CONTRATO DE COMPRA E VENDA MERCANTIL
DESCONFORMIDADE DA COISA
ÓNUS DO ADQUIRENTE
PRAZO DE DENÚNCIA DOS DEFEITOS DA COISA VENDIDA
Sumário

I - Celebrado contrato de compra e venda mercantil, cabe ao comprador, adquirente da coisa, alegar e provar que esta era desconforme ao contrato ou sofria de defeito que a tornava inapta ao fim acordado (artº 342º, nº 1 e 916º do C.C.), como forma de se eximir do pagamento da coisa vendida.
II - A denúncia dos defeitos da compra e venda mercantil, está sujeita aos prazos previstos no artº 571º do C.Comercial.
III - Nesse caso, ao vendedor a quem é oposta a existência de defeitos da coisa cabe o ónus de alegar e provar o decurso do prazo, não podendo a aludida exceção ser oficiosamente conhecida pelo tribunal, por respeitar a matéria não excluída da disponibilidade das partes, conforme decorre do disposto nos artºs 333º, nºs 1 e 2, e 303º, do C.C.
IV-Não invocada nos autos em primeira instância a caducidade da denúncia dos defeitos, está vedado ao recorrente invocá-la em sede de recurso, por constituir questão nova não susceptível de conhecimento e apreciação em segunda instância.
V-Sendo invocado que no âmbito deste contrato de compra e venda foram entregues paletes ao vendedor, a cessação do referido contrato obriga à restituição da coisa entregue (artº 1137º do C.C.)
VI-Não entregue voluntariamente, o comodante só tem direito a uma indemnização consistente no valor da coisa, se alegar e provar que esta se perdeu ou deteriorou por causa imputável ao comodatário.

Texto Integral

SUMÁRIO ELABORADO E DA RESPONSABILIDADE DO RELATOR (ARTº 667., Nº3 DO C.P.C.)

I-Celebrado contrato de compra e venda mercantil, cabe ao comprador adquirente da coisa, alegar e provar que esta era desconforme ao contrato ou sofria de defeito que a tornava inapta ao fim acordado (artº 342º, nº 1 e 916º do C.C.), como forma de se eximir do pagamento da cosia vendida.

II-A denúncia dos defeitos da compra e venda mercantil está sujeita aos prazos previstos no artº 571º do C.Comercial.

III-Nesse caso, ao vendedor a quem é oposta a existência de defeitos da coisa cabe o ónus de alegar e provar o decurso do prazo, não podendo a aludida exceção ser oficiosamente conhecida pelo tribunal, por respeitar a matéria não excluída da disponibilidade das partes, conforme decorre do disposto nos artºs 333º, nºs 1 e 2, e 303º do C.C.

IV-Não invocada nos autos em primeira instância a caducidade da denúncia dos defeitos, está

 vedado ao recorrente invocá-la em sede de recurso, por constituir questão nova não susceptível de conhecimento e apreciação em segunda instância.

V-Sendo invocado que no âmbito deste contrato de compra e venda foram entregues paletes ao vendedor, a cessação do referido contrato obriga à restituição da coisa entregue (artº 1137º do C.C.)

VI-Não entregue voluntariamente, o comodante só tem direito a uma indemnização consistente no valor da coisa, se alegar e provar que esta se perdeu ou deteriorou por causa imputável ao comodatário.   

Proc. Nº 527/19.0T8FND.C1-Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco - Juízo Local Cível do Fundão

Recorrente: C..., Lda.

Recorrido: A..., S.A.

Juiza Desembargadora Relatora: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Jaime Ferreira

                                                                Teresa Albuquerque


Acordam os Juízes da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO


C..., Lda. intentou ação declarativa, sob a forma única de processo comum, contra a sociedade comercial A..., S.A., peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia de €42.452,49 (quarenta e dois mil, quatrocentos e cinquenta e dois euros e quarenta e nove cêntimos) e inerentes juros de mora, devida no âmbito de um contrato de compra e venda de pêra rocha celebrado com a R. e objeto da fatura com o n.º ... que, enviada à R. e por esta não reclamada, não foi paga.

*

Regularmente citada, veio a ré alegar, em síntese, que a A. incumpriu o contrato celebrado, quer quanto às quantidades, embalagem e preço/kilo da referida pêra rocha, pelo que o montante constante da aludida fatura não é devido na sua totalidade, mas apenas no montante de €6.509,45.

Em sede de reconvenção peticionou a condenação da A. a pagar à ré a quantia de €7.011,00 (sete mil e onze euros), referente aos palotes que foram objeto de empréstimo à A. e não devolvidos à R. bem como que seja declarado compensado e, consequentemente, julgado extinto o crédito, no valor de €6.509,45, que a A./ Reconvinda detinha sobre a R., sendo a A./ Reconvinda condenada a pagar à R., Reconvinte, a quantia remanescente de €501,55, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, calculada desde a data da notificação da A. até integral e efetivo pagamento.

Mais peticionou a condenação da A. como litigante de má-fé, em multa e indemnização à R., por ter alterado a realidade dos factos, deduzido pretensão cuja falta de fundamento não poderia ignorar, com o fim de conseguir um objetivo ilegal.


*

Foi após designada audiência prévia, na qual, proferido despacho saneador, foi fixado o objeto do litígio e identificados os temas da prova.

Procedeu-se à realização da audiência de julgamento, finda a qual foi proferida sentença que decidiu julgar a “ação parcialmente procedente e a reconvenção procedente e, em consequência:

A. Condeno a ré A..., S.A. a pagar à autora C..., Lda., a quantia de €7.073,71 (sete mil e setenta e três euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros legais vencidos desde a citação (em 02.08.2019) até à presente data, no valor de €549,42 (quinhentos e quarenta e nove euros e quarenta e dois cêntimos), no valor total de €7.623,13 (sete mil seiscentos e vinte e três euros e treze cêntimos).

B. Condeno a autora C..., Lda. a pagar à ré A..., S.A. a quantia de €7.011,00 (sete mil e onze euros).

C. Compensando as quantias descritas nos pontos A. e B. deste dispositivo, condeno a ré A..., S.A. a pagar à autora C..., Lda. a quantia de €612,13 (seiscentos e doze euros e treze cêntimos), acrescida de juros legais vincendos, calculados, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.

D. Julgo totalmente improcedente o pedido de condenação da autora C..., Lda., como litigante de má-fé e, em consequência, absolvo-a do respectivo pedido.”

Inconformada com esta decisão, impetrou a A. recurso da mesma, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

...

               Foram interpostas contra-alegações pela R., tendo concluído da seguinte forma:

               ...

Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores-adjuntos, cumpre decidir.


QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos do disposto nos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[2]

Quer isto dizer que não podem ser introduzidas, por via recursória, exceções que não sendo de conhecimento oficioso não foram invocadas nos autos.

Ora, o recorrente veio neste recurso invocar a caducidade da denúncia de defeitos por parte da R., por decurso dos prazos estipulados no artº 471º do C.Comercial.

Como é jurisprudência assente[3], os prazos constantes deste preceito são prazos de caducidade que terão de ser invocados pela parte a quem aproveita, não podendo ser oficiosamente conhecidos pelo tribunal, por respeitarem a matéria não excluída da disponibilidade das partes, conforme decorre do disposto nos artºs 333º, nºs 1 e 2, e 303º do C.C.

Ora, a parte interessada na arguição desta exceção é a vendedora, ora A. e recorrente, por o decurso do prazo extinguir o direito de reclamação do comprador e, por outro lado, por constituir uma exceção peren­tória que teria de ser invocada e provada pela A. (cfr. artºs 579º do CPC e 342º, nº 2, do CC).

Assim sendo, não tendo sido a aludida exceção invocada pela A. em primeira instância, em sede de resposta à contestação da R., não é susceptível de conhecimento por este tribunal, por constituir questão nova, nunca antes colocada ou apreciada.[4]

Nesta medida, acordam os juízes que constituem esta secção em não conhecer da referida exceção de caducidade de denúncia dos defeitos.

Nestes termos, as questões a decidir que delimitam o objeto deste recurso, admitidas por este coletivo, consistem em apurar se:
a) Se se verificam os requisitos para a alteração da matéria de facto e se esta deve ser alterada no sentido propugnado pelo recorrente;
b) Se, nessa decorrência, é devido o pagamento da totalidade da fruta fornecida à R. e por esta não devolvida, por não alegado nem provado pela R. que parte da fruta fornecida estivesse podre, desidratada e/ou sem qualquer valor comercial.
c) Se à R. está vedado peticionar o pagamento do valor dos palotes emprestados à A., por não alegada nem a sua perda, nem a sua deterioração.


FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto:

“Factos provados

...

Factos não provados

Nada mais se provou com relevância para a decisão, designadamente que:

...


DA REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

No recurso interposto da sentença proferida pelo tribunal a quo pretende a apelante que seja alterada a matéria de facto adquirida pelo Tribunal recorrido, nomeadamente no que se reporta aos pontos 49 e 57 dos factos provados, que entende deverem ser dados como não provados, por a sua não prova decorrer dos depoimentos das testemunhas ..., bem como das declarações de parte do legal representante da A. e, no que se reporta à alínea e) dos factos provados, por estarem em desconformidade com o depoimento das mencionadas testemunhas e com as declarações de parte do legal representante da A.

Decidindo

a) Dos fundamentos de reapreciação da matéria de facto;

Relativamente aos requisitos de reapreciação da matéria de facto, dispõe o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

Por sua vez, no que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(...) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.”[5]

Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;”[6]

Por outro lado, não basta fazer uma impugnação genérica da matéria de facto, com remissão para meios de prova igualmente genéricos e sem os delimitar em relação a cada facto. As exigências contidas neste preceito impõem que “esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.[7]

Por último, no que toca à possibilidade e limites da reapreciação da matéria de facto, garantindo-se um efetivo duplo grau de jurisdição de forma a que este tribunal em sede de recurso, forme a sua própria convicção, tem este de ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607º, nº 5 do C. P. Civil e com os princípios da oralidade e da mediação de que beneficiou o tribunal de primeira instância.

Como salienta Ana Luísa Geraldes[8]Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova”, de que este tribunal já não beneficia.

Expostos estes considerandos gerais, nada obsta ao conhecimento da impugnação da matéria de facto no que se reporta aos pontos delimitados pelo recorrente, ou seja quanto aos pontos 49 e 57 dos factos assentes e no que se reporta à alínea e) dos factos não assentes, por terem sido cumpridos os requisitos espeificados no artº 640º do C.P.C.

Assim sendo, para efeito da apreciação desta impugnação este tribunal ouviu na íntegra a prova produzida e gravada e analisou/confrontou estes depoimentos com os documentos juntos aos autos, tendo em conta que cabendo ao recorrente indicar os meios de prova em que funda a sua discordãncia e ao recorrido indicar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente, ao tribunal de recurso cabe fazer uso dos meios de investigação oficiosa para apuramento desta factualidade e para alteração ou suprimento de eventuais deficiências ou obscuridades de que a mesma enferme, conforme o impõe o artº 662º do C.P.C. 

Volvendo à concreta impugnação que é feita da matéria de facto insurge-se o recorrente quanto ao ponto 49, por entender que o tribunal, para além do depoimento das testemunhas valoradas para resposta a este ponto, deveria ter valorado ainda os depoimentos das testemunhas ..., bem como as declarações de parte do seu legal representante.

...

Vista e analisada a convicção do tribunal conclui-se que partiu o tribunal do pressuposto, com base no qual fixou esta matéria fáctica, de que este contrato de compra e venda abrangia o fornecimento de pêra rocha, enquadrada em três escalões de preço, incluindo-se no último escalão, a fruta com cabibre inferior a 50 milímetros, fruta com escopo para indústria, fruta podre ou desidratada, com o preço acordado de €0,00.

A partir deste pressupostos, considerou assim que em causa estava apenas o apuramento do preço final e sequente modo de pagamento pela ré, a fixar de acordo com um processo trifásico seguido pela própria R. e consoante a quantidade de peras podres, desidratadas, para indústria ou inferiores a 50ml, que a própria apurasse entre a entrega de pêra rocha e o momento de revenda, independentemente da aferição do seu estado no momento em que foi entregue pela A., ou de denúncia de tais desconformidades e sem que, ao que se denota, a R. estivesse onerada com o ónus de alegar e provar que a A. tinha procedido à entrega de fruta podre, desidratada ou apenas aproveitável para indústria e assim sem qualquer valor comercial.

Denote-se que do ponto 49 da matéria de facto assente decorre que a R. da totalidade da fruta entregue retirou mais de 120 toneladas (que corresponde a mais de 40% da totalidade da fruta entregue) que considerou sem valor comercial (por estarem podres, desidratadas ou apenas se destinarem a indústria), mas sem que do mesmo conste que a causa da desidratação, podridão ou falta de qualidade, resultassem da desconformidade ou defeito da fruta, para além do que já constava como provado no ponto 23 a 27.

De igual forma não consta especificada a razão pela qual a R. remeteu para indústria 63.641,37kg, ou seja, não resulta que a perda de uma quantidade tão elevada de fruta se devesse à falta de qualidade ou à desconformidade com as condições acordadas, da fruta entregue pela A. à R.

Ocorre que tal pressuposto e consequente conclusão não estão de acordo com os factos dados como assentes nos pontos 5 a 8 e que se reportam às condições que foram acordadas entre a A. e R. relativamente à compra e venda de pêra rocha, aliás por escrito, por proposta efectuada pela R. e, ao que se denota, aceite pela A. (artºs 217º e 224º do C.C.)

Assim, o que resulta da proposta enviada por escrito pela R. à A., refletida no ponto 8 e, por esta aceite, conforme decorre do ponto 6, é que a A. venderia pêra rocha à R. dos produtores seus associados, com preços fixados de acordo com a calibragem da pêra rocha, pressupondo a qualidade necessária à sua revenda no mercado de frescos. A que se encontrasse podre, desidratada e/ou apenas apta para indústria, não teria qualquer valor comercial, não sendo objeto de remuneração e, por assim ser, não se integrava no contrato de compra e venda comercial celebrado entre A. e R., que pressupõe como seu elemento essencial a obrigação de pagamento de um preço (cfr. artº 879º, c) do C.C.) e a obrigação de entrega da coisa conforme ao contrato celebrado.

Quanto assim não aconteça, estamos perante uma venda defeituosa, ou seja, a coisa vendida apresenta defeitos que lhe retiram o seu valor comercial e, nesse caso cabe à R. (compradora) o ónus de alegação e prova destes factos, pois que constituem excepção ao pedido formulado pela A. (cfr. artº 342º nº 2 do C.C.).

Acresce que, existindo recepção da coisa vendida com elaboração das respectivas fichas de recepção e qualidade (conforme resulta dos documentos juntos a fls. 53 a 70), cabe à R. alegar e provar que os defeitos da coisa não eram aparentes ou verificáveis nessa recepção, ou que acordou com a A. que tal verificação poderia decorrer e de forma unilateral, até ao momento final da revenda por parte da R. e que só nessa data, apurada a quantidade final de pêra rocha que esta tinha conseguido destinar ao mercado de frescos, seria feito o acerto de contas final.

A este respeito e ao contrário do que considerou o tribunal recorrido, dos pontos 5 a 8 que reproduzem em traços gerais os pontos essenciais da compra e venda contratada, não resulta que tal tenha sido acordado, sendo certo que era esta uma condição essencial do contrato que se não mostra tenha sido acordada pelas partes. O acordo posterior à emissão de factura pela A., referida no ponto 36, para faseamento do pagamento em três fases, denominados pela R. “abonos”, não permitem esta conclusão, que a existir condicionava o pagamento da fruta fornecida à sua efetiva revenda pela R. e que desonerava a R. do ónus de alegar e provar que a fruta fornecida padecia de defeito.

Ora, este acordo não se retira dos emails trocados quanto à forma e momento de pagamento desta fruta e referidos na convicção do tribunal a quo, mas apenas que foi acordado um sistema de pagamentos faseados do preço de fruta já vendida e aliás já faturada pela A. (pontos 34 a 38).

...

E não resultando de nenhum facto provado que entre A. e R. ficou acordado que a R. só pagaria os produtos que conseguisse revender para o mercado de frescos, dele retirando todos os produtos que apodrecessem, ficassem desidratados ou apenas pudessem ser destinados à indústria, independentemente da causa (ou seja que a R. apenas procederia ao pagamento dos produtos que afinal conseguisse revender), o ponto 49 não se pode manter na sua formulação, por absolutamente inidóneo para o efeito, tendo em conta que dele resulta apenas que destes produtos foram retiradas estas quantidades (que correspondem a mais de 40% da fruta entregue), mas não a respetiva causa.

Por último, também não resultou de nenhum facto alegado que a R. tenha comunicado à A. a existência destas toneladas de fruta podre, desidratada ou apenas passível de ser destinada à indústria ou a razão para que não tenha sido seguido o mesmo procedimento referido nos pontos 25 e 26 quanto a estas quantidades, resultando aliás da alínea p) como não provado que a “No decorrer da fase da recepção da fruta, a ré comunicou à autora que a grande maioria da pêra entregue apresentava problemas ao nível da maturação e que, consequentemente, uma grande quantidade daquela fruta somente podia ser destinada à indústria”.

...

Assim sendo, elimina-se este facto da matéria assente, mantendo-se apenas o que resulta do ponto 27, ou seja, que da pêra rocha entregue, 32.377,10 kgs. apenas poderiam ser destinados á indústria e, assim, sem valor comercial.

 No que se reporta ao ponto 57, alega o recorrente que a sua não prova decorre da impugnação feita pela A. do documento junto pela R. a fls. 110, bem como das declarações da testemunha ... que expressamente afirmou ter adquirido paletes pelo valor de €60,00, pelo que não poderia aceitar este valor indicado pela R.

O tribunal fundamentou a sua convicção quanto a este facto da seguinte forma:

...

Mantém-se pois, este concreto ponto de facto.

No que se reporta à alínea e) da matéria de facto não assente, alega o recorrente que o tribunal deveria ter dado este facto como assente com base nas declarações de parte do legal representante da A. e das declarações das testemunhas ..., no exercício das suas funções afirmaram que a Autora dispõe de um programa certificado de rastreabilidade que através da etiquetagem de cada palote, consegue determinar a origem da fruta por produtor.

A este respeito considerou o tribunal a quo que “o Tribunal fundamentou-se na ponderação de toda a prova produzida, tal como acima ficou exposta e, bem assim, na ausência de produção de prova documental e/ou testemunhal suficientemente consistente e segura para considerar como provada a sua realidade.

Em resumo, considerando tudo o que ficou exposto, impõe-se reafirmar que a prova produzida, no seu confronto, não permitiu fundar um juízo probatório favorável e suficientemente seguro e consistente para possibilitar ao tribunal dar como assente a matéria que acima considerou como não provada (alíneas a. a c., d. a h., i. a j. e p. a r.).”

Refira-se que se tratava esta de matéria alegada no artigo 16 do articulado de resposta da A., à alegação da R. de que os palotes não eram organizados de acordo com os produtores associados à A., o que causava dificuldades à R. “em definir a que parcelas e, consequentemente, a que produtores da A. se referia a fruta entregue”, não corrigidas pela A. no ano de 2017.

Ora, não é esta concreta actuação que releva para decisão da causa, mas antes a alegação da R. de que esta atuação da A. era propositada (dolosa), com o fito de dificultar a identificação da fruta e esconder a concreta situação fitossanitária da mesma (artºs 17 a 31 da contestação) de que a R. não se aperceberia com facilidade aquando da recepção da mesma.

Visaria assim a alegação de atitude dolosa por parte da A., relevante para efeitos do disposto no artº 916º, nº1 do C.C., no que se reporta à desnecessidade de denúncia dos defeitos.

 Resultando esta matéria não assente nas alíneas d), f), g), h) e i) o alegado pela A. neste ponto 16 é perfeitamente irrelevante para a sorte dos autos. A questão relevante consistia no apuramento do estado da fruta vendida pela A., tendo em conta que a R. pretendia nestes autos demonstrar que cerca de ½ da fruta entregue não tinha valor comercial por se encontrar podre, desidratada e/ou apenas destinável á indústria e que, apesar da sua recepção e da elaboração de fichas de controlo de qualidade à recepção, não era visível nem susceptível de apuramento na recepção da fruta, quer pela sua quantidade e pelo processo de amostragem seguido pela R., quer por via da actuação dolosa da própria A.

Ora, os factos que devem ser carreados para a sentença final, nos termos do artº 607º do C.P.C., são apenas aqueles que tenham relevância para a decisão da causa, segundo as várias soluções de direito que se prefigurem para a mesma e não qualquer facto alegado, ainda que perfeitamente inócuo. E, porque ao juiz está vedada a prática de actos inúteis (artº 130º do C.P.C.), constituindo uma inutilidade a apreciação da impugnação deste concreto facto, não se conhece da mesma.   

Assim sendo, acordam os juízes que compõem este tribunal:

-em eliminar o ponto 49 da matéria de facto assente;

-indeferir a impugnação no que se reporta ao ponto 57;

-não conhecer do objecto da impugnação no que se reporta à alínea e) dos factos não assentes.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Alega a A. recorrente que pela R. não foi alegado nem provado que a fruta por si vendida apresentava defeitos que lhe retiravam o valor comercial e que tais defeitos lhe tenham sido denunciados, mormente no prazo previsto no artº 471º do C. Comercial que aqui alega ser aplicável ao caso em apreço.

Pelo contrário, a sentença em recurso considerou que constituindo a obrigação de entrega da coisa um elemento constitutivo do contrato, à A. cabia o ónus de prova destes elementos nos termos do disposto no artº 342º, nº1 do C.P.C. Não enquadrou os factos nem na compra e venda comercial, nem considerou, como resulta da decisão sob recurso, o regime da compra e venda defeituosa.
Cumpre-nos assim, para resposta à questão de saber se é devido o pagamento da totalidade da fruta fornecida à R. e por esta não devolvida, definir em primeiro lugar o tipo comercial em causa e o ónus de prova que cabia a cada uma das partes no que se reporta à conclusão e perfeição deste contrato.

Não oferece dúvida, nem as partes o questionam, que as relações entre si estabelecidas se enquadram no tipo contratual da compra e venda, em que a R. assumiu o compromisso de adquirir pêra rocha proveniente dos produtores associados da A, com calibre acima dos 50ml., com destino ao mercado de frescos por um determinado preço, uma vez que aquela que apenas fosse susceptível de ser destinada a indústria, estivesse podre ou desidratada, ou fosse de calibre inferior a 50ml., não teria valor comercial.

Por assim ser, toda a entrega de pêra rocha que se não enquadrasse nestas características acordadas quanto à qualidade e calibre constituiria entrega de produto desconforme ao contrato.

Resulta ainda dos factos assentes que se trata este de um contrato de natureza subjetiva e objetivamente comercial, face ao disposto nos artºs 2º, 13º e 463º, nº1 e 2 do Código Comercial, tendo em conta que celebrado por entidades comerciais, no âmbito da sua atividade comercial, destinando a R. estes produtos a revenda.

Com efeito, resulta do artº 2º do C. Comercial que “serão considerados actos de comércio todos aqueles que se acharem especialmente regulados neste Código e, além deles, todos os contratos e obrigações dos comerciantes, que não forem de natureza exclusivamente civil, se o contrário do próprio acto não resultar”.

As partes neste contrato são comerciantes, nos moldes definidos pelo artº 13º do C. Comercial e os actos em causa não são de natureza exclusivamente civil, pelo que o presente contrato se enquadra no âmbito da compra e venda comercial e, assim, sujeito aos prazos de denúncia e reclamação de defeitos previstos no artº 471º do C. Comercial e não nos artºs 916º e segs do C.C.

É igualmente ponto assente que a coisa deve ser entregue, cfr. dispõe o artº 882º do C.C. no estado em que se encontrava ao tempo da venda e de acordo com as condições acordadas entre vendedor e comprador, quer quanto à qualidade da coisa quer quanto ao seu destino, uma vez que a falta de qualidade da coisa pode ser aferida também em função do que foi assegurado ou acordado contratualmente.[9]

Ora, conforme decorre do ponto 6 da matéria assente, o acordo entre A. e R. correspondia a pêra rocha destinada/comercializada no mercado de frescos e com diâmetro acima dos 50 milímetros[10].

Assim sendo, ao contrário do considerado pelo tribunal a quo, incumbia à R., para se eximir, total ou parcialmente, ao pagamento, a alegação e prova do incumprimento defeituoso do contrato ou de que a coisa vendida apresentava defeitos que lhe retiravam o valor comercial, porque fornecida pela A. fruta podre, desidratada ou apenas susceptível de destinação para indústria, conforme disposto no artº 342º, nº2 do C.C., prova que não logrou nestes autos.

Com efeito, feita a entrega da coisa, decorre do disposto no artº 913º do C.C.:

“1-Se a coisa vendida sofrer de defeito que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.

2-Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.”

Com efeito, a coisa entregue pelo vendedor pode estar afectada por vícios materiais ou vícios físicos, ou seja, por defeitos intrínsecos da coisa, inerentes ao seu estado material, ou em desconformidade com o contratado, uma vez que não corresponde às características acordadas, ou legitimamente esperadas pelo vendedor.

Conforme refere Calvão da Silva[11], “a lei (...) privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente de que o importante é a aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera.

Daí a noção funcional: vício que desvaloriza a coisa ou impeça a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.”

Assim, a “coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme àquilo que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto que a desconformidade representa uma discordância com respeito ao fim acordado.”[12].

Por assim, existe venda de coisa defeituosa “quando no contrato de compra e venda, tendo por objecto a transmissão de propriedade de uma coisa, a coisa vendida:

a) Sofrer de vício que a desvalorize, ou que impeça da realização do fim a que é destinada;

b) Não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor, ou necessárias para a realização do fim a que é destinada.[13]

O destino da fruta e a qualidade e calibragem da mesma ficaram definidas no acordo celebrado entre as partes: mercado de frescos e fruta com calibre superior a 50 ml. Assim sendo, a fruta podre, desidratada ou apenas destinada a indústria, constitui entrega de coisa defeituosa, uma vez que “há venda de coisa defeituosa sempre que a coisa vendida sofrer vícios ou carecer de qualidades abrangidas no art. 913º do CC, quer a coisa entregue corresponda ou não à prestação a que o vendedor se encontra vinculado.1
O defeito material tanto pode ser inerente à própria coisa, como a uma desconformidade ao contrato ou ainda à sua execução, por isso, sempre que o bem vendido não tem a qualidade, explicita ou implicitamente assegurada, a prestação é defeituosa.”
[14]

Incumbindo à R. o ónus de alegar e demonstrar que da totalidade da fruta fornecida pela A. e por esta faturada, para além da constante do ponto 27 tinham ainda sido retiradas 87.729,50 toneladas de fruta defeituosa, esta prova não resultou feita, não podendo manter-se a conclusão a que chegou o tribunal a quo de que “Do compulso dos factos provados (cfr., facto provado n.º 49), verifica-que a autora entregou à ré, após a fase da recepção e até ao momento final de venda: 18.504,40kg de fruta podre; 63.641,37kg para indústria; 5.583,82kg perdidos por desidratação;” pois que tal conclusão não tinha suporte sequer no ponto 49 aí citado e eliminado da matéria assente.  

Assim se conclui que entregue a coisa à R. e não tendo esta alegado provar que parte especificada das coisas entregues estavam podres, desidratadas, apenas destináveis a indústria e sem qualquer valor comercial, para além da que já constava do ponto 27 da matéria de facto (32.377,10 kgs) está esta obrigada ao pagamento do preço acordado com a A. pelo remanescente, que ao contrário do referido pela A., não corresponde a 227.043 kgs, mas antes a 219.505,49kgs.

Com efeito, o que resultou dos factos assentes é que A. e R., apuraram um total de fruta para indústria no montante de 32.377,10kg (ponto 27), que foi devolvida à A. 24 844 50kg (pontos 28 e 29) e que foi acordado entre A. e R. que esta tentasse obter “o melhor resultado possível quanto aos remanescentes 7 532,60kg.” (ponto 31)

Tendo em conta que dos pontos 5 a 8 decorre o acordo entre as partes para o fornecimento pela A., mediante um preço, de pêra rocha com qualidade para o mercado de frescos e com determinado calibre, este acordo posterior entre A. e R. com respeito a fruta apenas destinada a indústria (e portanto sem valor comercial, de acordo com os termos referidos no contrato inicial celebrado entre as partes) não se enquadra no âmbito deste contrato de compra e venda, nem é remunerável de acordo com as calibragens nele fixadas, mas constitui um novo acordo, celebrado entre a A. e a R., para que esta escoasse a fruta sem a qualidade exigida no contrato, pelo melhor resultado possível.

Este “melhor resultado possível” não confere à A. o direito a ser remunerada pelas mais de 7 toneladas em poder da R..  A A. só poderia peticionar o pagamento de qualquer valor por estas toneladas de fruta para indústria que ficaram na posse da R., se alegasse e provasse que acordara com a R. que esta, após a venda e obtenção do melhor resultado possível, pagaria uma qualquer parte do valor assim obtido à A.

Ora, tal acordo não resulta dos autos, nem se pode retirar do ponto 34 que transcreve o email remetido pela R. à A. para faturação de 227.038 kgs. de fruta. Não só não resulta deste email que estes 7.532,60 kgs. seriam faturados pela A. pelo valor de 0,35, como não resulta do mesmo que seriam faturados por qualquer outro valor, tendo em conta que neste mail se refere que os kilos para indústria não seriam valorizados nas contas finais. E se podemos retirar do email que a razão para a consideração na faturação dos 227,038 kgs se prendia com o acordo referido nos pontos 30 e 31, ainda assim caberia à A., porque não enquadrado tal acordo no contrato inicial, a alegação de que efetivamente a R. procedera à venda desta fruta, o preço e o que concretamente fora o acordado quanto à remuneração da A.

Assim sendo, decorre dos factos assentes que a A. forneceu fruta à R. no montante de 219.505,49 kgs. cujo pagamento lhe é devido, à razão de 0,35€, preço/kilo considerado pelo tribunal recorrido, aqui não impugnado e que se mostra conforme ao teor das fichas de recepção constantes dos autos a fls. 53 a 70. Destas resulta a calibragem da fruta em causa como superior a 55 ml., não resultando de nenhum facto provado, nem dos emails remetidos pela R. que esta calibragem fosse inferior.

Denote-se que do disposto nos artºs 471º e 472º do C. Comercial resulta que o contrato se tem como perfeito, “se o comprador examinar as cousas compradas no acto da entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou, não as examinando, não reclamar dentro de oito dias.” e que cabendo apurar o peso ou medição da coisa (no caso a sua calibragem), “a tradição para o comprador supre a conta, o peso ou a medida.”

Assim sendo e porque nos termos previstos nos artºs 406.º e 798.º do Código Civil os contratos devem ser pontualmente cumpridos, está a R. constituída na obrigação de pagar à A. o valor de 76.669,42€ (219.505,49x0,35), a que acresce o valor de IVA de €4.600,16.

Tendo a R. pago à A. o valor de €41.815,30, permanece em dívida o valor de €39.454,28., acrescido de juros de mora que, conforme o considerou a sentença recorrida (matéria aqui não impugnada) são devidos desde a data da citação (ocorrida em 02/08/2019) “vencidos e vincendos, calculados, à taxa legal aplicável aos créditos de que são titulares empresas comerciais (cfr. artigo 102.º, 3.º parágrafo, do Código Comercial), (…) até efetivo e integral pagamento.

Por último alega a recorrente que tendo resultado provado que a R. entregou à A. 60 paletes, mas não o prazo para restituição, à R. cabe apenas o direito de peticionar a entrega das paletes, mas não o seu valor monetário, por não ter alegado nem provado a impossibilidade de restituição dos mesmos pela A. e considerando que, neste conspecto, vale o princípio da reconstituição natural, estabelecido não só para protecção do credor, mas também do devedor.

Trata-se da última questão que cumpre a este tribunal dilucidar:

c) Se à R. está vedado peticionar o pagamento do valor dos palotes (ou paletes) entregues à A., não tendo sido alegado nem provado a sua perda ou deterioração.

A este respeito a sentença sob recurso considerou que “constatando-se, para além do exposto, que a autora não provou que os ditos palotes existem, nas condições acordadas, para serem devolvidos, o dever de restituição por parte da autora, nos termos dos artigos 798.º e 762.º, n.º2, do Código Civil, terá de ser cumprido – não através da restituição in natura – mas sim através de indemnização pecuniária, nos termos dos artigos 562.º e 566.º, n.º1, todos do Código Civil.

Deste modo, há total procedência da reconvenção e, em consequência, conclui-se que a autora é obrigada a entregar à ré a quantia de €7.011,00 (sete mil e onze euros), com IVA incluído.”

Salvo o devido respeito por opinião contrária, a questão não pode ser considerada nestes termos.

Dos factos provados resultou que no âmbito do acordo celebrado para compra e venda de fruta a R. entregou à A. 60 palotes com as características definidas no ponto 54 e que a A. não restituiu à R. os referidos palotes.

É certo que também não resultou dos factos assentes que a A. se tivesse obrigado a esta restituição, mas trata-se de questão que não é colocada em sede recursória pela A., que aqui reconhece a sua obrigação de restituir, obrigação que não oferece dúvidas tendo em conta que a entrega dos aludidos palotes ocorreu no âmbito das relações comerciais entre A. e R.

Aos factos são assim aplicáveis as regras do comodato, previstas nos artºs 1129º e 1135º, h) do C.C.

Nestes termos, ao comodatário cumpre o dever de restituir a coisa, findo o contrato.

Não resultou de nenhum facto assente que tivesse sido estipulado prazo para a entrega da coisa mas, tendo em conta que os palotes foram entregues no âmbito do contrato celebrado entre A. e R. e por causa deste, conforme refere Menezes Leitão,[15]vale como convenção nesse sentido a determinação do uso da coisa, pelo que o comodatário fica vinculado a ter que a restituir logo que o uso finde, independentemente de interpelação (art. 1137º, nº1) pelo que ficará constituído em mora se o não fizer. Decorrendo dos autos que a entrega das palotes se fez no âmbito das relações comerciais entre as partes, destinando-se ao transporte de fruta, cessadas as relações comerciais entre as partes sempre estaria a A. constituída no dever de restituição dos palotes entregues (artº 1137º, nº1 do C.C.).

Ora esta cessação das relações comerciais entre as partes foi coincidente com o pedido de restituição dos palotes (em Junho de 2018), pelo que sempre a A. estaria obrigada à sua restituição nessa data, por força do disposto no artº 1137º, nº 2 do C.C.

Mais resulta do disposto no artº 1136º do C.C. que o comodatário é obrigado a conservar e restituir a cosia no estado em que a recebeu. Trata-se do princípio da restitutio in integrum que, como como referem Pires de Lima e Antunes Varela[16], estando o comodatário vinculado ao dever de conservação, por via do qual lhe é imposto que mantenha o bem cedido no estado em que o recebeu, salvas as deteriorações inerentes a um uso prudente, incumbe-lhe como prestação própria do contrato a obrigação de restituição da coisa, no estado em que a recebeu, ressalvadas as aludidas deteriorações.

 Se a coisa emprestada perecer ou se deteriorar, ainda que casualmente, o comodatário é responsável se estava em seu poder evitar a perda ou deterioração, ainda que mediante o sacrifício de coisa própria de valor não superior (artº 1136º, nº1 do C.C.).

Assim sendo, ao contrário do que considerou o tribunal recorrido, não cabia ao comodatário alegar e provar que a coisa emprestada existe para ser devolvida. Pelo contrário, ao comodante cabe o ónus de prova de que a coisa se pereceu ou se deteriorou por causa imputável ao comodatário (quer porque este poderia ter evitado a perda ou detrioração, violando assim o seu dever de guarda e conservação, quer porque permitiu a sua utilização para fim diverso ou por terceiro sem autorização do comodante), cabendo ao comodatário o ónus de prova de que esta deterioração sempre teria ocorrido independentemente de culpa sua.[17]  

Só nesse caso se constitui o comodatário no dever de indemnizar o proprietário do bem pelos prejuízos sofridos, cfr. decorre do disposto nos artºs 1043º e 1136º do C.C.

Assim se conclui que não tendo o comodante alegado e provado que a coisa se deteriorou ou pereceu, caso em que seria devida “indemnização pecuniária, nos termos dos artigos 562.º e 566.º, n.º1, todos do Código Civil”, apenas tem direito à sua restituição.    

Procede assim a alegação do recorrente, improcedendo o pedido reconvencional formulado e a compensação operada pelo tribunal a quo, uma vez que se não verificam os pressupostos previstos no artº 847º, nº1 do C.C.: i) que duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor; ii) que o crédito a compensar seja exigível judicialmente e não proceda contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material; iii) e que as duas obrigações tenham por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.


DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta 3ª secção em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, decidem:
-não conhecer da exceção de caducidade invocada pela A.;
-julgar parcialmente procedente o recurso quanto à matéria de facto;
-condenar a R. no pagamento à A. da quantia de €39.454,28, acrescido de juros de mora devidos desde a data da citação (ocorrida em 02/08/2019) vencidos e vincendos, calculados, à taxa legal aplicável aos créditos de que são titulares empresas comerciais (cfr. artigo 102.º, 3.º parágrafo, do Código Comercial), até efetivo e integral pagamento, absolvendo-a do remanescente;

-julgar o pedido reconvencional apresentado pela R. totalmente improcedente, dele absolvendo a A.

Fixam-se as custas a cargo da apelante e do apelado na proporção do vencimento (artº 527 nº1 e 2 do C.P.C.).

                                                           Coimbra 12/10/21


                                                          


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 84-85.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 87.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Indicando-se a título exemplificativo os Ac. do STJ de 01/07/21, relator Fernando Baptista, proferido no proc. nº 3655/06.9TVLSB.L2.S1; de 05/07/2014 relatado pela Conselheira maria Clara Sotto Mayor, ambos disponíveis en www.dgsi.pt.
[4] Neste sentido vide o Ac. do S.TJ. de 25-10-2011, proferido no proc. n.º 1453/06.9TJVNF.P1.S, relatado pelo Conselheiro Nuno Cameira, disponível in www.dgsi.pt.

[5] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.

[6] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S
[7] Ac. do STJ de 05/09/18, relator Gonçalves Rocha, proc. nº 15787/15.8T8PRT.P1.S2; no mesmo sentido vide Ac. do S.T.J. de 27/09/18, relator Sousa Lameira, proc. nº 2611/12.2TBSTS.L1.S1 e Ac. do STJ de 10/12/20, relator Manuel Capelo, proc. nº 3782/18.0T8VCT.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[8] Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, página 609.
[9] Vide ROMANO MARTINEZ, Pedro, Direito das Obrigações (Parte Especial), Contratos, Almedina, 2000, págs. 123, 124.
[10] A falta de qualidade da cosia entregue pode igualmente ser
[11] CALVÃO DA SILVA, João, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 5ª edição, Almedina, págs. 44.
[12] Romano Martinez, Pedro, ob. Cit, pág. 125.
[13] BRAGA, Armando, Contrato de Compra e Venda, Almedina, págs. 111.
[14] Acórdão do TRC de 14.11.2006, processo nº 477/05.8TBILV.C1, www.dgsi.pt.
[15] MENESES LEITÃO, Luís Manuel Telles, Direito das Obrigações, Vol. III, 6.ª ed., Almedina, pág. 380.
[16] Código Civil Anotado, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 751.
[17] Vide MENESES LEITÃO, Luís Manuel Telles, ob. cit., págs. 377 a 380.