crassamente o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação .......... o disposto no artigo 121º, nº 1, alínea h), do CIRE.
Contra-alegou o A., apresentando as seguintes conclusões:
A. A Recorrente apresentou as suas alegações como se de um verdadeiro recurso de revista se tratasse, ao abrigo dos artigos 671.º, 675.º e 676.º do CPC, conforme a própria parte indica, o que não se aplica no caso sub judicio porquanto viola o previsto no artigo 14.º n.º 1 do CIRE.
B. In casu, por se tratar de um apenso do processo de insolvência, seria exigível que a Recorrente apresentasse uma oposição das soluções dadas pelo Acórdão recorrido e pelo Acórdão fundamento quanto à mesma questão fundamental de direito.
C. Ou seja, o único mecanismo de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que a  Recorrente poderia utilizar passaria por “demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme” – conforme estipula a referida norma legal.
D. O que a Ré/Recorrente não fez.
E. Pelo que, resultando claro das normas legais vigentes, doutrina e jurisprudência – nos termos supra expostos – que a revista é exclusivamente admitida no art. 14.º, n.º 1, do CIRE para a oposição de julgados, não deve ser admitido este terceiro grau de jurisdição para o recurso apresentado pela Ré, razão pela qual deve o mesmo ser imediatamente rejeitado (nos termos do disposto nos artigos 641.º, n.º 2, alínea a), aplicável por remissão do artigo 679.º ambos do Código de Processo Civil, ambos aplicáveis ex vi do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE).
F. Por outro lado, e caso assim não se entenda, sempre se dirá que a Recorrente decalcou, ipsis verbis, nas suas conclusões, o teor das suas alegações.
G. Tal decalque encontra-se integralmente reproduzido supra, tendo-se demonstrado exaustivamente a cópia plena das alegações para as conclusões apresentadas, sem que qualquer pudor atormentasse a Recorrente ou a fizesse alterar os destaques a negrito, sublinhados ou pontuação utilizados.
H. Razão pela qual se entende que a conduta da Recorrente não pode justificar outra consequência que não seja a rejeição do recurso, inexistindo razões bastantes para lhe conceder qualquer prazo suplementar para a condensação ou síntese de conclusões que, na verdade, não existem.
I.    Assim, deve ser rejeitado o recurso interposto pela Recorrente, não se devendo sequer conhecer o seu objecto, nos termos previstos no artigo 641.º n.º 2 b), aplicável por remissão do artigo 679.º, ambos do Código de Processo Civil e ambos aplicáveis ex vi do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE.
Caso assim não se entenda,
J.   Sempre cumprirá referir que a Recorrente motivou o seu recurso com base numa alegada violação “crassa” perpetrada pelo Tribunal da Relação .......... no acórdão proferido, no que respeita ao disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea h) do CIRE.
K. Porquanto, entendeu que os factos provados fizeram preencher aquele preceito legal.
L. E, para tal, fundamenta a sua pretensão recursória, essencialmente, no facto de existir ou não capacidade construtiva em cada um dos imóveis em crise.
M. Ora, se bem apreciarmos os autos constatamos que tal questão nunca havia sido levantada pela Ré anteriormente.
N. Tal tema não foi discutido, nem apreciado e, por maioria de razão, não foi considerado provado, o que fez com que também não fosse reapreciado pelo Tribunal da Relação ...........
O. Ou seja, a Recorrente assenta o seu recurso – que, reitere-se, nem sequer é admissível – num facto totalmente novo.
P. Posto isto, uma vez que tal questão não foi oportunamente alegada, nem resultou provada, não pode por isso ser levada em conta, estando vedada a sua apreciação ao tribunal, nos termos do disposto no artº 608 nº 2 do C.P.C.
Q. Nesse sentido, elucidou, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/102013, in. www.dgsi.pt : “no direito português, os recursos ordinários, como é o caso, são de reponderação; visam a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento; o que significa que o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados. Daí o dizer-se que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não meios de julgamentos de questões novas; estando por isso excluída a possibilidade de alegação de factos novos na instância de recurso…”.

II – FACTOS PROVADOS.
Foi considerado provado:
A. Por sentença proferida nos autos principais a 19 de Fevereiro de 2018, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de BB
B. O senhor Administrador da Insolvência, Dr. DD, através de comunicação remetida ao Autor, AA, em 4 de Junho de 2018, declarou proceder à resolução em benefício da massa insolvente de BB do negócio formalizado por documento designado com a epígrafe “Aditamento ao Contrato Promessa de Compra e Venda celebrado a 29 de Abril de 2009”, outorgado entre aquele e a Insolvente a 4 de Janeiro de 2018.
C. Em 29 de Abril de 2009, por escrito particular, entre A. e insolvente foi celebrado um acordo de promessa de compra e venda, nos termos do qual a insolvente lhe prometeu vender os seguintes prédios:
a) Prédio misto, sito no Lugar ...., freguesia ....., concelho ......, inscrito na matriz predial urbana da extinta freguesia ..... sob o artigo 10.., correspondente ao atual artigo ..72 da União de freguesias ........... e na matriz predial rustica da extinta freguesia ..... sob o artigo ..13 correspondente ao atual artigo ..14 da União de freguesias ..........., descrito na Conservatória de Registo Predial ...... com o n.º ..66;
b) Prédio rústico, sito no Lugar ...., freguesia ....., concelho ......, inscrito na matriz predial rustica da extinta freguesia ..... sob o artigo ..19 correspondente ao atual artigo …..91 da União de freguesias ..........., descrito na Conservatória de Registo Predial ...... com o n.º 47..;
D. O preço acordado para aquisição dos referidos imóveis foi de 750.000,00€ (setecentos e cinquenta mil euros).
E. Também por escrito particular de 18 de Junho de 2009, o A. e insolvente fizeram um aditamento ao acordo atrás referido, fixando os termos e as datas em que se procederia ao pagamento das quantias a liquidar por conta do preço, sendo o pagamento do A. realizado em prestações, a última das quais (que constituiria a quantia total de € 750.000,00) realizada a 30 de Setembro de 2014 no valor de € 31.500,00.
F. Em obediência ao acordado, o A. pagou à insolvente a quantia de 396.000,00€ (trezentos e noventa e seis mil euros), que a insolvente reconheceu ter recebido.
G. No dia 4 de Janeiro de 2018, A. e insolvente celebraram um aditamento ao acordo referido em C), assinado por ambas as partes, de onde consta que:
“f) Os outorgantes estão de acordo em que o acerto de contas relativo a direitos e obrigações reciprocamente assumidas passa por considerar que o segundo outorgante (o aqui A.) não terá de entregar à primeira outorgante (a insolvente) mais qualquer quantia por conta do preço do negócio para além das quantias já entregues e que, em contrapartida, o objecto do negócio será reduzido através da restituição, à primeira outorgante, pelo segundo outorgante, de uma parte da área total dos prédios prometidos comprar.”
H. Mais consta que: “PRIMEIRA
A primeira outorgante promete vender ao segundo outorgante, e este, por sua vez, promete comprar àquela, o prédio misto sito no Lugar …, freguesia ....., concelho ......, inscrito na matriz predial urbana da extinta freguesia ..... sob o artigo 10..º (correspondente ao atual artigo ..72 da União de freguesias ...........), e na matriz predial rústica da extinta freguesia ..... sob o artigo ..13 (correspondente ao atual artigo ..14º da União de freguesias ..........., descrito na Conservatória de Registo Predial ...... com o numero ..66 (…)”
I. Consta ainda: “TERCEIRA
Pela compra do referido prédio, o segundo outorgante não terá de pagar qualquer quantia à primeira outorgante, uma vez que os outorgantes estão de acordo em que a quantia entregue até à data por conta do preço, acima referida, corresponde ao preço da aquisição do mesmo prédio.
QUARTA
Em contrapartida, a primeira outorgante manterá na sua esfera jurídica a posse e a propriedade do prédio rústico, sito no Lugar ...., freguesia ....., concelho ......, inscrito na matriz predial rustica da extinta freguesia ..... sob o artigo ..19 correspondente ao atual artigo ..91 da União de freguesias ..........., descrito na Conservatória de Registo Predial ...... com o n.º 47...”
J. Consta também: “SÉTIMA
A primeira outorgante autoriza o segundo outorgante a permanecer na posse do prédio ora prometido (…).
K. E ainda: “DÉCIMA TERCEIRA
As partes declaram expressamente que pretendem atribuir eficácia real ao presente contrato, do qual este aditamento faz parte integrante, nos termos e para os efeitos previstos no art. 413º do Código Civil.”
L. O prédio supra descrito em C) – b) tem o valor de mercado de € 10.600,00.
L1. O prédio supra descrito em C-a), com a área de 17.154,00 m2, que lhe estava atribuída no primitivo contrato promessa, teria o valor de mercado de € 422.225,00 e o valor de liquidação de € 358.900,00, não se tendo apurado o valor do mesmo prédio, agora com a área de 10.529,00 m2, resultante da reconfiguração de áreas que as partes acordaram no aditamento daquele contrato. O prédio supra descrito em C-b), com a área de 1.730 m2, que lhe estava atribuída no primitivo contrato promessa, teria o valor de mercado de € 10.600,00, não se tendo apurado o valor do mesmo prédio, agora com a área de 8.477,50 m2, resultante da reconfiguração de áreas que as partes acordaram no aditamento aquele contrato.
(os factos referidos em L1 foram aditados pelo acórdão recorrido na sequência de impugnação contra a decisão de facto).
 
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1 – Admissibilidade do presente recurso de revista.
 2 - Impugnação da resolução em benefício da massa insolvente efectuada pelo administrador ao abrigo do disposto no artigo 121º, nº 1, alínea h), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE). Análise da ausência de proporcionalidade e equilíbrio das obrigações assumidas pela promitente vendedora e pelo promitente comprador no aditamento ao contrato promessa realizado em 4 de Janeiro de 2018 (cerca de um mês e meio antes da declaração de insolvência da promitente vendedora), na perspectiva da aplicação, ou não, da disposição legal referida.  
Passemos à sua análise:
1 – Admissibilidade do presente recurso de revista.
As razões para a admissibilidade da presente revista encontram-se expressas no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido em Conferência e que teve por objecto a reclamação apresentada pela recorrente nos termos e para os efeitos do artigo 643º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Por outro lado, embora as alegações apresentadas pela recorrente pudessem ter sido mais concisas, depurando considerações excessivas e não essenciais, a mesma acabou por cumprir minimamente o dever de síntese exigido no artigo 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, não se justificando, por desnecessária, a prolação de qualquer convite ao aperfeiçoamento ou, muito menos, a rejeição do recurso, conforme pretendeu a recorrida.
2 - Impugnação da resolução em benefício da massa insolvente efectuada pelo administrador ao abrigo do disposto no artigo 121º, nº 1, alínea h), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (vulgo CIRE). Análise da ausência de proporcionalidade e equilíbrio das obrigações assumidas pela promitente vendedora e pelo promitente comprador no aditamento ao contrato promessa realizado em 4 de Janeiro de 2018 (cerca de um mês e meio antes da declaração de insolvência da promitente vendedora), na perspectiva da aplicação, ou não, da disposição legal referida. 
Nos termos do artigo 120º, nº 1 do CIRE: “Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os actos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data de início do processo de insolvência”.
Acrescenta o nº 3 do mesmo preceito legal:
“Presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados”.
Nestas circunstâncias, dispõe o artigo 121º, nº 1, alínea h), do CIRE, sob a epígrafe “Resolução incondicional”:
“São resolúveis em benefício da massa insolvente os actos seguidamente indicados, sem dependência de quaisquer outros requisitos:
“(...)Actos a título oneroso realizados pelo insolvente dentro do ano anterior à data do início do processo de insolvência em que as obrigações por ele assumidas excedam manifestamente as da contraparte”.
Conforme refere Miguel Teixeira de Sousa in anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 2014 (relator Salazar Casanova), proferido no processo nº 1936/10, publicada in “Cadernos de Direito Privado”, nº 50, Abril-Junho de 2015, a páginas 59:
“A justificação para a resolução em benefício da massa insolvente encontra-se fundamentalmente na par conditio creditorum, que caracteriza o processo de insolvência: nenhum credor, seja porque goza das especiais simpatias do devedor insolvente, seja porque pode exercer sobre este alguma pressão, deve ser beneficiado por um negócio que venha a ser celebrado por esse devedor, pois que a massa insolvente não deve diminuir em benefício de um credor e prejuízo dos demais. A finalidade da resolução é manter ou recuperar, em benefício de todos os credores, um certo valor patrimonial para a massa insolvente. (...) Para se analisar se um acto é prejudicial à massa insolvente há que realizar um juízo hipotético, dado que importa comparar a situação patrimonial (real) que se verifica após a prática do acto com a situação (hipotética) que se verificaria se o acto não tivesse sido praticado. O acto realizado é resolúvel quando aquela situação real for mais desfavorável à massa do que esta situação hipotética”.
Salienta, por seu turno, Maria do Rosário Epifânio in “Manual do Direito da Insolvência”, Almedina, Outubro de 2020, 7ª edição, a página 253: “O artigo 121º regula as situações legalmente designadas de resolução incondicional. O termo poderá ser equívoco, uma vez que não designa uma resolução independente de quaisquer requisitos, mas sim a sua independência face aos pressupostos legais previstos para a resolução condicional: não se exige a alegação e prova do prazo de dois anos, o carácter prejudicial à massa, a má fé de terceiro”.
Sobre o conteúdo desta alínea h) do nº 1 do artigo 121º do CIRE, escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, Lisboa 2008, a páginas 435 a 436:
“A alínea h) rege quanto a actos de carácter oneroso que, por isso mesmo, envolvendo contrapartida patrimonial para o devedor, não acarretam, em regra, prejuízo para a massa insolvente.
Nesta base, para além do tempo em que são praticados – até um ano antes da data do início do processo -, a lei atende aqui ao seu conteúdo.
Assim, um acto oneroso, mesmo que praticado nesse período, só é resolúvel se a obrigação nele assumida pelo insolvente for manifestamente excessiva em confronto com a atribuída à contrapartida. Configura-se, pois, a clássica situação de laesio ultra dimidium, ou seja, a situação objectiva que também caracteriza a usura (artigo 282º do Código Civil).
Como é manifesto, um acto que envolva lesão enorme para o insolvente prejudica a massa, por afectar a satisfação dos credores”.
Conforme salienta a este propósito Catarina Serra, in “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, Fevereiro de 2021, 2ª edição, a página 241:
“(...) dir-se-á que o legislador deu especial importância à (falta de) equivalência entre as prestações patrimoniais. (...) Torna-se, portanto, compreensível que a resolução seja independente dos requisitos habituais””.
Ainda sobre a interpretação da alínea h) do nº 1 do artigo 121º do CIRE, escreve Fernando Gravato de Morais in “Resolução em Benefício da Massa Insolvente”, Almedina, Abril de 2008, a páginas 135 a 136:
“Deve existir, por um lado, uma falta de equivalência, uma desproporcionalidade, entre as prestações das partes. Por sua vez, a parte mais onerada deve ser, in casu, o devedor insolvente, o que significa consequentemente que há um prejuízo para a massa insolvente. Não basta, porém, o mero excesso. Ele deve ser ainda manifesto. Impõe-se, por isso, estabelecer parâmetros para a sua concretização.
(...) A nosso ver, só caso a caso, em função do específico bem alienado, se pode concretizar a percentagem que corresponde ao excesso manifesto. Perspectivamos, todavia, o valor de 30% como tendencialmente susceptível de, verificada a restante factualidade do normativo, justificar a resolução em benefício da massa insolvente.
Visa-se impedir actuações abusivas do devedor insolvente em detrimento dos credores da insolvência. Se se considerasse um valor percentual mais elevado podia esvaziar-se com facilidade a massa insolvente.
Não se mostra necessária, por outro lado, a consciência desse excesso, basta que ele ocorra de facto. Acolhe-se, assim, uma concepção objectiva quando ao que representa o excesso manifesto. É indiferente, para o efeito da resolubilidade do acto, a causa que subjaz a esse excesso e se há razões subjectivas justificativas para ele. Só assim se consegue tutelar melhor os credores do insolvente”.
(Sobre esta matéria, vide também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Março de 2021 (relator José Manso Rainho), proferido no processo nº 195/14.6TYVN.G.E.P2.S1, publicado in www.dgsi, onde se enfatiza que “não é elemento integrante daquela norma (h) do nº 1 do artigo 121º do CIRE) a prova de que o valor do bem objecto da resolução iria ser atingido (...) Condição necessária, mas também suficiente, é que se registe uma desproporção manifesta entre o valor daquilo que reverteu para o património da insolvente e o valor daquilo (...) que a ora recorrente dela recebeu”).
Poder-se-á portanto concluir que a alínea h) do nº 1 do artigo 121º do CIRE é aplicável aos actos de carácter oneroso, praticados no ano anterior ao início do processo de insolvência, que consubstanciem situações em que se verifique manifesta desproporção entre as obrigações assumidas pelo insolvente relativamente às da contraparte, reflectidas na expressiva, objectiva e gritante ausência de equivalência entre as prestações patrimoniais firmadas, em nítido desfavor do insolvente e, reflexamente, dos interesses dos seus credores no processo de insolvência iminente.
(versando precisamente sobre uma situação de validade do exercício do direito de resolução em benefício da massa insolvente, com fundamento na alínea h) do nº 1 do artigo 121º do CIRE, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Outubro de 2017 (relator João Moreira Camilo), proferido no processo nº 202/14.2T8STS-H.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde estava em causa a venda de um imóvel pelo devedor a um terceiro pelo preço de € 200.000,00, cerca de dois meses antes da sua declaração de insolvência, tendo sido apurado nos autos que um bem com as características e localização daquele que foi vendido teria valor superior a € 250.000,00).
Conforme resulta do artigo 120º, números 2 e 4, do CIRE, tais actos presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, não existindo qualquer necessidade da demonstração da má fé do terceiro que celebrou os actos com o insolvente, constituindo nessa medida uma presunção juris et de jure.
Na situação sub judice, o acto oneroso que foi objecto do exercício do direito de resolução em benefício da massa insolvente consistiu num aditamento realizado em 4 de Janeiro de 2018 (cerca de um mês de meio antes da declaração de insolvência da promitente vendedora, que ocorreu em 19 de Fevereiro de 2018) a um contrato promessa celebrado entre as partes em 29 de Abril de 2009.
A situação factual em análise pode descrever-se sinteticamente da seguinte forma:
1º Em 29 de Abril de 2009, a ora insolvente, na qualidade de promitente vendedora, e o ora A., enquanto promitente comprador, celebraram entre si um contrato promessa de compra e venda que teve como objecto imóveis de diferente natureza: um prédio misto e um prédio rústico, os quais seriam transmitidos pelo preço unitário de € 750.000,00 (setencentos e cinquenta mil euros).
2º - Em cumprimento desse contrato promessa, o ora A. pagou à ora promitente vendedora (ora insolvente) o valor total de € 396.000,00 (trezentos e noventa e seis mil euros), ficando assim por satisfazer o montante em falta de € 354.000,00 (trezentos e cinquenta e quatro mil euros).
3º - No dia 4 de Janeiro de 2018, é consumado entre as partes um aditamento ao contrato promessa em causa com o seguinte conteúdo essencial:
- o promitente comprador, ora A., nada mais tem a entregar à promitente vendedora, deixando esta de receber os outrora acordados € 354.000,00 (trezentos e cinquenta e quatro mil euros).
- em contrapartida, desaparece a obrigação de transferência de propriedade em relação ao imóvel de natureza rústica, cujo valor era, com as configurações fixadas no primitivo contrato promessa, de € 10.600,00 (dez mil e seiscentos euros).
- reduz-se, desta forma e por consenso entre os contraentes, o objecto do contrato promessa apenas ao prédio de natureza mista, sendo as respectivas áreas reconfiguradas: o prédio de natureza mista (cujo obrigação de transmissão da propriedade em favor do promitente comprador se mantém), passa a ter a área de 10.529 m2, em vez dos 17.154 m2 que lhe estava atribuída na primitiva versão do contrato promessa, tendo então o valor de mercado de € 422.225,00; o prédio rústico, sobre o qual deixa de existir obrigação de transmissão, passa a ter a área de 8.477,50 m2, em vez da área primitiva de 1.730 m2.
- não ficou apurado nos autos o exacto valor actual de qualquer dos dois prédios após a alteração das configurações (o prédio misto agora com 10.529 m2 e o prédio rústico com 8.477,50 m2).
- as partes fixaram eficária real ao contrato promessa resultante do aditamento, nos termos do artigo 413º do Código Civil, tendo ainda a promitente vendedora reconhecido formalmente a manutenção da posse sobre o imóvel a transmitir até aí exercida pelo promitente comprador.
Vejamos:
As decisões contraditórias proferidas em 1ª instância e no Tribunal da Relação .......... (que revogou a primeira) assentam em pressupostos diversos:
Na sentença proferida no Tribunal Judicial da Comarca de Braga foi usado um critério (praticamente) aritmético: no contrato promessa inicial estabeleceu-se a obrigação de pagamento da quantia de € 750.000,00 à promitente vendedora pela transferência da propriedade dos dois imóveis (prédio misto e prédio rústico); antes da celebração do mencionado aditamento, a promitente vendedora teria ainda direito a receber a quantia de € 354.000,00 em falta; por via do instrumento negocial em crise a insolvente renunciou ao recebimento dessa verba, contentando-se com a redução do negócio, permanecendo na sua esfera jurídica apenas o prédio rústico que tinha o valor de € 10.600,00.
Daí, face à flagrante disparidade entre os valores em confronto, concluiu-se pela óbvia verificação da situação tipo prevista a alínea h) do nº 1 do artigo 121º do CIRE, que habilitou o administrador da insolvência a resolver o negócio (aditamento ao contrato promessa), tendo-o feito validamente e em benefício da massa insolvente.
No acórdão do Tribunal da Relação .......... o raciocínio adoptado foi substancialmente diferente:
Partiu-se da alteração da decisão de facto a que o colectivo de juízes desembargadores procedeu, tendo-se determinado que passasse a constar a reconfiguração das áreas do prédio misto e do prédio rústico previstos no contrato promessa, operada no mencionado aditamento, bem como a ausência de demonstração do exacto valor actual em relação a qualquer deles (quer em relação prédio misto, quer ao prédio rústico).
De seguida, o acórdão recorrido assentou o seu juízo de revogação da sentença  nos seguintes pontos essenciais:
- sendo a acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente uma acção de simples apreciação negativa, compete ao administrador da insolvência a prova dos factos que invoca como fundamento da resolução do contrato.
- não pode considerar-se irrelevante a prova efectuada quanto às negociações encetadas pelas partes, desde 2014, para resolver o problema da excessiva valorização do prédios naquele primeiro contrato, que culminaram na celebração do aditamento ora em causa.
- o insolvente já se viu ressarcida do preço do imóvel prometido vender ao A.
- o A. prescindiu de um dos prédios incluídos no negócio original.
- A ré passou a ter uma área muito maior do que a que tinha no negócio inicial (quanto ao prédio rústico, objecto da redução do negócio).
- Não há prova de que as obrigações assumidas pela Ré no aditamento ao contrato promessa tivessem excedido manifestamente as da contraparte.
- O valor das benfeitorias, construídas pelo A. no prédio, não foram sequer contabilizadas.
Apreciando:
Não há dúvida de que, revestindo a presente acção a natureza de simples apreciação negativa, a prova dos factos constitutivos do exercício do direito de resolução em benefício da massa insolvente incumbe ao administrador da insolvência que a ela (extrajudicialmente) procedeu, nos termos gerais do artigo 343º, nº 1, do Código Civil.
(neste sentido, vide entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Fevereiro de 2014 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo nº 251/09.2TYVNG-H.P1.S1; o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de Julho de 2019 (relator António Barateiro), proferido no processo nº 4648/17.6T8LRA-C.C1; o acórdão de 24 de Maio de 2011 (relator Carlos Gil), proferido no processo nº 1791/08.6TBLRA-K.C1, todos publicados in www.dgsi.pt).
Acontece, porém, que o acórdão recorrido fundou-se em proposições que não encontram a mais leve tradução ou correspondência no elenco dos factos dados como provados, deles não se inferindo minimamente.
Com efeito, não consta dos autos qualquer facto dado como provado relativamente ao teor das negociações travadas entre as partes e que terão antecedido e culminado na formalização do “aditamento ao contrato promessa” datado de 4 de Janeiro de 2018; o mesmo sucede quanto à eventual realização de benfeitorias no prédio, mormente circunstâncias da sua feitura (em particular a autorização do proprietário, bem como a sua contabilização futura) e respectiva expressão económica; também não há prova rigosamente nenhuma de que “a promitente compradora, ora insolvente, já se tenha visto ressarcida do preço do imóvel prometido vender ao A.”.
Todas as diversas considerações expendidas no acórdão recorrido sobre tais matérias – determinantes para a revogação da sentença recorrida - não encontram o menor suporte no elenco dos factos dados como provados, sendo dessa forma infundada e despropositada a sua invocação para o conhecimento do mérito do recurso.
Com efeito, as conclusões que se devem retirar neste plano têm que resultar forçosamente daquilo que foi dado como provado no processo, e não do que, embora (e porventura) abordado, sugerido ou eventualmente discutido nos autos, não logrou obter a mais leve correspondência ou confirmação formal no quadro do acervo factual considerado como demonstrado pelas instâncias.
(Saliente-se que a competência do Supremo Tribunal de Justiça encontra-se, em regra, confinada à apreciação dos factos materiais fixados, sem possibilidade de alteração, conforme resulta do disposto nos artigos 682º, nº 1 e 2, e 674º, nº 3, do Código de Processo Civil).
Assim sendo, o que se encontra provado nos autos – e que nessa medida relevará para a decisão de direito - é que o A. se vinculou, em 29 de Abril de 2009, a adquirir, em conjunto, ambos os imóveis (prédio misto e prédio rústico) por € 750.000,00, chegando a entregar, por conta deste montante global, verbas que totalizaram € 396.000,00.
Foi esse (e não outro) o valor pecuniário concreto e efectivo que ambas as partes consideraram justo, adequado e equilibrado para satisfazer os respectivos interesses negociais, a ele sinalagmaticamente se vinculando, por consenso e por escrito, tendo-se aliás mantido inalterado durante quase uma década (de 2009 a 2018), até à realização do citado aditamento ao contrato promessa, numa altura de graves dificuldades económicas da promitente vendedora, que daí a pouco mais de um mês se apresentou à insolvência.
Importa, neste sentido, salientar que, desde Abril de 2009 até à realização do dito aditamento ao contrato promessa, não instaurou o A. (promitente comprador) qualquer acção judicial tendente a colocar causa a validade jurídica do negócio (contrato promessa), impugnando designadamente a justeza ou adequação do montante do preço global que se prontificou (voluntariamente) pagar à promitente vendedora pela transmissão dos imóveis, ou invocando qualquer erro por vício da vontade ou da declaração que justificasse ou impusesse a modificação dos seus termos.
Podendo perfeitamente tê-lo feito, o certo é que – durante quase nove anos - não o fez.
Cumpre ainda atentar em que o preço livremente acertado entre os celebrantes para a futura transmissão da propriedade de determinados bens pode não corresponder, necessariamente, ao valor comercial ou económico destes, abstractamente considerado, ficando antes a dever-se ao interesse específico, concreto ou particular, de quem se dispõe a adquiri-los com vista à destinação que bem lhe aprouver, vinculando-se àquele concreto pagamento por razões ou estratégias pessoais e subjectivas que só ao mesmo dizem respeito.
Ou seja, o preço a pagar não tem que coincidir sequer com valor de mercado do bem, calculado por avaliação pericial ou outra, traduzindo, ao invés, o esforço ou sacrifício económico concreto que o interessado/adquirente entende dever suportar para vê-lo ingressar na sua esfera jurídica, passando a dispor dele como seu.  
Os elementos objectivos, certos e incontornáveis, a tomar em consideração são aqueles que os autos inegavelmente revelam:
1º - o A. ainda não entregou à promitente vendedora a acordada verba de € 354.000,00, próxima da metade do valor do preço global fixado inicialmente (€ 750.000,00);
2º - no aditamento ao contrato promessa, consumado cerca de um mês e meio antes da declaração de insolvência da promitente vendedora, esta abdicou de o receber.
3º - Em troca dessa renúncia ao recebimento do preço em falta, a promitente vendedora aceitou manter na sua titularidade o prédio rústico que tinha sido inicialmente incluído no contrato promessa, tendo então, sem reconfiguração da sua área, o valor real de € 10.600,00.
4º - Simultaneamente, os celebrantes não só reconheceram formalmente a posse do promitente comprador, como entenderam fixar agora eficácia real ao negócio, nos termos gerais do artigo 413º do Código Civil, garantindo assim, totalmente e de forma absoluta, os exclusivos interesses do promitente adquirente, não se descortinando qual o interesse ou vantagem da promitente vendedora na fixação desta cláusula, que nem sequer é usual neste tipo de negócios.
A única questão que poderia obstar à verificação da situação tipo prevista na alínea h) do nº 1 do artigo 121º, nº 1, do CIRE, tem a ver com a previsão de reconfiguração de áreas dos imóveis a transmitir e a não transmitir, que as partes decidiram incluir neste aditamento, possibilitando considerar a redução do objecto do negócio a que procederam.
Diga-se, ainda, que esta concreta questão (o valor da maior área acrescentada, no aditamento do contrato, aos prédios rústicos que se consolidaram na titularidade da promitente vendedora) não constituiu fundamento em que o A. tivesse estribado sequer a sua causa de pedir e consequente pedido, não lhe conferindo especial atenção ou enfâse – chegando mesmo a afirmar, no seu articulado (artigo 64º da p.i), que afinal “tais prédios já nem pertenceriam à promitente vendedora”.  
Em termos proporcionais, socorrendo-nos de uma mera operação aritmética (de três simples), verifica-se que o valor do prédio misto, com a área reconfigurada para menos, seria, sempre e em qualquer circunstância, muito superior ao do prédio rústico, com a área alterada para mais.
Ou seja, o prédio rústico, com aptidão agrícola e menor rentabilidade, que foi retirado do âmbito do contrato promessa teria, em qualquer caso e como é objectivo e manifesto, uma expressão económica muito inferior ao prédio misto – muito mais valorizável economicamente -, que aí permaneceu para ser imediatamente transmitido ao promitente comprador.
Tal diferenciação de valorização comercial e económica entre um prédio misto e de um prédio rústico (de vocação agrícola) é absolutamente evidente e inegável, não tendo sido sequer refutada ao longo deste processo (nunca tendo o A. feito a menor alusão, nos seus articulados, ao valor dos prédios rústicos excluídos no aditamento ao contrato promessa).
O que significa que do aditamento realizado resulta objectivamente uma situação de flagrante e manifesta desproporcionalidade das obrigações assumidas pelos contraentes, em claro e flagrante desfavor da promitente vendedora.
Concretamente, o A. passou a assegurar para si, desde logo, a titularidade do prédio que verdadeiramente lhe interessava e que era o mais valioso e mais rentável, sem ter de pagar mais quantia alguma à vendedora, limitando-se a abrir mão de um terreno de aptidão agrícola e de significado económico e comercial incomparavelmente inferior (nota-se que estava então por pagar quase metade do valor em dívida em relação ao preço fixado inicialmente - e que é o único elemento que, por relevante, importa equacionar  para estes efeitos).
Paralelamente, a insolvente, não só deixou de ter hipóteses de optar pelo eventual incumprimento do contrato promessa (sujeitando-se às sanções correspondentes e previstas na lei), como abdicou de receber qualquer importância pecuniária em função desta alteração contratual, em troca de mais alguma área de terreno com aptidão agrícola - desde o início muitíssimo menos valorizado que o prédio misto, de área bem superior –, que bem sabia vir a tornar-se, muito em breve, a única garantia dos seus credores (resultante deste negócio), no contexto da insolvência que se avizinhava e à qual voluntariamente se apresentou pouco tempo depois.
No fundo, este aditamento constituiu – perante os factos dados como provados (e não outros que o não foram) – um negócio objectivamente desequilibrado e penalizador para a promitente vendedora, sendo ao invés, altamente vantajoso e muitíssimo oportuno para o promitente comprador, só se compreendendo racionalmente pela iminente insolvência que a primeira viria a promover a muito breve trecho.
(Não deixa de ser curioso que a própria promitente vendedora, na sua apresentação à insolvência, relacionou como crédito de que era titular o montante de € 354.000,00 que ficou de receber do promitente vendedor – cfr. artigo 22º do seu articulado, entrado em juízo em 15 de Fevereiro de 2018, fazendo “tábua rasa” do aditamento contratual ora em causa)
Tendo em conta apenas os factos dados como provados (e não outros) – e sem trazer para esta análise factos novos não discutidos nas instâncias -, não existe qualquer tipo de explicação lógica e racional para a ora insolvente anuir na alteração contratual em causa que só a prejudicava, aceitando uma nova posição muitíssimo mais desvantajosa do que a anterior e abrindo mão do recebimento de uma importância muito significativa (€ 354.000,00) em troca somente de uma maior área de terreno  rústico, de expressão económica muito inferior ao do prédio misto a transmitir.
Isto com efeito translativo imediato, garantido pela (invulgar) cláusula de fixação de eficácia real ao contrato promessa e reconhecimento formal da posse do promitente comprador, condicionando por esse meio a futura actuação do administrador da insolvência face ao disposto no artigo 106º, nº 1, do CIRE, segundo o qual: “No caso de insolvência do promitente vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”.
Pelo que se encontra preenchida, a nosso ver, a previsão da alínea h) do nº 1 do artigo 121, do CIRE.
Concede-se, portanto, a revista.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e subsistindo a decisão proferida em 1ª instância.
Custas pelo A. recorrido.

                                



Lisboa, 22 de Setembro de 2021.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida

(Atesto o voto de conformidade do Exmº. Conselheiro Pinto de Almeida que não assina por não se encontrar fisicamente presente, tendo participado na sessão através de videoconferência).


V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.