DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
REGIME GERAL
NORMA EXCEPCIONAL
REGIMES ESPECIAIS
Sumário

I – O incidente de produção antecipada da prova – excepção ao princípio estruturante da produção ou análise da prova em Audiência, perante o Julgador, geralmente denominado de “princípio da imediação” – circunscrevia-se, na versão original do Código de Processo Penal, aos casos de doença grave (para obviar logicamente ao perigo de falecimento ou impedimento de comparência), ou deslocação para o estrangeiro (v.g. os casos de um turista estrangeiro vítima de roubo ou furto no País).
II - Esta versão original foi objecto de sucessivas alterações: pela Lei n.º 59/98, de 25/08 (acrescentou, no nº 1, a expressão “bem como nos casos de vítimas de crimes sexuais); pela Lei n.º 48/2007, de 29/08 (alterou o nº 1 para “bem como nos casos de vítimas de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual”, introduziu o nº 2, criou o nº 3, acrescentou o nº 4, alterou o originário nº 5, acrescentou o nº 6, o nº 7; e pela Lei n.º 102/2019, de 06/09 (adaptou à ordem jurídica interna às disposições da Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos).
III – O art.º 271º do CPP constitui, já em si, uma norma excepcional, que consagra uma disciplina contrária à norma geral constante do artigo 355º.
IV - Paralela, e especificamente, no âmbito do regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, foi inserido o artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que trata das declarações para memória futura nesse âmbito.
V - O artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, constitui uma norma especial, regulando um sector restrito de casos: os crimes de violência doméstica, consagrando uma regra paralela à norma excepcional do regime geral.
VI - Mais tarde, foi inserido, no âmbito do Estatuto da Vítima, o artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, que igualmente trata das declarações para memória futura.
VII – Também este preceito constitui norma especial, regulando um sector restrito de casos: as vítimas especialmente vulneráveis, e consagra também uma regra paralela à norma excepcional do regime geral.
VIII - Criado pelo legislador original do Código como meio preventivo de recolha e conservação da prova em perigo de se perder, o âmbito deste incidente processual alargou-se, como referido, para a protecção das vítimas de crimes de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas, de crimes contra a liberdade ou determinação sexual, de crimes de violência doméstica e/ou vítimas especialmente vulneráveis.
IX – Estes regimes especiais sobrepõem-se num determinado sector: as vítimas de crimes de violência doméstica e especialmente vulneráveis, sendo que entre ambos há divergência quanto à abordagem da repetição do depoimento em Audiência: se, no caso de violência doméstica, a tomada de declarações para memória futura “não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento”, no caso de vítima de violência doméstica, com vítima especialmente vulnerável, “só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade”.
X - Estamos perante diferentes formulações da mesma realidade, em que o foco da “tomada de declarações para memória futura” é numa colocado com o aspecto que tem “à partida” e noutra com o aspecto que tem “à chegada”: No 1º caso, a tomada de declarações para memória futura “não prejudica”, isto é, não impede, não impossibilita, a repetição do depoimento em Audiência (seria mais rigoroso utilizar o termo “declarações”, uma vez que se trata de vítima, normalmente assistente e/ou demandante civil); no 2º caso, a tomada de declarações para memória futura impossibilita, impede, a repetição das declarações em Audiência, salvo se “for indispensável” à descoberta da verdade.

Texto Integral

Proc. Nº 526/21.2PIVNG-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz 3

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz 3, Inquérito supra referido, em que é arguido B…, foi proferido Despacho com o seguinte teor:
“Fls. 35: Veio a Digna Magistrada do Ministério Público requerer que sejam tomadas declarações para memória futura à ofendida C… e a dois dos seus filhos menores D… e E…, ao abrigo do disposto no artigo 33° da Lei 112/2009, de 16/09.
Alega, em síntese, que o grau de vitimização é máximo (risco elevado) e é ainda de duração considerável, uma vez que há notícia que esta violência se arrasta há anos.
Decidindo.
Dispõe o artigo 33°, n° 1, da Lei n° 112/2009, de 16/09, sob a epígrafe "Declarações para memória futura", que "O juiz a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento."
Por seu turno, estabelece o artigo 16°, n° 2, do mesmo diploma que "As autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal."
Analisada a Lei n° 112/2009, de 16/09, resulta da mesma que no seu artigo 33° se veio prever um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica - se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do artigo 271° do CPP.
Admitindo o artigo 33° da Lei n° 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar. Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça. Na verdade, a inquirição da vítima, do ponto de vista de quem investiga o crime, não passa obrigatoriamente pela tomada de declarações para memória futura, pois que se há casos em que isso se justifica, nomeadamente pela proximidade física entre vítima e denunciado, relação de parentesco, idades dos intervenientes, etc., outros casos haverá em que não existe essa necessidade premente. Nem este mecanismo pode ser utilizado para outros fins que devem ser acautelados através de outros mecanismos como sejam o interrogatório judicial, no âmbito do qual podem ser aplicadas ao denunciado medidas adequadas a afastar perigos de continuação da actividade criminosa e ainda de perturbação do inquérito na modalidade de aquisição da prova (o qual tanto mais rápido deve ser promovido quanto mais elevado for o risco que está em causa no caso concreto).
Ora, no caso dos autos verifica-se que os autos tiveram início em 12 de Julho de 2021 e as situações relatadas arrastam-se há 3 semanas, com referência à data em que foi feita a participação, sendo certo que o suspeito padecerá de esquizofrenia e a ofendida ainda não prestou declarações formalmente nos autos, nem os seus filhos menores.
O despacho em análise é o primeiro que é proferido pela Digna Magistrada do Ministério Público titular do inquérito, pelo que, salvo o devido respeito pela posição sustentada pela Digna Magistrada do Ministério Público, afigura-se-nos não existir fundamento legal para que sejam, desde já, prestadas declarações para memória futura, que em nada a protege ou defende da vitimização secundária que se pretende acautelar.
Pelo exposto, que não existem razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, motivo pelo qual vai indeferido o requerido.”

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Deste Despacho recorreu o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões:
“1. Resulta, ope legis, que as vítimas de violência doméstica são sempre consideradas vitimas especialmente vulneráveis – cf. Artigos 67.º-A nº1 al. b) e nº3, com a referência ao artigo 1º al. j), todos do C.P.P;
2. Deste modo, conforme o disposto no artigo 24º da Lei nº130 (2015 de 04.09, “o Juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos do artigo 271.º do Código de Processo Penal”;
3. E nos termos do artigo 33.º da Lei n.º112/2009 de 16.09, “O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”;
4. Por outro lado, nos termos do artigo 26.º, nº2 da Lei n.º 93/99 de 14.07, “A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa família ou de grupo social fechado em que esta inserida numa condição de subordinação ou dependência”.
5. Pelo que, nestas circunstâncias, o artigo 28.º, nº2 o referido diploma legal dispõe que “Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal”;
6. A vítima C… e os menores, D… e E… por se tratarem de vítimas especialmente vulneráveis, com ligação familiar ao denunciado, bem como o rau, o tipo e a duração da vitimização indiciado nos autos, afigura-se-nos que a sua inquirição no mais breve espaço de tempo possível, com recurso à tomada das suas declarações para memória futura, pode evitar uma eventual contaminação do seu depoimento e a perda de memória dos factos traumáticos na sua plenitude e com a precisão e rigor necessários à boa administração da justiça e a descoberta da verdade material;
7. É, por demais, evidente a vulnerabilidade das vítimas/testemunhas, patente o risco existente para a integridade física e psicológica dos mesmos e isso é fundamental para, numa análise concatenada dos factos denunciados, da ficha de avaliação de risco, do teor do auto de notícia e dos aditamentos, concluir pela necessidade de acautelar o valor probatório futuro das declarações de C… e dos menores D… e E…; em julgamento ou noutras fases processuais – assim se assegurando uma lógica sistémica da vertente processual e do valor probatório intrínseco com a natureza pública do crime em causa;
8. No que concerne aos direitos de defesa do denunciado o mesmo estaria sempre representado por I. Defensor na aludida diligência, o qual poderia formular todas as perguntas que entendesse pertinentes para a salvaguarda do seu direito de defesa;
9. Diga-se, ainda, que nos termos dos arts. 53.º, nº2, al. b) e 263.º, nº1 do CPP, cabe ao Ministério Público e não ao Mm. JIC com funções instrutórias na acção penal, sendo aquele quem poderá decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito;
10. Ao decidir como decidiu, o Mm. JIC violou os artigos 16.º2 e 33n.º1 da Lei 112/2009 de 16-9, arts. 1nºs1 e 3 e 3º al. a), 26.º nºs 1 e 2, 28 nº1 da Lei 93/99, e arts. 53.ºnº2 al. b), 67º-A nº1 al. b), 127º, 263ºnº1 e 271º do C.P.P.
Deve, em conformidade, o despacho recorrido ser revogado e em sua substituição proferido despacho que determine a prestação de declarações para memória futura das vítimas C… e dos menores, D… e E…, o que se pretende com o presente recurso.”
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se pela procedência do recurso.
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Colhidos os vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o recorrente Ministério Público pede a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que determine a tomada de declarações para memória futura “das vítimas C… e dos menores, D… e E…”.
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Dos elementos juntos aos autos resulta que no Inquérito em causa se investigará a prática pelo B… de crimes de violência doméstica nas pessoas da mulher, C…, e dos filhos, D… e E….
Pelo Mº. Pº. foi pedida a tomada de declarações para memória futura dos “ofendidos C…, E…, e F…, nos termos das disposições conjugadas dos arts.º 271.º do Cód. Pena, art.º 24.º da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, art.º 1 e 33.º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro e Directiva 5/2019 da P.G.R.”
Na decisão proferida, indeferiu-se a tomada de declarações para memória futura, da C…, do E… e da D…, porque se considerou não existirem “razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura”.
Entende-se que “a inquirição da vítima, do ponto de vista de quem investiga o crime, não passa obrigatoriamente pela tomada de declarações para memória futura, pois que se há casos em que isso se justifica, nomeadamente pela proximidade física entre vítima e denunciado, relação de parentesco, idades dos intervenientes, etc., outros casos haverá em que não existe essa necessidade premente. Nem este mecanismo pode ser utilizado para outros fins que devem ser acautelados através de outros mecanismos como sejam o interrogatório judicial”.
No recurso alega-se que “A vítima C… e os menores, D… e E… por se tratarem de vítimas especialmente vulneráveis, com ligação familiar ao denunciado, bem como o grau, o tipo e a duração da vitimização indiciado nos autos, afigura-se-nos que a sua inquirição no mais breve espaço de tempo possível, com recurso à tomada das suas declarações para memória futura, pode evitar uma eventual contaminação do seu depoimento e a perda de memória dos factos traumáticos na sua plenitude”.
Acrescenta-se que “nos termos dos arts. 53.º, nº2, al. b) e 263.º, nº1 do CPP, cabe ao Ministério Público e não ao Mm. JIC com funções instrutórias na acção penal, sendo aquele quem poderá decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito”.
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Vejamos:
Tal como referido no Acórdão deste Tribunal de 02/12/2020 (Proc. N.º 242/20.2GBOAZ-A.P1), mas não é demais repeti-lo, a legislação estabelecida a respeito das declarações para memória futura revela-se prolixa, sujeita a sucessivas alterações (algumas ao sabor da conjuntura, outras derivadas da necessidade de transposição para a ordem interna de Direito Comunitário), e umas vezes redundante, outras dissonante.
Concretizando:
Na versão original no Código de Processo Penal, no art. 271, este incidente de produção antecipada da prova – excepção ao princípio estruturante da produção ou análise da prova em Audiência, perante o Julgador, geralmente denominado de “princípio da imediação” – circunscrevia-se aos casos de doença grave (para obviar logicamente ao perigo de falecimento ou impedimento de comparência), ou deslocação para o estrangeiro (v.g. os casos de um turista estrangeiro vítima de roubo ou furto no País).
A redacção era a seguinte:
“Artigo 271.º
(Declarações para memória futura)
1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento, para que possam estar presentes se o desejarem.
3 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida as pessoas referidas no número anterior solicitar ao juiz a formulação de perguntas adicionais e podendo ele autorizar que sejam aquelas mesmas a fazê-las.
4 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.
5 - O conteúdo das declarações é reduzido a auto, sendo aquelas reproduzidas integralmente ou por súmula, conforme o juiz determinar, tendo em atenção os meios disponíveis de registo e transcrição, nos termos do artigo 101.º”.
Esta versão original foi objecto de sucessivas alterações pela Lei n.º 59/98, de 25/08 (acrescentou, no nº 1, a expressão “bem como nos casos de vítimas de crimes sexuais); pela Lei n.º 48/2007, de 29/08 (alterou o nº 1 para “bem como nos casos de vítimas de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual”, introduziu o nº 2, criou o nº 3 (correspondente ao originário nº 2 alterado), acrescentou o nº 4, alterou o originário nº 5, acrescentou o nº 6, o nº 7 (correspondente ao originário nº 4) e o nº 8), e pela Lei n.º 102/2019, de 06/09 (adaptou à ordem jurídica interna às disposições da Convenção do Conselho da Europa contra o Tráfico de Órgãos Humanos).
O artigo 271.º, do CPP tem, actualmente, a seguinte configuração:
“Declarações para memória futura
1- Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2- No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3- Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4- Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5- A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6- É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º
7- O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.
8- A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”.
Paralela, e especificamente, no âmbito do regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, foi inserido o artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro:
“Declarações para memória futura
1- O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2- O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3- A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.
4- A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5- É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.
6- O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7- A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”.
Mais tarde, foi inserido, no âmbito do Estatuto da Vítima, o artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro:
“1- O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.
2- O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3- A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
4- A tomada de declarações é efectuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, ou a documentação através de auto, quando aqueles meios não estiverem disponíveis, o que deverá ficar a constar do auto.
5- A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo tribunal.
6- Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar”.
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Assim, criado pelo legislador original do Código como meio preventivo de recolha e conservação da prova em perigo de se perder, o âmbito deste incidente processual alargou-se para a protecção das vítimas de crimes de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas, de crimes contra a liberdade ou determinação sexual, de crimes de violência doméstica e/ou vítimas especialmente vulneráveis (“a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social”).
Tentando conferir alguma coerência lógica a toda esta legislação, afigura-se-nos que no Código de Processo Penal, o artigo 271 do CPP constitui uma norma excepcional, que consagra uma disciplina contrária à norma geral constante do artigo 355 onde se consagra o já referido princípio da imediação – não valem em Julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do Tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em Audiência (ou “a contrario” só valem as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em Audiência).
Por sua vez, o artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09 constitui uma norma especial, regulando um sector restrito de casos: os crimes de violência doméstica, e consagra uma regra paralela à norma excepcional do regime geral.
O artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4/09 constitui igualmente uma norma especial, regulando um sector restrito de casos: as vítimas especialmente vulneráveis, e consagra também uma regra paralela à norma excepcional do regime geral.
Estes regimes especiais sobrepõem-se num determinado sector: as vítimas de crimes de violência doméstica, especialmente vulneráveis.
Sendo que entre ambos há divergência quanto à abordagem da repetição do depoimento em Audiência: se, no caso de violência doméstica, a tomada de declarações para memória futura “não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento”, no caso de vítima de violência doméstica, especialmente vulnerável, “só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade”.
Estamos perante diferentes formulações da mesma realidade, em que o foco da “tomada de declarações para memória futura” é numa colocado com o aspecto que tem “à partida” e noutra com o aspecto que tem “à chegada”:
No 1º caso, a tomada de declarações para memória futura “não prejudica”, isto é, não impede, não impossibilita, a repetição do depoimento em Audiência (seria mais rigoroso utilizar o termo “declarações”, uma vez que se trata de vítima, normalmente assistente e/ou demandante civil).
No 2º caso, a tomada de declarações para memória futura impossibilita, impede, a repetição das declarações em Audiência, salvo se “for indispensável” à descoberta da verdade.
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O requerimento do Mº. Pº. baseou-se na “especial vulnerabilidade” das vítimas de violência doméstica, situando-se no sector em que ambos os regimes especiais se sobrepõem, como acabado de analisar.
Invocam-se as “disposições conjugadas dos arts.º 271.º do Cód. Pena, art.º 24.º da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro, art.º 1 e 33.º da Lei 112/2009, de 16 de Setembro e Directiva 5/2019 da P.G.R.”.
Aqui chegados e no respeitante a quem sejam essas vítimas, importa observar que o M.ºP.º no seu requerimento e no recurso revela alguns lapsos e contradições.
Por sua vez, a própria decisão mostra discrepâncias entre o pedido e o decidido.
Concretizando na medida do necessário:
- Dos autos resulta que as vítimas serão quatro: C… (mulher do denunciado), D… (filha), E… (filho) e F… (filha apenas da C…).
No requerimento do M.ºP.º, requere-se apenas a tomada de declarações para memória futura da C…, do E… e da F… (a D… ficou esquecida, embora na fundamentação do requerimento surjam todos mencionados).
Por sua vez, na decisão objecto de recurso apenas são mencionados o E…, a C… e a D… (a F… ficou esquecida).
Por último, no recurso e tal como resulta do acima referido quanto à questão suscitada, são apenas mencionados o E…, a D… e a C… (esquecendo-se também o M.ºP.º, desta vez, da F…).
De qualquer forma, ainda que a decisão aqui a proferir se circunscreva ao E…, à D… e à C… (uma vez que são esses os mencionados no recurso), idênticas razões se aplicarão à tomada de declarações da F….
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Repetindo-se o já referido, quer no requerimento quer no recurso invoca-se – entre outras normas – o artº 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4/09, convocando-se o estatuto de “especial vulnerabilidade”, destas eventuais vítimas de violência doméstica.
Ora, sendo invocado o estatuto de “especial vulnerabilidade” das eventuais vítimas de violência doméstica, não é admissível indeferir a tomada de declarações para memória futura com base na inexistência de “razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura”, e por poderem os interesses em causa “ser acautelados através de outros mecanismos como sejam o interrogatório judicial”.
O requerimento apenas poderia ser indeferido se fosse negada a existência de “violência doméstica”, e/ou a situação de “especial vulnerabilidade” das supostas vítimas.
Assim, a decisão tem de ser revogada e, com estes fundamentos, deve o recurso proceder.
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Com os fundamentos relatados, decide-se julgar procedente o recurso do Ministério Público, revogando-se o Despacho recorrido e determinando-se a sua substituição por outro que defira o pedido de tomada de declarações para memória futura “das vítimas C… e dos menores, D… e E…”, designando-se data para a mesma.
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Sem custas.
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Porto, 22/09/2021
José Piedade
Horácio Correia Pinto