VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PROVA INDIRETA
PRESCRIÇÃO
Sumário

O crime de violência doméstica é um crime de execução permanente o que significa que se prolonga e persiste no tempo havendo uma voluntária manutenção da situação antijurídica até que a execução cesse.

Há que ter em conta que, até para efeitos de escolha e decisão da lei aplicável (como seja da natureza pública do crime e consequente legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal), quer para efeitos de contagem do prazo de prescrição, o determinante é a data da execução do último facto praticado, isto é, o dia em que cessou a sua consumação.
Neste tipo de crimes é difícil termos prova direta.
Se exigíssemos que se fizesse a todo o custo prova direta, sem ter em conta que a vida não é absolutamente concreta, mas conjuga-se para existir no seu todo, estaríamos condenados ao fracasso do processo penal não havendo confissão, não havendo testemunhas presenciais, não haveria prova.

Se os indícios servem para, sendo fortes, levar alguém a julgamento prevendo seguramente uma condenação, então há que conjugar todos os indícios com todas as provas, todas as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto.

Induzir, e deduzir é um exercício de análise que se consegue a partir de indícios, observados e conjugados como prova documental e testemunhal, ou/e outra.

Não podemos esquecer que, na apreciação e valoração da prova, a lei admite que o juiz recorra a regras da experiência ou presunções judiciárias, em ordem a extrair de factos conhecidos um outro ou outros sobre os quais se não fez prova directa – art. 127 do CPP.

Texto Integral

Acórdão proferido na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa



Nos presentes autos veio HC...... interpor recurso da decisão proferida em 1ª Instância   na parte em que, condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº 1, alínea a), e nº 2 do Código Penal na pena de 2 anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova.

Apresentou para tanto as seguintes conclusões

1.º

O Recorrente foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, nº 1, alínea a), e nº 2 do Código Penal na pena de 2 anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova.
2.º

O presente recurso tem como objeto a invocação dos vícios da sentença previstos nos nº1 e nº 2, alíneas a) e c) do artigo 410.º do CPP.
3.º

Não podem os mesmos ser dados como provados os pontos 4. e 5. Dos factos provados.
4.º

Tais factos a constituírem crimes, encontram-se prescritos já, pois a conforme depoimento da testemunha MA......, que aos 03m: 50s referiu “eu residiatéhá 8 anos atrás,foi quando eucasei”, logo sendo os factos alegadamente praticados pelo arguido durante toda a relação, e até há 10 anos já prescreveram, nos termos da conjugação dos artigos 118.º nº 1 alínea b) e 152.º nº 1 do Código Penal.
5.º

Quanto aos restantes factos dos últimos dois anos, o depoimento da referida testemunha MA...... não pode ser valorado mais do que os das outras testemunhas, nomeadamente a testemunha AM...... (aos 3m:00s, 3m:00s).
6.º

Ora, daqui resulta que não pode o depoimento destas testemunhas suportar os factos dados como provados nos pontos 4. e 5..
7.º

O depoimento da ofendida não pode ser valorado considerando os relatórios de fls. 264/268 e 279, dados como provados no seu essencial, considera a capacidade de testemunho prejudicada pela extrema lentidão cognitiva e dificuldade em conservar em memória e reproduzir os acontecimentos que presenciou e que na altura do julgamento a capacidade da utente testemunhar está comprometida, por dificuldade em relatar eventos recentes e orientação tempo temporal no entanto sem compromisso da memória autobiográfica para eventos de vida mais antigos.
8.º

O tribunal refere que as MA......, JM...... e VM......, presenciaram alguns desses factos.
9.º

A valoração dada pelo tribunal ao depoimento da testemunha MA...... não pode ter uma valoração diferente do que as restantes, que afirmaram precisamente e contrário, sendo
que esta testemunha e a testemunha JR...... não presenciaram os factos do dia 15.03.2019 constituindo assim uma prova indireta.
10.º

Os factos dos pontos 6. e 7. dos factos provados têm que ser dados como não provados, tendo que se considerar também aqui o que supra se disse sobre ao depoimento da ofendida, a única que presenciou os factos, não tendo nenhuma das outras testemunhas presenciado os mesmos, como o caso da testemunha MM......, “não presenciou aos mesmos”.A própria testemunha refere aos 14m:32s que “sabe dos factos porque a mãe lhecontou”.
11.º

A testemunha VM...... referiu ouvir discussões entre o casal e que ouviu a expressão constante do ponto 4. dos factos provados. A ser verdade, esta testemunha ouviu apenas proferir essa expressão no dia 15.03.2019, ora, tal não é o suficiente para qualificar esse facto como sendo violência doméstica. O mesmo com os depoimentos das testemunhas MA...... (aos 14m: 32s), AM...... (aos 3m:0s), AR...... (aos 2m:12s, 2m:53s e 6m:38s) e JR...... (aos 3m:48s), e testemunha IG...... (aos 4m:50s).
12.º

Acresce ainda que a ofendida estava sempre descontente com o arguido com as horas a que o arguido chegava a casa, e suspeitar que este tinha uma amante e por causa da construção da casa, e então neste caso está excluída a tipificação do tipo legal do crime de violência doméstica.
13.º

Foram assim erradamente os factos dos pontos 6. e 7. considerados factos provados.
14.º

Tais factos foram erradamente dados como provados porque o tribunal não valorou os depoimentos das testemunhas AR...... (aos 2m:12s, 2m: 53s, 3m:15s, 3m:47 e 6m:0s) e AM...... (aos 6m:32s e 6m:38s).
15.º

Ainda que restassem dúvidas, impõe-se lançar mão do princípio in dubio pro reo e resolver de forma mais favorável para o arguido.
16.º

O Tribunal fez uma errónea apreciação da prova, chegando mesmo a contrariar as regras

da lógica e da experiência e a retirar relevância probatória a alguns factos apreciados, cometendo, neste particular, erro de julgamento.

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Pronunciou-se o MP em 1ª Instância
1. É verdade que o depoimento da vítima foi pouco espontâneo e fluído, insistindo e retomando constantemente a episódios de um passado mais longínquo, o que se entende ter ficado a dever, não só às suas dificuldades auditivas e estado de ansiedade, que eram notórios, mas sobretudo ao facto de padecer de demência, conforme registos clínicos junto aos autos. Todavia, sempre se dirá que foi capaz de relatar ao Tribunal que o arguido, seu marido, lhe dizia nas discussões que ela não prestava para nada e que a agredia com estalos e que, no dia em que o confrontou por causa da relação extraconjugal que ele mantinha, ele apertou-lhe o pescoço.
2. O relatório pericial de psiquiatria realizado à ofendida concluiu pela existência de uma síndrome demencial, que é caracterizado por alterações das capacidades cognitivas, em vários domínios cognitivos, sendo o mais relevante, a afetação da memória e que provavelmente à data da sessão de julgamento de 25-09-2020, a examinada teria uma capacidade de testemunho prejudicada pela extrema lentidão cognitiva e dificuldade em conservar em memória e reproduzir os acontecimentos que presenciou.
3. Todavia, ao mesmo relatório pareceu plausível, que à data da denúncia a vítima tivesse mais capacidade para relatar factos e que houve uma deterioração entretanto do seu estado mental.
4. No mesmo sentido, uma “informaçãoclínica”do médico neurocirurgião Dr.VL......, junta aos autos, datada de 30/04/2019, que atesta que naquele momento ME...... se encontrava “lúcida, adaptada, consciente e apta a desempenhar tarefas da vida
diária.”
5.A avaliação de neurologia à ofendida solicitada pelo Tribunal considerou que a ofendida não apresentou evidênciade desorientação espacial, defeito de linguagem nomeadamente compreensão verbal simples,defeito dememória autobiográfica para eventos de longa data,nem sinais de alterações do pensamento, nomeadamente delírio persecutório, alucinações ou outros sintomas de natureza psicótica.
6. O Militar da GNR, que inquiriu a ofendida durante a fase de inquérito, corroborou a sua capacidade de testemunho mais intacta nessa data do que à data do julgamento.
7. Assim, da conjugação destas avaliações médicas com a apreciação do depoimento da ofendida, naturalmente conjugada com as declarações das restantes testemunhas, nomeadamente da filha, do genro, do médico VL...... e do Militar da GNR, são de valorizar as declarações de ME.......

8. E ainda que se entendesse como completamente afetada a capacidade de testemunho da ofendida, sempre se dirá que a valoração do depoimento indireto não é absolutamente proibida, tal como prevê o artigo 129.º, n.º 1, do CPC, que permitiria o depoimento de ouvir dizer, no caso em apreço, das testemunhas referidas no parágrafo anterior em virtude de anomalia psíquica superveniente.
9. Da conjugação dos relatos tanto da vítima como das testemunhas MA...... e AR......, filha e genro da ofendida, é percetível que relatam uma situação contínua de agressividade verbal, física e psicológica contínua desde o início da relação conjugal da vítima e do arguido, pelo que tal continuidade (que durou até ao dia 15/03/2019, quando a ofendida abandonou a casa morada de família) não pode ser olvidada, não se podendo, assim, concordar com a ocorrência de uma alegada prescrição.
10. O facto de as testemunhas AR...... e AM...... terem dito perante o Tribunal que nunca assistiram a qualquer episódio de violência do arguido perante a ofendida, não descredibiliza o depoimento no sentido contrário das testemunhas MR......, JR...... e VM.......
11. Nem todo o depoimento das testemunhas MR......, JR...... e VM...... é indireto, designadamente quanto ao que viram (estalos e marcas de agressões) e ouviram (expressão “não prestas para nada”).
12. O crime de violência doméstica não depende dos motivos da violência, pelo que não releva se as agressões psicológicas, verbais ou físicas decorrem de discussões motivadas por ciúme, dinheiro ou outra.
*

Nestes termos, DEVE A DECISÃO RECORRIDA SER CONFIRMADA.
***

Neste Tribunal emitiu a Digna Procuradora-Geral adjunta parecer no sentido de que no caso dos autos, é para nós claro, que não existe prescrição a invocar.
Por todo o exposto e demais argumentação apresentada pela magistrada do Ministério Público da Primeira Instância, o recurso deve improceder, mantendo-se a decisão recorrida.
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Da decisão sob recurso resulta:

FACTOS PROVADOS:

1 - O arguido HC...... e a ofendida ME...... foram casados entre si cerca de 43 anos.
2 - O arguido e a ofendida têm uma filha em comum, maior de idade, MVGAR.......
3 - O arguido e a ofendida estabeleceram a residência comum em Casal P..., nº ..., r/c --..., E... M... G..., V... F... X....
4 - Durante toda relação amorosa era habitual o arguido dizer à ofendida que esta “não prestava para nada”.
5 - Durante toda relação amorosa, em algumas discussões, o arguido desferiu chapadas na face da ofendida.
6 - No dia 15/3/2019, na residência comum, ocorreu uma discussão entre a ofendida e o arguido, porque aquela o acusou de ter uma relação extraconjugal.
7 - Durante essa discussão, o arguido abeirou-se da ofendida e apertou-lhe o pescoço com as duas mãos, causando-lhe dores.
8 - Após estes factos, a ofendida abandonou a residência comum.
9 - No dia 12/4/2019, pelas 16h30, o arguido dirigiu-se até à residência sita na Estrada da Câmara Municipal nº 1...., pois sabia que aí se encontrava a ofendida.
10 - Ao actuar do modo acima descrito, o arguido agiu, em todas as condutas e situações, livre e conscientemente, no propósito de provocar na ofendida, a cônjuge, as dores e lesões físicas que efectivamente lhe provocou, e maltratá-la psiquicamente, ofendendo-a na sua dignidade pessoal, humilhando-a e diminuindo-a, bem sabendo que tais comportamentos eram idóneos a provocar na mesma, como provocaram, tanto sofrimento físico, como perturbações psicológicas, que afectaram o seu equilíbrio emocional.
11 - O arguido praticou tais factos na residência comum, de forma livre, voluntaria e consciente.
12 - O arguido sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.
Provou-se ainda que:
13 – Como consequência da conduta do arguido a ofendida ME...... sentiu vergonha, ansiedade e nervosismo.
14 – Nos termos de Relatório de Perícia Médico-Legal de fls. 264/268 consta que a ofendida ME...... “apresenta alterações cognitivas importantes ao nível da memória e da capacidade de raciocínio (…) detecta-se a existência se, concretamente, a existência de um síndrome demencial, que é caracterizado, como todos os síndromes demenciais, por alterações das capacidades cognitivas, em vários domínios cognitivos, sendo o mais relevante, a afectação da memória (…) Pelo historial da paciente, o mais provável é que a causa do Síndrome Demencial seja vascular, crónica e irreversível, uma vez que a examinada teve um AVC há 11 anos e tem factores de risco importantes para doença cardiovascular (é diabética insulinodependente) (…) a examinada tem uma capacidade de testemunho prejudicada pela extrema lentidão cognitiva e dificuldade em conservar em memória e reproduzir os acontecimentos que presenciou (…)”.
15 – De acordo, com o Relatório Clinico de fls. 279, a ofendida “(…) apresenta à data das consultas de Neurologia (19 de Outubro de 2020 e 12 de Janeiro de 2021) um quadro demencial de provável etiologia mista (doença de Alzheimer e vascular) em estádio ligeiro, e concomitante quadro de depressão e ansiedades crónicas (…) a avaliação cognitiva da utente permite inferir que neste momento a capacidade da utente testemunhar está comprometida, por dificuldade em relatar eventos recentes e orientação tempo temporal no entanto sem compromisso da memória autobiográfica para eventos de vida mais antigos (…)”.
Mais se provou que:
16 – O arguido reside sozinho, beneficiando da quantia de € 550,00 a titulo de pensão de reforma, sendo que despende a quantia de € 51,00 a titulo de renda de habitação e € 30,00 a titulo de despesas com medicação.
17 – O arguido não possui antecedentes criminais.
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FACTOS NÃO PROVADOS:

1 – Que aquando dos factos descritos em 4. o arguido dirigia à ofendida as seguintes expressões: “atrasada” e que “não sabia falar”.
2 – Que durante toda relação amorosa, em algumas discussões, o arguido dizia à ofendida “se não te calas, bato-te”.

3 – Que aquando os factos descritos em 9., o arguido tentou abrir a porta dessa residência à força, enquanto dizia à ofendida: “vou entrar aí dentro e vais pagá-las todas”.
4 – Que em consequência da conduta do arguido a ofendida tenha incapacidade de falar com regularidade, frequentes dores de cabeça, medo, instabilidade e depressão.
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Motivação da decisão de facto
O Tribunal firmou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal. A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da mesma, pois que tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e de lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.

Sendo que a convicção do tribunal é formada, através dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas e, também, pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, ansiedade, embaraço, desamparo, serenidade, olhares para alguns dos presentes e risos, como “linguagem silenciosa e do comportamento”, a coerência de raciocínio e de atitude, a serenidade e seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, e as coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência, de tais declarações e depoimentos.

Com efeito, é ponto assente que a comunicação não se estabelece apenas por palavras mas também pelo tom de voz e postura corporal dos interlocutores, sendo apreciadas no contexto da mensagem em que se integram.
Trata-se de um acervo de informação não verbal e dificilmente documentável face aos meios disponíveis, mas imprescindível e incindível para a valoração da prova produzida e apreciada, segundo as regras de experiência comum.
Foi assim, à luz de tais princípios, que se formou a convicção deste Tribunal e consequentemente se procedeu à seleção da matéria de facto positiva e negativa relevante.
Da prova produzida resultaram duas versões dispares dos factos, por um lado o arguido que negou os factos imputados e por outro lado, a ofendida que não obstante as inúmeras dificuldades em se exprimir, conseguiu descrever a factualidade dada como provada.

Ora, o arguido confrontado com os factos imputados, negou no essencial os mesmos.
A este propósito descreveu ao Tribunal os contornos do relacionamento com a ofendida, tendo referido a este propósito que nunca agrediu física ou verbalmente a ofendida e que esta ao invés é que o agrediu numa ocasião. Mais referiu que na origem destes factos está o mau relacionamento com a sua filha, a testemunha MA......, que estaria na base dos conflitos entre o casal e que influenciaria a ofendida contra o arguido. Mais referiu que a sua filha teria interesse em que a ofendida saísse de casa, a fim de ficar com a reforma da sua mãe.

Por sua vez, a ofendida ME......, não obstante as dificuldades em se exprimir, logrou explicar, ainda que de forma sucinta, os factos dados como provados, nomeadamente em 4., 5. e 7..

Ora, estas dificuldades manifestadas pela ofendida, levaram este Tribunal a efectuar diligências tendentes a aferir da sua capacidade para depor, sendo que do resultado dessas mesmas diligências e elementos clínicos, nomeadamente cfr. fls. 199, 264/269 e 279, juntamente com os depoimentos das testemunhas MA......, JR...... e VM......, este Tribunal não ficou com quaisquer dúvidas de que esses factos ocorreram e da forma dada como provada e descrita pela ofendida.

Se num primeiro momento, este Tribunal ficou com algumas dúvidas quanto à ocorrência dos factos descritos pela ofendida, dadas as manifestas dificuldades de expressão, estas dúvidas dissiparam-se com o teor dos relatórios juntos aos autos em conjugação com os depoimentos das referidas testemunhas que presenciaram alguns desses factos, o que veio reforçar a versão apresentada pela ofendida.

Pela testemunha MA......, filha do casal, foi referido todo o contexto do relacionamento dos seus progenitores, tendo a este propósito referido que o arguido, seu pai, é uma pessoa autoritária ao invés da sua mãe que é muito submissa. Mais referiu serem frequentes as discussões entre o casal, e que nesse contexto ouvia as expressões dadas como provadas. Mais referiu que, no que concerne aos factos descritos em 6. e 7. dos factos provados, não assistiu aos mesmos, contudo, nessa ocasião a ofendida ligou-lhe muito assustada e contou que o arguido a havia agredido com murros na cabeça e lhe apertou o pescoço. Por esta testemunha foi referido que se deslocou logo de seguida a casa dos seus pais e que aí chegada viu a sua mãe muito assustada e transtornada, tendo visto marcas vermelhas no pescoço da ofendida.

De realçar que este depoimento foi corroborado pela testemunha JR......, genro do arguido e ofendida, e que confirmou as expressões dadas como provadas, bem como, mencionou que se deslocou a casa do casal, juntamente com a testemunha MA...... aquando os factos referidos em 6. e 7.. A este propósito referiu que aí chegado viu a ofendida muito alterada e chorosa, tendo visto marcas vermelhas no pescoço desta.

Estas testemunhas, MA...... e JR......, foram ainda importantes na descrição de todo o acompanhamento que deram à ofendida, pois que esta passou a residir com estes, tendo descrito todo o impacto emocional que tais comportamentos do arguido tiveram naquela.

Na formação da convicção deste Tribunal, assumiu ainda relevância a testemunha VM......, vizinha do casal, e que referiu ser frequente ouvir discussões entre o casal, em que ambos gritavam um com o outro. Mais referiu ter ouvido a expressão mencionada em 4. dos factos provados.

Referiu ainda que numa ocasião a ofendida desabafou consigo, e lhe confidenciou que o arguido a tinha agredido. Mais referiu ainda que viu marcas vermelhas no pescoço desta. Questionada acerca do teor das discussões, por esta testemunha foi referido que na base estariam desconfianças da ofendida de que o arguido teria um relacionamento extraconjugal.

Na formação da convicção assumiu ainda relevância o depoimento da testemunha Dr.VL......, Médico Neurologista, e cujo depoimento foi relevante na descrição do acompanhamento efetuado à ofendida, o que permitiu a este Tribunal inteirar-se quanto ao estado de saúde da ofendida e às suas dificuldades em se expressar.

Em sede de julgamento foram ainda inquiridas as testemunhas RE......, GN...... e VO......, militares da GNR, e cujos depoimentos assumiram relevância na descrição das diligências que efetuaram.
Destes depoimentos, destaca-se o depoimento prestado pela testemunha RE......, militar da GNR e agente autuante de fls. 3/6, que descreveu as circunstâncias em que ouviu a ofendida, após os factos descritos em 6. e 7. dos factos provados, recordando-se que nessa ocasião a ofendida estava muito alterada, muito nervosa.

De salientar que sem sede de julgamento fora ainda inquiridas as testemunhas AR...... e AM......, vizinhas do casal, contudo tais depoimentos em nada lograram esclarecer o Tribunal na medida em que referiram nada terem assistido, nomeadamente agressões físicas ou verbais entre o referido casal. Pela testemunha AM...... foi referido que ao invés viu o arguido com marcas de agressões no pescoço.

Ora, não obstante a versão do arguido, o certo é que o mesmo procura justificar os factos descrevendo circunstâncias que apenas demonstram urna forte tensão e conflito entre arguido e vítima, chegando mesmo a colocar-se na posição de vítima, em contraposição com a versão apresentada pela ofendida que obteve total credibilidade junto do Tribunal até porque corroborada pelos depoimentos acima referidos.

Quanto ao dolo e consciência da ilicitude conjugou o Tribunal os meios de prova supra expendidos com as regras da experiência comum, o que permite concluir que o arguido actuou com o propósito alcançado de atacar e enxovalhar o bom nome a auto-estima da ofendida e de a vexar e, bem assim, com o desígnio concretizado de molestar o bem-estar psíquico e físico da ofendida.

Ora da prova produzida, dúvidas não existem para este Tribunal de que o arguido praticou os factos descritos nos factos provados. Não obstante a versão dos factos apresentada pelo arguido, a mesma não foi merecedora de qualquer credibilidade, não tendo encontrado apoio em mais nenhum meio de prova, em contraposição com a forma espontânea com que as testemunhas acima inquiridas e cuja credibilidade não foi abalada em momento nenhum.

Refira-se, ainda que, no que respeita às condições económicas, sociais e familiares do arguido, o Tribunal firmou a sua convicção nas declarações do próprio.
No que concerne aos demais factos constantes da acusação e que foram considerados como não provados, tal deveu-se a nenhuma prova sobre os mesmos ter sido realizada.
A verdade objecto do processo não é uma verdade ontológica ou científica, é uma convicção prática firmada em dados objetivos que, direta ou indiretamente, permitem a formulação de um juízo de facto.
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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar artºs 403º e 412º nº 1 CPP sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 410º nº 2 CPP.
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Cumpre decidir
Alega o recorrente que
Os pontos 4 a 7 da acusação não podem ser dados como provados, porque os factos indicados nos pontos 4 e 5, a constituírem crimes, já se encontram prescritos, porque ocorridos há mais de 10 anos;
Os testemunhos de MR......, JR...... e VM...... não podem ser mais valorados que os de AR...... e AM......;
Ninguém presenciou os factos do dia 15/03/2019, constituindo assim os testemunhos de MR...... e JR...... prova indireta;
O testemunho da ofendida não pode ser valorado, considerando a capacidade de testemunho prejudicada pela extrema lentidão cognitiva e dificuldade em conservar em memória e reproduzir os acontecimentos que presenciou;
Não deve ser aplicada pena acessória de proibição de contactos com a vítima SL...... requerida pelo Ministério Público ao abrigo do disposto no art° 152.°, n° 4, do Código Penal.

Vejamos:
Tratemos desde já a invocada prescrição dos factos dados como provados.
Fundamenta-se o recorrente no facto de a testemunha MR...... ter relatado um episódio a que assistiu quando tinha 4 anos de idade e que, sendo assim, teria ocorrido na altura da audiência de julgamento há mais de 10 anos.
No entanto há que ter em conta que a prova dos factos integradores do crime de violência doméstica não se reporta a situações fixas no tempo, mas a um decurso no tempo de factos que se interligam e que por si, e em conjunto, confirmam e reafirmam o cometimento do crime.
Ou seja, o que surge perante nós  é uma situação contínua de agressividade verbal, física e psicológica   desde o início da relação conjugal entre a vítima e o arguido, que se estendeu até meados de Março de 2019, altura em que  a ofendida abandonou a casa morada de família e que, não pode ser ignorada.
Como já foi afirmado noutras decisões deste tribunal e nomeadamente deste colectivo, o crime de violência doméstica é um crime de execução permanente o que significa que se prolonga e persiste no tempo havendo uma voluntária manutenção da situação antijurídica até que a execução cesse.
Assim o prazo de prescrição do crime é de pelo menos 10 anos, na sua forma simples e de 15 anos na sua forma agravada
No caso dos autos não há sequer sombra de prescrição.
Há que ter em conta que, até  para efeitos de escolha e decisão da lei aplicável (como seja da natureza pública do crime e consequente legitimidade do Ministério Público para o exercício da ação penal), quer para efeitos de contagem do prazo de prescrição, o determinante é a data da execução do último facto praticado, isto é, o dia em que cessou a sua consumação.
Dúvida não há, e o recorrente também aí não chega, de que durante o espaço de tempo referido o recorrente aqui arguido, sempre sujeitou a vítima a um trato que,   quer em termos físicos quer psíquicos (mais censurável ainda se tivermos em conta que dada a situação de saúde da ofendida ficou progressivamente mais vulnerável), que atentaram contra a dignidade desta.
O arguido HC...... e a ofendida ME...... foram casados entre si cerca de 43 anos.  Durante toda relação amorosa era habitual o arguido dizer à ofendida que esta “não prestava para nada”. Durante toda relação amorosa, em algumas discussões, o arguido desferiu chapadas na face da ofendida.
No dia 15/3/2019, na residência comum, ocorreu uma discussão entre a ofendida e o arguido, porque aquela o acusou de ter uma relação extraconjugal. Durante essa discussão, o arguido abeirou-se da ofendida e apertou-lhe o pescoço com as duas mãos, causando-lhe dores.
Após estes factos, a ofendida abandonou a residência comum.

No dia 12/4/2019, pelas 16h30, o arguido dirigiu-se até à residência sita na Estrada da Câmara Municipal nº 1...., pois sabia que aí se encontrava a ofendida.

O que se verifica é exatamente o que já foi dito ou seja, uma situação contínua de agressividade verbal, física e psicológica desde o início da relação conjugal, pelo que tal continuidade (que durou até ao dia 15/03/2019, quando a ofendida abandonou a casa de morada de família) não pode ser apagada, ignorada ou esquecida.
Os factos não se encontram, portanto, prescritos pelo que, claudica aqui o recurso desde já se indeferindo a invocada exceção.

Quanto aos vícios que o recorrente invoca parecendo pretender que este tribunal avalie de novo a prova, como sabemos, de acordo com o disposto no artº 410º do CPP
1 –Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 –Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a)A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; 
b)A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c)Erro notório na apreciação da prova.
 
De acordo com o n.º 2 do art.º 410º C.P.P. qualquer dos vícios aí invocados têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos a ele estranhos. 
Na revista alargada a apreciação não se restringe ao texto da decisão, estendendo-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.° 3 e 4 do art. 412.° do C.P. Penal.
No entanto há que ter em conta que mesmo o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre a matéria já julgada, mas uma apreciação com base na audição de gravações.  O Tribunal da Relação faz uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
 
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa sobre as questões por si levantadas.
Isto porque se trata de um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, sendo por essa razão que o recorrente deverá expressamente indicar o que pretende de acordo com o disposto no artigo 412.°, n.°3, do C.P. Penal, apontando 
a)Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; 
b)As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; 
c)As provas que devem ser renovadas.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. 
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas, uma vez que na acta não consta o início e termo das declarações, com referência «às concretas passagens/ excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».  
Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
a)a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
b)a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações; 
c)a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
d)a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.°3 do citado artigo 412.°.   
Assim, o que se exige é que o recorrente, sustentando que um determinado ponto de facto foi incorretamente julgado, o indique expressamente, mencionando a prova que confirma a sua posição; e tratando-se de depoimento gravado, que indique também, por referência ao correspondente suporte técnico, os segmentos relevantes da gravação.” Interpretação esta que está em conformidade com o  Ac. T.C. 488/04 
Tenhamos presente ainda, o Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorretamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).
Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respetivos suportes”.
 
Mais, como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”. 
E também não é ao tribunal que cabe individualizar os factos incorretamente julgados tendo em conta o pretendido pelo recorrente.
 
O recorrente indicou os factos que impugna por considerar erradamente julgados os factos julgados provados e enumerados. No entanto, nas conclusões não indicou qualquer passagem das declarações ou depoimentos produzidos na audiência de julgamento limitando-se a remeter para as gravações e a transcrever partes.

E se, como começámos por dizer, as conclusões delimitam o objeto do recurso, não conhecendo o Tribunal das que o recorrente não transportou (ainda que de forma resumida, mas clara), das motivações para as conclusões, este Tribunal limitar-se-á a apreciar a decisão quanto aos possíveis vícios alguns deles invocados.

Nessa medida, o tribunal de recurso apenas poderá censurar a decisão sob recurso - alicerçada na livre convicção, assente na imediação e na oralidade - se for manifesto que a solução por que optou, de entre as várias possíveis e plausíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum (artº127º, do CPP).
Acresce que, os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes devem ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se apoiam  e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou, a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram e de quem foram os seus agentes.
 
Importa ainda referir, por outro lado que, por estarmos perante inteira omissão de cumprimento da referida exigência, não há lugar a convite ao aperfeiçoamento art.º 417º, do CPP. 
O Tribunal de recurso conclui assim que, se tem como assente a matéria fixada, apenas essa, como objeto do recurso.

Vejamos quanto aos testemunhos que diz o recorrente são mais valorados que os restantes, insurgindo-se contra a forma como o tribunal apreciou a prova e pretendendo que vingue a sua apreciação da prova.

De acordo com o princípio da livre apreciação da prova “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
Como diz Maia Gonçalves, in "Código de Processo Penal, anotado", 9.ª ed., pág 322, "... na livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica...”
Já Germano Marques da Silva, em "Curso de Processo Penal", II, pág. 126 e ss., defende que a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa “valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. Com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim. 
Num primeiro aspeto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g., a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).
Num segundo nível referente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência".
Por outro lado, diremos também que, dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise dos textos processuais onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de exceção, deve adotar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo.
Analisada a decisão em recurso e o recurso da mesma, verificamos, pois, que não encontramos erro notório na apreciação da prova, nem uma apreciação arbitrária da mesma, que, contudo, não se confunde com o erro nem uma ligeira impressão de que foi assim e não de outra maneira no espírito do julgador.
A circunstância do recorrente discordar da valoração da prova feita pelo tribunal recorrido pertence, antes, ao domínio da impugnação da convicção do tribunal a quo, questão a ser analisada de acordo com o disposto nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP que como já vimos fica prejudicada pelas razões invocadas de não terem sido especificados: a) os pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) as provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas.

Assim só temos que nos render ao facto de que, o Tribunal ao decidir, fundamentou claramente a sua decisão na prova produzida em audiência, na prova junta aos autos e em regras de lógica, na razão e experiência comum.
De acordo com o art. 374°, nº 2 a fundamentação da decisão consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa mesmo que concisa ou sucinta, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal feito de forma clara e compreensível ou apreensível.
Face a ela não bastará ao tribunal fazer a indicação dos concretos meios de prova tidos em conta para formar a sua convicção. É necessário ainda que se expresse o modo como se alcançou essa convicção, o processo racional seguido e explicando a análise e ponderação criticamente comparativa, das diversas provas produzidas, para que se siga e conheça a motivação que fundamentou a opção por um certo meio de prova em detrimento de outro, ou sobre qual o peso que determinados meios tiveram no processo decisório.
Ou seja, "deverá fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador" (cfr. Lopes do Rego, "Comentário ao Código de Processo Civil", p. 434).
Entende tanto a doutrina como a jurisprudência que, em determinadas circunstâncias, alguns dos factos sobre os quais não é possível produzir e analisar prova directa, têm, necessariamente, de ser retirados ou elididos dos factos objectivos e dados como provados e "vistos" à luz da normalidade das coisas, permitindo-se, deste modo, retirar a verosimilhança ou verdade daqueles (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, pág. 187; Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, pág. 279; Acs. STJ de 86.04.02, BMJ 365-122 e de 91.04.03, BMJ 406-314).
Para isso deve o tribunal explicitar no exame crítico da prova, à luz de que raciocínios lógicos e dedutivos alicerçados nos factos provados – sobre os quais foi realizada prova directa – e "crivados" pelas regras da experiência comum ou da normalidade das coisas, como concluiu de certa forma ou extraiu determinadas ilações de forma de tal maneira clara e segura que, qualquer pessoa ao ler a fundamentação fique convencida de que outro não podia ter sido o caminho, outra não podia ter sido a conclusão, outra não podia ter sido a prova analisada, outra não podia ser a análise lógica e razoável da mesma e as necessárias conclusões nunca seriam outras.
Se os actos processuais não respeitarem os requisitos formais que lhes são próprios arriscam-se às consequências que em relação a cada espécie estão previstas na lei.
A imposição legal de fundamentação das decisões judiciais prende-se com a necessidade de assegurar a sindicância, através do recurso, de tal desiderato.

No caso em análise o Mmº Juiz faz uma suficiente fundamentação da matéria de facto quer quanto à provada, quer quanto à não provada.
O Tribunal recorrido fundamenta a sua decisão nos termos do art. 205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa fundando a sua convicção, quanto à factualidade dada como provada e não provada, com base na apreciação global e crítica do conjunto da prova produzida, à luz das regras da experiência e da lógica comuns, tendo sido tido em conta na fundamentação da sua convicção:
“- as declarações do arguido em audiência de julgamento, o depoimento da ofendida (ainda que o recorrido o queira afastar por entender não poder ser de valorar face às dificuldades cognitivas notadas), que, contudo, tendo em conta o relatório  que nos indica que, quando foi feita a participação estava  em condições perfeitas de depor e veio a piorar em 2020 e 2021 (sendo assim de o ter em conta e valorar, exatamente como o tribunal a quo fez), e os depoimentos das restantes testemunhas ainda que não presenciais, uma vez que há que não esquecer que neste tipo de crimes  não há prova presencial a não ser a da vítima e do agressor.
Após o tribunal analisou as provas a relação das mesmas entre si e, do conjunto de todos os elementos de prova, em obediência às regras da experiência e da lógica, o tribunal decidiu com base na sua  convicção que  tanto pode assentar em prova direta do facto como em prova indiciária ou indireta, de conhecimento ou dedução de um facto desconhecido a partir de um facto conhecido: as presunções.
No seu Ac de 12/9/2007, disponível em www.dgsi.pt  o nosso Colendo Tribunal diz-nos que  a prova do facto criminoso nem sempre é direta, de perceção imediata, muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios.
Neste tipo de crimes que analisamos frequentemente e como já dissemos é difícil termos prova direta.
Se exigíssemos que se fizesse a todo o custo prova direta, sem ter em conta que a vida não é absolutamente concreta, mas conjuga-se para existir no seu todo, estaríamos condenados ao fracasso do processo penal não havendo confissão, não havendo testemunhas presenciais.
Se os indícios servem para, sendo fortes, levar alguém a julgamento prevendo seguramente uma condenação, então há que conjugar todos os indícios com todas as provas, todas  as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto.
Induzir, e deduzir é um exercício de análise que se consegue a partir de indícios, observados e conjugados como prova documental e testemunhal, ou/e outra.
Diz-nos ainda o supra referido Ac de 12/9/2007, disponível em www.dgsi.pt  do nosso Colendo Tribunal
IV – A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.
V – O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência nas suas passagens mais elucidativas».

Não podemos esquecer que, na apreciação e valoração da prova, a lei admite que o juiz recorra a regras da experiência ou presunções judiciárias, em ordem a extrair de factos conhecidos um outro ou outros sobre os quais se não fez prova directa – art. 127 do CPP.
Estão, o Tribunal a quo e o Tribunal ad quem, mais do que habituados a, assim, chegar à verdade dos factos em crimes como o dos autos.
Nas várias classificações das provas, a distinção mais importante segundo Taruffo, é a que distingue entre provas diretas e indiretas.   A distinção assenta na conexão entre o facto objeto do processo “e o facto que constitui o objeto material e imediato do meio de prova”.[1] Quando os dois enunciados têm que ver com o mesmo facto, as provas são diretas”, pois incidem diretamente sobre um facto principal. “O enunciado acerca deste facto é o objeto imediato da prova”. “Quando os meios de prova versam sobre um enunciado acerca de um facto diferente, acerca do qual se pode extrair razoavelmente uma inferência então, as provas são indiretas ou circunstanciais. Indiretas podem ser quaisquer provas, obtidas por qualquer meio.
O Professor Cavaleiro de Ferreira, reconhecendo a importância  da prova indireta pois “são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indirecta do que aqueles em que se mostra possível uma prova direta”, considera-a “enganadora”  e chama-lhe prova difícil dizendo que só começa a   ser tida em conta depois de estabelecidos os factos que emanam da prova direta.[2]
Na realidade o que acontece é que a apreciação da prova é tão instantânea que tudo se conjuga para o apuramento dos factos em simultâneo. E é o que sucede neste tipo de crimes.
O tribunal analisou a prova produzida a direta e a indireta e dessa análise resultaram os factos dados como provados. isso resulta claramente da fundamentação da decisão que se mostra clara e escorreita. Não deu mais importância a um depoimento que a outro, apenas à forma como as provas se foram produzindo.
“A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.[3]

Acresce que da motivação da decisão de facto resulta que não podia o tribunal ter-se socorrido do princípio in dubio pro reo corolário da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente no art.º 32°, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos - art.º 18 °, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa; 11 °, da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6.°, n.º 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, e 14.°, n.º 2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Com efeito, enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação. O que quer significar que só a prova de todos os elementos constitutivos de uma infração permite a sua punição. Mas esse é um problema de direito probatório em processo penal. 
Como acentua Hans Heinrich Jescheck, in “Tratado de Derecho Penal”, Parte General, 4.ª ed., pág. 127 e segs., tal princípio "serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do Direito que surjam numa situação probatória incerta".
Vem tudo isto a propósito de que, da leitura da fundamentação da decisão recorrida, resulta que o Tribunal a quo não teve dúvidas quanto à prática dos factos que deu como assentes, dúvidas que este Tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, também não tem, pois que só se a fundamentação revelasse que o tribunal a quo, face a algum ou alguns factos, tivesse ficado em dúvida "patentemente insuperável", como se referiu no Ac. do STJ de 15-6-00, publicado na Coletânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.000, II-228, ou se, embora o tribunal "a quo" não reconhecesse o estado de dúvida, ele resultasse do texto da decisão recorrida só por si ou em conjugação com as regras da experiência comum.
A fundamentação da decisão de facto da sentença recorrida não evidencia qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do arguido.
Conforme refere Helena Bolina, o princípio in dubio pro reo tem reflexos exclusivamente ao nível da apreciação da matéria de facto - a dúvida que o Julgador está vinculado a resolver favoravelmente ao arguido, é uma dúvida relativamente aos elementos de facto, quer sejam pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer sejam factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão de ilicitude ou da culpa.
Implica este que quando o Tribunal fica na dúvida, dúvida incontornável, quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.
Não resulta de um mero capricho ou vontade de absolver por parte do juiz, resulta sim, da prova que foi produzida e causou no espírito do Juiz a dúvida que este não consegue ultrapassar para condenar em consciência.
Já não há só uma presunção de inocência, há também uma dúvida forte sobre a culpabilidade, mas também sobre a inocência.
A dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida – cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra Editora, 1997.
No entanto, o Tribunal tem por certo que, após a apreciação de toda a prova produzida em julgamento à luz das regras da experiência, nos termos do artigo 127.º do CPP, chegará a uma conclusão de necessidade ou desnecessidade de aplicação deste princípio in dubio pro reo.
«Em processo penal, a justiça, perante a impossibilidade de uma certeza, encontra-se na alternativa de aceitar, com base em uma probabilidade ou possibilidade, o risco de absolver um culpado e o risco de condenar um inocente. A solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar-se o risco de absolvição do culpado e nunca o da condenação de um inocente.» (Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal. vol. 1º, 1986, pág. 216). 
Acontece que, no caso em análise, não existe qualquer dúvida por parte do julgador que determine de forma razoável a absolvição do recorrente sendo a fundamentação    lógica e sequencial. E, não pode o recorrente pretender que o facto de o depoimento da ofendida ser difícil de entender pelas suas dificuldades de expressão, surge o princípio em causa.
Esquece o recorrente as suas primeiras declarações e o como foram consideradas válidas e esquece o princípio da livre apreciação da prova. O facto de a ofendida estar doente ou mais fragilizada em termos de saúde desde 2020, não fragiliza as declarações que fez anteriormente nem deixa dúvidas da prática dos factos.
Escudar-se com uma fragilidade da vítima para pretender uma absolvição não é de todo   o caminho que um Tribunal possa ter em conta. Um depoimento mais frágil ou difícil, desde que apreciado de acordo com os princípios legais vigentes como o foi, não leva a considerar que haja falta de prova ou haja uma dúvida que ponha em causa uma condenação.
O tribunal, os tribunais, estão por demais habituados a apreciar prova, e um depoimento mais difícil de recolher ou prestar não incapacita a apreciação da mesma.
Claudica também aqui o recurso.

Assim, não se verifica nenhum dos invocados vícios. Não há erro na apreciação da prova, nem falta de fundamentação, nem contradição alguma na decisão recorrida. Não existe nada na apreciação que nos leve a concluir pela existência de violação do princípio in dubio pro reo.

Assim sendo:

Nega-se provimento ao recurso mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Transitada a decisão comunique-se a mesma nos termos do disposto no artº 37º da lei 112/20098 de 16/09 e 37º da lei 129/2015 de 3/2009.
Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 3 Ucs



(Ac elaborado e revisto pelas desembargadoras relatora e adjunta).



Lisboa, 29 Setembro de 2021



Adelina Barradas de Oliveira
Margarida Ramos de Almeida


 
[1] Taruffo, La Prueba, p. 60
[2] Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, p. 289.
[3] Acórdão do T.C. nº198/2004, de 24MAR04, DR II Série, de 2JUN04