DEVERES DE SEGURANÇA NO TRÁFEGO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ATIVIDADES PERIGOSAS
DANO CAUSADO POR COISAS OU ATIVIDADES
DEVER DE VIGILÂNCIA
PRESUNÇÃO DE CULPA
FACTO ILÍCITO
ÓNUS DA PROVA
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário


I - A responsabilidade delitual prevista no art. 493.º, n.º 1, do CC, assenta na omissão de um dever de vigilância a cargo do proprietário-detentor com poder sobre coisa imóvel ou móvel na qual têm origem os danos causados na esfera jurídica alheia.
II - Esse dever de vigilância consiste numa obrigação de supervisão, controlo, monitorização e informação sobre as fontes (nomeadamente se possíveis e/ou previsíveis) de risco de produção e eclosão de prejuízos das coisas detidas, no sentido da prevenção desse especial perigo enquanto origem de danos para terceiros e da precaução necessária para evitar o dano. Afigura-se como dever (de segurança) no tráfico, integrado em norma legal de protecção que visa prevenir um perigo abstracto, e dever instrumental para a decisão e a execução de medidas e providências – mesmo que a realizar por terceiro e a solicitação do vigilante – para evitar essa produção de danos e promover a protecção de terceiros, danos esses relativos ao especial risco da coisa que ultrapassa o “limiar da normalidade”.
III - Esse dever de vigilância corresponde a uma manifestação de um mais amplo dever de cuidado (na veste de dever de conduta), enquanto obrigação de os proprietários e detentores de coisas, potencialmente munidas de risco na sua fruição ou utilização, cumprirem com diligência as faculdades jurídicas atribuídas pelo título que lhes permite gozar da coisa “arriscada” ou “perigosa”, de acordo com a bitola que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares.
IV - A elisão da presunção de culpa contemplada na 2.ª parte do art. 493.º, n.º 1, do CC depende da prova de que o lesante, em face das circunstâncias específicas do caso, que consubstanciam a perigosidade a antecipar e a prevenir com acção adequada e própria, não podia e não devia ter agido de outro modo para evitar o desvalor objectivo da sua conduta omissiva enquanto concretização do risco acrescido da coisa detida, particularmente se tivessem ocorrido circunstâncias subjectivamente relevantes que afastassem a sua censura; a outra alternativa legal para afastar a culpa é a invocação de causa virtual negativa relevante («que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua»), o que apenas se logra quando se demonstra que, mesmo que o dever de vigilância fosse cumprido à risca, o evento danoso sempre se verificaria, nomeadamente por força de um facto de terceiro ou acidental que levaria inexoravelmente à produção do dano.

Texto Integral




Processo n.º 19707/18.0T8LSB.L1.S1

Revista: Tribunal recorrido – Relação ….., 6.ª Secção



Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça



I) RELATÓRIO

1. «FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.» instaurou acção declarativa de condenação com forma de processo comum contra «Sacyr Neopul, S.A.» e «Sacyr Somague, S.A.», pedindo a condenação solidária das Rés a pagarem-lhe a quantia de € 127.500,00 e juros desde as respetivas citações e até integral pagamento. Alegou o exercício de direito de regresso após ter pago esse montante à sua segurada «Somafel – Engenharia e Obras Ferroviárias, S.A.» (contrato de seguro do ramo “Máquinas de Casco”), proprietária de uma máquina que se encontrava a ser utilizada na movimentação de balastro e regularização de taludes da obra de reabilitação da infra-estrutura e superestrutura da Ferrovia Corredor Nacala em Moçambique, danificada pelo último vagão de uma composição balestreira, que ficara sem freios, quando actuava nessa obra de que as Rés eram empreiteiras, exercendo a actividade de carregamento de vagões balestreiros numa ferrovia em acentuado declive, sendo as Rés responsáveis pela escolha do sistema de travagem dos vagões e pelas respectiva manutenção e inspecções, tendo-se verificado que a tampa e mangueira do freio do vagão situado na cauda da composição, e que embateu na reguladora da segurada da autora, se encontravam fora do sítio, o que não permitia que o sistema de vácuo que faz funcionar os travões desse vagão operasse, dando assim causa ao acidente.
A Autora fundou a responsabilidade das Rés na previsão disposta pelo art. 493º do CCiv.

2. As Rés apresentaram Contestação, alegando a sua ilegitimidade para os termos da acção e a incompetência do tribunal; no mais, defenderam-se por impugnação da versão dos factos apresentada pela Autora.
Em sede de Resposta, a Autora pronunciou-se pela improcedência das excepções.
Em sede de audiência prévia, foi decidido não se verificarem as aludidas excepções.

3. Tendo-se fixado como objecto do litígio a apreciação do “direito da autora a obter da ré a restituição das quantias que pagou a título de indemnização à sua segurada no quadro da sub-rogação legal”, o Juiz 9 do Juízo Central Cível de Lisboa (Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa) proferiu sentença em 3/12/2019, julgando a acção improcedente e, em consequência, absolvendo as Rés do pedido.

4. Sem se resignar, veio a Autora interpor recurso de apelação para o Tribunal de Relação de Lisboa (TRL), que, identificando como objecto do litígio a “verificação dos pressupostos da responsabilidade civil assacada às Recorridas”, em acórdão prolatado em 14/7/2020, aditou dois factos à matéria de facto provada e julgou o recurso parcialmente procedente e, em consequência, decidiu: “1) Revogar a decisão recorrida na parte em que absolveu a Ré Neopul, condenando-a a pagar à Autora o montante de cento e vinte e sete mil e quinhentos euros (€ 127.500,00) acrescido de juros contados desde a citação à taxa indicada. 2) Manter no mais a decisão recorrida”.
Mais se decidiu: “Custas pela Recorrente e pela Recorrida Sacyr Neopul, SA, na proporção do respectivo decaimento que se fixa em respectivamente, 10% (dez por cento) e 90% (noventa por cento), em ambas as instâncias – artigo 527.º, n.º 2, do CPCivil”.

5. Tendo ficado inconformada, a Ré “Sacyr Neopul, S.A.” interpôs recurso de revista para o STJ, admitido nos termos legais, que finalizou com as seguintes Conclusões:

“A. O presente recurso de revista vem na sequência do acórdão da Relação de Lisboa de 14 de julho de 2020, que absolveu a Ré Somague do pedido – numa decisão em que nada há a opor – mas condenou a ora Recorrente Neopul no pagamento integral do pedido da Recorrida, condenando-a no pagamento integral do pedido, por aplicação do art. 493.º, n.º 1.

B. A matéria atualmente controversa nos autos diz respeito, no essencial, à questão de saber se a Neopul cumpriu o ónus da prova que sobre si recaía na demonstração de que empreendeu os esforços legalmente exigidos para prevenir o sinistro que acabou por suceder, nos termos do art. 493.º, n.º 1.

C. Está efetivamente verificado o facto-base/indiciário: a Neopul era a locatária e detentora da locomotiva e dos vagões envolvidos no sinistro e, bem assim, era responsável pela sua manutenção.

D. Termos em que corria sobre a Neopul uma presunção de culpa decorrente do seu especial dever de cuidado.

E. É certo que foi dado como assente que o sistema de travagem apresenta debilidades quando utilizado em altitude, como era o caso da Ferrovia Corredor de Nacala, em Moçambique.

F. Contudo, erradamente, o tribunal a quo apoia-se naquela particular circunstância para concluir que a Neopul empreendeu apenas os esforços medianamente exigidos para o manuseio e manutenção da composição em circunstâncias normais, desconsiderando a especial fragilidade do sistema de travagem naquelas circunstâncias.

G. Ora, o juízo de direito que o tribunal a quo retirou da prova realizada pela Recorrente, e que consta dos factos assentes, foi redutor, erróneo e injusto.
 
H. Com efeito, decorre indiscutivelmente daquela da factualidade assente uma especial atenção da Neopul para a obra concretamente realizada e cada uma das suas particularidades.

I. Repare-se nos seguintes factos provados com particular interesse para a decisão da causa:

a. “CCC) De acordo com o contrato celebrado [contrato de aluguer da locomotiva], a ‘Grindod garante ao locatário que a locomotiva a ser entregue nos termos do presente contrato é adequada ao seu propósito, quando manuseada, de acordo com as instruções especificas de operação da Grindod”;
b. “DDD) Mais se refere na cláusula 7.5.1. que a ‘Manutenção Regular [da locomotiva] deve ser levada a cabo pela Grindod conforme detalhado no anexo D”;
c. “EEE1) Nos termos do acordo celebrado entre a Grindod e a Neopul, a locomotiva seria utilizada exclusivamente para a tracção de vagões na Ferrovia Corredor de Nacala” – facto aditado pelo tribunal a quo;
d. “HHH1) O aluguer dos vagões balastreiros foi feito pela CDN à Neopul para utilização na Ferrovia Corredor de Nacala” – facto aditado pelo tribunal a quo;

J. Resulta claro que o aluguer e manutenção da locomotiva e dos vagões foi realizado pela Neopul com plena consciência das circunstâncias particulares do local onde os equipamentos seriam utilizados.

K. Também resulta, sem qualquer dúvida, que a Grindod, responsável pela inspeção e manutenção do equipamento, conhecia as especiais circunstâncias nas quais aquele equipamento seria utilizado,
 
L. Termos em que, naturalmente, a inspeção e manutenção da locomotiva tinham em particular consideração aquelas condições.

M. Repare-se que a cláusula 10 do contrato de locação supra referido estabelece que, para efeitos de manutenção e inspeção, “o locatário deve informar a Grindod sobre a localização, condição, uso e operação da locomotiva” (tradução livre da cláusula 10).

N. A manutenção era realizada “com uma frequência regular” (cfr. facto provado FFF e anexo D do contrato),

O. E sempre documentada (cfr. facto provado GGG), procedimento esse implementado pela Neopul em obra.

P. Ficou, portanto, amplamente demonstrado nos autos que a Neopul:

a) Velou pela manutenção dos equipamentos utilizados, informando a Grindod sobre as particulares condições da obra;
b) Solicitou inspecções aos mesmos; e
c) Implementou, em obra, um procedimento que se traduzia no registo das inspeções realizadas pela Grindod e de todas as ocorrências relevantes durante a sua utilização.

Q. E nada mais podia ter feito!

E mais,

R. Não se olvide que não foi apurada qualquer anomalia nos equipamentos, nas inspeções realizadas após o acidente, tendo-se concluído que ambos os equipamentos estavam em plenas condições de operação.

S. O ónus a cargo da Recorrente era apenas o de afastar a própria culpa, fazendo prova da sua diligência; não recai sobre esta o ónus de apurar e trazer aos autos a concreta causa do sinistro.

T. A perda de vácuo ocorrida foi súbita, inesperada e impossível de prever.

U. E este dado comprova, precisamente, que os deveres de diligência e vigilância que impendiam sobre a Recorrente não foi incumprido.

V. É que, caso aquele dever tivesse sido incumprido – i.e., caso tivesse sido evidenciada uma qualquer deturpação dos equipamentos, que devesse ter sido identificada e sanada pela Neopul – então o evento não teria sido repentino, súbito e imprevisível, como foi.

W. Atentas as particulares circunstâncias da obra, mais não podia a Neopul ter feito para cumprir o dever de cuidado a que estava adstrita.

X. Como bem concluiu a primeira instância, a presunção de culpa constante do art. 493.º, n.º 1, foi manifestamente ilidida,

Y. Pelo que se impõe a absolvição da Recorrida Neopul, por falta de verificação da sua culpa, enquanto pressuposto necessário para a sua condenação em responsabilidade civil.

6. Por sua vez, a Ré «Sacyr Somague, S.A.», absolvida no acórdão proferido pela Relação, requereu a sua Reforma quanto à decisão sobre custas, de acordo com os arts. 616º, 1 e 3, e 616º, 1, do CPC, estribando tal pretensão nas Conclusões Z. a SS., que mereceu a prolação de acórdão, em conferência, com data de 17/12/202, no qual se indeferiu (ainda que impropriamente concluindo em referência à arguição de nulidades) a reforma solicitada em sede de custas.

7. A Recorrida «Fidelidade» contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e a consequente confirmação do acórdão recorrido.


Uma vez consignados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTAÇÃO


1. Objecto do recurso

1.1. Vistas as Conclusões que delimitam matéria a apreciar neste recurso (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, CPC), a questão de mérito a decidir, no recurso da Ré «Sacyr Neopul, S.A.», é a de saber se a actuação da lesante foi ilícita e culposa (em função de não se ter ilidido a presunção legal de culpa) à luz do regime do art. 493º, 1, 2.ª parte, do CCiv., constituindo-se ou não como pressupostos da responsabilidade civil assumida pela Autora seguradora.
Refira-se que, em contraponto, no objecto recursivo não se vislumbra que a Recorrente se insurja contra a exclusão da aplicação do art. 493º, 2, do CCiv., feita pelo acórdão recorrido, o que afasta o nosso juízo da problematização ao caso do regime da responsabilidade pelos danos decorrentes do exercício de uma “actividade perigosa”.

1.2. Quanto ao requerimento da Ré absolvida, a «Sacyr Somague, S.A.», no sentido de obter a reforma quanto a custas da decisão recorrida, tal não constitui objecto nem fundamento da revista.
No segmento decisório da fixação das custas, o acórdão recorrido condenou a Recorrente «Fidelidade» em 10% e a Recorrida condenada «Sacyr Neopul» em 90%, estatuindo a sua decisão para ambas as instâncias.
Na verdade, a Apelada «Sacyr Somague» viu confirmada em 2.ª instância a absolvição do pedido decretada pela 1.ª instância, uma vez que apenas foi revogada a decisão recorrida na parte em que absolveu a Ré «Sacyr Neopul». Assim, tendo havido vencimento da Ré «Sacyr Somague», falece a sua legitimidade para interpor recurso de revista, em aplicação do requisito geral previsto no art. 631º, 1, do CPC, quanto ao conhecimento do «mérito da causa».
Essa legitimidade assiste à co-Ré «Sacyr Neopul», aqui Recorrente porque vencida com o resultado decisório do acórdão recorrido; e é admissível, em geral e em especial, o recurso ordinário interposto pela Recorrente (arts. 671º, 1, 674º, 1, a), CPC). 
Assim sendo, a faculdade de requerer a reforma quanto a custas e não reforma da sentença, com regime previsto nos art. 616º, 2, 617º, 1, 2 e 6 –, solicitada pela parte Ré sem legitimidade própria para o recurso de revista, é feito na alegação do recurso da co-Ré Recorrente com legitimidade, interesse e admissibilidade – como foi – mas não constitui objecto da revista. Antes dirige-se em exclusivo ao tribunal que proferiu, neste caso, o acórdão recorrido, tal como prevê imperativamente o art. 616º, 1, do CPC, observando o procedimento para tal incidente no respectivo n.º 3, e originando a respectiva decisão, já obtida pela Ré Requerente com a prolação do acórdão em conferência (cfr. ponto 6. do Relatório, supra; v. art. 666º, 2, CPC)[1].


2. Factualidade

Foram considerados como provados pelas instâncias os seguintes factos:

A) Entre a ora A. e a Somafel – Engenharia e Obras Ferroviárias, SA, foi celebrado um contrato de seguro do ramo Máquinas Casco titulado pela apólice n.º ……12, através do qual aquela assumiu o risco de danos que pudessem ocorrer a diversos equipamentos que se encontrassem a laborar em Marrocos, Argélia, Tunísia, Moçambique e Brasil, tudo como melhor consta do doc. junto a fls. 8 e 9 dos autos.
B) O capital seguro para esse risco era de € 9.538.000,00.
C) Entre os bens assim garantidos encontrava-se uma Máquina Regularizadora …. n.º …, a que havia sido atribuído o código de equipamento 40-123.
D) Tal máquina havia sido fabricada em 1969 e foi adquirida pela segurada da A. em
2012.
E) E a mesma encontrava-se segura por um capital de € 140.000,00, estando sujeita
a uma franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis, com o mínimo de € 1.250,00 e o máximo
de € 12.500,00.
F) O âmbito de cobertura era o dos danos que pudessem ocorrer à dita máquina
com origem externa à mesma, qualquer que seja a causa, com excepção das situações de
exclusão previstas no contrato.
G) A máquina da segurada da ora A. permite a movimentação do balastro, de forma
a regularizar os respectivos taludes, ao longo de uma linha de caminho de ferro em construção
ou em manutenção.
H) Em 2015 a máquina segura encontrava-se a ser utilizada na movimentação de balastro e regularização dos taludes da obra de reabilitação da infra-estrutura e superestrutura das secções 6, 7, parte 1, e 7, parte 2, em Brownfield, Moçambique, da Ferrovia Corredor de Nacala.
I) A segurada da ora A. havia sido contratada para a prestação de serviços na ferrovia e, em concreto, para o fornecimento, entre outras, da máquina segurada com operador.
J) Em 26/03/2015, a reguladora segura encontrava-se a operar, em conjunto com uma atacadeira das RR., na renovação da via férrea.
L) Nessa ocasião, encontrava-se uma composição de 11 vagões balestreiros na mesma linha e a cerca de 2,5 Km de distância, a fim de serem carregados com balastro.
M) Depois de 7 dos vagões terem sido carregados de balastro noutro local, os últimos quatro vagões encontravam-se a ser carregados na estação de Mutuali.
N) Após o carregamento do primeiro desses 4 vagões, a composição foi movimentada para posicionar o segundo dos 4 vagões e efectuar o carregamento deste.
O) Nesse momento, a composição de máquina e 11 vagões, dos quais 8 já carregados, começou a deslizar pela linha.
P) Os 2,5 km que medeiam entre a estação de Mutuali. e o local onde a reguladora se encontrava a operar desenrolam-se numa descida acentuada.
Q) O maquinista da balestreira conseguiu avisar os operários que estavam a trabalhar na reguladora e na atacadeira que iria ocorrer um embate, permitindo que todos abandonassem o local a tempo.
R) Dando-se então o embate entre o último vagão e a reguladora da segurada da A.
S) A qual foi projectada contra a atacadeira das RR.
T) Causando em ambas as máquinas enormes danos.
U) As manutenções e inspecções dos vagões balestreiros eram realizadas em Nacala, Nampula e Cuamba a solicitação e sob o controlo das ora RR.
V) O acidente referido nos autos foi objecto de investigação tendo a final sido elaborado o relatório junto a fls. 119 a 134 verso, cujo teor se dá por reproduzido.
X) Os travões da composição balestreira deixaram de funcionar.
Z) O que impediu o maquinista de conseguir travar essa composição.
AA) Após o embate, a tampa e mangueira de freio do vagão situado na cauda da composição e que veio a embater na reguladora da segurada da ora A. encontravam-se fora do sítio.
BB) O que não permitia que o sistema de vácuo que faz funcionar os travões desse vagão funcionasse.
CC) O sistema de freio de todos os vagões funciona através de vácuo.
DD) Este sistema apresenta debilidades agravadas quando utilizado o sistema em altitude.
EE) Como era o caso, já que a composição se encontrava a cerca de 600 metros de altitude quando começou a deslizar por falta de travões.
FF) A essa altitude, e porque a pressão atmosférica é inferior à que existe ao nível do mar, a pressão do vácuo é 10% inferior à que existiria a uma altitude zero.
GG) O que se traduz numa redução de 25% da margem de segurança do sistema.
HH) Para funcionamento deste sistema de freio a vácuo, o mesmo tem acoplado uma bomba de vácuo que faz com que o valor do mesmo deva ser superior ao da pressão atmosférica, isto é, superior a 35 cm/hg.
II) Sendo que a pressão de vácuo ideal para que o sistema de freio funcione é de 56 cm/hg.
JJ) A bomba de vácuo apenas é carregada pelas rotações do motor da máquina.
LL) Quando a composição se encontra em operação de pára e arranca, como era o caso do carregamento dos vagões balestreiros, a bomba de vácuo não é carregada.
MM) Com o que não pode compensar a perda de vácuo existente nos freios dos vagões.
NN) Em consequência dos embates, a reguladora segura apresentava o chassis empenado, as partes frontais onde se encontravam os engates completamente destruídas, as charruas frontais e respectivos apoios todos destruídos, o lado da brossa completamente destruído, o tejadilho e respectivo suporte empenados, os vidros da cabine partidos e os faróis de trabalho e de marcha partidos.
OO) A reparação da máquina não era possível executar em Moçambique, sendo necessário transportá-la para Portugal.
PP) Essa reparação nas oficinas da segurada da ora A. foi orçamentada em € 220.000,00.
QQ) A este valor sempre acresceria o transporte da máquina até Maputo, o que custaria € 10.000,00.
RR) O transporte de Maputo até ao estaleiro da segurada em Portugal custaria não menos de € 20.000,00.
SS) E seria necessário pagar taxas aduaneiras num valor aproximado de cerca de € 20.000,00.
TT) O que tudo importaria num valor aproximado de € 270.000,00.
UU) A reguladora segura foi considerada uma perda total, visto que o capital seguro para a mesma era de € 140.000,00.
W) Em 16/11/2015 a ora A. pagou à sua segurada pelos danos sofridos pela máquina desta a quantia de € 127.500,00.
XX) Na altura em que recebeu essa importância, a segurada da ora A. declarou dar «plena e integral quitação a este segurador, subrogando-o em todos os seus direitos, acções e recursos contra possíveis responsáveis».
ZZ) A empreiteira geral da obra é a Somague Moçambique, Lda.
AAA) A responsabilidade pela manutenção dos equipamentos é da Grindod .Limited ("Grindod") e da CDN.
BBB) A Grindod alugou a locomotiva …. (n.º 2156) que rebocava o comboio de balastro ao tempo do acidente à NEOPUL.
CCC) De acordo com o contrato celebrado, “a Grindod garante ao locatário que a locomotiva a ser entregue nos termos do presente contrato é adequada ao seu propósito, quando manuseada, de acordo com as instruções específicas de operação da Grindod e, na sua ausência, de acordo com as práticas geralmente aceites; garante ainda que o equipamento está livre de quaisquer defeitos materiais”.
DDD) Mais se refere na cláusula 7.5.1. que "a Manutenção Regular [da locomotiva] deve ser levada a cabo pela Grindod, conforme detalhado no anexo D".
EEE) Refere o anexo D do contrato de aluguer que "a todo o tempo durante o período de locação, a G..... deve, por sua conta, realizar a manutenção e reparação de cada Locomotiva (incluindo a reparação de quaisquer danos decorrentes de uma eventual remodelação ou restauro) de acordo com as recomendações de uma entidade de manutenção reconhecida e creditada, nomeada pela G....., de forma a manter todas as locomotivas em boas condições de operabilidade e aparência, desde que entregues ao Locatário, salvo o desgaste natural esperado".
EEE1) Nos termos do acordo celebrado entre a Grindod e a Neopul, a locomotiva seria utilizada exclusivamente para a tracção de vagões na Ferrovia Corredor de Nacala (Facto aditado pela Relação.)
FFF) A Grindod leva a cabo a inspecção e manutenção da locomotiva com uma frequência regular.
GGG) A inspecção e manutenção da locomotiva é sempre documentada, tendo a última antes do acidente sido realizada a 5 de Fevereiro de 2015, cuja conclusão foi satisfatória.
HHH) Por sua vez, a CDN alugou os vagões balastreiros, sendo a responsável pela manutenção daqueles.
HHH1) O aluguer dos vagões balestreiros foi feito pela CDN à Neopul para utilização na Ferrovia Corredor de Nacala. (Facto aditado pela Relação.)
III) Após o acidente, mediante solicitação da R. Somague, a CDN realizou uma vistoria ao equipamento, que concluiu estar em boas condições.
JJJ) E no dia 7 de Abril de 2015, o Engenheiro AA, funcionário das RR.,
realizou, também ele, uma inspecção à locomotiva, não tendo detectado qualquer anomalia que colocasse em causa o sistema de freio a vácuo, com os resultados que constam do documento junto sob o n.º 6.
             
Foram considerados não provados pela 1.ª instância os seguintes factos:

1) As rés eram as empreiteiras gerais da obra.
2) Essa tampa e a mangueira não se encontravam em local que houvesse sido afectado pelo embate.
3) Pelo que, já estavam deslocados do local próprio antes do embate.
4) As aqui RR. conheciam o sistema de funcionamento dos freios dos vagões balestreiros e, ainda assim, optaram por utilizar aqueles vagões balestreiros.
5) O que tudo originou a perda de eficácia e, no limite, a perda de funcionamento de todo o sistema de freio, como aconteceu.

3. Direito aplicável à responsabilidade da Ré «Sacyr Neopul, S.A.»

3.1. A resposta das instâncias foi dissonante quanto à questão que a revista visa resolver, uma vez subsumida a factualidade concreta no regime predisposto pelo art. 493º do CCiv. (responsabilidade civil subjectiva por «danos causados por coisas, animais ou atividades») para se apurar se os danos causados na máquina da segurada da Autora podem ser imputados à conduta da Ré condenada em 2.ª instância, enquanto conduta ilícita e culposa e causadora de danos por coisas em seu poder e relativamente às quais era de exigir ao eventual responsável um dever de vigilância cuja violação foi causalmente adequada a produzir os danos indemnizáveis.

3.2. Em 1.ª instância, discorreu-se assim, concluindo-se pela absolvição do pedido para a Ré «Sacyr Neopul, S.A.»:

“(…) estão em causa vagões balestreiros de que a ré Neopul não é proprietária, mas alugou à CDN sendo esta entidade a responsável pela manutenção daqueles.
A locomotiva que rebocava o comboio de balastro foi igualmente alugada pela ré Neopul à Grindod que era responsável pela manutenção daquela.
Acresce que as manutenções e inspecções dos vagões balestreiros eram realizadas em Nacala, Nampula e Cuamba a solicitação e sob o controlo das ora RR.
A composição balestreira era usada na obra que se realizava em Moçambique de reabilitação da infra-estrutura e superestrutura das secções 6, 7, parte 1, e 7, parte 2, em Brownfield, Moçambique, da Ferrovia Corredor de Nacala.
A empreiteira geral da obra era a Somague Moçambique, Lda.
Cabia à ré Neopul garantir que as manutenções e inspecções aos vagões balestreiros se realizavam e que da utilização destes não resultavam danos para terceiros.
A ré Neopul não era a empreiteira geral mas tinha a qualidade de subempreiteira da obra e locatária nos contratos relativos à locomotiva e aos vagões que usava no cumprimento das obrigações assumidas enquanto subempreiteira e, nessa qualidade, impendia sobre si o dever de vigilância dos equipamentos que utilizava.
Apurou-se nos autos que na obra estava implementado um procedimento que se traduzia no registo das inspecções às locomotivas e vagões antes do início dos trabalhos e de todas as ocorrências relevantes durante o trabalho diário efectuado pelo comboio de balastro e locomotiva – veja-se a pg. 19 do documento referido em V).
Mais se apurou que após o acidente, mediante solicitação da R. Somague, a CDN realizou uma vistoria ao equipamento, que concluiu estar em boas condições e, ainda, que o comboio de balastro saiu do local do acidente pelos seus próprios meios tendo terminado a descarga de balastro nesse mesmo dia – pág. 20 verso do mencionado relatório.
Quanto ao acidente apurou-se que o embate entre o último vagão balestreiro e a máquina da segurada da autora aconteceu porque os travões da composição balestreira deixaram de funcionar, esta iniciou um movimento de descida e acabou por colidir com a máquina da segurada da autora.
Como resulta claramente dos autos os travões deixaram de funcionar porque se verificou uma perda súbita de vácuo dos dispositivos de frenagem, originada, supõe-se, por entrada de ar no sistema ade vácuo dos vagões.
Desconhece-se, porque não apurada, a razão que porque tal entrada de ar terá acontecido.
Apurou-se que após o embate se verificou que a tampa e mangueira de freio do vagão situado na cauda da composição e que veio a embater na reguladora da segurada da autora se encontrava fora do sítio, sendo que não se apurou a razão para tal.
Desconhece-se se já se encontrava fora do sítio antes do embate, ou se ficou assim em consequência do embate.
Em suma: não se apurou a causa directa do acidente, tendo-se apurado que não foram detectadas anomalias no sistema de freio dos vagões e da locomotiva, após o acidente, e que a ré Neopul promovia inspecções à locomotiva e aos vagões e que foram efectuadas manutenções regulares aos equipamentos não tendo sido detectadas anomalias que pudessem explicar o acidente.
Como decorre do que se vem referindo recaía sobre a ré Neopul o dever de vigiar a composição balestreira velando pelo estado de funcionamento desses equipamentos a fim de prevenir eventos causadores de danos a terceiros. A ré Neopul para evitar ser responsabilizada pelos danos que estes equipamentos causaram na máquina da segurada da autora tinha de ilidir a presunção de culpa estabelecida na supra referida norma legal.
E, em nosso entender, logrou fazê-lo.
A ré tomou as providências indispensáveis a evitar a lesão; a ré logrou demonstrar que cumpriu os deveres relativos à manutenção e inspecção do equipamento que sobre si impediam de forma adequada e que agiu de forma diligente.
O que a ré não podia prever era a perda súbita de vácuo dos dispositivos de frenagem da composição, supostamente originada numa entrada de ar no sistema, que se desconhece como aconteceu.
Em face dos elementos recolhidos nos autos afigura-se-nos que o acidente se deveu a caso fortuito.
A doutrina e a jurisprudência consideram caso fortuito como o evento que não se pode prever, mas seria evitável se se tivesse previsto, isto é, o caso fortuito assenta na ideia de imprevisibilidade.
Atentos os elementos apurados nos autos afigura-se que não era possível prever a falha nos travões, considerando que não haviam sido detectados quaisquer problemas nos equipamentos aquele, ou a outro nível. Aliás, a qualificação de “súbita” da perda de vácuo detectada já indica que aquela foi repentina, inesperada e, por isso, imprevisível.”;

por outro lado:

“A autora em sede de petição inicial alega, ainda, que a actividade de carregamento de vagões balestreiros integrados numa composição de 11 vagões e máquinas numa zona de declive acentuado é perigosa, quer em si mesmo, quer pela natureza dos meios utilizados.
Actividades perigosas são aquelas que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de causar dano; uma probabilidade maior do que a normal, derivada de outras actividades, devendo tratar-se de actividade que, mercê da sua natureza ou dos meios utilizados, tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral (veja-se Ac. STJ de 17/06/2010, www.dgsi.pt).
A actividade em questão autos pode qualificar-se como actividade perigosa, mormente em razão dos meios utilizados.
O exercício de actividades perigosas, sejam elas intrinsecamente perigosas, ou pela natureza dos meios utilizados, demanda dos responsáveis deveres de vigilância e prevenção de perigo, tanto mais intensos quanto maior for o potencial de causação de danos.
Seja legal ou contratual, ou postulado por normas de conduta típicas de uma certa profissão ou actividade, age com culpa quem omitir esse dever de vigilância.
Preceitua o art. 493º, nº 2, do Código Civil, “Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.
Referem Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, pgs.495/496:
“Estabelece-se neste artigo, como nos dois anteriores, a inversão do ónus da prova, ou seja, uma presunção de culpa por parte de quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou de animais ou exerce uma actividade perigosa. Abre-se mais uma excepção à regra do do artigo 487°, mas não se altera o princípio do artigo 483° de que a responsabilidade depende da culpa.
Trata-se, portanto, de responsabilidade delitual e não de responsabilidade pelo risco ou objectiva […].
[…] Quanto aos danos causados no exercício de actividades perigosas, o lesante poderá exonerar-se da responsabilidade, provando que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para os evitar.”
Nesta disposição legal ainda estamos no domínio da responsabilidade civil delitual pelo que, entende-se, a presunção legal de culpa pode ser afastada pela prova, a ser feita por aquele que exerce uma actividade perigosa, de cumpriu as medidas de cuidado que lhe eram exigíveis.
Fazendo aplicação do preceito legal e princípios enunciados ao caso presente temos de concluir que haverá culpa presumida da ré Neopul.
A actividade perigosa, no caso, consubstancia-se na natureza dos meios utilizados – material circulante pesado por linha férrea – capaz de causar um perigo maior para terceiros do que o uso de outros equipamentos pesados.
Cabia, assim, à ré o dever de fiscalizar o uso e a manutenção do equipamento.
Como se referiu supra ficou provado nos autos que o que determinou o sinistro dos autos foi a perda súbita de vácuo dos dispositivos de frenagem da composição, mais precisamente dos dispositivos de frenagem dos vagões balestreiros, sem que se tenha apurado a causa de tal perda. Melhor, apurou-se que supostamente tal se deveu a entrada de ar no sistema de vácuo dos vagões, sem que se tenha apurado a causa dessa entrada de ar.
A simples indeterminação da causa directa do sinistro não pode levar à conclusão de que o sinistro ocorreu porque não foram tomadas todas as providências exigidas pelas circunstâncias para o evitar.
No caso até se apurou que a ré tomou providências para evitar a ocorrência de sinistros: velou pela manutenção das máquinas, procedeu a inspecções das mesmas, implementou, em obra, um procedimento que se traduzia no registo das inspecções à locomotivas e vagões antes do início dos trabalhos e de todas as ocorrências relevantes durante o trabalho diário efectuado pelo comboio de balastro e locomotiva.
Cumpriu as medidas de cuidado que lhe eram exigíveis.
O sinistro não ocorreu porque a ré falhou o cumprimento dos cuidados que lhe eram exigíveis, mas porque um evento súbito, imprevisível, determinou a perda de vácuo no sistema de frenagem da composição.
O sinistro não ficou a dever-se a qualquer acção ou omissão da ré Neopul mas a caso fortuito o que importa no afastamento da presunção legal de culpa e determina a absolvição da ré.”

3.3. Ao invés, o argumentário da Relação, restrito à presunção legal de culpa ínsita na previsão do art. 493º, 1, do CCiv., conduziu-nos a solução diversa na parte correspondente:

b) Da factualidade provada resulta que uma composição de locomotiva e vagões estava a ser carregada com balastro, quando o sistema de frenagem deixou de funcionar, começando a composição a deslizar nos carris até embater na máquina da segurada da Autora.
NO regime do artigo 493.º, claramente se distingue as situações de danos provocados por coisas das que decorrem do exercício de uma actividade perigosa, nomeadamente, utilizando coisas.
Dispõe a norma citada:
1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.
A lei, no artigo 493.º, n.º 2, não indica critérios para a determinação da perigosidade de uma actividade que não sejam a sua natureza e a dos meios utilizados, conceito indeterminado que deve ser integrado pelo julgador face ao caso concreto[2].
Ensinava o Professor Vaz Serra[3] que actividades perigosas são as que criam para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades.
O Professor Almeida Costa[4] entende que a actividade perigosa é aquela que tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes actividades em geral.
Tem sido abundante a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no que respeita à qualificação de uma actividade como perigosa[5].
Considera o Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 25 de Março de 2010, proferido no processo 428/1999.P1.S1 (Lopes do Rego) que a actividade perigosa, geradora de culpa presumida, é todo o processo construtivo, globalmente levado a efeito com determinado meio dotado de elevada potencialidade para causar danos – rebentamentos de rochas com explosivos – e não apenas cada uma dessas detonações, atomisticamente considerada, levada materialmente a cabo pela subempreiteiro.
Ou, no acórdão de 29 de Janeiro de 2015, proferido no processo 228/07.2TNLSB.L1.S1 (Tavares de Paiva): não se diz no nº 2, o que deve entender-se por uma actividade perigosa. Apenas se admite, genericamente, que a perigosidade derive da própria natureza da actividade, como a navegação marítima ou aérea, o fabrico de explosivos, o comércio de substâncias ou materiais inflamáveis.
No acórdão de 17 de Maio de 2017, proferido no processo 1506/11.1TBOAZ.P1.S1 (António Piçarra), também é abordada a questão:
A lei não indica, porém, um elenco de actividades que devam ser qualificadas como perigosas para efeitos da norma e também não fornece um critério em função da qual se deva afirmar a perigosidade da actividade, esclarecendo apenas que, para o efeito, tanto releva a natureza da própria actividade como a natureza dos meios utilizados. Por esse motivo é aceite que a perigosidade tem de ser apurada caso a caso, em função das características casuísticas da actividade que gerou os danos, da forma e do contexto em que ela é exercida. Trata-se afinal de um conceito indeterminado e amplo a preencher pelo intérprete e aplicador da norma na solução do caso concreto, o que deve ser feito tendo por base o critério valorativo ali fixado, ou melhor a «directriz genérica» indicada pelo legislador.
O caso concreto é unanimemente considerado como a pedra de toque para a qualificação de uma actidade como perigosa. Mas a análise do caso concreto não resulta da ponderação dos danos efectivamente provocados, mas antes da apreciação das características da actividade em si mesma, sendo perigosa aquela que pela sua natureza ou pela dos meios empregados determine perigo para bens ou pessoas.
Neste conspecto, a perigosidade tem de ser analisada com abstracção dos danos efectivamente causados, ou seja, na sua dinâmica e na adequação desta a causar danos per se.
No caso sub judice, a actividade é o carregamento de vagões de uma composição ferroviária. Em si mesma, sem outra especificação, não pode considerar-se susceptível de colocar em perigo bens ou pessoas em termos de se considerar perigosa. Também nada se provou quanto aos meios empregados que permita atribuir-lhe tal perigo.
Entendemos em conclusão que não pode considerar-se integrada a previsão do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil.

c) A Recorrente entende que a situação ajuizada pode enquadrar-se no disposto no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, sendo aliás essa também a posição da primeira instância. Vejamos.
No caso dos autos resultou da prova que a composição se encontrava parada, a carregar, e que entrou ar no sistema de frenagem a vácuo, determinando que a composição deslizasse pelos carris num declive acentuado até embater na máquina da segurada da Autora.
Rui Mascarenhas Ataíde[6] propõe o enquadramento das previsões do artigo 493.º respondendo a críticas[7] quanto à natureza redundante da norma, fundando-se sobretudo nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966:
Quando o dano representar a concretização do risco específico criado seja pelo exercício de actividades seja pela utilização de coisas perigosas, sobrevêm o correspondente regime previsto no artigo 493.º/2; se for causado por coisas não perigosas, submete-se à cláusula geral do artigo 493.º/1 (...).
A posição não é pacífica, sendo acolhida maioritariamente a que considera que a norma considera por um lado as actividades perigosas e por outra os danos provocados por coisas, como indica o Professor Menezes Cordeiro[8].
Certo é que a responsabilidade assacada pelo artigo 493.º, n.º 1, segue a tradição que vem do artigo 2394.º do Código de Seabra e a lógica de que quando uma coisa, estando sob a custódia de alguém, provoca danos, a respectiva causa assenta, em regra, na falta ou deficiente vigilância por parte da pessoa encarregue de a guardar[9].
Nas palavras do Professor Menezes Cordeiro[10], subjacente está uma dupla ideia do legislador: a de incentivar a que, no momento próprio, sejam tomadas as devidas precauções e a de fazer correr, pelos beneficiários do perigo, os riscos do dano.
Refere-se a respeito Rui Mascarenhas[11] situando o fundamento dos deveres no tráfego na vida em sociedade e na necessidade de fazer acompanhar a liberdade de actuação da responsabilidade pelos actos.
(…)
Para concluirmos que a especificidade da norma do artigo 493.º, n.º 1, é a de prever as situações em que foram causados danos por uma coisa em relação à qual o agente onerado com a presunção tinha um dever de cuidado.

d) Volvendo ao caso concreto, resultou assente que a Ré Neopul era a locatária dos equipamentos – locomotiva e vagões – para utilização de uma e outros na obra em causa.
Mais. Resultou provado nos autos ter a Ré Neopul locado a locomotiva e os vagões para serem utilizados na Ferrovia Corredor de Nacala pelo que tem de considerar-se que era a detentora da composição.
É o que também decorre de, estando na detenção dos equipamentos enquanto locatária, a sua manutenção ser de sua responsabilidade – cf. alínea U) dos factos assentes.
Resulta por isso, na normalidade da vida que nada permite afastar, que a Ré tinha a detenção daqueles equipamentos e que sobre ela impendia um dever de vigilância dos mesmos de modo a que a sua operação decorresse sem incidentes, nomeadamente causadores de danos a terceiros. Aliás esse mesmo dever decorre do que se provou quanto à manutenção e reparação dos vagões locados pela CDN e quanto à manutenção e inspecção da locomotiva locada pela G......
Está assim demonstrado o facto base da presunção a que alude o artigo 493.º, n.º 1: detenção de coisa móvel com o dever de a vigiar.
Diga-se que não é esta a matéria controversa no recurso, sendo certo que a decisão recorrida também assim concluiu. Todavia, considerou que a Ré Neopul havia logrado ilidir a presunção, mediante a demonstração de que havia procedido a todas as inspecções e manutenções previstas e que os equipamentos se encontravam em bom estado de funcionamento.
Ponderou ainda a decisão recorrida que se verificava uma situação de caso fortuito – a entrada de ar no sistema de travagem – que pela sua imprevisibilidade impedia a Ré Neopul de o impedir.

e) A lei considera que a ilisão da presunção impõe que a parte com ela onerada, no caso a Ré Neopul, demonstre que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir [aos danos].
O modo de ilidir a presunção é o negativo da situação que a funda a que acima aludimos: regra geral se a coisa causa danos tal deve-se a uma violação dos deveres de vigilância que impendem sobre o detentor. Assim, a ilisão impõe a demonstração de que os deveres de vigilância foram cumpridos.
Explicita Rui Mascarenhas Ataíde[12], em passo longo mas cuja clareza justifica a transcrição:
Com efeito, ao contrário de um entendimento bastante divulgado, a inversão do ónus da prova não quer dizer que corra necessariamente por conta do réu (presumível lesante) o risco de a lesão se dever a facto desconhecido. Se de acordo com as regras gerais, compete ao lesado demonstrar que foi a conduta do alegado lesante que causou a lesão, então, a inversão do ónus da prova só pode significar que cabe ao alegado lesante provar que não foi a sua conduta que a causou e não qual o facto que a provocou. Em suma, ao invés do que sucede com o autor, a quem compete fazer a prova positiva da relação causal entre o facto do lesante e o resultado lesivo, ao réu apenas incumbe a prova negativa da ausência de causalidade entre a sua conduta e o evento proibido, podendo satisfazer esse ónus demonstrando qual a conduta que ele próprio levou a cabo, sem que seja necessário fazer prova positiva da causa estranha.
(...) cabe ao onerado demonstrar a inexistência do facto presumido, ou seja, provar que se cumpriu e não provar o que aconteceu.
(...)
Segundo a regra geral, compete ao autor provar a violação do dever pelo réu e a sua causalidade na produção da lesão; invertendo-se o ónus, é ao réu que cabe provar que não infringiu o dever e conseguindo-o, fica (ou pode ficar) nesse caso por apurar a causa da lesão, como acima se salientou a propósito da distinção entre a prova positiva da causalidade a cargo do autor e da prova negativa que impende sobre o réu.

f) A sentença recorrida considerou que a Ré Neopul provou ter empregue todas as providências a que estava obrigada, por ter provado que efectuou todas as inspecções e manutenções ao equipamento, nos termos a que estava obrigada, nomeadamente pelo contrato de locação. Considerou por isso que a Ré Neopul ilidiu a presunção de culpa prevista no artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil.
Salvo o devido respeito pela opinião contrária, entendemos que demonstrar ter feito todas as inspecções e manutenções não significa demonstrar que cumpriu com o dever de vigilância a que estava obrigada.
O caso concreto indica que outros deveres de vigilância impendiam sobre a Ré para além da realização das inspecções e manutenções previstas em situação de normalidade. O dever de cuidado encontra o seu conteúdo na conservação e manutenção da coisa em situação de não provocar acidentes e danos, basicamente em boas condições de conservação e manutenção geral e de todos os sistemas que integra.
Ora, a composição operava numa zona de altitude (600 metros) e o sistema de frenagem em altitude tinha debilidades de operação que exigiam verificação e acompanhamento específicos. Acresciam as dificuldades inerentes à operação de pára/arranca que se traduziam justamente em a bomba de vácuo não ser adequadamente carregada, não compensando a perda de vácuo existente nos freios dos travões (cf. alíneas X), Z), e CC) a MM)). Ora esta perda de vácuo não é mais do que a entrada de ar que foi atribuída a caso fortuito.
A existência e operacionalidade do sistema de frenagem é essencial para evitar que a composição possa deslizar e, por isso, causar danos. Mais, o sistema de frenagem é parte integrante da coisa em termos de a vigilância do detentor a ele se estender.
Consideramos por isso que, as características do sistema de frenagem e as circunstâncias em que a composição operava, determinam que o dever de vigilância da Ré Neopul abrangesse o cuidado em contrariar a normal perda de vácuo dos freios. Assim sendo, a ilisão da presunção apenas poderia decorrer de ter feito essa prova.
Não se esquece que foi considerado não provado (ponto 4) que a Ré conhecesse o sistema de funcionamento dos freios dos vagões balestreiros e, ainda assim, optasse por utilizar aqueles vagões balestreiros.
Mas a não prova deste facto em nada altera o que se referiu, não podendo o detentor de uma coisa valer-se da ignorância, ou não prova do conhecimento, das características dela. Diga-se mais, esse conhecimento e a adequação à utilização é o seu primeiro dever de cuidado.
Advirta-se que não estamos a considerar demonstrado que a entrada de ar no sistema de frenagem se deveu às condições de altitude e de pára/arranca, facto que se não provou como resulta do ponto 2.3.5. da sentença recorrida.
Estamos, diferentemente, a considerar demonstrado que o sistema de frenagem tinha especiais debilidades na operação concreta, o que leva a incluir no dever de cuidado da detentora (a Ré Neopul) vigilância específica quanto a esse sistema, vigilância que não provou ter cumprido, estando onerada com essa prova por força da presunção estabelecida pelo artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil.
Termos em que se conclui verificada e não ilidida a presunção de culpa do artigo 493.º, n.º 1, do CCivil.”

Quid juris?

3.4. De acordo com a previsão do art. 493º, 1 (situação de responsabilidade delitual), a ilicitude que se sanciona consiste na omissão ou violação do dever de vigilância que se incorpora na esfera jurídica do “detentor” da coisa, móvel ou imóvel (em sentido amplo, para todas as habilitações jurídicas que atribuem poder sobre a coisa: por ex., propriedade, comodato, depósito, locação, crédito pignoratício, etc.), na qual têm origem os danos causados na esfera jurídica alheia. Esta omissão delitual concretiza a normatividade-quadro do art. 486º do CCiv. (na ilicitude conducente ao «dever de praticar o ato omitido»)[13].
Esse dever de vigilância, sendo dever legal específico imposto pelo art. 493º, 1, consiste numa obrigação de supervisão, controlo, monitorização e informação sobre as fontes (nomeadamente se possíveis e/ou previsíveis) de risco de produção e eclosão de prejuízos das coisas detidas, no sentido da prevenção desse especial perigo enquanto origem de danos para terceiros e da precaução necessária para evitar o dano[14]. Portanto, afigura-se (já consensualmente) como dever (de segurança) no tráfico, integrado em norma legal de protecção que visa prevenir um perigo abstracto, e dever instrumental para a decisão e a execução de medidas e providências – mesmo que a realizar por terceiro e a solicitação do vigilante – para evitar essa produção de danos e promover a protecção de terceiros[15], danos esses relativos ao especial risco da coisa[16] que ultrapassa o “limiar da normalidade”[17].
Corresponde, por isso, a uma manifestação de um mais amplo dever de cuidado (na veste de dever de conduta), enquanto obrigação de os proprietários e detentores de coisas, potencialmente munidas de risco na sua fruição ou utilização, cumprirem com diligência as faculdades jurídicas atribuídas pelo título que lhes permite gozar da coisa “arriscada” ou “perigosa”, de acordo com a bitola que se espera de uma pessoa medianamente prudente em circunstâncias e situações similares. Assim será esta a medida de exigência para o cumprimento do dever de vigilância imposto ao proprietário-detentor e, se for o caso, de uma corresponde ilicitude por incumprimento (omissão) do dever legal (reflexo de um “cuidado exterior”[18]).

3.5. Se a ilicitude considera a conduta em termos objectivos, como infracção de deveres jurídicos que exibem contrariedade por parte do infractor em relação aos valores tutelados pela ordem jurídica, violar o dever geral de cuidado na perspectiva do dever especial de vigilância em face de “perigos de coisas”[19] faz, de acordo com a 2.ª parte do art. 493º, 1, do CCiv., presumir a formulação do “juízo de reprovabilidade pessoal da conduta” que a culpa exprime[20]. O que significa que se afasta o art. 487º, 1, do CCiv. («É ao lesado que incumbe provar a culpa do autora da lesão (…)» + art. 342º, 1, CCiv.), aplicando-se a excepção da sua 2.ª parte («salvo havendo presunção legal de culpa»). Ou seja, no momento de aferir da responsabilidade do proprietário-detentor da coisa, o modo ilícito como foi usufruída ou gozada a coisa implica, consequencialmente e em benefício do lesado, a censura subjectiva e ético-jurídica ao lesante, na medida em que, de entre as opções possíveis, podia ter actuado de maneira diferente – como se exigiria a um «bom pai de família»: art. 487º, 2, CCiv. – e não o fez, merecendo a reprovação do direito.
Dito de outra forma: o preceito do art. 493º, 1, do CCiv. presume a culpa in vigilando do sujeito lesante uma vez verificado o dano. E permite que o lesante a ilida pela prova da inexistência de culpa (art. 350º, 2, CCiv.) ou mostrando que os danos se teriam verificado mesmo sem culpa[21].

3.6. Aplicando ao caso, julgamos que a Relação decidiu bem.

3.6.1. A Ré «Neopul» era a locatária dos equipamentos – composição de locomotiva e seus vagões balestreiros a tracção (cfr. factos provados BBB) a EEE1); HHH) e HHH1)) – para utilização na obra ferroviária, sendo nesse contexto jurídico detentora desses equipamentos e obrigada à sua vigilância – requisito prévio e não discutido;

3.6.2. O dever legal de vigilância não se encontra cumprido cabalmente com a solicitação e controlo da realização das inspecções contratualizadas e padronizadas, assim como das manutenções e inspecções gerais do equipamento (cfr. factos provados U), em conjugação com os factos provados DDD), EEE), FFF), GGG) e HHH), 2ª parte), e V), em referência ao documento referido).
Atenta a “coisa” usada na empreitada e as condições do seu uso, tal dever comporta a exigibilidade de actuação adicional e antecipatória em sede dos mecanismos de segurança da locomotiva e seus vagões, uma vez que a vigilância exigida, como se enfatizou no Ac. do STJ de 7/4/2011, actua sobre a prevenção de “anomalias ou avarias” nas coisas “cujo estado e funcionamento devam, pela sua natureza, estar sujeitos a inspecção com a frequência adequada”[22].
Deste modo, o dever implica, em particular, o conhecimento e a adequação à sua utilização do sistema de travagem dos vagões (enquanto sistema de “risco”) e o conhecimento e acompanhamento específico das operações do equipamento em situações de altitude e consequente descida acentuada (cfr. factos provados CC) a MM), a que voltaremos), a fim de, nesse sistema de “risco” antecipado pelo detentor, controlar e prevenir a possível perda de vácuo dos freios, causa da falta de funcionamento dos travões da composição balestreira que motivou o acidente-sinistro, ou seja, o embate lesivo na máquina da segurada da Autora (cfr. factos provados L) a P), R) a T), X) a BB), NN; os factos provados III) e JJJ) demonstram, aliás, o cumprimento ex post facto de uma vigilância que poderia ex ante evitar o sinistro).

3.6.3. A Ré Recorrente, não obstante demonstrar que, em parte, solicitou, controlou e obteve manutenções e inspecções, não logrou demonstrar que o dever legal foi cumprido na plenitude, por sua iniciativa ou por solicitação aos locadores, numa base de intervenção quotidiana e corrente, e não meramente padronizada, com incidência no funcionamento da composição nas condições da operação técnica em curso e na respectiva prevenção de danos do sistema de travagem, a fim de evitar a ocorrência da causa do sinistro que veio a ocorrer.
Causa essa – a montante de todo o complexo processo causal, verificou-se a deslocalização da tampa e mangueira de freio do vagão da cauda da composição, comprovada após o embate-sinistro, que impossibilita o funcionamento do sistema de vácuo que é condição para o funcionamento dos travões, sistema esse com debilidades quando utilizado em altitude – que se identifica na análise atenta e analítica dos seguintes factos provados (com sublinhado nosso):

“AA) Após o embate, a tampa e mangueira de freio do vagão situado na cauda da composição e que veio a embater na reguladora da segurada da ora A. encontravam-se fora do sítio.
BB) O que não permitia que o sistema de vácuo que faz funcionar os travões desse vagão funcionasse.
CC) O sistema de freio de todos os vagões funciona através de vácuo.
DD) Este sistema apresenta debilidades agravadas quando utilizado o sistema em altitude.
EE) Como era o caso, já que a composição se encontrava a cerca de 600 metros de altitude quando começou a deslizar por falta de travões.
FF) A essa altitude, e porque a pressão atmosférica é inferior à que existe ao nível do mar, a pressão do vácuo é 10% inferior à que existiria a uma altitude zero.
GG) O que se traduz numa redução de 25% da margem de segurança do sistema.
HH) Para funcionamento deste sistema de freio a vácuo, o mesmo tem acoplado uma bomba de vácuo que faz com que o valor do mesmo deva ser superior ao da pressão atmosférica, isto é, superior a 35 cm/hg.
II) Sendo que a pressão de vácuo ideal para que o sistema de freio funcione é de 56 cm/hg.
JJ) A bomba de vácuo apenas é carregada pelas rotações do motor da máquina.
LL) Quando a composição se encontra em operação de pára e arranca, como era o caso do carregamento dos vagões balestreiros, a bomba de vácuo não é carregada.
MM) Com o que não pode compensar a perda de vácuo existente nos freios dos vagões.”

Assim se compreende o resumo feito no acórdão recorrido:

“as características do sistema de frenagem e as circunstâncias em que a composição operava determinam que o dever de vigilância da Ré Neopul abrangesse o cuidado em contrariar a normal perda de vácuo dos freios.
(…) Não se esquece que foi considerado não provado (ponto 4) que a Ré conhecesse o sistema de funcionamento dos freios dos vagões balestreiros e, ainda assim, optasse por utilizar aqueles vagões balestreiros.
(…) não estamos a considerar demonstrado que a entrada de ar no sistema de frenagem se deveu às condições de altitude e de pára/arranca, facto que se não provou como resulta do ponto 2.3.5. da sentença recorrida. Estamos (…) a considerar demonstrado que o sistema de frenagem tinha especiais debilidades na operação concreta, o que leva a incluir no dever de cuidado da detentora (a Ré Neopul) vigilância específica quanto a esse sistema” (sublinhado nosso).

Razões pelas quais há ilicitude na omissão revelada.

3.6.4. A Ré igualmente não logrou demonstrar que o incumprimento da vigilância com esse alcance e âmbito (= facto ilícito) lhe possa ser imputado sem culpa – como presume a lei – ou, em alternativa, que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua (relevância negativa da causa virtual ou hipotética do dano);
Seguindo o Ac. do STJ de 7/2/2017[23], “para afastar a presunção legal de culpa, de acordo com o disposto pelo artigo 493º, nº 1, parte final, do CC, importa que o demandado demonstre a presença e atenção continuadas que o conceito de vigilância pressupõe, não bastando a prática de quaisquer atos genéricos realizados antecipadamente”, “mas não exige ao lesante, para se exonerar da responsabilidade, como acontece com os danos causados no exercício de actividades perigosas, a que se reporta o respetivo nº 2, que demonstre que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para o evitar”.
Neste alcance, nomeadamente, a Ré não provou que, em face das circunstâncias específicas do caso – expressas nos relatados factos provados AA) a MM), que consubstanciam a perigosidade a antecipar e a prevenir com acção adequada e própria, assente na sensível conjugação entre travagem da composição-freio dos vagões-sistema de vácuo-funcionamento em altitude –, não podia e não devia ter agido de outro modo para evitar o desvalor objectivo da sua conduta omissiva enquanto concretização do risco acrescido da coisa detida naquelas condições concretas, particularmente se tivesse alegado e provado terem ocorrido circunstâncias subjectivamente relevantes que afastassem a sua censura (demonstrando inexistência de falta de “cuidado interior”[24]).
E ainda não logrou provar que, mesmo que o dever de vigilância fosse cumprido à risca, o evento danoso a montante (perda de vácuo dos freios do vagão) sempre se verificaria, nomeadamente por força de um facto de terceiro ou acidental que levaria inexoravelmente à produção do dano[25].

Logo, há culpa presumida e, portanto, responsabilidade civil pelo facto ilícito (com o concurso dos demais requisitos: art. 483º, 1, CCiv.).


Em conformidade, não se vislumbra, em rigor, como lograr vencimento a pretensão da Ré aqui Recorrente, o que implica fazer improceder a revista.


III) DECISÃO

Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas da revista a cargo da Recorrente.



STJ/Lisboa, 22 de Setembro de 2021


Ricardo Costa (Relator)


António Barateiro Martins


Luís Espírito Santo






SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

_________________________________________________


[1] Sobre o regime, v. por todos FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 444-445.
[2] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 2004 proferido no processo 4725/07.1TBLRA.C1.S1 (Pereira da Silva) e de 21 de Abril de 2010, proferido no processo 766/2001.C1.S1 (Alberto Sobrinho).
[3] Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades, separata do BMJ, 85, p. 378.
[4] In Direito das Obrigações, Almedina, 1979, p. 586.
[5] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 2014, proferido no processo
4725/07.1TBLRA.C1.S1 (Pereira da Silva), de 6 de Maio de 2010, proferido no processo 864/04.9YCGMR (João
Bernardo), de 21 de Abril de 2010, proferido no processo 766/2001.C1.S1 (Alberto Sobrinho), de 30 Novembro de 2010, proferido no processo 1166/04.6TBLSD.P1.S1 (Fonseca Ramos), de 13 de Fevereiro de 2014, proferido no processo 131/10.9TBPTB.G1.S1 (Silva Gonçalves), de 29 de Abril de 2008, proferido no processo 08A867 (Fonseca Ramos), de 10 de Dezembro de 2009, proferido no processo 220/03.6TBSTB.E1 (Alberto Sobrinho), de 9 de Julho de 2015, proferido no processo 385/2002.E1.S1 (Abrantes Geraldes), com abundante citação da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça quanto a diversas actividades, de 28 de Junho de 2012, proferido no processo 1894/06.1TBOVR.C1.S1 (Serra Baptista) ou de 17 de Junho de 2014, proferido no processo 112/07.0TBCMN.G1.S1 (Fonseca Ramos).
[6] In Responsabilidade Civil por violação de deveres no tráfego, Almedina, Teses, 2015, p. 356-361.
[7] Enunciadas por Christian von Bar in Common Law and Torts, I, p. 147-149, apud op. cit.
[8] In Tratado de Direito Civil, VIII, Almedina, 2017, p. 582.
[9] Rui Mascarenhas Ataíde, op. cit. p. 356.
[10] In Tratado de Direito Civil, VIII, Almedina, 2017, p. 588.
[11] Op. cit. p. 255: Acolher a liberdade de actuação implica ainda - como se salientou - "pactuar" com um certo círculo inexorável de lesões dos próprios bens protegidos, sob pena de se esvaziar o próprio alcance material do princípio, como sucederia caso as pessoas tivessem que responder por todos os danos alheios, sofridos em consequência dos respectivos comportamentos. Logo, na ática delitual, não se é, em rigor, obrigado a indemnizar por se ter atingido bens que gozam de protecção jurídica, pois esse risco de lesão é pressuposto e congénito à vigência do princípio de liberdade (...). Ora, se assim é quanto aos ataques propositados, então, por maioria de razão, quando se trate de ressarcir danos não intencionais, o dever de indemnizar apenas se pode justificar não pelo resultado lesivo em si mesmo mas só pelo modo desqualificado como foi produzido.
[12] Op. cit., p. 915-916.
[13] PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código civil anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), 4.ª ed., com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Almedina, Coimbra, 1987, sub art. 486º, anot. 1, pág. 487.
[14] Salientando estes últimos aspectos do dever de vigilância a cargo de quem tem a “detenção” da coisa (ou do animal), v., em geral e em especial, ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2005 (reimp. ed. 2000), págs. 552 (“dever jurídico de prevenção do perigo para (…) a pessoa que cria, por sua iniciativa, uma fonte especial de perigo para terceiro”), 593-594, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil, VIII, Direito das obrigações – Gestão de negócios, enriquecimento sem causa, responsabilidade civil, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 571, 573, 574, 583.
Na jurisprudência do STJ, o Ac. de 11/7/2013, processo n.º 95/98.9TBAMM.P1.S1, Rel. ALVES DO VELHO, in www.dgsi.pt, sublinha justamente a natureza cautelar deste dever consagrado pelo art. 493º, 1, do CCiv.: “A responsabilidade recai sobre a pessoa que detém a coisa, exercendo sobre ela o poder de facto, e encontra fundamento na ideia de que ela não tomou as necessárias medidas cautelares idóneas à não produção do dano”.
[15] V., por todos, com outras referências e influenciação da dogmática tudesca, JORGE SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Almedina, Coimbra, 1989, págs. 260 e ss, em esp. 263-265, 307 e ss, em esp. 312-313, MANUEL CARDEIRO DA FRADA, Contrato e deveres de protecção, Separata do volume XXXVIII do Suplemento ao BFDUC, Coimbra, 1994, págs. 163 e ss, ID., Teoria da confiança e responsabilidade civil, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 236 e ss, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil, VIII cit., págs. 588-589; na jurisprudência superior, v. o Ac. do STJ de 29/11/2016, processo n.º 820/07.5TBMCN.P1.S1, Rel. FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt.
[16] V. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito civil, VIII cit., pág. 584.
[17] V. MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Lições de responsabilidade civil, Principia, Cascais, 2017, pág. 244.
[18] JORGE SINDE MONTEIRO, Responsabilidade… cit., pág. 263.
[19] JORGE SINDE MONTEIRO, Responsabilidade… cit., pág. 312.
[20] ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Vol. I cit., pp. 562-563, 566-567, ID., Das obrigações em geral, Vol. II, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 1995, pp. 95-96.
[21] Em rigor, “hipótese de ilisão de “culpa” ou de invocação de causa virtual”: ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 493º”, Código Civil comentado, II, Das obrigações em geral (artigos 397.º a 873.º), coord. A. Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 434; antes, Tratado de direito civil, VIII cit., págs. 576, 584.
[22] Processo n.º 5606/03.3TVLSB.L1.S1, Rel. ALVES DO VELHO, in www.dgsi.pt.
[23] Processo n.º 4444/03.8TBVIS.C1.S1, Rel. HÉLDER ROQUE, in www.dgsi.pt.
[24] V. uma vez mais JORGE SINDE MONTEIRO, Responsabilidade… cit., pág. 263.
[25] V. por todos ANTUNES VARELA, Das obrigações em geral, Vol. I cit., págs. 617 e ss, em esp. 619-620.