DECLARAÇÕES DE TESTEMUNHA FALECIDA
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
Sumário


As declarações prestadas por testemunha, entretanto falecida, no Ministério Público mas perante oficial de justiça e não perante Magistrado do Ministério Público, lidas em audiência, constituem prova proibida, não podendo ser valoradas pela decisão recorrida, como foram.

Texto Integral



Processo nº 438/19.0PBBJA.E1

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Processo nº438/19.0PBBJA, na sessão de julgamento do dia 23 de Outubro de 2020, “findas as declarações do demandante acima identificado, foi pedida a palavra pela Digna Procuradora da República e, após lhe ser concedida, no uso da mesma declarou requerer, nos termos do art. 356º, n.º 2, al. b) e n.º 5 do Código de Processo Penal, a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha (…), entretanto falecida, constante de fls. 78 e 79 dos autos.


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Dada a palavra às Ilustres mandatárias presentes, pela mandatária do demandante foi dito nada ter a opor ao requerido, enquanto que a mandatária dos arguidos opôs-se ao requerido pelo Ministério Público.”, tendo sido proferido despacho com o seguinte teor (transcrição):

"Nos termos do n.º 4 do art. 356º do Código de Processo Penal, é permitida a reprodução ou leitura de declarações prestadas perante a autoridade judiciária se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento.

Do auto de inquirição de fls. 78 e 79, decorre que a testemunha (...), entretanto falecida, prestou declarações em sede de Inquérito, perante o Ministério Público, razão pela qual se defere o requerido pelo Ministério Público, passando-se de imediato à leitura das declarações prestadas pela aludida testemunha.

Notifique."


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Inconformado com a decisão, o arguido (…) interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1- No dia 23.10.2020, foi pela Digna Magistrada do MP requerido, nos termos do artigo 356.º, n.º 2 al. b) e n.º 5 do CPP, a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha (...), entretanto falecida, constante de fls. 78 e 79 dos autos.

2- Após consulta dos autos e compulsadas as declarações de fls. 78 e 79 verificou a defesa que as mesmas haviam sido prestadas no MP mas perante oficial de justiça e não perante Magistrado do MP, pelo que se opôs ao requerido pelo MP.

3- O Mmo. Juiz, na sequência do requerido pelo MP e da oposição da defesa, proferiu o seguinte Despacho:

“Nos termos do n.º 4 do artigo 356.º do Código de Processo Penal, é permitida a reprodução ou leitura de declarações prestadas perante autoridade judiciária se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento.

Do auto de inquirição de fls. 78 e 79, decorre que a testemunha (…), entretanto falecida, prestou declarações em sede de inquérito, perante o Ministério Público, razão pela qual se defere o requerido pelo Ministério Público, passando-se de imediato à leitura das declarações prestadas pela aludida testemunha”(sublinhado da nossa inteira responsabilidade)

5 – De imediato e na própria acta foi interposto recurso deste despacho, cfr. consta da acta de 23.10.2020.

6 – Em nosso entender existe aqui um lapso gravíssimo porquanto entende o Tribunal que as declarações prestadas perante o oficial de justiça, são declarações prestadas perante autoridade judiciária.

7 - Em nosso entender autoridade judiciária são tão só os magistrados quer os judiciais quer os do Ministério Público, ou dito de outro modo, o conceito de autoridade judiciária abrange somente magistrados sejam estes juízes ou procuradores, tal conceito não abrange oficiais de justiça.

9 – O Tribunal a quo ao admitir a leitura daquelas anteriores declarações – que não são objeto de prova – perante a não obtenção prévia da concordância de quem tinha legal poder para o permitir ou impedir, por entender que tal concordância não era legalmente necessária e ou exigível, violou o disposto no nº 4 do art.º 20º da CRP e o art.º 32º da CRP.

10 - De facto, o Tribunal a quo, ao admitir a leitura das declarações prestadas em inquérito por aquela testemunha nos moldes em que o fez desequilibrou o processo a favor da acusação, tendo assegurado um tratamento de favor ou privilégio para a acusação (e, consequentemente, discriminatório para a defesa), não tendo garantido o cumprimento do princípio do contraditório.

11 - Por todo o exposto, e atento o disposto no art.º 32º, nºs 1, 2 e 5 da CRP e nos artigos 127º, 355º, 356º, nºs 1, 2, al. b) e 5 e 323º, al. f), estes do CPP, mal andou o Tribunal a quo ao ter procedido à leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas pela referida testemunha perante o oficial de justiça, porquanto, não tendo havido acordo para as referidas leituras entre os sujeitos processuais, estava-lhe vedado, por ser legalmente inadmissível, a leitura das mesmas.

12 - Assim sendo, o despacho de que ora se recorre, deveria ter adotado um entendimento normativo do art.º 356º nº 2, alínea b) e nº 5 do C.P.P., em consonância com o disposto no art.º 355º nº 1 do C.P.P., no sentido de que não tendo os arguidos dado o seu consentimento à leitura, requerida pelo MP, de declarações produzidas, em inquérito, por testemunha perante o oficial de justiça, não pode, nem na situação prevista no n.º 4 nem em qualquer das situações previstas no art.º 356º, n.º 3 do CPP – ser admitida a sua leitura em audiência de julgamento e subsequente valoração de tais declarações.

13 - Ao ter um entendimento totalmente oposto àquele, tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação das garantias de defesa consagradas pelo art.º 32º nº 1 da C.R.P. e o princípio do processo equitativo salvaguardado pelo art.º 20º nº 4 da C.R.P. e pelo art.º 6º da C.E.D.H.

14 - Tendo estes argumentos em conta, não podemos deixar de anotar que acima deles está a lógica interna do CPP que limita a valoração de prova adquirida de forma ilegal e reproduzida (ou examinada) em audiência quando a sua reprodução não é legalmente permitida.

15 - Assim sendo, e para além de todo o exposto, toda a prova extraída da leitura efetuada em julgamento das declarações prestadas por aquela testemunha em sede de inquérito são legalmente inadmissíveis, nos termos do art.º 125º do CPP, por tal leitura ser inadmissível, nos termos do art.º 125º do CPP, por tal leitura ser inadmissível, nos termos do art.º 356º, nº 2 alínea b) e nº 5 do CPP sem a necessária concordância do arguido.

16 - Não poderia desta forma o tribunal recorrido valorar tal depoimento, devendo o mesmo ser declarado inválido, por violação do art.º 355º do CPP, violou também o Douto Tribunal de que ora se recorre o princípio da imediação, que nos diz que são inutilizáveis as provas que não tiverem sido produzidas em audiência, com exceção das previstas no art.º 356º e 357º do CPP.

17 - Assim, se para formar decisivamente a sua convicção quanto à participação do arguido nos factos que deu como provados, o Tribunal a quo serviu-se de provas nulas e proibidas pelas seguintes normas legais art.º 125º, 128º, 355º e 356º todos do CPP, tal decisão/condenação será também ela nula.

18 - Face ao supra exposto e sem necessidade de mais considerandos, deve a norma constante do art.º 356º nº 4 do CPP ser declarada inconstitucional, quando interpretada no sentido de que a leitura dos depoimentos testemunhais prestados em sede de inquérito perante oficial de justiça, integra o conceito de autoridade judiciária, pois a defesa entende que o conceito de autoridade judiciária abrange apenas Magistrados.

19 – A nossa jurisprudência assim o tem entendido “Com efeito, o alargamento em causa, além de respeitar apenas às diligências realizadas por magistrados que a própria lei processual qualifica como “autoridade judiciária” (), encontra-se balizado – e, por isso, também justificado por razões atendíveis – pelas funções previstas nas alíneas a) e b), do n.º 3, do artigo 356.º do CPP (…). Trata-se, assim, de um importante instrumento auxiliar no avivamento da memória de quem presta declarações em audiência ou na aferição da credibilidade desses depoimentos (cfr. o Acórdão n.º 90/2013), cuja importância para a descoberta da verdade material não pode ser desprezada.”

20 – Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre esta questão– Ac.TC n.º 24/2016 de 19.1.2016 (retificado pelo Ac. 88/2016).

Traços essenciais da decisão: A Constituição ao assegurar todas as garantias de defesa do arguido, a estrutura acusatória do processo criminal e o princípio do contraditório (cfr. o respetivo artigo 32.º, n.ºs 1, 2 e 5), impõe, como princípio, que toda a prova em que se funde a convicção do julgador seja produzida na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de natureza acusatória (os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova); mas a respetiva concretização em regras processuais, incluindo as exceções a admitir, já é matéria que se insere no espaço da liberdade de conformação do legislador.

O legislador pretendeu objetivamente reforçar a importância da consistência e seriedade das declarações prestadas durante o inquérito perante magistrados do Ministério Público, destacando o papel destes por comparação com os órgãos de polícia criminal e prevenindo táticas de diversão ou de manipulação por parte dos declarantes. Recorde-se que as declarações prestadas perante autoridade judiciária são prestadas sob juramento e vinculadas à verdade (cfr. os artigos 91.º, n.º 3, e 132.º, n.º 1, alíneas b) e d), ambos do CPP).

21 – Pelo que o despacho de que ora se recorre proferido pelo Mmo. Juiz na acta de 23.10.20 é nulo, ilegal e inconstitucional, pelos motivos e normas supra indicadas, devendo o mesmo ser substituído por outro que indefira a leitura e valoração das declarações prestadas pela testemunha.

Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis que v. Exas. Doutamente suprirão, deverá o recurso interposto merecer provimento e o Despacho proferido pelo Mmo. Juiz ser alterado nos termos supra peticionados.


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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pugnando pela respetiva procedência e formulando as seguintes conclusões:

A - Conforme supra se expôs, mantém o arguido, ora recorrente interesse na subida do recurso por si interposto na acta da sessão de julgamento do dia 20 de Outubro de 2020, conforme resulta da referida acta, tendo o referido recurso interposto sido admitido, a subir a final, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, pelo que vem o arguido manifestar expressamente nos termo do n.º 5 do artigo 412.º do CPP, interesse na subida do mesmo.

B - Foi o arguido acusado e condenado pelo crime de detenção de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143.º n.º 1 do Cód. Penal. Ora como facilmente se alcançará infra, o arguido não cometeu o crime pelo qual foi acusado e injustamente condenado, pelo que deverá a final ser absolvido do mesmo.

C - O douto Tribunal dá como provado o facto descrito nos pontos 1., 3. e 4., da matéria de facto dada dor provada, pontos estes que impugnam devendo os mesmos ser dados como não provados, porquanto inexiste prova que os factos tenham sido cometidos pelo recorrente.

D - Uma vez que entende que o depoimento do alegado ofendido/lesado cumulado com a prova proibida, a qual se consubstancia na valoração de depoimento cuja leitura em julgamento é proibida, é suficiente para se dar como provados os factos, e tal leitura não é nem legal nem constitucional.

E - Tendo o Tribunal a quo, fundamentado em sede de motivação a conclusão a que chegou que tal leitura era permitida e válida, servido para fundamentar a convicção do Tribunal na condenação do arguido, e como já expusemos no recurso que se interpôs em acta no dia 23.10.2020, tal leitura é ilegal e consubstancia prova proibida.

F - Em suma e conforme já advém do recurso anteriormente interposto, em acta, entendemos que as declarações prestadas em sede de inquérito por testemunha perante pessoa que não seja Magistrado, seja do MP seja Judicial, não podem ser lidas em sede de audiência de julgamento sem a anuência de todas as partes, não podendo por isso ser valoradas, não permitindo deste modo a condenação do arguido, tendo o Tribunal decidido em nítida violação da lei.

G - A leitura ou reprodução em audiência das declarações anteriormente prestadas pelas testemunhas perante o oficial de justiça, nos termos do 356º, n.º 4, exige necessariamente, nos termos do n.º 5 a concordância do arguido (exigência da alínea b) do nº 2 para a qual remete a parte inicial do nº 5), sob pena de estarmos perante proibição da prova obtida.

H - No caso em apreço, e relativamente à leitura em audiência, das declarações prestadas pela testemunha supra identificada, não houve consenso na audiência para a sua leitura como exigido pelo n.º 2, alínea b) e nº 5 ambos do art.º 356º do Código de Processo Penal, pelo que a leitura das referidas declarações em audiência de julgamento constituiu um ato não permitido por lei, pois tal leitura só seria possível com o consentimento de todos os sujeitos processuais, incluindo os arguidos, e esta anuência inexistiu in casu.

I - O Tribunal a quo ao admitir a leitura daquelas anteriores declarações – que não são objeto de prova – perante a não obtenção prévia da concordância de quem tinha legal poder para o permitir ou impedir, por entender que tal concordância não era legalmente necessária e ou exigível, violou o disposto no nº 4 do art.º 20º da CRP e o art.º 32º da CRP.

J - De facto, o Tribunal a quo, ao admitir a leitura das declarações prestadas em inquérito por aquela testemunha nos moldes em que o fez desequilibrou o processo a favor da acusação, tendo assegurado um tratamento de favor ou privilégio para a acusação (e, consequentemente, discriminatório para a defesa), não tendo garantido o cumprimento do princípio do contraditório.

K - Por todo o exposto, e atento o disposto no art.º 32º, nºs 1, 2 e 5 da CRP e nos artigos 127º, 355º, 356º, nºs 1, 2, al. b) e 5 e 323º, al. f), estes do CPP, mal andou o Tribunal a quo ao ter procedido à leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas pela referida testemunha perante o oficial de justiça, porquanto, não tendo havido acordo para as referidas leituras entre os sujeitos processuais, estava-lhe vedado, por ser legalmente inadmissível, a leitura das mesmas.

L - Assim sendo, o despacho de que ora se recorre, deveria ter adotado um entendimento normativo do art.º 356º nº 2, alínea b) e nº 5 do C.P.P., em consonância com o disposto no art.º 355º nº 1 do C.P.P., no sentido de que não tendo os arguidos dado o seu consentimento à leitura, requerida pelo MP, de declarações produzidas, em inquérito, por testemunha perante o oficial de justiça, não pode, nem na situação prevista no n.º 4 nem em qualquer das situações previstas no art.º 356º, n.º 3 do CPP – ser admitida a sua leitura em audiência de julgamento e subsequente valoração de tais declarações.

M - Ao ter um entendimento totalmente oposto àquele, tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação das garantias de defesa consagradas pelo art.º 32º nº 1 da C.R.P. e o princípio do processo equitativo salvaguardado pelo art.º 20º nº 4 da C.R.P. e pelo art.º 6º da C.E.D.H.

N - Tendo estes argumentos em conta, não podemos deixar de anotar que acima deles está a lógica interna do CPP que limita a valoração de prova adquirida de forma ilegal e reproduzida (ou examinada) em audiência quando a sua reprodução não é legalmente permitida.

O - Assim sendo, e para além de todo o exposto, toda a prova extraída da leitura efetuada em julgamento das declarações prestadas por aquela testemunha em sede de inquérito são legalmente inadmissíveis, nos termos do art.º 125º do CPP, por tal leitura ser inadmissível, nos termos do art.º 125º do CPP, por tal leitura ser inadmissível, nos termos do art.º 356º, nº 2 alínea b) e nº 5 do CPP sem a necessária concordância do arguido.

P - O Douto Tribunal de que ora se recorre invoca, o Ac. proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto no proc n.º 1187/10.0TAVCD.P1, a fim de tentar viabilizar a condenação do ora recorrente, mas não lhe assiste qualquer razão, porquanto o Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto refere expressamente que, para poder ser lido e valorado o depoimento prestado em sede de inquérito, tal depoimento tem de ser prestado perante autoridade judiciária.

Q - Conforme já explicamos à exaustão, no recurso interposto em acta e que sobe agora com o presente, o oficial de justiça, não é Magistrado, portanto não é autoridade judiciária, não podendo por conseguinte tal depoimento servir para suportar a condenação ilegal e inconstitucional do arguido.

Concluindo, não tendo as declarações/depoimento sido prestadas perante Magistrado, ou seja, perante autoridade judiciária, não podem as mesmas, tendo havido oposição, servirem para fundamentar a condenação do arguido.

R - Existe nítida violação do princípio do contraditório, não podendo a condenação do arguido subsistir, devendo o mesmo ser absolvido como é de justiça. Não basta a palavra do ofendido, se não mal estaríamos, pois tendo em conta que agora o alegado ofendido passou também a não gostar da ora subscritora, nada o impede de futuramente efectuar denuncia contra a mesma e esta vir a ser condenada apenas com base na versão do alegado ofendido, basta que não consiga explicar e demonstrar que naquele momento em concreto era impossível se encontrar naquele local.

S - Ora a exigência de ser o arguido a demonstrar que não cometeu o crime é uma nítida violação do principio in dubio pro reo, e não basta a apalavra do alegado ofendido para se dar como provado que os factos ocorreram, ou sequer que o arguido se encontrava naquele dia e hora naquele local, o arguido não se recorda onde estava, nem tal lhe é exigido, pois não se tratando de uma data especial, é normal que o comum dos mortais não se recorde de onde e com quem se encontrava em determinado dia, e determinada hora.

T - Não pode a presente condenação subsistir, pois tal condenação dará aso a muitas outras condenações futuras, pois finalmente o arguido descobriu, logo após a prolação da sentença, o porquê de tanto rancor.

U - Trata-se de um erro de perceção da parte daquela família pois entendem que o ora recorrente causou a prisão de um familiar, não compreendendo que o mesmo se encontra preso e não lhe foi aplicado o perdão da Lei 9/20 porquanto o mesmo foi condenado por crime de resistência e coação a funcionário, e que a sua actual reclusão nada tem a ver com o recorrente.

V - Assim que saiu da sala, após a prolação da presente sentença, foi o recorrente responder a um outro processo em que também é acusado por membros da mesma família por alegadamente ter ameaçado, ainda não se conseguiu descobrir quem.

W - De facto, parece-nos que a ameaça velada que fizeram que só parariam quando o recorrente estivesse preso, é levada muito a sério pelos alegados ofendidos. Não pode o ora recorrente passar a sua vida toda monitorizando e apontando cada segundo da sua vida a fim de poder depois fazer a prova da sua inocência. Chega!

X - Tem de parar de imediato e cumprir-se o que é Justo, absolvendo-se o ora recorrente, porquanto este não praticou qualquer crime, fazendo-se deste modo, Douta e Costumada Justiça.

Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis que v. Exas. Doutamente suprirão, deverá o recurso interposto merecer provimento e o Recorrente ser absolvido, fazendo-se assim Douta e Costumada Justiça.


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Após realização da audiência de discussão e julgamento, por sentença de 6 de novembro de 2020, o Tribunal decidiu:

“A - No âmbito criminal:

a) Absolver o arguido (…) da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, do qual vinha acusado;

b) Condenar o arguido (…) da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,50 (cinco euros e cinquenta), o que perfaz a quantia total de €825,00.

c) Condenar o arguido (…) no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em duas UC;

d) Consigna-se que o termo de identidade e residência prestado pelo arguido (…) manter-se-á, caducando apenas com a extinção da pena aplicada na presente decisão – cfr. artigo 214.º, n.º 1, al. e) do Código de Processo Penal;

e) Consigna-se que o arguido não sofreu qualquer dia de privação de liberdade à ordem deste processo – cfr. artigo 80.º do Código Penal.


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B – No âmbito dos pedidos de indemnização civil:

a) Absolver o arguido (…) de todos os pedidos de indemnização civil contra si deduzidos pelo demandante (…) e pela Unidade Local de Saúde do (...), EPE;

b) Julgar parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante (…) contra o arguido/demandado (...) e, em consequência, condena-se o demandado a pagar a (…) a quantia de €700,00 (setecentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a presente data, 06.11.2020, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado;

c) Julgar totalmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante Unidade Local de Saúde do (...), EPE. contra o arguido/demandado (...) e, em consequência, condena-se o demandado a pagar ao demandante a quantia de €85,91 (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data de notificação do pedido de indemnização civil contra si deduzido, até efectivo e integral pagamento;

d) Custas processuais a cargo do arguido e de (…), na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que este último beneficia;

e) Não são devidas custas do pedido de indemnização civil formulado pela Unidade Local de Saúde do (...), EPE, uma vez que o montante de ambos se mostra inferior a 20 UC.”


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Inconformado com esta decisão, o arguido (...) interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

A - Conforme supra se expôs, mantém o arguido, ora recorrente interesse na subida do recurso por si interposto na acta da sessão de julgamento do dia 20 de Outubro de 2020, conforme resulta da referida acta, tendo o referido recurso interposto sido admitido, a subir a final, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, pelo que vem o arguido manifestar expressamente nos termo do n.º 5 do artigo 412.º do CPP, interesse na subida do mesmo.

B - Foi o arguido acusado e condenado pelo crime de detenção de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143.º n.º 1 do Cód. Penal. Ora como facilmente se alcançará infra, o arguido não cometeu o crime pelo qual foi acusado e injustamente condenado, pelo que deverá a final ser absolvido do mesmo.

C - O douto Tribunal dá como provado o facto descrito nos pontos 1., 3. e 4., da matéria de facto dada dor provada, pontos estes que impugnam devendo os mesmos ser dados como não provados, porquanto inexiste prova que os factos tenham sido cometidos pelo recorrente.

D - Uma vez que entende que o depoimento do alegado ofendido/lesado cumulado com a prova proibida, a qual se consubstancia na valoração de depoimento cuja leitura em julgamento é proibida, é suficiente para se dar como provados os factos, e tal leitura não é nem legal nem constitucional.

E - Tendo o Tribunal a quo, fundamentado em sede de motivação a conclusão a que chegou que tal leitura era permitida e válida, servido para fundamentar a convicção do Tribunal na condenação do arguido, e como já expusemos no recurso que se interpôs em acta no dia 23.10.2020, tal leitura é ilegal e consubstancia prova proibida.

F - Em suma e conforme já advém do recurso anteriormente interposto, em acta, entendemos que as declarações prestadas em sede de inquérito por testemunha perante pessoa que não seja Magistrado, seja do MP seja Judicial, não podem ser lidas em sede de audiência de julgamento sem a anuência de todas as partes, não podendo por isso ser valoradas, não permitindo deste modo a condenação do arguido, tendo o Tribunal decidido em nítida violação da lei.

G - A leitura ou reprodução em audiência das declarações anteriormente prestadas pelas testemunhas perante o oficial de justiça, nos termos do 356º, n.º 4, exige necessariamente, nos termos do n.º 5 a concordância do arguido (exigência da alínea b) do nº 2 para a qual remete a parte inicial do nº 5), sob pena de estarmos perante proibição da prova obtida.

H - No caso em apreço, e relativamente à leitura em audiência, das declarações prestadas pela testemunha supra identificada, não houve consenso na audiência para a sua leitura como exigido pelo n.º 2, alínea b) e nº 5 ambos do art.º 356º do Código de Processo Penal, pelo que a leitura das referidas declarações em audiência de julgamento constituiu um ato não permitido por lei, pois tal leitura só seria possível com o consentimento de todos os sujeitos processuais, incluindo os arguidos, e esta anuência inexistiu in casu.

I - O Tribunal a quo ao admitir a leitura daquelas anteriores declarações – que não são objeto de prova – perante a não obtenção prévia da concordância de quem tinha legal poder para o permitir ou impedir, por entender que tal concordância não era legalmente necessária e ou exigível, violou o disposto no nº 4 do art.º 20º da CRP e o art.º 32º da CRP.

J - De facto, o Tribunal a quo, ao admitir a leitura das declarações prestadas em inquérito por aquela testemunha nos moldes em que o fez desequilibrou o processo a favor da acusação, tendo assegurado um tratamento de favor ou privilégio para a acusação (e, consequentemente, discriminatório para a defesa), não tendo garantido o cumprimento do princípio do contraditório.

K - Por todo o exposto, e atento o disposto no art.º 32º, nºs 1, 2 e 5 da CRP e nos artigos 127º, 355º, 356º, nºs 1, 2, al. b) e 5 e 323º, al. f), estes do CPP, mal andou o Tribunal a quo ao ter procedido à leitura em audiência de julgamento das declarações prestadas pela referida testemunha perante o oficial de justiça, porquanto, não tendo havido acordo para as referidas leituras entre os sujeitos processuais, estava-lhe vedado, por ser legalmente inadmissível, a leitura das mesmas.

L - Assim sendo, o despacho de que ora se recorre, deveria ter adotado um entendimento normativo do art.º 356º nº 2, alínea b) e nº 5 do C.P.P., em consonância com o disposto no art.º 355º nº 1 do C.P.P., no sentido de que não tendo os arguidos dado o seu consentimento à leitura, requerida pelo MP, de declarações produzidas, em inquérito, por testemunha perante o oficial de justiça, não pode, nem na situação prevista no n.º 4 nem em qualquer das situações previstas no art.º 356º, n.º 3 do CPP – ser admitida a sua leitura em audiência de julgamento e subsequente valoração de tais declarações.

M - Ao ter um entendimento totalmente oposto àquele, tal entendimento normativo é inconstitucional, por violação das garantias de defesa consagradas pelo art.º 32º nº 1 da C.R.P. e o princípio do processo equitativo salvaguardado pelo art.º 20º nº 4 da C.R.P. e pelo art.º 6º da C.E.D.H.

N - Tendo estes argumentos em conta, não podemos deixar de anotar que acima deles está a lógica interna do CPP que limita a valoração de prova adquirida de forma ilegal e reproduzida (ou examinada) em audiência quando a sua reprodução não é legalmente permitida.

O - Assim sendo, e para além de todo o exposto, toda a prova extraída da leitura efetuada em julgamento das declarações prestadas por aquela testemunha em sede de inquérito são legalmente inadmissíveis, nos termos do art.º 125º do CPP, por tal leitura ser inadmissível, nos termos do art.º 125º do CPP, por tal leitura ser inadmissível, nos termos do art.º 356º, nº 2 alínea b) e nº 5 do CPP sem a necessária concordância do arguido.

P - O Douto Tribunal de que ora se recorre invoca, o Ac. proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto no proc n.º 1187/10.0TAVCD.P1, a fim de tentar viabilizar a condenação do ora recorrente, mas não lhe assiste qualquer razão, porquanto o Douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto refere expressamente que, para poder ser lido e valorado o depoimento prestado em sede de inquérito, tal depoimento tem de ser prestado perante autoridade judiciária.

Q - Conforme já explicamos à exaustão, no recurso interposto em acta e que sobe agora com o presente, o oficial de justiça, não é Magistrado, portanto não é autoridade judiciária, não podendo por conseguinte tal depoimento servir para suportar a condenação ilegal e inconstitucional do arguido.

Concluindo, não tendo as declarações/depoimento sido prestadas perante Magistrado, ou seja, perante autoridade judiciária, não podem as mesmas, tendo havido oposição, servirem para fundamentar a condenação do arguido.

R - Existe nítida violação do princípio do contraditório, não podendo a condenação do arguido subsistir, devendo o mesmo ser absolvido como é de justiça. Não basta a palavra do ofendido, se não mal estaríamos, pois tendo em conta que agora o alegado ofendido passou também a não gostar da ora subscritora, nada o impede de futuramente efectuar denuncia contra a mesma e esta vir a ser condenada apenas com base na versão do alegado ofendido, basta que não consiga explicar e demonstrar que naquele momento em concreto era impossível se encontrar naquele local.

S - Ora a exigência de ser o arguido a demonstrar que não cometeu o crime é uma nítida violação do principio in dubio pro reo, e não basta a apalavra do alegado ofendido para se dar como provado que os factos ocorreram, ou sequer que o arguido se encontrava naquele dia e hora naquele local, o arguido não se recorda onde estava, nem tal lhe é exigido, pois não se tratando de uma data especial, é normal que o comum dos mortais não se recorde de onde e com quem se encontrava em determinado dia, e determinada hora.

T - Não pode a presente condenação subsistir, pois tal condenação dará aso a muitas outras condenações futuras, pois finalmente o arguido descobriu, logo após a prolação da sentença, o porquê de tanto rancor.

U - Trata-se de um erro de perceção da parte daquela família pois entendem que o ora recorrente causou a prisão de um familiar, não compreendendo que o mesmo se encontra preso e não lhe foi aplicado o perdão da Lei 9/20 porquanto o mesmo foi condenado por crime de resistência e coação a funcionário, e que a sua actual reclusão nada tem a ver com o recorrente.

V - Assim que saiu da sala, após a prolação da presente sentença, foi o recorrente responder a um outro processo em que também é acusado por membros da mesma família por alegadamente ter ameaçado, ainda não se conseguiu descobrir quem.

W - De facto, parece-nos que a ameaça velada que fizeram que só parariam quando o recorrente estivesse preso, é levada muito a sério pelos alegados ofendidos. Não pode o ora recorrente passar a sua vida toda monitorizando e apontando cada segundo da sua vida a fim de poder depois fazer a prova da sua inocência. Chega!

X - Tem de parar de imediato e cumprir-se o que é Justo, absolvendo-se o ora recorrente, porquanto este não praticou qualquer crime, fazendo-se deste modo, Douta e Costumada Justiça.

Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis que v.Exas. Doutamente suprirão, deverá o recurso interposto merecer provimento e o Recorrente ser absolvido, fazendo-se assim Douta e Costumada Justiça.


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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:

1.ª O presente recurso deve considerar-se improcedente.

2.ª Uma vez que as declarações da testemunha em sede de inquérito não foram prestadas perante autoridade judiciária, o despacho que deferiu a sua leitura deverá ser declarado nulo.

3.ª A factualidade considerada provada é a necessária e suficiente para se chegar à decisão condenatória proferida nos presentes autos e o Tribunal a quo baseou-se nas regras da experiência comum e em critérios racionais, conjugados com a prova testemunhal, documental junta aos autos para formar a sua convicção.

4.ª Ao tribunal a quo não existiram dúvidas, muito menos razoáveis, para a condenação do arguido pelos factos descritos na acusação.

5.ª Não padecendo o acórdão dos apontados vícios, ou de quaisquer outros, deverá ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a douta decisão recorrida.


*

No Tribunal da Relação, o Exmº Sr. Procuradoa-Geral Adjunto emitiu Parecer nos seguintes termos (transcrição):

“ 1. Não se verifica qualquer circunstância que obste ao conhecimento dos Recursos do arguido (...), os quais foram tempestivamente interpostos por quem, para tanto, tem legitimidade e interesse em agir, sendo de manter o regime e efeito que lhes foram atribuídos.

2. Interpôs recurso da sentença que o condenou na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 5,50€, no total de 825,00€, pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, n.º 1, do Código Penal.

Com este recurso subiu um outro, interposto em acta.

3. O recorrente fixou o objecto de ambos recursos, nas conclusões que tirou das respectivas motivações, impugnando a matéria de direito.

4. O Ministério Público em 1ª instância, nas respostas apresentadas aos recursos, pugnou pela procedência do recurso interlocutório e pela improcedência do recurso interposto da decisão final.

Acompanhamos as bem elaboradas respostas do Ministério Público em 1ª instância.

Porque as mesmas nos parecem fundamentadas, qualquer adenda de substância seria despiciente, restando-nos acompanhá-las, na íntegra.

Pelo exposto, entendemos que o recurso interposto em acta de audiência de discussão e julgamento deve ser jugado procedente e improcedente o recurso da sentença condenatória.”


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Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do C.P.P., não tendo sido apresentada resposta.

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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

Nos termos do disposto no art.412º, nº1, do C.P.P., e conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes das motivações apresentadas, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no art.410º, nº2, do C.P.P., mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, págs.74; Ac.STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, págs.96, e Ac. do STJ para fixação de jurisprudência de 19.10.1995, publicado no DR I-A Série de 28.12.1995.

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso dos autos, face às conclusões da motivação dos recursos, são as seguintes as questões submetidas à apreciação:

A) – No recurso interlocutório interposto pelo arguido do despacho proferido em 23 de outubro de 2020 (em cuja apreciação o arguido/recorrente declarou manter interesse) a questão suscitada traduz-se em saber se a permissão de leitura de declarações de quem não tiver podido comparecer no julgamento por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira (art. 356 nº 4 do CPP), se restringe (ou não) às que tiverem sido prestadas perante o juiz ou o magistrado do Ministério Público.

B) - No recurso da sentença:

- prova proibida;

- violação do princípio do contraditório e das garantias de defesa do arguido;

- violação do princípio in dúbio pro reo.


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É do seguinte teor a sentença recorrida no que concerne a factos e motivação (transcrição):

“II. FUNDAMENTAÇÃO FÁTICO-JURÍDICA:

A) DOS FACTOS

Factos Provados

Produzida a prova e discutida a causa, resultou provada a factualidade que se segue, com pertinência para a decisão da mesma:

1. No dia 16 de Setembro de 2019, entras as 12:00h e as 14:00h, os arguidos e outros indivíduos cuja identidade não foi possível apurar, abordaram (...), que seguia apeado junto às Portas de Mértola, em Beja, acompanhado de (...).

2. Por motivos que não se lograram apurar, o arguido (...) solicitou a (...) que se dirigisse junto ao Jardim das Portas de Mértola, alegando que queria falar.

3. Quando se encontravam no Jardim das Portas de Mértola, o arguido (...), desferiu um murro em (...), atingindo-o na face esquerda (maxilar superior), provocando a sua queda ao solo.

4. De seguida, quando (...) se encontrava caído no solo, o arguido (...) e outros indivíduos cuja identidade não foi possível apurar, desferiram-lhe pontapés e murros, em número não concretamente apurado, atingindo-o por todo o corpo, mas com maior incidência na zona da cabeça.

5. Em consequência do aludido em 3) e 4), (...) sofreu as seguintes lesões:

- Na face: equimose roxa/rosa com 4cm infrapalpebral esquerda, equimose 6 cm roxa/rosa suprapalpebral direita, escoriação 1x1cm frontal a esquerda, edema maxilar esquerdo, pequena ferida contusa da face interna do lábio inferior, laterilizada à direita e suturada; - No pescoço: escoriação com 5 cm e 4 cm lineares e paralelas na região occipital a esquerda.

6. Tais lesões determinaram a (...) 30 (trinta) dias para cura, com afectação da capacidade de trabalho geral por 7 (sete) dias e com afectação da capacidade de trabalho profissional por 7 (sete) dias.

7. O arguido (...) sabia que o murro e os pontapés que desferiu no corpo do (...) eram aptos a provocar-lhe lesões e dores e, disso ciente, quis bater-lhe nos termos supra descritos com o propósito, concretizado, de molestá-lo fisicamente.

8. O arguido (...) agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Mais se provou que:

9. O arguido (...) foi condenado, por sentença transitada em julgado em 08/01/2019, pela prática de um crime de ameaça agravada, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de €6,00.

10. O arguido (...) foi condenado, por sentença transitada em julgado em 29/04/2019, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor quantidade e um crime de detenção de arma proibida, na pena única de dois anos e seis meses de prisão, suspensa por igual período de tempo.

11. O arguido (...) foi condenado, por sentença transitada em julgado em 01/04/2019, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €5,00.

12. O arguido (...) foi condenado, por sentença transitada em julgado em 29/04/2019, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes em menor quantidade na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução.

13. O arguido (...) realiza trabalhos esporádicos na área da agricultura recebendo a aquantia diária de €40,00/€50,00; o agregado familiar do arguido recebe de RSI a quantia de €500,00; não paga renda de casa; reside com a sua companheira e com duas filhas menores de idade; a sua companheira encontra-se desempregada; não tem dívida que esteja a pagar; não tem veículos nem propriedades registadas em seu nome; apresenta como habilitações literárias o 9º ano.

14. O arguido (...) realiza trabalhos na área da agricultura recebendo a quantia diária de €35,00; reside com a sua companheira e com os seus dois filhos, ambos menores de idade, em casa, propriedade da sua progenitora; a sua companheira encontra-se desempregada; tem como habilitações literárias o 9º ano; tem um motociclo registado em seu nome; não tem dívida que esteja a pagar actualmente.

15. (...) trabalhava na área de agricultura, tendo iniciado, recentemente, um novo trabalho; não tem empréstimos bancários; reside com a sua companheira e uma filha menor de idade em casa, propriedade da sua progenitora; a sua companheira não se encontra a trabalhar.


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16. Após os factos relatados em 1) e 6), (...) tem receio de sair à rua sozinho, evitando fazê-lo, solicitando a terceiros que o acompanhem nas idas ao supermercado e ao café.

17. (...) sofreu dores em consequência da conduta do arguido (...).

18. À data dos factos enunciados em 1), (...) trabalhava na Pedreira em (…), auferindo, no mínimo, a quantia diária de €60,00.

19. (...), por razões não concretamente apuradas e em data posterior aos factos enunciados em 1), deixou de trabalhar na Pedreira em (…).

20. (...) tem uma lesão na vista direita não correlaccionada com os factos vertidos em 1) a 5).

21. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, (...) foi admitido no Serviço de Urgência do Hospital (…), no dia 16.09.2019.

22. A assistência hospitalar prestada a (...) em episódio de urgência importou o dispêndio da quantia global de €85,91.


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Factos não provados

Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos para além dos supra descritos, designadamente não tendo resultado apurado que:

a. O arguido (...) tivesse dado um murro em (...) munido de um objecto metálico cujas exactas características não foi possível apurara.

b. O arguido (...) tenha desferido murros e pontapés no corpo de (...) quando este se encontrava no solo;

c. O arguido (...) sabia que o murro e os pontapés que desferiu no corpo de (...) eram aptos a provocar-lhe lesões e dores e, disso ciente, quis bater-lhe nos termos supra descritos com o propósito, concretizado, de molestá-lo fisicamente.

d. O arguido (...) tenha agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

e. (...) tenha deixado de trabalhar Pedreira em (…) em consequência dos factos provados vertidos entre 1) a 6).


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Os restantes factos, não especificamente dados como provados ou não provados, constituem factos repetitivos, conclusivos, contêm factualidade irrelevante para a presente decisão.

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Motivação

O tribunal formou a sua convicção conjugando e entrecruzando os vários meios de prova, designadamente, a prova documental junta aos autos (auto de denúncia para as circunstâncias de tempo e lugar de fls. 3 e 4, elementos clínicos de fls. 24 e 25, CRC dos arguidos de fls. 151 a 158), e, bem assim, o depoimento das testemunhas (…), companheiro do demandante, (…), progenitora do demandante, as declarações do próprio demandante, o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, as declarações dos arguidos e a leitura do depoimento prestado pela testemunha (…), entretanto falecida.

Todos os elementos de prova supra referidos – com excepção da prova pericial - foram apreciados à luz do disposto no artigo 127º do Código Processo Penal, ou seja, segundo as regras da experiências e a livre convicção do julgador, já que o julgador é livre de decidir segundo o bom senso e a experiência de vida, claro está tendo em mente a capacidade crítica, o distanciamento e a ponderação que se impõe.

O artigo 127º do Código Processo Penal estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e naturezas completamente diferentes: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar; outra também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência; finalmente, uma outra, eminentemente subjectiva, que resulte da livre convicção do julgador.

A prova resultante da livre convicção do julgador pode ser motivada e fundamentada mas, neste caso, a motivação tem de se alicerçar em critérios subjectivos, embora explicitados para serem objecto de compreensão” (Ac STJ de 18/1/2001, proc nº 3105/00-5ª, SASTJ, nº 47,88).

Tal como diz o Prof Germano Marques da Silva, no Curso de Processo Penal, Vol II, pag 131 “... a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros. Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.

Ou seja, a livre apreciação da prova realiza-se de acordo com critérios lógicos e objectivos.

Sobre a livre convicção refere o Professor Cavaleiro de Ferreira que esta «é um meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundada da verdade» -Cfr. "Curso de Processo Penal", Vol. II , pág.30. Por outras palavras, diz o Prof. Figueiredo Dias que a convicção do juiz é "... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais -, mas em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros. (…) Um tal convicção existirá quando e só quando … o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável" (in Direito Processual Penal, 1º Vol., Coimbra Editora, Reimpressão, 1984, páginas 203 a 205).


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Concretizando.

Antes de mais, importa ter presente que ambos os arguidos negaram a autoria dos factos vertidos na acusação pública, asseverando que, nas circunstâncias de tempo enunciadas no ponto 1) dos factos provados, não se encontravam naquela local. No mais, não conseguiram, após serem questionados, apresentar uma justificação para terem sido constituídos arguidos e terem sido acusados no processo, porquanto não tem qualquer relação com o demandante, sendo que apenas a companheira daquele tem relação com a família de ambos (o arguido (...) aludiu ainda ao facto de ter conhecimento que o demandante infringia maus tratos à sua companheira).

A versão dos arguidos não foi relevada pelo tribunal, tendo em conta a conjugação da prova testemunhal e documental existente nos autos que, frontalmente, descredibiliza das declarações prestadas por ambos.

Assim, e no que concerne à factualidade vertida nos pontos 1) a 4) dos factos provados, o tribunal relevou as declarações prestadas pelo demandante (...) em conjugação com a leitura do depoimento prestado pela testemunha (…), entretanto falecida. Destarte, apresentando um discurso objectivo e directo, o demandante relatou ao tribunal, de forma pormenorizada e verossímil, as circunstâncias de tempo e lugar bem como a forma como foi abordado pelos arguidos; mais relatou que o arguido (...) lhes desferiu um murro – indicando a parte do corpo onde foi atingido -, murro esse que o fez caiu ao chão, sendo que após apenas teve os reflexos de proteger a cabeça (tendo em conta a lesão de que padece no olho direito), razão pela qual não visualizou, com excepção do arguido (…), quem lhe deu pontapés e murros.

Este depoimento do considerado isento e credível pelo tribunal, porquanto, o demandante quis relatar apenas o sucedido, sem dramatismos nem adjectivações desnecessárias, procurando contar ao tribunal a realidade dos factos. Dúvidas não teve em identificar os arguidos no local e a intervenção de cada um, acrescentando inexistirem motivos para tal atitude.

Estas declarações foram devidamente concatenadas pelo depoimento da testemunha prestada durante o inquérito; confirma as circunstâncias de tempo e lugar, a abordagem do arguido (...) e a conduta do arguido (...).

Sobre a possibilidade de o tribunal valorou este depoimento, importa ter presente o sumério do Ac. da RP de 26-10-2017, processo nº 1187/10.0TAVCD.P1, relator MANUEL SOARES, cuja fundamentação aderimos: “I - O artº 356º4 CPP admite expressamente a leitura em audiência das declarações prestadas perante autoridade judiciária nomeadamente em caso de falecimento do declarante. II – O direito a um processo penal equitativo consente limitações ao direito ao exame contraditório das provas em situações de manifesta impossibilidade ou de protecção de outros interesses fundamentais. III – A compressão do direito de defesa emergente do artº 356º4 CPP traduz uma opção legislativa dando supremacia aos valores também constitucionais da descoberta da verdade e da efectividade da acção penal, não se afigurando tal compressão desproporcionada.”

No que diz respeito às lesões fruto da conduta do arguido e de terceiros bem como as consequências dessas lesões – pontos 5) e 6) dos factos provados, o tribunal ancorou a sua convicção na prova documental e pericial existente nos autos, mormente, elementos clínicos de fls. 24 e 25 (referente ao episódio de urgência do demandante) e o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de fls. 9 a 12; no mais, a testemunha (…) também aludiu as lesões visíveis no corpo de demandante (viu o arguido após o mesmo ir ao hospital).

Os elementos subjectivos da incriminação, constantes supra dos pontos 7 e 8 dos factos provados, resultam inferidos da materialidade dos factos dados como provados e da ressonância ético-jurídica da proteção da integridade física, que torna ao alcance de qualquer cidadão o conhecimento da proibição jurídico-penal daqueles actos e, ainda, dos factos concretamente imputados ao arguido, julgados provados nesta instância, o qual, com a sua conduta, não poderia deixar de estar consciente de que se encontrava a lesar a integridade física de (...).

No que concerne aos antecedentes criminais dos arguidos, relevaram o teor dos CRC juntos aos autos constantes de fls. 151 a 158 – cfr. factos provados nº 9 a 12.

No que toca à situação pessoal e económica dos arguidos, o tribunal ancorou a sua convicção nas declarações pelos próprios prestadas que, nesta parte, se nos afiguram como credíveis, à mingua de outros elementos com a virtualidade de os infirmar – factos provados nº 13 e 14.

Para a prova das condições pessoais e económicas do demandante bem como às repercussões que a actuação perpetrada pelo arguido acarretou para a sua pessoa - vd. pontos 15 a 20 dos factos provados -, atendeu-se às declarações prestadas pelo próprio, o qual, com objectividade e verosimilhança, descreveu o sofrimento e receio que vivenciou e vivencia, relato corroborado, com isenção e detalhe, pelos depoimentos de pessoas que lhe são próximas, designadamente (…), companheiro do demandante, (…), progenitora do demandante, que lhe prestou cuidados no período de convalescença.

Para prova da assistência hospitalar prestada a (...) e o custo gerado, o tribunal valorou, desde logo, as declarações prestadas por aquele em audiência de discussão e julgamento, que confirmou a ida ao hospital, e bem assim levou-se em consideração o teor da factura inscrita sob o n.º 80000676, emitida a 18.02.2020 pelo demandante Unidade de Súade do (...) EPE, que faz fls. 106 [vd. pontos 21 e 22 dos factos provados].

Relativamente aos factos não provados, cumpre começar por dizer que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram, não resultando distinto resultado probatório dos demais elementos juntos aos autos.

No que concerne à factualidade vertida na alínea a) dos factos provados, pese embora o demandante tenha referido que o arguido (...) deveria trazer consigo uma soqueira, tal não passa de uma suposição devido às lesões que o mesmo sofreu decorrentes do soco que lhe atingiu o maxilar superior esquerdo, não podendo o tribunal retirar tal conclusão apenas das suspeitas levantadas pelo demandante.

No que concerne à alínea b), c) e d) dos factos não provados, tal decorre das declarações do demandante que, também aqui, não foi capaz de, com a certeza necessária, identificar o arguido como o autor das agressões; da leitura do depoimento da testemunha ficou igualmente dúvidas sobre se o arguido desferiu pontapés e murros no demandante quando este se encontrava no solo.

Por fim, relativamente à factualidade vertida na alínea e) doa factos não provados, pese embora todas as testemunhas tenham referido tal facto, o tribunal, nesta parte, não relevou os seus depoimentos, pois o tribunal desconhece qual era o vínculo laboral do demandante bem como se as consequências das lesões foram exclusivamente a causa da saída do demandante do trabalho que realizava. Nem a produção da restante prova documental (contrato de trabalho, carta de denúncia do contrato) ou prova documental (entidade patronal) não é possível ao tribunal concluir tal facatualidade sem dar um salto ilógico.”


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Apreciando

O arguido interpôs recurso da decisão proferida em 23 de outubro de 2020, pugnando pela sua revogação, alegando, em síntese, entender existir “ (…) um lapso gravíssimo porquanto entende o Tribunal que as declarações prestadas perante o oficial de justiça, são declarações prestadas perante autoridade judiciária; (….) autoridade judiciária são tão só os magistrados quer os judiciais quer os do Ministério Público, ou dito de outro modo, o conceito de autoridade judiciária abrange somente magistrados sejam estes juízes ou procuradores, tal conceito não abrange oficiais de justiça” (conclusões 6 e 7), sendo que tal decisão viola o princípio do contraditório.

As considerações inerentes à especificidade do estatuto do arguido estão presentes em vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional no que concerne ao conjunto de direitos que a este assiste, entre os quais avulta o de exercício do contraditório.

Inquestionável na sua dignidade constitucional - artigo 20º da Constituição da República - o principio do contraditório está diretamente relacionado com o princípio da audiência, a oportunidade que é conferida a todo o participante no processo de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo.

O arguido, como qualquer outro sujeito processual, é um sujeito ativo, é um sujeito participativo em todo o processo. Por conseguinte, deve ser ouvido porque através das suas declarações ele contribui para a decisão do caso concreto.

Mas, no que concerne ao âmbito da incidência do princípio o mesmo terá uma maior ou menor amplitude de acordo com a própria fase processual em que se insere, isto é, a dimensão do princípio terá uma dimensão variável de acordo com a necessidade concreta de salvaguarda do direito de audição do interveniente processual.

E no âmbito da produção de prova a norma do art. 355.º, n.ºs 1 e 2, do CPP determina que não valem para a formação da convicção do tribunal as provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo com respeito pelo princípio do contraditório, daqui se retirando que se uma concreta prova constar do elenco das provas proibidas, significa que ela não é permitida e não pode ser legalmente considerada.

Ora, nos termos do disposto no art.356, nº4 do C.P.P., é admitida a leitura de declarações prestadas por pessoa que não compareça em audiência de julgamento, em razão de falecimento, anomalia psíquica ou impossibilidade duradoura, desde que aquelas declarações tenham sido prestadas perante um juiz ou perante o Ministério Público.

Como se decidiu no Ac.do Tribunal de Guimarães de 8 de abril de 2013, acessível in www.dgsi.pt “ (…) O tribunal recorrido laborou num evidente erro ao fazer caber no preceito permissivo as declarações que tenham sido prestadas perante um funcionário judicial dos serviços do Ministério Público.

Com efeito, ao longo de todo o Código de Processo Penal e no próprio preceito em análise, a expressão ou termo Ministério Público é reservada para a instituição definida na Constituição da República Portuguesa e na respectiva Lei Orgânica como o órgão de justiça encarregado de representar o Estado, exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar, organizado como uma magistratura processualmente autónoma a quem compete colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito. Nesta concepção, o Ministério Público constitui uma autoridade judiciária relativamente aos actos da sua competência (art.º 1.º alínea b) do Código do Processo Penal)e é composta apenas pelos respectivos magistrados.

De nada serve no caso presente procurar justificar a admissibilidade da leitura pela circunstância de a lei permitir a delegação pelo Ministério Público da realização de actos processuais nos funcionários da secção respectiva.

Uma vez que a competência originária para a diligência de inquérito pertence ao Ministério Público (art.ºs 262.º, 263.º e 267.º e 270.º, todos do C.P.P), também a inquirição por órgão de polícia criminal decorre de delegação, ainda que genérica. No decurso do inquérito, sendo por competência própria ou delegada, sendo a diligencia executada por funcionário judicial ou por órgão de policia criminal, o que releva para efeito de permissão de leitura de declarações em audiência de julgamento, é saber qual a entidade perante quem a testemunha ou o declarante prestou aquele depoimento em concreto. O que interessa é saber que entidade efectivamente dirigiu aquele acto processual e definiu os termos das declarações, formulou as perguntas, resumiu ou transcreveu o depoimento.

Naturalmente que tendo em conta a adequada preparação técnica e o estatuto próprio do órgão de justiça, se espera maior objectividade, imparcialidade e, por isso, distinta fiabilidade das declarações, se o acto processual de inquirição for presidido por um magistrado do Ministério Público.”

Ora, no caso sub judice, na sessão de julgamento do dia 23 de Outubro de 2020, “findas as declarações do demandante acima identificado, foi pedida a palavra pela Digna Procuradora da República e, após lhe ser concedida, no uso da mesma declarou requerer, nos termos do art. 356º, n.º 2, al. b) e n.º 5 do Código de Processo Penal, a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha (...), entretanto falecida, constante de fls. 78 e 79 dos autos.


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Dada a palavra às Ilustres mandatárias presentes, pela mandatária do demandante foi dito nada ter a opor ao requerido, enquanto que a mandatária dos arguidos opôs-se ao requerido pelo Ministério Público.”, sendo certo que as declarações prestadas em sede de inquérito pela testemunha (...), entretanto falecida, constantes de fls. 78 e 79 dos autos, foram prestadas no Ministério Público mas perante oficial de justiça e não perante Magistrado do Ministério Público.

Vejamos, agora quais as consequências da violação das regras de leitura de autos e declarações anteriormente prestados.

Constituindo o art.356º do CPP norma relativa à produção de prova, deverá ser aplicável o regime das proibições de prova, na medida em que tal regime detém autonomia face ao regime geral das nulidades.

Daí que, concluímos, as declarações prestadas pela testemunha, entretanto falecida, no MP mas perante oficial de justiça e não perante Magistrado do MP, lidas em audiência, constituindo prova proibida, não podiam ser valoradas pela decisão recorrida, como o foram.

Com efeito, o Tribunal recorrido fundamentou assim a sua convicção: “Antes de mais, importa ter presente que ambos os arguidos negaram a autoria dos factos vertidos na acusação pública, asseverando que, nas circunstâncias de tempo enunciadas no ponto 1) dos factos provados, não se encontravam naquela local. No mais, não conseguiram, após serem questionados, apresentar uma justificação para terem sido constituídos arguidos e terem sido acusados no processo, porquanto não tem qualquer relação com o demandante, sendo que apenas a companheira daquele tem relação com a família de ambos (o arguido (...) aludiu ainda ao facto de ter conhecimento que o demandante infringia maus tratos à sua companheira).

A versão dos arguidos não foi relevada pelo tribunal, tendo em conta a conjugação da prova testemunhal e documental existente nos autos que, frontalmente, descredibiliza das declarações prestadas por ambos.

Assim, e no que concerne à factualidade vertida nos pontos 1) a 4) dos factos provados, o tribunal relevou as declarações prestadas pelo demandante (...) em conjugação com a leitura do depoimento prestado pela testemunha (…), entretanto falecida. Destarte, apresentando um discurso objectivo e directo, o demandante relatou ao tribunal, de forma pormenorizada e verossímil, as circunstâncias de tempo e lugar bem como a forma como foi abordado pelos arguidos; mais relatou que o arguido (...) lhes desferiu um murro – indicando a parte do corpo onde foi atingido -, murro esse que o fez caiu ao chão, sendo que após apenas teve os reflexos de proteger a cabeça (tendo em conta a lesão de que padece no olho direito), razão pela qual não visualizou, com excepção do arguido (...), quem lhe deu pontapés e murros.

Este depoimento do considerado isento e credível pelo tribunal, porquanto, o demandante quis relatar apenas o sucedido, sem dramatismos nem adjectivações desnecessárias, procurando contar ao tribunal a realidade dos factos. Dúvidas não teve em identificar os arguidos no local e a intervenção de cada um, acrescentando inexistirem motivos para tal atitude.

Estas declarações foram devidamente concatenadas pelo depoimento da testemunha prestada durante o inquérito; confirma as circunstâncias de tempo e lugar, a abordagem do arguido (...) e a conduta do arguido (...).

Sobre a possibilidade de o tribunal valorou este depoimento, importa ter presente o sumério do Ac. da RP de 26-10-2017, processo nº 1187/10.0TAVCD.P1, relator MANUEL SOARES, cuja fundamentação aderimos: “I - O artº 356º 4 CPP admite expressamente a leitura em audiência das declarações prestadas perante autoridade judiciária nomeadamente em caso de falecimento do declarante. II – O direito a um processo penal equitativo consente limitações ao direito ao exame contraditório das provas em situações de manifesta impossibilidade ou de protecção de outros interesses fundamentais. III – A compressão do direito de defesa emergente do artº 356º4 CPP traduz uma opção legislativa dando supremacia aos valores também constitucionais da descoberta da verdade e da efectividade da acção penal, não se afigurando tal compressão desproporcionada.”

Resulta assim da sentença que as declarações da testemunha Jorge Martins, prestadas no inquérito e indevidamente lidas em audiência, constituíram meio de prova de que o tribunal se socorreu para julgar provada matéria de facto. Mas tais declarações não foram o único meio de prova de que o tribunal se socorreu. Com efeito, tais declarações foram analisadas e ponderadas em conjunto com outros meios de prova, sendo possível autonomizar a prova proibida.

Verificando-se, assim, a apontada proibição de produção da prova e consequente proibição de valoração da mesma, tal implica que se declarem nula e de nenhum valor probatório a leitura das declarações da testemunha, nos termos do disposto no art.122º do CPP, anulando-se, em consequência, os atos subsequentes à prova oral produzida, incluindo a sentença proferida.

Com efeito, na medida em que a demais prova produzida não se mostre afetada pela invalidade declarada, como se afigura ser o caso, não será a mesma afetada na sua validade.

Impõe-se, assim, a revogação do despacho recorrido, e determina-se a prolação de nova sentença expurgada do apontado vício, ficando prejudicado o conhecimento das questões suscitadas pelo recorrente no recurso interposto da sentença.


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Decisão

Face a tudo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em :

- Julgar procedente o recurso interposto pelo arguido (...) do despacho proferido na sessão de julgamento decorrida no dia 23 de outubro de 2020 com a referência 31361269, revogando-se o mesmo, declarando nula e de nenhum valor probatório a leitura das declarações da testemunha (...), por constituir prova proibida, e os atos subsequentes à demais prova oral produzida, incluindo a sentença proferida, ficando, em consequência, prejudicado o conhecimento do recurso interposto pelo arguido da, ora também anulada, sentença que o condenara, e devendo o mesmo Tribunal prolatar nova sentença expurgada do apontado vício.

- Sem tributação.


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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 21 de setembro de 2021

Laura Goulart Maurício

Maria Filomena Soares