SOCIEDADE ANÓNIMA
REMUNERAÇÃO
ADMINISTRADOR
ABUSO DO DIREITO
SUPRESSIO
NULIDADE
DELIBERAÇÃO SOCIAL
ATO INEXISTENTE
DESTITUIÇÃO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
RECURSO SUBORDINADO
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
Sumário


I - Tendo a ação sido julgada improcedente e a ré absolvida totalmente do pedido, o meio próprio para a ré reagir contra o decidido sobre um fundamento em que decaiu era a ampliação do âmbito do recurso de apelação que os autores interpuseram, e não a interposição de recurso subordinado.
II - As remunerações dos administradores das sociedades anónimas não podem, sob pena de nulidade por violação de norma legal imperativa, ser estabelecidas por outras vias que não as previstas no art. 399.º, n.º 1 do CSComerciais.
III - Configura-se como abusivo por parte da sociedade o exercício do direito à declaração da nulidade decorrente da inexistência de deliberação a fixar a remuneração de certo administrador, quando há vários anos que sabia, nomeadamente pelas pessoas dos demais acionistas e administradores, que a remuneração desse administrador vinha tendo lugar e sempre se conformou com tal facto, tendo inclusivamente sido aprovadas pelos acionistas as contas societárias que refletiam os pagamentos da remuneração e o cumprimento pela sociedade das inerentes obrigações fiscais e contributivas.
IV - Daqui que não possa ser feita valer a nulidade, antes tendo que ser paralisados os seus efeitos jurídicos, tudo funcionando como se a nulidade não se tivesse constituído.
V - Se se mostra que o administrador destituído não logrou obter rendimentos profissionais que de alguma forma compensassem tudo aquilo de que ficou privado de receber por causa da destituição, sofreu um prejuízo que deve ser indemnizado no quadro dos art.s 403.º, n.º 5 do CSComerciais e 562.º e seguintes do CCivil.

Texto Integral




Processo n.º 22628/18.2T8SNT.L1.S1

Revista

Tribunal recorrido: Tribunal da Relação ……

                                                           +

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

I - RELATÓRIO

AA e BB demandaram, pelo Juízo de Comércio ……. e em autos de ação declarativa com processo na forma comum, Sanjam - SGPS, S.A., pedindo que seja esta condenada a pagar a cada um dos Autores a quantia indemnizatória de € 64.500,00 bem como o valor correspondente aos subsídios de férias e de natal dos anos de 2017 a 2020, acrescendo sobre tudo juros de mora, vencidos e vincendos.

Alegaram para o efeito, em síntese, que:

- São acionistas da Ré;

- Desde a constituição da Ré, em 30 de dezembro de 2008, dela foram administradores por mandatos que foram sendo renovados, o último dos quais para o quadriénio de 2016/2019;

- Os Autores eram administradores remunerados;

- Na assembleia geral extraordinária realizada em 27 de junho de 2017 foi deliberada a destituição dos Autores sem justa causa;

- Deste modo, deixaram os Autores de auferir a partir de julho de 2017 a remuneração que até aí auferiam, no montante mensal de € 1.500,00, e os subsídios de férias e natal que também lhes estavam atribuídos;

- A Ré detém outras sociedades nas quais os Autores tinham o cargo de vogal nos respetivos conselhos de administração, dos quais também foram destituídos em junho de 2017;

- A Ré e essas empresas eram o “centro profissional” dos Autores;

- Com a destituição dos Autores do conselho de administração da Ré deixaram eles de ter qualquer outra forma de rendimento.

- Razão pela qual têm direito à indemnização que reclamam.

Contestou a Ré, defendendo-se por impugnação e por exceção, e concluindo pela improcedência da ação.

Entre o mais que para aqui já não importa, alegou a nulidade da atribuição e do pagamento de remuneração aos Autores, isto por inexistência de deliberação da assembleia geral fixadora dessa remuneração.

Mais alegou que os Autores exercem abusivamente o invocado direito, isto porque posteriormente à sua destituição e durante os dois anos seguintes instauraram várias ações contra a Ré e empresas do grupo sem que tenham reclamado qualquer indemnização pela destituição do cargo de administradores da Ré, criando nesta a expectativa de que não o iriam exercer.

A Ré mais deduziu reconvenção.

Entre o mais que para aqui já não interessa, pediu a condenação dos Autores no reembolso do montante de € 18.000,00 que dela receberam a título de remunerações sem precedência de deliberação em assembleia geral de atribuição de remuneração a administradores.

Seguindo o processo seus termos veio, a final, a ser proferida sentença que julgou improcedentes a ação e a reconvenção, com as consequentes absolvições dos pedidos respetivos.

Inconformados com o assim decidido, apelaram os Autores.

A Ré recorreu subordinadamente.

A Relação … julgou improcedente a apelação no tocante ao Autor BB, confirmando nessa parte a sentença da 1ª instância; e julgou parcialmente procedente a apelação no tocante ao Autor AA, condenando a Ré a pagar-lhe a quantia ilíquida de € 54.000,00, “abatida das legais deduções a título de imposto sobre rendimentos e contribuição social, acrescida, depois das deduções, dos juros de mora a calcular à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento”.

O recurso subordinado foi julgado improcedente.

Insatisfeita com o assim decidido na parte que lhe é desfavorável, pede a Ré revista.[1]

Da respetiva alegação extrai as seguintes conclusões:

I. A Recorrente entende que os Recorridos agiram de má fé ao instaurar a presente ação um ano e seis meses depois da sua destituição e já depois de terem recorrido ao Tribunal por catorze vezes. Nessa medida, a Recorrente qualificou a conduta dos Recorridos como abusiva e portanto, em sede de Contestação, defendeu-se por exceção deduzindo exceção perentória de abuso de direito na modalidade de supressio.

II. O Tribunal de Primeira Instância entendeu que inexistiu qualquer conduta abusiva da parte dos Recorridos e por conseguinte não deu vencimento à defesa por exceção da Recorrente.

III. Em sede de recurso subordinado, a Recorrente, porque vencida neste desiderato, veio também recorrer dele.

IV. Porém, entendeu o Venerando Tribunal da Relação …. que a questão já não poderia ser apreciada porque protegida pela força do caso julgado, porquanto deveria a Recorrente ter solicitado a ampliação do recurso independente para que a mesma fosse apreciada.

V. Salvo o devido respeito, a Recorrente não aceita este entendimento do Venerando Tribunal da Relação …., o qual é contrário à Lei e as várias decisões jurisprudenciais, pois que deturpa o instituto do recurso subordinado e a sua finalidade, reduzindo-o a algo residual, quando, na realidade, é um recurso ordinário com as mesmas “honras” que qualquer outro recurso ordinário: “Como é sabido, pacificamente aceite pela Doutrina e Jurisprudência, a figura do recurso subordinado encontra fundamento em razões de ‘justiça processual e igualdade das partes’, permitindo que interponha recurso da decisão, após decurso do prazo geral de impugnação, a parte que inicialmente se conformara com ela, aceitando-a nos termos em que ficou vencida, daí o recurso subordinado depender sempre, não só da admissibilidade, mas também da subsistência do recurso independente, caducando quando o tribunal não tome conhecimento do objeto deste último. (….) Ao invés de reagir imediatamente, interpondo o natural recurso (chamado independente ou principal), pode alguma das partes querer fazer depender essa sua reacção da reacção da parte contrária; abster-se-á de recorrer se a contraparte também assim proceder, mas caso esta interponha recurso não prescindirá também de impugnar a parte decisória que a desfavorece (neste caso em recurso subordinado).” (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2020 de 31.01.2020). (sublinhado nosso).

VI. Portanto, minorar o papel do recurso subordinado e/ou retirar da sua função a discussão de questões sobre as quais podem as partes pretender a sua apreciação porque nelas decaíram como o Tribunal da Relação ….. fez é violar o artigo 633º do CPC.

VII. E, em abono da tese da Recorrente de que a questão do abuso de direito dos Recorridos deveria ter sido apreciada em sede de recurso de apelação porquanto não havia ainda ocorrido caso julgado, o Supremo Tribunal de Justiça, em 2017 decidiu que “Desde logo porque qualquer decisão só se considera transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário, por força do preceituado no art. 628º do CPC. E conforme se salientou supra, o art. 633º, nº 1, estabelece que se ambas as partes ficarem vencidas, cada uma delas pode recorrer na parte que lhe seja desfavorável, podendo o recurso, neste caso, ser independente ou subordinado. Ora, uma vez interposto tal recurso – independente ou subordinado a decisão não transita. E não transitando, a questão do caso julgado não se suscita nesta fase de admissibilidade do recurso. Na economia do sistema, o recurso subordinado ainda é uma das modalidades do recurso ordinário que, por isso, uma vez interposto, impede o trânsito em julgado a que se reporta o art. 628º do CPC. A questão do caso julgado só poderá assumir pertinência após a análise e decisão quer do recurso independente/principal interposto pela Ré, quer do próprio recurso subordinado deduzido pela Autora, porquanto, só depois desse conhecimento e efectiva decisão do objecto de cada um desses recursos, poderá o Tribunal da Relação pronunciar-se e concluir no sentido de que alguma das questões ali suscitadas, relativamente aos diversos pedidos formulados, já se mostra decidida, tendo transitado nessa parte.” (Acórdão de 26.01.2017, processo 308/13.5TTVLG.P1.S1).

VIII. É, assim, inaceitável para a Recorrente a decisão do Venerando Tribunal da Relação ….. que, aliás contraria decisão por si tomada anteriormente, em 07.02.2019, no Acórdão proferido no processo 19391/15.2T8LSB.L1-2: “Ressalvado que está o princípio do contraditório, em face da efetiva pretensão da Ré/Recorrida, materializada na peça denominada “recurso subordinado”, é de determinar a sua correção e convolação em ampliação do objeto do recurso por iniciativa da Recorrida, ao abrigo do artigo 193.º, n.º 3, do CPC. O alcance e a autoridade do caso julgado não se podem limitar aos estreitos contornos dos artigos 580.º e 581.º do CPC para a exceção do caso julgado, antes se devendo alargar a situações em que, não obstante a ausência formal da identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento e razão de ser daquela figura jurídica estejam manifestamente presentes. (…) O n.º 3 do artigo 193.º, introduzido pelo CPC de 2013, consagra um corolário do princípio da prevalência da substância sobre a forma na figura do erro no meio processual utilizado pela parte para a prática de determinado ato. Em tais circunstâncias, em lugar do decretamento da nulidade do ato, impõe-se a correção oficiosa, determinando que sejam seguidos os termos processuais adequados. (…) É certo que, ao contrário do que ocorre com a ampliação do recurso (deduzida a título subsidiário), a apreciação do recurso subordinado pelo tribunal superior não é meramente eventual. Com efeito, caso o recurso principal seja apreciado, então o recurso subordinado terá, obrigatoriamente, de ser decidido.”.

IX. Destarte, a apreciação da conduta dos Recorridos merece ser feita porque não se encontra protegida pela força do caso julgado, falecendo por isso razão ao Tribunal da Relação …. neste ponto.

X. Mas também merece censura o Acórdão proferido e de que se recorre porquanto, não assiste aos Recorridos qualquer direito a remuneração pelo simples facto de terem exercido cargo de Administradores na Recorrente.

XI. A Recorrente não aceita como sendo um dogma insofismável que, do simples facto de se exercer um cargo de administração, automaticamente, se reconheça um direito a uma remuneração – “A remuneração não é, pois, elemento essencial do acto constitutivo da relação de administração” (Luís Brito Correia, in “Os Administradores de Sociedades Anónimas”, Almedina, 1993, págs. 494 e 565 e segs.).

XII. Aliás, atento o artigo 278º do CSC, a administração das sociedades anónimas pode seguir uma de três modalidades, havendo a distinção entre administradores não executivos e executivos, sendo que somente em relação a estes últimos fará sentido abordar-se a questão numa perspectiva de atribuição de uma contrapartida pecuniária pelo exercício profissional de um cargo de gestão.

XIII. Aduz-se que, inexiste norma específica de reconhecimento de direito à remuneração para quem exerce cargo de Administrador, ao contrário do previsto no artigo 255º, n.º 1 do CSC, no qual se prevê, expressamente, um direito à remuneração para quem exerce cargo de gerente.

XIV. O único preceito legal que aborda a questão da remuneração dos Administradores não o faz no sentido de reconhecer um direito à remuneração, mas antes no sentido de determinar, de forma imperativa, a forma como se fixa a remuneração, no caso desta ser reconhecida aos Administradores: “O art. 399º, n.º 1 não impõe a remuneração; determina quem compete fixá-la – quando devida. Não parece que haja razões suficientes para impedir a possibilidade de o estatuto social prever a gratuitidade dos cargos (…) de administração.” (J. M. Coutinho de Abreu, in “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, vol. VI, Almedina, 2013, págs. 352 e seguintes).

XV. Destarte, a Recorrente não aceita a afirmação plasmada no Acórdão de que se recorre de que “o direito do administrador à remuneração é um direito que emerge do ingresso nesse cargo, inerente ao mesmo”, porquanto não há um direito à remuneração ope legis, estando no poder e na disposição dos accionistas decidir se o administrador tem ou não direito e fixar-lhe o valor e modo de pagamento.

XVI. O pacto social da Recorrente reproduz a norma imperativa do artigo 399º do CSC ao impor que a fixação da remuneração, do valor, atribuição e modo de pagamento seja definido por deliberação dos accionistas em Assembleia Geral ou Comissão criada para o efeito.

XVII. O que deixa a Recorrente surpreendida com a aplicação do Direito por parte do Venerando Tribunal da Relação ….., não é o reconhecimento de um direito à remuneração, mas antes a forma como, preterindo a aplicação de norma imperativa, aquele Venerando Tribunal conclui pela validade da atribuição da remuneração para, em consequência, reconhecer um direito a uma indemnização que não é devida.

XVIII. Só por absurdo se admitirá que, depois de o Venerando Tribunal da Relação ….. admitir que “Adiantando, e conforme conclui a sentença recorrida, a remuneração paga aos recorrentes é nula porque conforme prevê o artigo 399º, n.º 1 do CSC, a lei impõe que o respectivo montante seja fixado/determinado pela assembleia geral de accionistas e, por isso, apenas é susceptível de ser provado através da respectiva acta que, no caso não existe”, possa sanar-se tal invalidade (insanável) como o faz, por recurso a uma pretensa taciticidade e suposta tolerância dos acionistas em relação à atribuição da remuneração aos Recorridos.

XIX. A declaração de nulidade da atribuição da remuneração afasta qualquer outro tipo de conjeturas ou possíveis soluções para o caso concreto.

XX. “Por conseguinte, no caso da remuneração ter sido fixada por outro órgão, designadamente pelo conselho de administração, a sanção é a nulidade, não produzindo efeitos relativamente à sociedade e aos accionistas (cf. art. 411º, n.º 1 al. a) do CSC, que fere de nulidade as deliberações do conselho de administração cujo conteúdo seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais imperativos). (…) Sendo o citado art. 399º do CSC uma norma imperativa, a determinação do R. a ordenar aos serviços da A. Seu aumento de remuneração está ferida de nulidade, como decorre do citado art. 411º, n.º 1 al. c) do CSC, por maioria de razão, dado que em rigor não é sequer uma deliberação do conselho de administração e também dos artigos 280º, n.º 1 e 294º (que cominam com a sanção da nulidade os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei) e 295º do Código Civil (que permite a aplicação dos artigos 217º a 294º aos actos jurídicos, na medida em que a analogia das situações o justifique).” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.04.2012, processo 9836/09.6TBMAI.P1, que invoca igualmente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.04.2007, proferido no processo 96B826, e, na doutrina, Jorge Coutinho de Abreu e Inês Ermida de Sousa Guedes).

XXI. Ora, se é nula a atribuição de remuneração, a consequência legal é a restituição de tudo quanto foi indevidamente recebido tal como o preceitua o artigo 289º do Código Civil: “O administrador que ordena o pagamento, a si próprio, de uma remuneração adicional, sem ter sido deliberada pela assembleia-geral de accionistas ou pela comissão de remunerações, viola os seus deveres de cuidado e de lealdade e fica obrigado a restituir à sociedade tudo o que recebeu na sequência da prática daquele ilícito.” (idem).

XXII. Mais, sendo nula a atribuição de remuneração, não assiste direito aos Recorridos de obterem uma indemnização num valor equivalente ao alegado valor das supostas remunerações que deixaram de auferir desde a destituição até termo de mandato, nos termos do n.º 5 do artigo 403º.

XXIII. Naturalmente, se nenhuma remuneração lhes era devida, não poderá aquela indemnização contabilizar-se como pretenderão os Recorridos.

XXIV. Mas também não poderá ser contabilizada nos termos gerais de direito porquanto os Recorridos não alegaram quaisquer danos e muito menos provaram a sua existência, como seria seu ónus (cf. artigo 342º do Código Civil).

XXV. Realmente, da destituição sem justa causa, não decorrerá, necessariamente, um dever de indemnização dos administradores destituídos - “(...) da destituição sem justa causa/facto lícito não decorre lógica ou necessariamente o dever de indemnização.” (J.M. Coutinho de Abreu em “Código das Sociedades Comerciais em Comentário”, Volume VI, Almedina, p. 392).

XXVI. E, como bem se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.07.2006, proferido no âmbito do processo n.º 06A1884: “De qualquer modo, não basta a simples invocação da perda da remuneração devida pelo exercício da administração, pois os prejuízos para o autor só se verificam se ele não teve a oportunidade de exercer outra actividade remunerada de idêntico nível económico, social e profissional. É que não se afigura justo que seja indemnizado o administrador destituído que, por culpa sua, não obteve novo emprego de nível idêntico, em prazo razoável.”

XXVII. Por fim, concluindo-se pela nulidade da atribuição da retribuição aos Recorridos e que, a consequência legal é a de restituir-se o indevidamente recebido, e que, portanto nenhum direito a indemnização existe, será inútil discutir-se a questão do abuso de direito quer dos Recorridos quer da Recorrente.

XXVIII. Ainda assim sempre se dirá que, relativamente à Recorrente, inexiste qualquer abuso de direito porquanto a mesma poderia, inclusivamente, nada ter dito, uma vez que a nulidade é de conhecimento oficioso.

XXIX. Mas como a nulidade pode ser invocável a todo o tempo (cf. artigo 286º do Código Civil), e à Recorrente assiste o direito de acção, bem como o direito de defesa e de reconvir, assim como à participação em acção judicial em termos de igualdade com a parte contrária (cf. artigos 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa e os artigos 2º, 3º, 4º, 5º e 266º do CPC e artigo 286ºdo Código Civil), inexiste qualquer tipo de abuso do seu direito de invocar a nulidade, como, de forma inaudita, o Tribunal da 1ª Instância decidiu e o Venerando Tribunal da Relação ….. confirmou.

XXX. A mera constatação oficiosa pelo Tribunal da 1ª Instância – e confirmado pelo Venerando Tribunal da Relação …. – de que a atribuição de remuneração aos Recorridos é nula por preterição de formalismos legais ínsitos em norma imperativa, seria o suficiente para que os Recorridos fossem condenados na restituição de tudo quanto indevidamente receberam.

XXXI. E, não se pode admitir que uma eventual excepção peremptória de abuso de direito possa prevalecer sobre a excepção peremptória de nulidade em consequência de violação de norma imperativa.

XXXII. Como bem o decidiu o Supremo Tribunal de Justiça em 11.07.1991, no âmbito do processo 080234 “Ainda que as aludidas situações excepcionais se possam integrar, perfeitamente, no artigo 334 do Código Civil, a tese que admite a oposição do abuso de direito, por forma a impedir a procedência de pedido de declaração de nulidade do contrato por vício de forma, entra em conflito com o disposto nos artigos 286º, 288º e 289º do Código Civil e dificilmente se harmoniza com a rigidez do regime das nulidades decorrentes dessas normas legais, motivo pelo qual essa tese é de não aceitar.”.

XXXIII. Já relativamente a um putativo abuso de direito da parte dos Recorridos, não poderá proceder a fundamentação apresentada para afastar o comportamento abusivos daqueles.

XXXIV. Com efeito, não é só o mero decurso do tempo – in casu, um ano e seis meses – que caracteriza a modalidade de supressio do abuso de direito; igualmente, há que considerar outros elementos que levam à conclusão do exercício abusivo de um direito porquanto foi criada uma expectativa de não actuação.

XXXV. Os Recorridos iniciaram e mantêm uma ampla actividade litigiosa, através da instauração de catorze acções judiciais contra a Recorrente e os seus accionistas. No entanto, nenhuma dessas acções se destinou a atacar a licitude do acto de destituição sem justa causa e/ou a peticionar por uma indemnização pelos eventuais prejuízos sofridos em virtude dessa destituição.

XXXVI. Ademais, os Recorridos alegam ter passado por uma quebra abrupta de rendimentos, mas ficou demonstrado que o Recorrido BB não só não teve quebra (abrupta ou não) de rendimentos como os aumentou e o Recorrido AA, apesar de perder a suposta remuneração que auferia, manteve uma pensão de velhice superior à média nacional, para além de, aparentemente, ter capacidade de custear acções judiciais, quer através de taxas de justiça quer através de honorários dos diversos mandatários que os assistem.

XXXVII. Contudo, como dito supra, não têm os Recorridos sequer direito de que possam abusar, pois que não lhes é devida retribuição enquanto Administradores e muito menos uma indemnização em virtude da sua destituição.

XXXVIII. Por conseguinte, entende a Recorrente que o Acórdão de que recorre merece a censura do Tribunal Superior, devendo, por isso, ser revogado pois que viola normas legais imperativas (artigos 399º e 403º, n.º 5 do CSC), normas adjetivas (artigos 2º, 3º, 4º, 5º, 266º, 633º, n.º 5 e 193º do CPC), normas substantivas (artigos 286º e 289º do Código Civil) e normas constitucionais que acautelam direitos, liberdades e garantias (artigos 13º, 20º e 86º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa) e por aplicar indevidamente o artigo 636º do CPC.

Termina dizendo que deve ser revogado o acórdão recorrido, “mantendo-se a decisão da primeira instância na parte em que absolve a Recorrente do pagamento de indemnização por destituição sem justa causa dos Recorridos como válida”.

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Não se mostra oferecida contra-alegação.

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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                           +

II - ÂMBITO DO RECURSO

Importa ter presentes as seguintes coordenadas:

- O teor das conclusões define o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, sem prejuízo para as questões de oficioso conhecimento, posto que ainda não decididas;

- Há que conhecer de questões, e não das razões ou argumentos que às questões subjazam;

- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido.

                                                           +

São questões a conhecer:

- Se a matéria do alegado exercício abusivo do direito por parte dos Autores devia (ou não) ter sido apreciada, por não estar (ou por estar) protegida pela força do caso julgado;

- Se devem (ou não) ser atuadas as consequências para a ação (improcedência do pedido indemnizatório) e para a reconvenção (restituição do que foi recebido) da nulidade do ato que determinou a remuneração dos Autores, por inexistência de deliberação do órgão competente;

- Se a Ré não exerceu (ou exerceu) de forma abusiva o direito à invocação dessa nulidade;

- Se o Autor AA não goza (ou goza) do direito a ser indemnizado pela destituição de que foi alvo.

                                                           +

III - FUNDAMENTAÇÃO

De facto

Estão provados os factos seguintes (após as modificações feitas operar pelo acórdão recorrido):

A) A Ré foi constituída por contrato de sociedade celebrado em 30.12.2008 e inscrito no registo na mesma data, com o capital social de € 50.000,00 (cinquenta mil Euros) representado por 10.000 ações no valor nominal unitário de €5,00, assim distribuídas/subscritas:

a. CC, 3.860 ações,

b. DD, 2.530 ações,

c. EE, 20 ações,

d. AA, 2.360 ações,

e. BB, 1.230 ações.

B) Do pacto social constitutivo da Ré consta, sob a cláusula n° 19, que A administração da sociedade, com dispensa de caução, será exercida por um Conselho de Administração composto por quatro administradores eleitos em Assembleia Geral; e sob o art. 25°, n° 2, que as funções dos membros dos Conselhos de Administração e do Fiscal Único são remuneradas, cabendo a fixação das remunerações à Assembleia Geral ou a uma Comissão, eleita por aquela e composta por três acionistas.

C) A final do referido pacto mais consta que São nomeados para o quadriénio de 2008 a 2011 os seguintes membros dos corpos sociais: Administradores://- DD, solteira, residente na Rua …, …. …//- CC, solteiro, residente na Rua …,  …, …..//-BB, solteiro, residente na Rua …, …, ….//-AA, divorciado, residente na Rua …, ….., …….

D) Da ata n° 1 da ré consta que em Assembleia Geral da Ré, então designada ‘Século das Luzes - SGPS, SA’, presidida pela acionista DD, secretariada por CC e com a presença dos aqui Autores, em 31.12.2008, na sede social da Ré, Em face das presenças, considerou-se estar constituída uma Assembleia universal, com dispensa de formalidades de convocatória (...) nos termos do artigo cinquenta e quatro do Código das Sociedades Comerciais, no âmbito da qual a acionista e presidente da assembleia DD fez menção que a constituição da sociedade foi realizada em 30.12.2008 na CRP  …. e que foi dado o início de atividade no dia 31.12.2008, e mais foi deliberado por unanimidade dos presentes que os administradores CC, AA, BB e DD não irão ser inicialmente remunerados, pelo facto de todos estes descontarem para a Segurança Social por outras entidades. Da respetiva lista de presenças constam inscritos, na qualidade de acionistas e com indicação do cargo de administradores, DD, CC, BB e AA, e n° de ações (10.000) representativos da totalidade do capital social (€50.000,00).

E) Da ata n° 7 referente à Assembleia Geral da Ré realizada em 21.12.2011, consta que [E]m face das presenças, considerou-se estar constituída uma Assembleia universal, com dispensa de formalidades de convocatória (...) nos termos do artigo cinquenta e quatro do Código das Sociedades Comerciais, no âmbito da qual, conforme ali proposto, por unanimidade dos presentes e sem qualquer menção à remuneração dos administradores, foi deliberada a nomeação do Conselho de Administração para o quadriénio 2012/2015 (DD, CC, BB e AA); facto que foi inscrito no registo por ap. … de 29.12.2011. Da lista de presenças constam inscritos, na qualidade de acionistas e com indicação do cargo de administradores, DD, CC, BB e AA, e n° de ações (10.000) representativos da totalidade do capital social (€50.000,00).

F) Da ata n° 17 referente à Assembleia Geral da Ré realizada em 29.11.2016, consta que [E]m face das presenças, considerou-se estar constituída uma Assembleia universal, com dispensa de formalidades de convocatória (...) nos termos do artigo cinquenta e quatro do Código das Sociedades Comerciais, no âmbito da qual, conforme ali proposto, por unanimidade dos presentes e sem qualquer menção à remuneração dos administradores, foi deliberada a nomeação do Conselho de Administração para o quadriénio 2016/2019 (DD, CC, BB e AA), facto que foi inscrito no registo por ap. …. de 26.01.2017. Da respetiva lista de presenças constam inscritos, na qualidade de acionistas e com indicação do cargo de administradores, DD, CC, BB e AA, e o n° de ações - 10.000 -, representativo da totalidade do capital social - €50.000,00.

G) A Ré não deliberou sobre a atribuição de remuneração aos Autores para o quadriénio de 2016/2019 posteriormente à Assembleia Geral de 29 de novembro de 2016.

H) Todas as decisões tomadas pela Administração da ré eram na altura tomadas pelos acionistas titulares de 99,80% do respetivo capital social, pois - com exceção do acionista titular de 0,2% do capital da Ré - havia identidade entre Administradores e acionistas.

I) A 22 de Maio de 2017, o acionista CC requereu à Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ré a convocatória de Assembleia Geral, com a seguinte ordem de trabalhos: “Ponto Um: Deliberar sobre a destituição sem justa causa do Administrador AA. Ponto Dois: Deliberar sobre a destituição sem justa causa do Administrador BB.”.

J) Em resposta ao pedido supra referenciado do accionista CC, a Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Ré convocou uma Assembleia Geral Extraordinária através de aviso convocatório que foi publicado no Portal do Ministério da Justiça, disponível em: https://publicacoes.mj.pt, tendo como ordem de trabalhos, única e exclusivamente, a destituição sem justa causa dos Autores.

K) Tal Assembleia Geral extraordinária realizou-se no dia 27 de Junho de 2017, tendo comparecido os acionistas DD e CC.

L) Os Autores, ainda que convocados para o efeito com a antecedência superior a um mês, não compareceram.

M) No âmbito da referida assembleia de 27.06.2017 os acionistas presentes, por unanimidade dos votos emitidos, deliberaram e aprovaram as destituições dos Autores dos respetivos cargos de administradores da Ré, sem justa causa, fundamentando-se para tanto que “...atendendo à situação da Sociedade e por forma a assegurar o normal funcionamento da mesma e a regular prossecução da sua atividade, defende que se torna conveniente proceder a uma reorganização do órgão da administração...”.

N) A destituição dos Autores do Conselho de Administração foi registada na Conservatória do Registo Comercial, sob a Ap. ….. no dia 27 de Junho de 2017.

O) A Ré, que tem por objeto a gestão de participações sociais de outras sociedades como forma indireta de exercício de atividades económicas, integra um grupo económico com outras empresas de que é proprietária e controla, nomeadamente: 1. L…, S.A., pessoa coletiva n.º ……, com sede …. Shopping …, Loja …., …..; 2. V……, S.A., pessoa coletiva n.º ….., com sede no Centro Comercial ….., Loja …../….., ….; 3. Lu….., S.A., pessoa coletiva n.º ….., com sede no ….. Shopping, …, Loja …., …..; 4. E…., S.A., pessoa coletiva n.º …., com sede no Centro Comercial ….., Lojas …./…., …...

P) Todas estas empresas, nomeadamente a Ré, eram o centro profissional dos Autores.

Q) Em todas as empresas indicadas, os Autores tinham o cargo de vogal no Conselho de Administração em cada uma delas.

R) E viram a sua cessação de funções em junho de 2017, à semelhança do que ocorreu no seio do Conselho de Administração da Ré.

S) Cada Autor auferia remuneração na ré desde pelo menos 2013 que, desde pelo menos 2016, era no montante de €1.500,00, factos que eram do conhecimento dos demais administradores e acionistas da Ré.

T) Em virtude da destituição, os Autores deixaram de auferir aquela retribuição, a partir do mês de julho de 2017, ou seja, após a destituição sem justa causa dos Autores.

U) A Ré emitiu e detém os originais e duplicados dos recibos de vencimentos dos Autores referentes aos meses de julho 2016 a junho de 2017, na categoria de sócios-gerentes, pelo montante mensal individual de € 1.500,00, com as legais deduções a título de contribuição para a segurança social e de imposto sobre o rendimento.

V) Os recibos referentes ao mês de setembro 2016 mais incluem a quantia de € 1.500,00 a título de subsídio de férias, e o referente ao mês de dezembro de 2016 a quantia de € 1.500,00 a título de subsídio de natal, sobre as quais incidiram as legais deduções.

W) O Autor AA, na declaração de rendimentos do ano de 2016 declarou rendimentos da categoria A - trabalho dependente e/ou pensões - no montante de € 11.440,02 (código 403, referente a pensões) pago pela pessoa coletiva n° …., e no montante de € 21.000,00 (código 401, referente a trabalho dependente) pago pela Ré; na declaração de rendimentos do ano de 2017 declarou rendimentos de trabalho dependente e/ou pensões, no montante de € 11.440,02 (código 403, referente a pensões) pago pela pessoa coletiva n° …., e no montante de € 9.000,00 (código 401, referente a trabalho dependente) pago pela Ré; na declaração de rendimentos do ano de 2018 declarou rendimentos de trabalho dependente e/ou pensões, no montante de € 12.311,74 (código 403, referente a pensões) pago pela pessoa coletiva n° …..

X) O Autor BB, na declaração de rendimentos do ano de 2016 declarou rendimentos da categoria A - trabalho dependente e/ou pensões - no montante de € 15.350,00 pago pela ré (código 401, referente a trabalho dependente), e mais declarou rendimentos da categoria F - rendimentos prediais - no montante de € 9.600,00, a título de rendas; na declaração de rendimentos do ano de 2017 declarou rendimentos de trabalho dependente e/ou pensões no montante de € 9.000,00 (código 401, referente a trabalho dependente) pago pela ré, e mais declarou rendimentos da categoria F - rendimentos prediais - no montante de € 8.800,00, a título de rendas; no extrato de remunerações (da Segurança Social) referente ao Autor BB, verifica-se a existência de outros rendimentos, pelo menos no valor de € 680,00 (seiscentos e oitenta Euros) mensais entre maio e dezembro de 2018 e, na declaração de rendimentos do ano de 2018, declarou rendimentos da categoria A - trabalho dependente e/ou pensões - no montante de € 5.440,00 (código 401, referente a trabalho dependente) pago pela pessoa coletiva n° ….., e mais declarou rendimentos da categoria B - rendimentos profissionais, comerciais e industriais - no montante de € 25.890,80 (ramo atividades hoteleiras), e rendimentos da categoria F - prediais - no montante de €9.600,00, a título de rendas pagas pela pessoa coletiva …...

Foram considerados não provados os factos seguintes:

1. Sem o conhecimento dos Autores, a Presidente da Mesa da Assembleia da Ré realizou a convocatória para uma Assembleia Geral Extraordinária, através da plataforma publicações MJ, no site https:// publicacoes.mj.pt.

2. Com a destituição dos Autores do Conselho de Administração da Ré, os mesmos deixaram de ter qualquer outra forma de rendimento, tendo tal destituição apanhado completamente de surpresa os Autores.

3. O grupo económico liderado pela Ré e completado pelas empresas indicadas, tiveram uma faturação a rondar os €10.000.000,00 (dez milhões de euros) e tiveram um resultado líquido superior a €700.000,00 (setecentos mil euros) em 2016.

4. Pelo menos, desde o ano de 2008 que as remunerações eram pagas a todos os administradores,

5. Não só aos Autores, mas também à administradora DD e ao administrador CC.

6. O pagamento da remuneração aos Autores foi decidida/aprovada pelos demais administradores e acionistas da ré.

De direito

Quanto à questão do exercício abusivo do direito por parte dos Autores

Insurge-se a Recorrente contra o decidido no acórdão recorrido relativamente à exclusão do objeto do recurso subordinado da questão do exercício abusivo do direito por parte dos Autores.

Mas carece de razão.

Vejamos:

Um dos fundamentos da contestação da Ré repousava num alegado exercício abusivo do direito por parte dos Autores, por isso que estes, pese embora terem desenvolvido uma extensa atividade processual no sentido de fazer valer certos direitos contra a Ré, não reclamaram jamais o que agora reclamam. Segundo a Ré, isto teria criado nela a expetativa de que os Autores não iriam depois exercer o direito indemnizatório aqui em causa.

A sentença da 1ª instância julgou improcedente tal exceção perentória.

Mas também julgou totalmente improcedente a ação, com base em outros demais fundamentos da defesa, tendo absolvido a Ré dos pedidos formulados pelos Autores.

Do assim decidido não podia recorrer a Ré, fosse por via principal fosse por via subsidiária, pois que obteve o maior ganho de causa que podia obter. A decisão da ação, tal como essa ação foi objetivada no pedido formulado pelos Autores, foi-lhe completamente favorável, precisamente porque determinou a sua absolvição do pedido, e isso impedia-a de recorrer (v. art. 631.º, n.º 1 do CPCivil).

Porém, desde que os Autores decidiram recorrer de apelação contra o decidido na ação, nem por isso ficou a Ré privada de discutir o decidido quanto ao aludido fundamento da defesa em que decaiu. Simplesmente, o modo processualmente adequado de o fazer não era mediante a interposição de recurso subordinado mas sim mediante o expediente estabelecido no n.º 1 do art. 636.º do CPCivil (ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido). Com efeito, estabelece este normativo que “No caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a possibilidade da sua apreciação”.

Não tendo a Ré suscitado a ampliação do âmbito do recurso de apelação interposto pelos Autores, segue-se que não impugnou validamente o decidido quanto ao referido fundamento. E, deste modo, a decisão sobre a exceção do exercício abusivo do direito consolidou-se (transitou em julgado, impondo-se a sua autoridade e imutabilidade no processo), precludindo a possibilidade da impugnação ser feita valer por outros meios.

Daqui que se apresenta correta a decisão exarada no acórdão recorrido no sentido de que lhe estava vedada a possibilidade de apreciação da referida exceção por via do recurso subordinado interposto.

O que significa que sendo embora válidas (e certamente muito cabidas às espécies sobre que incidiram) as transcrições jurisprudenciais feitas nas conclusões V, VII e VIII, já improcede tudo o mais que, em contrário do que fica dito, consta das conclusões I a IX, XXXIII, XXXIV e XXXV.

Sem embargo do que fica dito, importa observar que o acórdão recorrido não se limitou a invocar a autoridade do caso julgado formado quanto à questão (exceção perentória) do abuso do direito por parte dos Autores. Ao invés, não deixou de sopesar, aparentemente à cautela ou a título subsidiário[2], a questão da existência ou não do abuso do direito imputado aos Autores, concluindo pela inexistência desse abuso.

Efetivamente, pode ler-se a dado passo do acórdão recorrido o seguinte:

“Aqui chegados, e apurado o direito do recorrente AA a indemnização a cargo da ré e pelo montante ilíquido de €54.000,00 (…), não obstante tratar-se de questão coberta pelo manto do caso julgado, um breve apontamento para confirmar que o pedido de reconhecimento judicial daquele direito através da instauração da presente ação decorridos 18 meses sobre a destituição não consubstancia um qualquer abuso de direito. Porque não excede, e muito menos manifestamente, os limites que a boa fé, os bons costumes ou o fim social ou económico impõem ao exercício desse direito que, no que respeita ao seu exercício no tempo, é legal e expressamente limitado por prazos de prescrição que tiram cabimento a uma qualquer legítima expectativa da contra-parte no seu não exercício pelo respetivo titular antes do seu decurso, e o período de 18 meses sequer teria a virtualidade de objetiva e seriamente a fundamentar. Tão pouco a suporta o facto de, após a sua destituição, deste e de igual cargo que detinham em participadas da ré, os recorrentes tenham instaurado várias ações contra tais sociedades sem que em nenhuma delas tenham exercido o direito que por esta vieram exercer, desde logo porque a oportunidade do pedido de reconhecimento do direito a indemnização com fundamente em perda de ganhos é do seu titular e, além do mais, no caso pode precisamente ter advindo do resultado das demais ações que os recorrentes instauraram contra a ré e respetivas participadas após a sua destituição dos cargos de administradores, em junho de 2017 e nas quais aqueles seguramente depositaram expectativas de resultados que, eventualmente e de acordo com os respetivos interesses, poderiam prejudicar a pertinência da presente ação. Em suma, não foi alegada nem resulta dos autos uma qualquer conduta dos recorrentes com a virtualidade de criar na ré justificada convicção de que os recorrentes não iriam reclamar dela o direito à indemnização a que alude o art. 403°, n° 5 do CSC que, de resto, e para ser atendível, exigiria que a par com tal convicção alegasse e demonstrasse que o exercício do direito no timing que os recorrentes entenderam oportuno lhe acarretou maior desvantagem do que o seu exercício num tempo mais precoce. (…)

Da conclusão pelo direito dos reconvindos/recorridos a auferir retribuição da ré na qualidade de vogais do conselho de administração para o qual foram por ela nomeados, e da adequação do montante da remuneração mensal nessa qualidade auferida pelos recorrentes pelo montante individual de € 1.500,00, por diametralmente oposto nos pressupostos de que depende e resultado a que tende, resulta prejudicado o direito da reconvinte à restituição das quantias por si pagas aos reconvindos/recorridos a título de remuneração na qualidade de seus administradores e com fundamento na nulidade da mesma, direito cujo exercício sempre se teria como abusivo nos termos da apreciação supra do abuso de direito da reconvinte na invocação da nulidade da remuneração auferida pelos reconvindos/recorridos (para obstar ao exercício, reconhecimento e fixação da indemnização com fundamento na destituição sem justa causa), para os quais remetemos.”

Serve isto para significar que mesmo que não se visse no caso a impossibilidade da Ré suscitar por via do seu recurso subordinado a questão do abuso do direito por parte dos Autores, sempre essa questão teria acabado por ter sido objeto de apreciação. E essa apreciação apresenta-se juridicamente correta ao concluir pela inexistência do falado abuso do direito dos Autores.

Pois que se apresenta a todos os títulos evidente que, tal como já decidira a sentença da 1ª instância, a circunstância de existir todo um histórico de litigância entre as partes no âmbito da qual os Autores não suscitaram a questão da indemnização pela destituição nada tem de significativo para o que se discute no presente processo. Aos Autores é que competia definir (eventualmente até em função dos resultados dessa litigância) se e quando iriam agir contra a Ré como depois fizeram através da presente ação. Deste modo, em nada criaram à Ré - desde logo porque o exercício do direito no tempo está limitado por prazos de prescrição que, como bem aponta o acórdão recorrido, tiram cabimento a uma qualquer legítima expetativa no seu não exercício antes do respetivo decurso[3] - só porque deixaram passar entretanto cerca de um ano e meio, quaisquer expetativas legítimas que vieram a frustrar depois.


Quanto à questão da nulidade da fixação da remuneração dos Autores

Embora nada impeça que a administração das sociedades anónimas possa ser exercida de forma gratuita[4], estabelece o n.º 1 do art. 399.º do CSComerciais que “Compete à assembleia geral de accionistas ou a uma comissão por aquela nomeada fixar as remunerações de cada um dos administradores, tendo em conta as funções desempenhadas e a situação económica da sociedade.”

No mesmo sentido vão, aliás, os Estatutos da Ré, onde se convencionou que “As funções dos membros dos Conselhos de Administração (…) são remuneradas, cabendo a fixação das remunerações à Assembleia Geral ou a uma Comissão, eleita por aquela e composta por três accionistas”.

Portanto, é certo que as remunerações dos administradores da Ré não podiam ser estabelecidas por outras vias - nomeadamente por ato dos próprios administradores - sob pena de nulidade do ato desse estabelecimento por violação de norma legal imperativa (v. art.s 280.º, n.º 1 e 295.º do CCivil)[5]. As remunerações terão que ser deliberadas pelo órgão legalmente competente, deliberação essa que, de resto (e a existir, o que não é o que se passa no caso vertente), carece sempre de ser provada através da ata respetiva (art. 63.º do CSComerciais).

Sabe-se que por deliberação da Ré de 29 de novembro de 2016, mas sem que lhes tenha sido fixada qualquer remuneração, foram os Autores nomeados, a par de outros, para o conselho de administração da Ré para o quadriénio 2016/2019. Do mesmo passo que se sabe que posteriormente a essa assembleia geral de 29 de novembro de 2016 também não foi tomada deliberação pela assembleia geral da Ré sobre a atribuição de remuneração aos Autores para o quadriénio de 2016/2019. Ainda, vem dado como não provado que “o pagamento da remuneração aos autores foi decidida/aprovada pelos demais administradores e acionistas da ré”.

Portanto, podemos assentar em que se alguém determinou uma remuneração aos Autores esse alguém não foi seguramente o órgão societário competente para o efeito. O que implica a conclusão, aliás afirmada expressamente pelo acórdão recorrido (e pela sentença da 1ª instância) e sustentada pela Ré, de que o estabelecimento (fixação) da remuneração que os Autores vinham auferindo e que iriam auferir presumivelmente ao longo do quadriénio em curso aquando da destituição padece de nulidade.

Mas deverá essa nulidade ser declarada, como pretende a Ré, com a consequente denegação de qualquer direito à indemnização reclamada pelos Autores?

Cremos bem que não.

Exatamente como sustentaram os Autores e se defende no acórdão recorrido (e diferentemente do que se defendeu na sentença da 1ª instância), ao invocar a nulidade material (por ilegitimidade substancial) da referida fixação, a Ré está a exercer de forma abusiva o direito[6], por violação manifesta (evidente, patente, gritante) do vetor da boa-fé.

Aduz o acórdão recorrido, a propósito, o seguinte:

“ (…) senão antes, pelo menos desde 2014 - ano em que as contas do exercício de 2013 da ré foram elaboradas, aprovadas e inscritas no registo - os demais acionistas da ré (que também reuniam a qualidade de administradores) tomaram conhecimento dos montantes pagos aos recorrentes a título de remuneração a administradores, montantes e pagamentos que, independentemente de com eles concordarem ou não, pelo menos tacita ou passivamente continuaram a permitir nos anos e mandato subsequentes, pois que continuaram a ser processados nos exercícios seguintes e até à destituição dos recorrentes, sem que dos autos resulte que em algum momento aqueles tenham manifestado uma qualquer discordância ou oposição, não sendo irrelevante ao caso o facto de os quatro administradores da ré coincidirem com os quatro acionistas representativos de pelo menos 99,80% do capital social da ré, de o cargo de presidente do conselho de administração pertencer à segunda maior acionista, de os recorrentes não representarem a maioria dos acionistas da ré pois que, no conjunto, são titulares de ações correspondentes a apenas 35,90% (23,6%+12%) do respetivo capital social. Também não será despiciente referir que a remuneração que ao longo de mais de 4 anos e até à destituição dos recorrentes foi processada e paga pela sociedade, conforme o atestam os documentos juntos aos autos (recibos de remuneração e declarações de IRS), foi acompanhada do cumprimento, pela ré, das legais deduções (fiscal e social) e simultânea comunicação ao Estado do recebimento de tais valores pelos recorrentes a título de rendimentos que, assim, foram fiscalmente considerados - da banda da sociedade, como despesas da conta 6, e da banda dos autores, como rendimentos pessoais, com repercussão num e outro caso, embora em classes opostas (como gasto ou despesa para a sociedade, e como rendimento para os autores), no apuramento da matéria coletável e do imposto sobre os rendimentos (IRC e IRS) a pagar por cada um deles.

Nas circunstâncias descritas, a invocação da nulidade da remuneração efetivamente paga e recebida com vista à sua desconsideração, nomeadamente, para efeitos de indemnização dos danos decorrentes da destituição nos termos previstos pelo art. 403°, n° 5 do CSC, seria ao arrepio de um mínimo de coerência (de condutas e efeitos reais pelas mesmas produzidas nas esferas de cada uma das partes) apta a consubstanciar o exercício abusivo de direito, na modalidade de supressio, precisamente por colidir com a expectativa que o conjunto daquelas circunstâncias e condutas (por ação e omissão) são objetivamente idóneas a criar no espírito dos recorrentes, ou de quaisquer outros no seu lugar, no sentido de neles criar a convicção e confiarem que, perante a inércia, ‘permissividade’ ou ausência de oposição ou de qualquer outra reação dos demais administradores e acionistas ao longo de pelo menos cerca de três anos, a sociedade se iria abster de invocar a nulidade da remuneração que durante todo aquele tempo, e ‘quem de direito’, sabia ser paga pela ré aos recorrentes.

Assim sendo (…) sempre se imporia a correção do exercício do direito de a ré invocar a nulidade do seu pagamento (como causa impeditiva do direito a que os recorrentes se arrogam nos termos do art. 403°, n° 5 do CSC), para obviar ao desequilíbrio dos interesses em jogo e consequente iniquidade do concreto resultado a que o seu exercício conduziria, contrário à função (arquitectónica) social que ao direito é secularmente reconhecida.

Com esse desiderato, e sob a epigrafe abuso do direito, prevê o art. 334° do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Ao instituto do abuso de direito - apelidado como ‘válvula de escape’ - subjaz a ideia de um dever geral de agir segundo um comportamento de lealdade e correção que visa contribuir para a realização dos interesses legítimos das partes. Não se faz apelo a critérios casuísticos, nem ao sentimento de equidade ou prudente arbítrio do julgador; trata-se de apurar, a partir do contexto da lei (ou da convenção donde emerge o direito e a correspetiva obrigação), os critérios gerais objetivos que devem pautar o comportamento em qualquer relação especial de vinculação entre duas ou mais pessoas. Aceita (e impõe) o ordenamento jurídico que a segurança proporcionada pela lei não tem que implicar vinculação ao direito positivo. Só se dirá da justiça (do caso), quando a decisão dirimente faz coincidir a ideia de justiça intencionada na norma, à expressão de justiça concreta exigida no caso. Tudo se re(con)duz à ideia de não admitir que a lei se compadeça e dê cobertura a injustiças; por isso, não podendo prever todas as possíveis aplicações dos direitos que geral e abstratamente reconhece, ou partindo de pressupostos de exercício que em concreto poderão não existir, a figura jurídica do abuso do direito visa excluir legitimidade aos atos que, materialmente, contrariam a ideia de justiça que subjaz à norma (enquanto instrumento de regulação de e para a sociedade).

No caso, a invocação da nulidade da remuneração auferida pelos recorrentes como fundamento impeditivo, in totum, do direito à indemnização a que estes se arrogam com fundamento no art. 403°, n° 5 do CSC, para além de atentar: contra a boa fé, que se presume da banda de ambas as partes perante o estado de coisas que entre elas e com o conhecimento de quem de direito se prolongou e perdurou durante mais de um mandato; contra os bons costumes, por atentar contra um direito (à remuneração) que a realidade jurídico-empresarial tem como inerente ao cargo de administrador; mais atentaria contra o fim social ou económico do direito de invocar tal nulidade, posto que a norma em que se fundamenta (art. 399°, n° 1 do CSC) não visa a negação do exercício do direito previsto pelo art. 403°, n° 5 do CSC, mas sim obstar a que o montante da remuneração a pagar pela sociedade aos administradores fique na inteira disponibilidade e critério destes, e à margem do controlo, sindicância e poder de ajustamento da mesma pelos titulares do capital da sociedade obrigada ao seu cumprimento. Sendo que estas faculdades, a ré, através dos demais administradores e acionistas, não estava impedida de exercer, mas optou por não as exercer ao longo de pelo menos três anos, conformando-se com aquela prática remuneratória (que os elementos disponíveis nos autos não permitem ajuizar como desajustada/desadequada ao cargo, nem isso vem invocado pela ré) e, principalmente, e no mínimo, criando nos recorrentes a convicção de que com ela se conformava e conformou.”

Concordamos inteiramente com esta fundamentação do acórdão recorrido na parte em que interpreta como abusivo o exercício do direito do direito em causa por contrário aos ditames da boa-fé, no figurino da chamada supressio[7].

De acordo com o art. 334º do CCivil, é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé.

Está aqui em causa a boa-fé objetiva, sendo atendíveis os critérios que, no plano das relações intersubjetivas, estabelecem regras de conduta. Como é pacificamente aceite (assim, Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, p. 626), o exercício conforme à boa-fé envolve um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correção e lealdade, respeitando as razoáveis expetativas dos outros e a confiança que esses outros depositam na atuação alheia.

Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, pp. 323 e 324) expende que a supressio é, no fundo, uma forma de tutela da confiança do beneficiário, perante a inação do titular do direito. Mas por não possuir a precisão facultada pelo factum proprium, vai requerer a existência de circunstâncias colaterais que melhor alicercem a confiança do beneficiário. O não exercício prolongado, para ser relevante, deverá reunir elementos circundantes que permitam a uma pessoa normal, colocada na posição do beneficiário concreto, desenvolver a crença legítima de que a posição em causa não será exercida. O autor mais expende que tudo isso será imputável ao não exercente, no sentido de ser social e eticamente explicável pela sua inação, e que não se exige culpa, mas apenas uma imputação razoavelmente objetiva.

Ora, afigura-se como absolutamente intolerável que a Ré se queira prevalecer da nulidade decorrente da circunstância de não ter existido uma deliberação da respetiva assembleia geral (ou de qualquer comissão para o efeito nomeada pela assembleia geral) a fixar a remuneração dos Autores, quando afinal havia vários anos (pois que tal sucedia já desde o quadriénio anterior, mais propriamente pelo menos desde 2013) que sabia que essa remuneração vinha sendo praticada no seu seio e sempre se conformou com tal facto (o que de certo modo até se compreende, visto que os respetivos estatutos previam a remuneração dos cargos).

A este propósito importa observar que, como está expressamente provado, se trata de factos que eram do conhecimento dos demais administradores e acionistas da Ré[8], que, inclusivamente (e como aporta adicionalmente o acórdão recorrido), aprovaram contas societárias que refletiam os pagamentos das remunerações e o cumprimento por parte da Ré das inerentes obrigações fiscais e contributivas (Segurança Social). Isto significa objetivamente a intenção de não exercer o direito, gerando uma situação de confiança que importa tutelar. Perante o cenário factual aduzido pelo tribunal recorrido, e acima extratado, qualquer pessoa normal, colocada na posição dos beneficiários concretos (os Autores), desenvolveria a crença legítima de que a posição em causa (invocação da nulidade) não seria exercida.

Daqui que não possa ser feita valer a nulidade em questão, antes tendo que ser paralisados os seus efeitos jurídicos, tudo funcionando como se a nulidade não existisse. Sabido como é que a lei não fixa em concreto as consequências do abuso do direito (consequências essas que terão que ser estabelecidas caso a caso), antolha-se como evidente que a sanção que deve caber ao caso só pode ser precisamente essa.

Deste modo improcede o que, contra o que vem dito, se afirma nas conclusões XVIII a XXII e XXVII a XXXII (com a nota de que o que se decidiu no acórdão citado nesta última conclusão nada tem a ver com o que estamos a tratar, na medida em que não está aqui em causa qualquer nulidade de contrato por vício de forma).

Quanto à questão do direito dos Autores a indemnização pelo facto da destituição sem justa causa[9] e quanto à questão da restituição à Ré do que foi recebido pelos Autores (pedido reconvencional, na parte em que foi admitido)

No tocante à restituição à sociedade Ré, em decorrência da nulidade do ato que as possa ter determinado, das remunerações que foram recebidas pelos Autores (pedido reconvencional), resulta de imediato que tal pretensão improcede.

E improcede precisamente porque os efeitos da nulidade têm que ser paralisados, nos termos sobreditos.

Não operando os efeitos da nulidade (art. 289.º, n.º 1 do CCivil), necessariamente que nada há a restituir a título da nulidade.

O que significa que improcede o recurso aí onde (nomeadamente nas conclusões XXI e XXVII) se sustenta o contrário.

No tocante à indemnização reclamada pelos Autores:

Os Autores foram destituídos sem justa causa de membros do conselho de administração da Ré.

Não suscita dúvidas, nem isso está aqui sequer em discussão, que a sociedade Ré gozava do direito potestativo de destituir os Autores mesmo sem justa causa (cessação da relação de administração por assinalação unilateral ou ad nutum). A destituição é um facto lícito, conquanto deva gerar, verificados os demais pressupostos da obrigação de indemnização, o dever de indemnização[10].

Efetivamente, estabelece o n.º 5 do art. 403.º do CSComerciais que “Se a destituição não se fundar em justa causa o administrador tem direito a indemnização pelos danos sofridos, pelo modo estipulado no contrato com ele celebrado ou nos termos gerais de direito, sem que a indemnização possa exceder o montante das remunerações que presumivelmente receberia até ao final do período para que foi eleito.”

Parece ser de entender que, diferentemente do que sucede em outros tipos de sociedades comerciais (v. a propósito os art.s 192.º, n.º 5 e 255.º, n.º 1 do CSComerciais), nas sociedades anónimas só se poderá falar num direito à remuneração dos administradores pela positiva (e não por defeito), isto é, se e quando o órgão competente deliberar no sentido de uma determinada remuneração no quadro do n.º 1 do art. 399.º do mesmo Código. Tudo sem prejuízo de por contrato de administração (contrato entre a sociedade e o administrador) ou por prévia determinação estatutária se estabelecer ou fixar[11] desde logo a remuneração devida (direito a receber uma certa remuneração)[12]. Nesta base, pode dizer-se que a remuneração não funciona como elemento essencial do ato constitutivo da relação de administração[13]

No caso vertente resulta como certo que não foi celebrado entre o Autor e a Ré qualquer contrato (anterior ou posterior à destituição) que tenha disposto sobre a indemnização por destituição sem justa causa, pelo que é nos termos gerais de direito que a indemnização poderá acaso ter lugar.

Não suscita dúvidas que é ao administrador destituído que compete alegar e provar os prejuízos a indemnizar (art. 342.º, n.º 1 do CCivil). Esses prejuízos não se presumem nem podem consistir simplesmente na mera perda das retribuições vincendas[14]. Como se aponta no citado acórdão deste Supremo de 11 de julho de 2006, o direito à indemnização pressupõe a existência de danos e, quanto aos danos patrimoniais, vale a teoria da diferença, sendo por isso necessária a alegação e prova de factos demonstrativos de que a situação real do administrador após a destituição é mais gravosa do que aquela em que se encontraria se não tivesse ocorrido a destituição. Parece, porém, que essa prova se basta com a demonstração de que o destituído simplesmente não auferiu outros rendimentos profissionais de igual ou superior montante por outras vias. Excessiva parecerá a exigência de impor ao destituído a obrigação de provar que procurou diligentemente e não logrou obter outra fonte de rendimentos compensatória do dano[15].

Ora, a factualidade que o acórdão recorrido fez aportar para o caso demonstra que se fez prova bastante de que o Autor AA sofreu efetivamente um prejuízo patrimonial em decorrência da destituição sem justa causa de que foi alvo, sendo esse prejuízo no montante apurado pelo tribunal recorrido.

Sobre esta matéria pode ler-se do acórdão recorrido o seguinte:

“(…) conforme factos que sob os pontos NN. e ss. e com fundamento naqueles documentos foram aditados à decisão de facto, após a destituição do cargo de administrador da ré os rendimentos do recorrente AA, contribuinte n° …., sofreram redução correspondente à remuneração que ali auferia, conclusão que se extrai por recurso a meras operações aritméticas, considerando que para o ano de 2016 declarou rendimentos da categoria A, correspondendo uma das parcelas a pensão paga pelo Instituto da Segurança Social (código 403), e a outra aos rendimentos pagos pela ré no montante de € 21.000,00 (= € 1.500,00x14); já na declaração de rendimentos do ano de 2017, mantém-se a pensão do Instituto da Segurança Social, mas os rendimentos de trabalho dependente, correspondentes aos pagos pela ré, ascendem apenas ao montante de € 9.000,00, que corresponde a seis meses de remuneração no valor mensal de € 1.500,00, compatível com a data em que foi destituído, tendo deixado de auferir remuneração paga pela ré a partir de julho de 2017, inclusive. Da declaração de rendimentos do ano de 2018 consta apenas rendimento proveniente da pensão paga pelo ISS, consignando-se a irrelevância da variação dos valores anuais desta na aferição da redução dos rendimentos de que disporia não fosse a destituição, na precisa medida em que já a recebia e continuaria a recebê-la cumulativamente com a retribuição da ré caso se mantivesse no cargo.

Na ausência de outros elementos de facto que contrariem o que a normalidade e natureza das coisas permite compatibilizar e extrair do número de contribuinte do recorrente AA (…..) e do facto de este receber pensão da Segurança Social, designadamente, quanto à sua idade, bem como do facto de as empresas das quais foi destituído terem sido criadas pela sua família e de as mesmas constituírem o centro da sua vida profissional, outra coisa não será de admitir e concluir senão pela ausência, indisponibilidade ou inacessibilidade de o recorrente AA obter nova fonte de rendimentos, viável e real, suscetível de substituir ou preencher os que deixou de ganhar na ré desde 01.07.2017 até 31.12.2019, num total de € 54.000,00 ilíquido, correspondente a €1.500,00 x 36, sendo €12.000,00 referente às retribuições e subsídios de férias e de natal que teria recebido de julho a dezembro de 2017, e €21.000,00 (x2) referente às retribuições e subsídios de férias e de natal que teria recebido em cada um dos anos de 2018 e 2019.”

Não pode deixar de se concordar com esta fundamentação, que (e repetindo) demonstra que o Autor AA sofreu um prejuízo efetivo na sua esfera patrimonial em decorrência da destituição de que foi alvo, por isso que não logrou obter no período em causa rendimentos profissionais que de alguma forma compensassem aquilo de que ficou privado de receber por causa dessa destituição e que iria receber ao longo desse período.

Donde, e visto o disposto no art. 403.º, n.º 5 do CSComerciais e nos art.s 562.º e seguintes do CCivil, tem esse Autor o direito a que a Ré o indemnize na quantia de €54.000,00 (abatida das deduções estabelecidas no acórdão recorrido, e cuja bondade não vem discutida no presente recurso), acrescendo juros de mora.

O que significa que improcede tudo aquilo que, em contrário do que fica dito, consta espartilhado nas conclusões do recurso, designadamente nas conclusões X a VVII, XXIII a XXVI (com a nota de que o decidido no acórdão citado nesta última conclusão está em linha com o presente acórdão), e XXXVI e XXXVII.

Quanto à matéria da conclusão XXXVIII

Pelo que fica dito resulta que o acórdão recorrido não violou nenhuma das normas legais e constitucionais citadas nesta conclusão. Aliás, a alusão à violação dos art.s 13.º, 20.º e 86.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa apresenta-se como pouco menos que ininteligível. Não se logra inteligir o que é que o princípio da igualdade, o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva e o comando estabelecido no n.º 2 do art. 86.º têm a ver com o caso aqui em discussão, na certeza de que o que foi decidido nenhuma conotação tem com quem quer que seja nas mesmas circunstâncias e tenha recebido um tratamento diferente (mais favorável), não foi à Recorrente cerceado o direito de acesso à justiça e o Estado em nada se imiscuiu na sua gestão.

Improcede, pois, o recurso, sendo de manter o acórdão recorrido.

IV - DECISÃO

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.

Regime de custas:

A Recorrente é condenada nas custas do presente recurso de revista.

                                                           +

Lisboa, 22 de setembro de 2021

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

                                                           ++

Sumário (art.s 663.º, n.º 7 e 679.º do CPCivil).

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[1] O Autor BB também chegou a recorrer de revista, mas, por decisão transitada em julgado (pois que contra ela não se reclamou nos termos do art. 643.º do CPCivil), o recurso não foi admitido no tribunal recorrido.
[2] Até porque se poderia eventualmente entender que o disposto no n.º 3 do art. 193.º do CPCivil deveria ter aqui aplicação.
[3] De outro modo pôr-se-iam em causa os fundamentos do instituto da prescrição. V. a propósito Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, III, p. 288.
[4] Mas não será de esperar que assim aconteça normalmente. Como observa Menezes Cordeiro (Manual de Direito das Sociedades, I, 2ª ed., p. 880) “A administração de sociedades comerciais tem vindo a ser profissionalizada. Trata-se de um fenómeno há muito adquirido nas sociedades anónimas, paradigma de modelo societário. O primeiro direito do administrador será, assim, o direito à retribuição.”
[5] Neste sentido, Coutinho de Abreu, Governação das Sociedades Comerciais, 2ª ed., p. 84; Inês de Sousa Guedes, A Remuneração dos Administradores, Perspectiva a partir da crise de 2008, p. 27); acórdão da Relação do Porto de 12 de abril de 2012, processo n.º 9836/09.6TBMAI.P1, disponível em www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de março de 2014, processo n.º 9836/09.6TBMAI.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de abril de 1997, processo n.º 96B828, disponível (sumário apenas) em www.dgsi.pt.
[6] Rectius, a posição jurídica (inerente à nulidade (v. a propósito Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV [2005], p. 242).
[7] Já se afigura não serem de subscrever os fundamentos do acórdão na parte em que se reporta aos bons costumes (os quais devem ser vistos para os fins em causa como sendo aqueles que se referem às regras de comportamento no domínio de relações familiares e sexuais, e às regras deontológicas) e ao fim social ou económico do direito (os quais devem ser vistos para os fins em causa como sendo aqueles que se referem aos atos chicaneiros, aos atos emulativos e aos atos desnecessariamente egoísticos no confronto dos interesses coletivos). Nada disto está aqui em causa. (V. a propósito Carvalho Fernandes, ob. cit. no texto, pp. 624, 625 e 626).
[8] Sendo até de referir, porque não deixa de ter aqui o seu significado, que esses “demais administradores e acionistas da Ré” são filha e irmã dos Autores e o companheiro desta, tal como alegado pelos Autores e não contestado pela Ré. Trata-se, portanto, de uma sociedade de matriz familiar.
[9] Esta questão interessa na realidade apenas ao Autor AA, pois que no que respeita ao outro Autor (BB) está definitivamente decidido que não goza de direito indemnizatório contra a Ré. Nessa parte o acórdão recorrido não foi atempadamente impugnado pelo interessado pelo que transitou em julgado.
[10] Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, II, 5ª ed., p. 583, expende: “Da destituição-facto lícito não decorre logicamente o dever de indemnização. Não obstante, a lei portuguesa consagra justamente tal dever”. Tudo à semelhança, mais observa o autor, do consagrado para outras situações de responsabilidade civil por factos lícitos, como nas situações dos art.s 1172.º e 1229.º do CCivil e do art. 245.º do CComercial. Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, III, p. 118, referindo-se embora à destituição dos gerentes das sociedades por quotas aduz: “a sociedade pode destituí-lo sem invocar causa justificativa e assim extinguir a relação entre ambos existente, mas não pode, sem injustiça grave, deixar de o indemnizar quando ele não tenha dado causa à destituição”.
[11] A nosso ver, e contrariamente ao que se entende no acórdão recorrido, não há que ver aqui realidades diferentes. O estabelecimento da remuneração é simplesmente a sua fixação e vice-versa.
[12] V. a propósito Coutinho de Abreu, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, VI, comentário ao artigo 399.º: “O art. 399.º, n.º 1, não impõe a remuneração; determina a quem compete fixá-la – quando devida. Não parece que haja razões suficientes para impedir a possibilidade de o estatuto social prever a gratuidade dos cargos (…) de administração”.
[13] Neste sentido, Brito Correia, Os Administradores de Sociedades Anónimas, p. 494.
[14] Neste sentido, Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais-Valores Mobiliários e Mercados, p. 277. Cfr., concordantemente, a jurisprudência citada por Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 7ª ed., p. 869. No mesmo sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de julho de 2006, Coletânea de Jurisprudência-Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2006, tomo II, p. 141 e sgts.
[15] Segundo Coutinho de Abreu (apud Paulo Olavo Cunha, ob. e loc. citados), e subscreve-se este ponto de vista, caso a sociedade pretenda obter a redução da indemnização, alegando que o administrador destituído só não assumiu um novo cargo por falta de diligência (normal) na sua atuação, então caber-lhe-á (à sociedade) o ónus da prova, em conformidade com o disposto no art. 342.º, n.º 2 do CCivil.