OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
Sumário

1 - O tipo agravado de ofensa à integridade física é um tipo qualificado de culpa: trata-se de punir mais severamente, no quadro de uma moldura penal agravada em relação ao crime de ofensa à integridade física simples (o tipo matricial), condutas que, em razão da verificação de certas circunstâncias com uma estrutura essencialmente típica, traduzam vertentes do facto ou da conduta do agente particularmente desvaliosas em razão da sua personalidade ou da forma como ele imprime à sua actuação uma marca que acentua o desvalor do facto, em relação ao desvalor inerente a qualquer tipo de ofensa à integridade física.

2 - Quer dizer que o agente deve e tem de poder ser merecedor de um especial juízo de culpa ou de censura ético-jurídica em razão desse especial desvalor de que a prática do facto se revestiu.

Texto Integral




ACORDAM OS JUÍZES, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:



I. RELATÓRIO


A –
Nos presentes autos de Processo Comum Colectivo com o nº 15/20.2PBBJA, do Tribunal Judicial da Comarca de Beja, Juízo Central Cível e Criminal de Beja - Juiz 1, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido:
- (...),
Imputando-lhe a prática, em autoria material e concurso efectivo, de:
- Um (1) crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), nº 2, alínea a) e, nº 4, nº 5 e nº 6, do Código Penal e,
- Dois (2) crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152º nº 1, alínea d) e nº 2, alínea a) e, nº 4, nº 5 e nº 6, do Código Penal.

(...) constituiu-se assistente e deduziu pedido civil contra o arguido/demandado, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €25.000,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados pela sua conduta, acrescida de juros de mora à taxa legal.
A menor (…), representada por sua mãe (...), pedindo a condenação do arguido/demandado no pagamento da quantia de €8.000,00, a título de indemnização por danos patrimoniais causados pela sua conduta, acrescida de juros de mora à taxa legal.

O arguido apresentou contestação, bem como quanto aos pedidos de indemnização deduzidos, e arrolou testemunhas e juntou documentos.

Realizado o julgamento, veio a ser proferido pertinente Acórdão, no qual se decidiu:

a) Absolver o arguido (...) da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nº 1, alínea d) e nº 2, do Código Penal, por referência ao menor (…).
b) Condenar o arguido (...) pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena parcelar de 3 (três) anos de prisão.
c) Condenar o arguido (...) pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea d) e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena parcelar de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;
d) Em cúmulo jurídico destas penas parcelares, fica o arguido (...) condenado na pena única de 4 (quatro) anos de prisão efectiva, suspensa na sua execução por igual período de tempo e sujeita a regime de prova, a definir pela DGRSP.
e) Mais condenar o arguido (...) na pena acessória de frequência de programas específicos de violência doméstica, nos termos do artigo 152º, nº 4, do Código Penal, a ministrar pela DGRSP.
(…)

Inconformado com a parte absolutória do Acórdão proferido, o Ministério Público da mesma interpôs recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. A factualidade provada no douto acórdão relativamente ao menor (...)[em data não concretamente apurada mas situada entre Dezembro de 2016 e Junho de 2017, o arguido (...), deliberada, livre e conscientemente, desferiu com a mão uma pancada na cabeça do filho da sua companheira, (…), então com 7 anos de idade, provocando-lhe dores que se prolongaram até à noite, apenas porque a criança se esqueceu de ir buscar uns chinelos e uma toalha], integra a prática de um crime de ofensa à integridade física simples qualificada dos artigos 143º, nº 1, 145º, nºs 1, alínea a), e 2, e 132º, nº 2, alínea c), do Código Penal.
2. Este crime tem natureza pública.
3. O tribunal colectivo entendeu, no entanto, que a descrita realidade factual caía no tipo de ofensa à integridade física simples previsto e punido pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
4. Tal posição afronta o disposto nos citados artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a), e nº 2, e 132º, nº 2, alínea c), do Código Penal.
5. Prevalecendo o entendimento do Ministério Público (conclusões 1ª e 2ª), deve revogar-se o douto acórdão recorrido quanto a esta parte e, uma vez que em sede de acusação os mesmos factos foram enquadrados no tipo de violência doméstica do artigo 152º, nº 1, alínea d) e nº 2, alínea a), do Código Penal, ordenar-se que os autos baixem à 1ª instância para que o arguido seja notificado nos termos e para os efeitos do artigo 358º, nº 1 e nº 3, do Código de Processo Penal.

Notificados nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal, o arguido e a assistente, apenas o arguido apresentou resposta ao recurso interposto, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
I. O presente recurso está centrado na impugnação da decisão sobre a matéria direito relativa aos pontos 2, 3, 17, 19, 57 e 60 da acusação, dos quais uns foram considerados não provados e outros foram integrados num dispositivo legal diferente, todos relativos ao menor (...) e que levaram à absolvição do arguido.
II. Ora, salvo o devido respeito, a decisão do tribunal a quo não merece qualquer reparo, uma vez que toda a prova produzida demonstrou que o arguido desferiu uma única pancada com a mão na cabeça do menor, no seguimento de repreensão do incumprimento deste de ordens que lhe haviam sido pedidas e que se tratou de uma situação isolada e da qual não resultaram quaisquer lesões para o menor.
III. O Ministério Publico, ora recorrente, sustenta o seu recurso apenas e só nas suas perceções, convicções e fabulações, quando não logrou durante todo o processo sequer circunstanciar e apurar quaisquer elementos.
IV. Aliás a maioria dos pontos da acusação não lograram ser provados e as que foram, foram-nos apenas baseados em depoimentos de testemunhas.
V. Das declarações do menor a fls. 752 e seguintes resulta que o arguido lhe ofendeu o corpo uma única vez e que apenas ralhava com ele por se esquecer das coisas, querendo referir-se ao facto de não cumprir as tarefas que lhe haviam sido pedidas para realizar.
VI. Pelo exposto decidiu bem o tribunal a quo, enquadrando o facto no dispositivo legal da ofensa à integridade simples p. e p. 143º nº 1 do CP por não enquadrarem o conceito de maus tratos punidos pelo crime de violência doméstica previsto no artigo 152º nº 1 al. d) e nº 2 al. a) e nº 4, 5 e 6 do CP.
Termos em que deve o Acórdão objecto de recurso ser conformado, negando-se provimento ao recurso interposto, fazendo-se, assim, a habitual e necessária Justiça.

Neste Tribunal da Relação de Évora, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso interposto.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo existido qualquer resposta.
Procedeu-se a exame preliminar.
Cumpridos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

B -
No Acórdão recorrido e em termos de matéria de facto, consta o seguinte:
1. O arguido (...) explora um estabelecimento comercial denominado (…), sito na Rua (…), local onde a ofendida (…) começou a trabalhar no mês de Outubro de 2016.
2. Na sequência do início de um relacionamento amoroso, (...) foi viver para a casa do arguido no mês de Dezembro de 2016, acompanhada dos seus dois filhos menores, os ofendidos (…).
3. Desde essa data que o arguido e (...) iniciaram uma relação análoga à dos cônjuges, vivendo na residência sita na Rua (…).
4. Integrava, também, o agregado familiar, (…), filho do arguido.
5. E, fruto da união do arguido com (...), nasceu, em 3 de Novembro de 2018, (…).
6. Em datas não concretamente apuradas, mas que ocorreram a partir do mês de Maio de 2017, as discussões entre o arguido e (...) começaram a ser regulares.
7. Nessas ocasiões o arguido o arguido acusava (...) de não saber educar os filhos e dirigia-lhe, entre outras, as seguintes expressões: “ordinária de merda”, “porca”, “não sabes ser mãe”, “não vales um caralho”, “não prestas para nada”, “puta”, entre outras.
8. Tais discussões ocorriam quer no estabelecimento comercial, na presença de clientes, como no interior da residência comum.
9. Em data e hora não concretamente apurada, no interior da residência, o arguido pediu ao menor (…) que fosse buscar uns chinelos e uma toalha, no entanto, porque este se esqueceu de fazê-lo, o arguido desferiu-lhe uma pancada na cabeça com a mão, provocando-lhe dores que se prolongaram até à noite.
10. Em Junho de 2017, (...)foi residir com o seu progenitor, com quem permanece até à presente data.
11. Em diversas ocasiões, em datas e horas não apuradas, o arguido bateu na menor (...).
12. Em data e hora não concretamente apurada, o arguido, porque se sentiu incomodado com o barulho que a (...) fazia ao respirar, dirigiu-se junto da cama onde a mesma estava deitada, bateu-lhe com um chinelo e, depois, agarrou-a pelo cabelo e atirou-a ao chão.
13. Em consequência, o arguido arrancou-lhe vários cabelos e provocou-lhe dores, tendo (...) ficado com marcas vermelhas, provocadas pelas pancadas, num braço e nas pernas.
14. Também, com regularidade, o arguido apelidava (...) de “cabra” e “puta”.
15. Quando o arguido e (...) foram para o Algarve para gozo de férias em Agosto de 2017, a menor (...) não os acompanhou.
16. Em data não concretamente, mas situada no mês de Setembro de 2017, (...) abandonou a residência do arguido, tendo ido para a casa de uma amiga, levando consigo a filha (...).
17. Dois dias volvidos, (...) tomou uma grande quantidade de comprimidos, tendo sido hospitalizada na ala psiquiátrica do Hospital de Beja por um dia.
18. Nessa data, (...) foi institucionalizada, acabando posteriormente por ser entregue aos cuidados da avó materna, com quem permanece.
19. No mês de Novembro de 2017, o arguido e (...) reataram a relação e retomaram a vida em comum.
20. No dia 1 de Dezembro de 2017, (...) começou a explorar uma (…) localizada junto ao Estabelecimento Prisional de Beja.
21. Em data não concretamente apurada, mas algumas semanas após a abertura da (...), (...) dirigiu-se ao estabelecimento comercial explorado pelo arguido e pediu-lhe para falar, tendo ambos ido para a despensa.
22. No decurso da conversa, o arguido acusou (...) de ter andado com outros homens no período em que estiveram separados, agarrou e empurrou-a, acabando ambos por cair no chão.
23. Nesse ínterim, entrou na dispensa (…), uma cliente, que se colocou à frente de (...) e foi atingida pelo arguido com um murro no olho a esta dirigido.
24. Em data não concretamente apurada, (...) deu conhecimento ao arguido que estava grávida, tendo-lhe este dito que deveria fechar a (...) sob o pretexto que queria acompanhar a gravidez de perto, ao que esta acedeu, tendo encerrado a (...) cerca de um mês depois.
25. Em data não concretamente apurada, na residência comum, na sequência de uma discussão entre o casal e porque a assistente lhe apontou o dedo na direcção da sua cara, o arguido deu-lhe uma palmada na mão, que acabou por bater no lábio, que ficou a sangrar.
26. Nessa circunstância a assistente saiu de casa e foi para a casa da sua amiga (…).
27. No dia 7 de Janeiro de 2020, por volta das 20h00, no interior da residência, e na presença da filha (…), à data com 14 meses, no decurso de uma discussão, o arguido desferiu várias pancadas em (...), designadamente na face, tendo as agressões cessado quando Agentes da P.S.P bateram à porta.
28. Em consequência desta conduta, o arguido provocou dores e hematomas na face de (...).
29. O arguido (...) sabia que a descrita conduta era apta a atingir a integridade física de (…), provocando-lhe dores e, não obstante, quis actuar da forma por que o fez, com o propósito de alcançar tal resultado, que logrou conseguir.
30. O arguido (...) sabia que as condutas supra descritas eram aptas a humilhar, amedrontar e a ofender a saúde física e psíquica de (...) , que com ele coabitava, não obstante, agiu com o propósito, concretizado, de lhe causar medo, vergonha, padecimento psicológico e de lhe molestar o corpo, ciente que a mesma era criança e que, por isso, não tinha capacidade, destreza ou discernimento para se conseguir defender.
31. O arguido agiu com o intuito, concretizado, de dirigir a (…), sua companheira, as expressões acima descritas, bem sabendo que as mesmas eram aptas a ofendê-la na sua honra e consideração e a provocar-lhe padecimento psíquico.
32. Mais agiu com o intuito, concretizado, de lhe causar dores e lesões corporais, bem sabendo que ao atingi-la nos moldes supra descritos, tais meios eram aptos a provocar-lhe lesões e dores, ciente que agia no interior da residência comum, bem como na presença da filha menor de ambos.
33. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Dos Pedidos Cíveis:
34. Em consequência dos factos descritos em 22 e 23 a assistente sofreu dores.
35. Após os factos ocorridos a 7 de Janeiro, a assistente deslocou-se ao Hospital José Joaquim Fernandes, sito em Beja, mas sem ter contado o que de facto lhe tinha acontecido.
36. O facto do arguido a apelidar de “puta” recorrentemente aumentava o seu mau estar.
37. A conduta do arguido provocou na menor (...), sentimentos de revolta, de inferioridade, de medo, de insegurança, de angústia, de sobressalto, de humilhação e vexame, levando-a a sentir-se desrespeitada na sua integridade moral, já que o arguido actuou nas situações descritas com desprezo pela pessoa da assistente.
Da contestação:
38. O arguido corrigia com alguma frequência o comportamento dos filhos da assistente.
39. Quando nasceu a filha comum era o arguido que cuidava da mesma quando a assistente se encontrava no café.
40. O Arguido é reconhecido pelos seus amigos como sendo uma pessoa de bem, respeitador, honesto, humilde e muito considerado no meio onde vive.
41. É um pai de família que criou sozinho o seu filho e que lhe deu educação, estando o mesmo a frequentar o ensino superior.
42. Após a ocorrência dos factos descritos em 27) e 28) a assistente saiu da casa de morada de família.
43. Dois ou três meses depois a assistente e arguido retomaram novamente a sua relação.
44. Posteriormente a assistente e o arguido voltaram a separar-se, situação que se mantém actualmente.
Mais se provou relativamente ao arguido (...):
45. Realizado relatório social pelos serviços da DGRSP, do mesmo consta:
“I - CONDIÇÕES SOCIAIS E PESSOAIS
(...) reside em (…), em casa arrendada, na morada constante dos autos. Vive só, desde a recente rutura da união conjugal mantida com a queixosa dos presentes autos, (...), configurando-se, esta, a terceira separação do casal desde o início da respetiva união de facto, há cerca de quatro anos.
Desde há cinco meses que exerce o comércio ambulante de venda a retalho de pão e produtos de (...) e confeitaria, atividade que iniciou na sequência do encerramento do estabelecimento de café que explorava, em face da quebra de faturação decorrente da situação pandémica instalada.
A situação económica do arguido assenta nos rendimentos obtidos na atividade que exerce, os quais avalia, numa média mensal, em cerca de € 1.600,00, situando-se as despesas mensais fixas num valor aproximado a €1.000,00, em renda da casa, prestação relativa à aquisição de viatura automóvel, água, gás, eletricidade, telecomunicações, ama da filha e gastos com o filho (…), estudante na Universidade do Algarve. O binómio receitas/despesas, pela incerteza dos ganhos, requer uma gestão cuidada dos recursos.
Nos tempos livres permanece em casa onde se ocupa das atividades domésticas inerentes, limpeza e cuidado do espaço e confeção das refeições, tarefas que, desde que se autonomizou face ao seu agregado de origem, no início da idade adulta, sempre realizou. Sempre que pode, para além de todos os fins-de-semana, procura ter consigo a filha (…), de dois anos de idade, dedicando-lhe a atenção e cuidados na esteira dos que lhe tem proporcionado desde o seu nascimento, conforme lhe é reconhecido, tanto pela família como pela ex-companheira, mãe da menor.
(...) dispõe de apoio afetivo do seu núcleo familiar de origem, progenitora e irmã, as quais continuam a residir em Beja, cidade de onde são originários. É (…), sua irmã, quem se encontra a cuidar da filha, (…), em conformidade com o acordado com ambos os progenitores, situação que decorre desde há cerca de três semanas.
O arguido constitui-se o elemento mais novo de uma fratria de três, tendo integrado um agregado familiar de modesta condição sócio económica, alicerçada no trabalho desenvolvido pelos progenitores; o pai, funcionário dos (…), falecido há mais de uma década e a progenitora, ajudante de cozinha, atualmente a residir com a filha. Seus pais mantiveram por algum tempo a exploração e uma pequena mercearia de bairro.
O relacionamento intrafamiliar, na comunidade escolar e no respetivo meio sócio residencial decorreu sem quaisquer registos de incidências e/ou percalços, sendo-nos realçadas as características de contemporização e discrição de (...). Nas relações familiares distingue-se pela dedicação que tem demonstrado no cuidado dos filhos.
Com cerca de 19 anos começou a trabalhar no Algarve, na zona de Vila Real de Santo António, região onde viria a permanecer por cerca de 10 anos. Conheceu, então, a mãe do seu filho mais velho, à qual se manteve unido durante cerca de 8 anos. Na sequência da separação as responsabilidades parentais foram-lhe atribuídas.
Manteve a exploração de um café nos cinco anos antecedentes ao regresso ao Alentejo. Refez a vida afetiva, com (…), que o acompanhou no regresso à região alentejana. (...) e o respetivo agregado estabeleceu-se na localidade de (…), onde mantiveram a exploração de um café. Dificuldades ao nível da empregabilidade e de adaptação à região por parte da companheira estiveram na origem da separação do casal, após cinco anos de união.
Há cerca de quatro anos encetou nova união conjugal, com (...). O relacionamento do casal foi percorrido pela instabilidade e marcado por algumas ruturas, a última das quais ocorreu no último trimestre de ano transato, após escassos meses de coabitação, volvidos, cerca de meio ano de separação. (…) Atualmente, o casal contacta, preferencialmente através de serviço de mensagens, assuntos respeitantes à filha comum e/ou através da irmã de (...), a qual presta apoio, como ama, à menor. O arguido e (...) assumem a atual separação como definitiva em face do divergente enfoque pessoal.
Decorrente de sintomas ansiosos que vinha a desenvolver em face da instabilidade relacional vivenciada no relacionamento com (...) o arguido recorreu há cerca de três anos a consulta médica, na Clinica Médica (…), tendo-lhe sido diagnosticado com síndrome ansioso crónico, encontrando-se a efetuar terapia medicamentosa.
Não se registam outros incidentes de natureza criminal referentes ao arguido conforme informação prestada pelo NIC da PSP de Beja.
(...) revela capacidade para identificar os valores e bens jurídicos que a norma incriminatória visa salvaguardar.
(…)”
46. O arguido não tem antecedentes criminais.

Factos não provados:
Com interesse para a boa decisão da causa não se provou que:
- a partir de Maio de 2017 o arguido começou a demonstrar desagrado para com os filhos de (...), queixando-se do barulho que faziam, da forma como andavam e da quantidade de comida que comiam, sendo essa a causa das discussões.
- a partir do mês de Maio de 2017, o arguido começou a proibir (...) e (...) de brincar para que não fizessem barulho.
- porque só acordava por volta das 12h00 ou 13h00, o arguido ordenava-lhes que permanecessem na cama em silêncio até à hora que se levantasse.
- se fizessem barulho, o arguido arremessava-lhes com sapatos.
- (...) e (...) não podiam comer à mesa, porque o arguido não permitia.
- quando estavam no café que era explorado pelo arguido, este não permitia que os mesmos consumissem os gelados ou chupa-chupas que os clientes lhes ofereciam.
- tendo-os colocado de castigo, em várias ocasiões, fechados no interior da arrecadação do café, um compartimento exíguo, atulhado de grades de garrafas e sem janelas.
- local onde (...) e (...) chegaram a permanecer sentados por cerca de duas horas, apenas lhes sendo permitido sair quando o estabelecimento tivesse poucos clientes;
- o arguido também lhes batia com regularidade e sem qualquer razão justificativa, sendo frequente dar-lhes pancadas com as mãos, pontapés e atirar-lhes chinelos ao corpo, mas apenas o que resulta dos factos provados.
- e, porque (...) brincava com as mãos no ar, apelidava-o frequentemente de “paneleiro” e “nojento” e dizia-lhe que tinha vergonha de andar com ele na rua porque era uma “borboleta”;
- o arguido apelidava (...) de “gorda” e “baleia” e dizia-lhe que roncava como uma porca, que era mentirosa e conflituosa;
- os factos descritos em 7. e 8 também ocorriam na presença dos menores (...) e (...).
- em data não concretamente apurada, mas situada no início da segunda quinzena do mês de Agosto de 2017, no interior do estabelecimento comercial que explorava, o arguido dirigiu-se a (...) na frente dos clientes que ali se encontravam e disse-lhe “Não sabes fazer um caralho, a única coisa que sabes fazer é foder e nem para isso prestas”.
- o arguido não permitiu que a menor (...) os acompanhasse para o Algarve para o gozo de férias;
- a partir do momento em que (...) começou a explorar a (...), o arguido passou a deslocar-se todos os dias para fazer o “fim de caixa”, ficando com todo o dinheiro que aí existisse;
- em data não concretamente apurada, mas algumas semanas após a abertura da (...), o arguido, porque desconfiou que (...) se tivesse ido encontrar com outro homem, entrou no referido estabelecimento, começou a pontapear os baldes do lixo, mandou sair todos os clientes e trancou a porta da entrada.
- de seguida, empurrou a ofendida (...) para o interior da despensa, agarrou-lhe os cabelos com uma mão e com outra agarrou-lhe o pescoço e disse-lhe “onde é que tu estiveste, diz-me a verdade, mostra o telefone”.
- (...) mostrou-lhe o telemóvel e como este não continha nada que pudesse compromete-la, o arguido abandonou a (...).
- na situação descrita em 22. e 23., no interior da despensa e quando (...) tentava levantar-se, o arguido empurrou-a com as mãos várias vezes contra umas grades de cerveja e, enquanto o fazia, perguntava-lhe “A picha deles é maior que a minha?”;
- na noite de 29 para 30 de Janeiro de 2018, após terem tido relações sexuais, o arguido disse a (...) “eu já não te satisfaço, andas de barriga cheia”, querendo dizer que esta tinha sexo com muitos homens;
- no dia 30 de Janeiro de 2018, na despensa do café explorado pelo arguido, este desferiu uma bofetada na face de (...), tendo a cliente (…) e o companheiro da mesma intervindo para aquele cessar com as agressões;
- no dia 12 de Março de 2018, ao final da tarde, quando se encontravam no interior da despensa do estabelecimento explorado pelo arguido, este começou a gritar “és uma porca, és uma nojenta” e empurrou (...) contra uma estante, que, nessa sequência, se desequilibrou e caiu ao chão;
- de seguida, o arguido desferiu-lhe um murro na cabeça, tendo surgido no local (…), que agarrou o arguido e disse que não permitia que ele fizesse aquilo;
- no início do mês de Março de 2018, no interior da (...), o arguido expulsou os clientes que se encontravam no seu interior, trancou (...) na despensa, apertou-lhe o pescoço com as mãos, empurrou-a contra a parede e deu-lhe duas bofetadas, atingindo-a do lado direito da face;
- no dia 12 de Março de 2018, já de noite, no interior do café do arguido, este trancou a (...) na despensa, atirou-lhe grades de cerveja contra o corpo, agarrou-a pelos cabelos, lançou-a ao solo, arrastou-a pelo chão e desferiu-lhe pontapés e murros por todo o corpo;
- durante estes episódios, o arguido apodou-a de “puta” e acusou-a de ter andado com vários homens simultaneamente durante o período em que estiveram separados;
- o arguido deu um prazo para (...) fechar a (...), mas apenas o que resulta dos factos provados;
- em data situada no mês de Abril de 2018, quando se encontravam na rua em frente ao estabelecimento explorado do arguido, este, sabendo que (...) estava grávida, agarrou-a pelos cabelos e puxou-a até ao interior do café, depois empurrou-a ao chão e deu-lhe duas bofetadas na face;
- nessa mesma semana, no interior da residência comum, por motivos relacionados com umas cápsulas do capuchino, o arguido agarrou (...) com uma mão pelo pescoço e com outra pelos cabelos, bateu-lhe com a cabeça na parede várias vezes, deu-lhe uma joelhada na zona das pernas e desferiu-lhe várias bofetadas na face;
- nessas circunstâncias, o arguido apelidou-a de “puta” e “porca” e acusou-a de ter amantes e de lhe “pôr os cornos”;
- em data não concretamente apurada, mas situada antes do verão do ano de 2019, no interior da residência comum, o arguido desferiu um murro na boca de (...), abrindo-lhe o lábio, mas apenas o que resulta de 25) dos factos provados;
- durante ano de 2019, em pelo menos mais duas ocasiões, o arguido agrediu a ofendida com socos, pontapés e puxões de cabelo no interior da residência e na presença da filha (…);
- quando tal acontecia, o arguido culpava (...) pelo sucedido e dizia-lhe que era ela quem tinha provocado e quem tinha de pedir desculpa;
- no dia 7 de Janeiro o arguido apelidou (...) de mentirosa e empurrou-a contra o “parque” da bebé. Em acto contínuo, começou a desferir-lhe bofetadas do lado esquerdo da face e, quando Inês começou a chorar, o arguido dirigiu-se aos gritos para a cozinha, tendo (...) ido à casa de banho por água na face. Entretanto, o arguido surgiu na casa de banho, empurrou (...) para dentro da banheira, agarrou-lhe na cabeça e bateu com a mesma várias vezes na parede, mas apenas o que resulta dos factos provados;
- em consequência desta conduta o arguido provocou vários hematomas no corpo de (...), mas apenas o que resulta dos factos provados;
- o arguido (...) sabia que as condutas supra descritas eram aptas a humilhar, amedrontar e a ofender a saúde física e psíquica (...), que com ele coabitava, não obstante, agiu com o propósito, concretizado, de lhe causar medo, vergonha, padecimento psicológico e de lhe molestar o corpo, ciente que o mesmo era criança e que, por isso, não tinha capacidade, destreza ou discernimento para se conseguir defender, mas apenas o que resultou provado.
- a assistente chegou a implorar ao arguido que não fizesse mal aos miúdos, que lhe fizesse só a ela, mas o arguido era completamente impiedoso, prosseguindo nos seus intentos; chegando aquela a colocar-se entre os filhos e ele para os proteger;
- todas as condutas perpetradas pelo arguido na pessoa dos filhos da assistente causava-lhe uma revolta inexplicável, começando a andar muito nervosa e também ansiosa, temendo pela integridade física e moral das duas crianças, tudo lhe causando progressivo desgaste psicológico;
- a assistente entregou o menor (...) ao pai para o proteger da pessoa do arguido, o que lhe custou bastante mas não teve alternativa, mas apenas o que resulta dos factos provados;
- aquando dos factos referidos em 22) a assistente encontrava-se magoada em consequência do episódio ocorrido no interior da sua (...);
- acabou por não se deslocar ao Hospital para receber tratamento médico, por temer que após o seu regresso o arguido ainda lhe desferisse mais pancada;
- em casa, a assistente teve de fazer medicação, nomeadamente, analgésicos, e teve de aplicar gelo e Hirodoid para atenuar o inchaço;
- como consequência directa e necessárias das referidas agressões físicas a assistente passou ainda a padecer de dores de cabeça frequentes, vómitos e tonturas, que passaram a durar vários dias;
- sofreu também perturbações ao nível do apetite, quase deixando de se alimentar;
- ainda que toda marcada, a assistente tinha de ir trabalhar, já que o arguido assim lhe o exigia, sentindo a mesma vergonha pelo facto de vários clientes do estabelecimento comercial onde trabalhava para o arguido a questionarem acercado do seu estado e também a vizinhança, e pese embora a mesma nunca contasse a verdade já muitas pessoas sabiam e comentavam que ela era vítima de violência doméstica;
- a assistente chegou a temer sofrer um aborto, em consequência de todas aquelas agressões de que foi vítima, naquelas concretas ocasiões, até porque a gravidez ainda era muito recente, encontrava-se física e psicologicamente frágil e a violência das pancadas que o arguido lhe desferiu eram de tal ordem que a deixaram mesmo muito em baixo, tendo no dia em que bateu com a cabeça na parede várias se sentido muito mal.
- acabou por viver o restante período da gestação com grande ansiedade, e o medo que sentia do arguido aumentou consideravelmente.
- na sequência dos factos ocorridos a 7 de Janeiro, assistente ficou com galos na cabeça, bem como marcas membros superiores e inferiores;
- ficou com tonturas, tendo necessitado de tomar medicação durante uns dias, nomeadamente tranquilizantes;
- no que à menor (...) respeita, o arguido começou por a proibir de brincar, para que não lhe fizesse barulho, o que num primeiro momento a magoou bastante, visto que nunca antes alguém a havia proibido de brincar e as suas brincadeiras eram as normais de todas as crianças da sua faixa etária.
- passou depois aquele a repreendê-la por todo e qualquer ruído que fizesse, chegando a ordenar-lhe que permanecesse na cama em silêncio até à hora que aquele se levantasse, o que em regra, acontecia só pelas 12h ou mesmo 13 horas, fazendo-a sentir-se muito triste e desde então passado a receá-lo.
- qualquer barulho que fizessem era cessado através de arremesso de sapatos pelo arguido, o que provocou dores no corpo da criança
- a menor já mal se governava com medo do arguido.
- por consequência de todas as descritas condutas do arguido a menor desenvolveu distúrbios alimentares, tendo-se tornando-se bulímica, patologia com que passou a ter de lidar desde então, e que muito tem sido difícil de ultrapassar, pese embora o acompanhamento médico a que que a (...) tem sido sujeita.
- ao longo do período em que os factos foram praticados e por causa deles, a menor teve muitas dificuldades em repousar, tinha um sono agitado, pesadelos e choro fácil, tudo lhe tendo provocado desgaste psicológico, tudo se refletindo ao longo dos tempo na sua personalidade e modo de estar, e mesmo hoje volvidos quase 4 (quatro) anos a menor ainda manifesta receio do arguido, e é percetível que ainda não superou totalmente o que aquele lhe provocou.
Da contestação:
- foi o arguido durante vários anos vitima de violência doméstica por parte da sua companheira e que apenas por vergonha, nunca o denunciou, sendo chamado constantemente de “paneleiro” por este querer manter sempre a casa limpa e arrumada e por prestar toda a atenção ao seu filho que criou sozinho, situação que desagradava a ofendida;
- foi a assistente que não quis levar a menor (...) de férias, alegando que assim não se conseguiria divertir e descansar convenientemente.
Não deixaram de se provar quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa. Importa ainda referir que não foram tidos em consideração os factos constantes dos pedidos de indemnização que vão para além dos imputados na acusação e nem os factos indicados na contestação relativos à personalidade da assistente e suas competências maternais, por serem irrelevantes para a matéria em apreço, nem os que constituem a descrição de meios de prova destinados colocar em causa a credibilidade daquela e aqueles que mais não são que uma negação daqueles constantes da acusação e que serão objecto de apreciação em sede própria.

Motivação:
A audiência de julgamento decorreu com o registo da prova nela produzida. Tal circunstância que também nesta fase se deve revestir de utilidade dispensa o relatório detalhado das declarações, depoimentos e esclarecimentos nela prestados.
O decidido funda-se em todos os meios de prova produzidos em audiência, valorados na sua globalidade.
Assim, a convicção do Tribunal relativamente à forma como ocorreram os factos resultou da conjugação dos seguintes meios de prova:
- Auto de notícia de fls. 3 a 8;
- Fls. 40 a 45;
- Assento de nascimento de fls. 73 e 74;
- Assento de nascimento de fls. 75 e 76;
- Assento de nascimento de fls. 77;
- Fls. 81 a 85;
- Fls. 227 a 230;
- Apenso de documentação clínica;
- Documentação junta com os pedidos cíveis e com as contestações.
O arguido recusou-se a prestar declarações pelo que, além da contestação apresentada, não temos a sua versão dos factos.
Destarte, impõe-se apreciar e analisar criticamente a prova produzida de forma a aquilatar se a mesma foi suficiente para demonstrar os factos trazidos a juízo. E isto porque a circunstância de o arguido não ter prestado declarações não pode ter como efeito que se aceite acriticamente a versão apresentada pela assistente.
Como é sabido, nos casos de violência doméstica, a maioria dos factos ocorre no seio familiar, sendo pouco provável que alguém os presencie. Por esse motivo, assumem particular relevo as declarações das vítimas, frequentemente as únicas que podem fazer luz sobre o que realmente se passou. E sendo compreensível a emoção daqueles que as prestam, os sentimentos que nutrem por aquele que apontam como seu agressor não podem colocar em causa a sua objectividade e imparcialidade, sob pena de a sua credibilidade sair diminuída.
O caso concreto apresenta algumas nuances na medida em que são imputados factos praticados no interior da residência, mas também factos em público.
Analisadas as declarações da assistente à luz das regras da experiência comum e tendo em conta o contexto da relação entre aquela e o arguido e a sua postura em julgamento, o Tribunal apenas ficou convencido da ocorrência dos factos que obtiveram alguma corroboração, como infra se exporá.
A assistente apresentou-se como sendo vítima de um comportamento possessivo, manipulador e controlador por parte do arguido, que começou por agredir e insultar os seus filhos, passando depois a ser ela o alvo das suas agressões e injúrias.
No entanto, foi evidente na sua postura e na forma como descreveu os factos uma forte animosidade desta para com o arguido, procurando descrever um cenário de uma agressividade tal que se que se mostra incompatível com as vicissitudes da relação existente entre o casal, as separações e os subsequentes reatamentos da relação, sendo o seu depoimento sempre direccionado no sentido imputar ao arguido condutas extremamente graves, que vão para além dos factos descritos na acusação.
De salientar ainda que apesar da ânsia demonstrada em relatar episódios e pormenores relativos à conduta do arguido, a assistente manifestou incómodo e má vontade em responder a determinadas questões relacionadas com as suas opções de vida e com a sua relação com os filhos, entendendo-as não como uma actividade direccionada à procura da verdade, mas sim um ataque à sua pessoa.
E esta postura, aliada às demais circunstâncias que passaremos a descrever, não permitiu que o Tribunal concluísse ser o seu depoimento inteiramente objectivo e imparcial.
Em primeiro lugar temos de referir que não resultou de qualquer dos depoimentos e inclusivamente da postura da assistente, fundamento para que esta se sujeitasse a um comportamento com tal grau de violência: a assistente é uma pessoa jovem que, segundo ela própria referiu, se separou do arguido uma primeira vez antes de ter havido qualquer agressão física e rapidamente arranjou um emprego e um local onde morar. Nesta altura, nenhum dos seus filhos se encontrava já a viver consigo, pelo que estariam reunidas as condições para que reorganizasse a sua vida de forma a voltar a viver com eles, longe do arguido possessivo e manipulador (tal como o descreveu). Ainda assim, e após ter afastar-se do arguido que, segundo ela maltratava os seus próprios filhos e levou a que ela ficasse privada do convívio diário com eles, e já após ter conseguido criar um novo negócio para si, a assistente voltou para o arguido, pouco tempo após a separação. E voltou a separar-se novamente na sequência dos factos que deram origem aos presentes autos, mas mais uma vez voltou. Contudo, das mensagens juntas aos autos pelo arguido não resulta que fosse o arguido que a manipulasse ou forçasse as reconciliações, sendo patente que era a assistente que tentava manter os contactos – tal conduta é incompatível com o cenário global descrito pela mesma.
No que se refere ao alegado controlo monetário, não podemos deixar de ter em consideração que, conforme a própria referiu, era ela que estava a maior parte do tempo no café. Ainda que efectivamente o arguido lá tivesse câmaras instaladas (como ela referiu), parece pouco plausível que a mesma tivesse que lhe pedir até para comprar tabaco. Acresce que a assistente esteve durante alguns meses a explorar uma outra (...). Apesar de a mesma referir que aquele ia ao final do dia fazer o fecho de caixa, não estava lá durante o período normal de funcionamento do estabelecimento, pelo que era ela que geria necessariamente as quantias monetárias auferidas.
Por outro lado, e no que concerne ao comportamento do arguido para com os menores, a própria assistente afirmou não ter presenciado qualquer agressão, apenas tendo visto os cabelos que a menor (...) indicou terem sido arrancados pelo arguido. Assim, e neste aspecto concreto, o Tribunal apenas teve em consideração aquilo que foi declarado por aqueles em sede de declarações para memória futura, matéria relativamente à qual nos pronunciaremos mais à frente.
Relativamente às alegadas agressões, não podemos deixar de referir que muitas das descritas pela assistente terão ocorrido em público. Contudo, de todas essas apenas uma situação foi confirmada por uma testemunha. Acresce que a gravidade das agressões descritas (murros, pontapés, pancadas na cabeça, arrastões pelo chão…) importariam necessariamente assistência médica e seriam incompatíveis com a manutenção da actividade diária normal. Ora é a própria assistente que refere que após uma das agressões sofridas no interior da despensa do estabelecimento Gazela, acalmou-se e foi fazer a limpeza da sua (...).
Os elementos clínicos juntos aos autos (anexo) igualmente não descrevem lesões compatíveis com agressões. Embora a assistente refira que quando se dirigia ao hospital não indicava que tinha sido agredida, o facto é que por parte daqueles que a assistiram não foram igualmente sinalizadas lesões compatíveis com agressões (sendo certo que nos tempos que correm existe uma maior preocupação por parte dos profissionais de saúde em sinalizarem situações suspeitas).
Por tudo o que ficou exposto o Tribunal apenas considerou provados os factos descritos pela assistente que foram confirmados pela demais prova produzida.
Concretizando.
No que concerne aos factos praticados contra os menores temos as declarações para memória futura prestadas nos autos, cuja transcrição se encontra a fls. 752 e seguintes e que importa agora analisar de forma crítica.
Como é sabido, trata-se de declarações de difícil análise, sujeitas a factores de influência internos e externos, como sejam a idade dos menores, o melindre e a exposição do thema probandum, o número de vezes que tiveram de falar com diferentes pessoas sobre a mesma matéria (pais, polícia judiciária, médico/psicólogo, juiz de instrução), o tempo que vai decorrendo entre a ocorrência dos factos as sucessivas audições, etc.
No caso concreto, as declarações para memória futura merecem-nos inteira credibilidade pela forma como foram prestadas, não obstante o lapso de tempo decorrido, não ressaltando do teor dessas declarações uma qualquer tentativa de empolar o que efectivamente aconteceu.
De salientar ainda que apesar da menor (...) ter referido que o arguido lhe batia a ela e ao irmão com murros, pontapés, acabou por dizer que não o via a fazer isso ao irmão e tal também não resultou das declarações do menor (...), que apenas refere o episódio que foi considerado provado.
Quanto ao demais e no que se refere às agressões ocorridas no interior do café (…), o decidido resultou da conjugação das declarações da assistente (…) com as declarações da testemunha (…), que confirmou que efectivamente ouviu a discussão, insultos e quando se dirigiu para o interior da despensa viu o arguido a agarrar a assistente e a empurrá-la, o que coincide com o relatado por aquela. Já quanto ao demais declarado por esta testemunha, foi evidente a sua ânsia em empolar a situação e não conseguindo manter a sua objectividade.
Quanto aos insultos dirigidos à assistente durante a vida em comum e além das assistente durante a vida em comum e além das declarações por esta prestadas, temos igualmente as declarações prestadas pela já referida testemunha (…), com as declarações da testemunha (…), amiga da assistente e que frequentava o café (cujo depoimento nenhuma reserva suscitou ao Tribunal), (…), vizinhas de cima e do lado, que relataram com objectividade e segurança os insultos que ouviam ser proferidos pelo arguido no interior da residência.
No que concerne aos factos descritos em 25) e 26) o decidido funda-se na conjugação das declarações da assistente, que relatou o que havia acontecido (esclarecendo quedas ao contrário do referido na acusação, o arguido não lhe deu um murro) e que nessa sequência se dirigiu à casa da amiga (…), onde lhe relatou o sucedido, facto confirmado por esta. Esta testemunha relatou ainda que foi posteriormente confrontar o arguido com tais factos, que foram por ele confirmados.
Finalmente no que se refere ao episódio ocorrido no dia 7 de Janeiro, para além das declarações da assistente, temos também as declarações das já referidas testemunhas (…), vizinhas do casal e que do interior da sua residência ouviram o arguido a gritar e a insultar a assistente e a ouviram pedir ajuda, o que levou a que fosse esta última que chamasse a PSP. Neste sentido o Tribunal teve também em consideração o depoimento da testemunha (…), agente da PSP que se deslocou ao local, descreveu o cenário que encontrou e declarou sem reservas que, em seu entender, as marcas que a assistente apresentava na cara – e cujas fotos se mostram juntas aos autos – eram marcas de agressão e não de uma queda na banheira, como inicialmente a assistente lhes disse. Como ficou convencido de que se tratava de uma agressão, referiu-lhe que poderia pedir ajuda, o que esta acabou por fazer mais tarde.
Todos estes depoimentos levaram a que o Tribunal considerasse provados os factos tal como descritos. E a convicção do Tribunal não foi minimamente abalada pela junção aos autos de um talão da cervejaria (a hora da emissão é distinta da hora que a PSP foi chamada ao local) nem pelas declarações da testemunha (…), que declarou que se cruzou com o arguido nesse dia e este lhe disse que ia para casa porque a (…) tinha caído na banheira. Não só a testemunha não presenciou tal facto (o que tinha acontecido em casa) como a hora a que refere que tal aconteceu em nada colide com o demais declarado.
Importa também referir que o depoimento da testemunha (…) não foi valorado por este Tribunal na medida em que este veio aos autos declarar que tinha mentido na fase processual anterior a pedido da assistente, colocando, pois, em causa a sua credibilidade.
A testemunha (…) não revelou qualquer conhecimento com interesse para a boa decisão da causa.
O depoimento da testemunha (…), avó da menor (...), também não se mostrou relevante uma vez que o mesmo foi claramente tendencioso, procurando atribuir ao comportamento do arguido todo o padecimento psicológico de que a menor padece, menosprezando todas as circunstâncias da sua vida anterior, designadamente os relatados abusos sexuais de que foi alvo por parte do pai e a o afastamento da mãe. E o relatório médico junto aos autos também não bastou para considerar provados os danos psicológicos na dimensão apontada. Inexistindo dúvidas em face das regras da experiência comum que as condutas praticadas pelo arguido são susceptíveis de causar dor, sentimentos de tristeza e humilhação, considerando o percurso de vida da menor e desconhecendo-se as condições em que tal relatório foi realizado, o mesmo não bastou para que o Tribunal considerasse provado todos os danos psicológicos alegados.
No que se refere à defesa do arguido, o Tribunal valorou o depoimento das testemunhas (…) (antiga namorada), (…) (amigo e fornecedor de tabaco da cervejaria), (…) (amigos), na parte em que depuseram sobre a personalidade daquele, sendo que quanto ao demais apenas afirmaram não ter presenciado qualquer agressão ou injúria.
O depoimento da testemunha (…) não se mostrou relevante na medida em que o veio aos autos relatar que vivia no 2º andar do mesmo prédio veio aos autos relatar que vivia no 2º andar do mesmo prédio onde o onde residiam arguido e assistente e que nunca ouviu qualquer discussão ou agressão. Ora residiam arguido e assistente e que nunca ouviu qualquer discussão ou agressão. Ora considerando não só a distância física entre as habitações e a circunstancia de se tratar de um jovem estudante que seguramente não passaria todo o seu tempo em casa, o seu depoimento em nada afectou as conclusões retiradas da demais prova.
Já quanto aos depoimentos de (…) (filho do arguido), (…) (sobrinha do arguido) e (…) (irmã do arguido), os mesmos não foram valorados por este Tribunal porque claramente parciais e tendenciosos, revelando uma notória inimizade e animosidade para com a assistente e seus filhos, procurando denegrir a sua imagem.
Relativamente às lesões e sofrimento das vítimas, além do por elas referido, o demais resulta das regras da experiência comum.

Enquadramento jurídico-penal:
O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º nº 1, al. b), nº 2 al. a) e nºs 4, 5 e 6 do Código Penal e dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152º nº 1, al. d) e nº 2, al. a) e nºs 4, 5 e 6, do Código Penal.
Preceitua o art. 152º na parte que ora importa considerar que quem de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais a pessoa com quem mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação ou pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
Nos termos do nº 2 do mesmo artigo, se o facto for praticado pelo agente contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com prisão de dois a cinco anos.
A incriminação em causa tem em vista reprimir formas de violência no seio familiar, na sequência de uma consciencialização ético-social da gravidade de tais comportamentos violadores de alguns direitos fundamentais das pessoas.
Assim sendo, a ratio dirigiu-se à protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, podendo dizer-se que o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e que pode ser afectado por uma variedade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade (neste sentido, Comentário Conimbricense do Código Penal, I vol. pág 332).
Com a reforma de 95, foram introduzidas alterações ao regime existente, passando a incriminar a par dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos, compreendendo assim actos lesivos da saúde física ou psíquica e mental da vítima, consistindo em castigos corporais, privações de liberdade e a ofensas sexuais, que o próprio legislador se encarregou de enumerar, na estatuição do artigo 152º, do Código Penal.
As condutas nele previstas e punidas podem ser assim de vária espécie: “maus tratos físicos (isto é, ofensas corporais simples), maus tratos psíquicos (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça, etc.” (Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense ao Código Penal, pg. 333”).
Após a última revisão legislativa levada a cabo no tipo legal de crime em causa, esclareceu-se a questão de saber se se exigia uma actuação reiterada do agente, repetindo sucessivamente condutas ou se bastava um único acto isolado, atenta a gravidade do mesmo.
Tem sido entendimento dominante na jurisprudência e doutrina, respeitante a este tipo de crime, que, ainda que o tipo não exija a reiteração da conduta, o conceito de “maus tratos” exprime uma pluralidade indeterminada de atos parciais (cfr. Acórdão do TRE, de 02/07/2013, Proc. nº 53/10.3GDFTR.E1, por referência ao Acórdão do TRL, de 2/3/2011, Proc. nº 938/08.7PCCSS.L1, de 24/04/2015, Proc. nº 469/13.3PBAMD.L1-9; Ac. do TRP de 06/02/2013, Proc. nº 2167/10.0PAVNG.P1, de 10/07/2013, Proc. nº 413/11.2GBAMT.P1, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).
Como salienta Catarina Fernandes, ultrapassada a discussão relativa à reiteração de condutas, após a alteração de 2007, o crime de violência doméstica admite dois modos alternativos de cometimento: (i) um pressupõe a repetição ou reiteração dos comportamentos, os quais, analisados individualmente podem não assumir relevância criminal ou constituir prática de outros crimes (ofensa à integridade física, injúria, por exemplo); ou (ii) outro prescinde da reiteração e basta-se com um único acto ou omissão, “desde que o mesmo configure um verdadeiro maltrato físico e psicológico, devendo esta apreciação ter em conta a imagem global do facto, nomeadamente, o modo de execução da conduta e a natureza das lesões e sequelas sofridas pela vítima” (cfr. “Violência Doméstica implicações sociológicas psicológicas e jurídicas do fenómeno”, Manual Multidisciplinar, Caderno Especial, Abril de 2016, CEJ e CIG, págs. 96 a 99).
Pese embora a revisão de 2007, tenha suprimido a exigência de reiteração, será sempre de exigir “que o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, seja um tal que, pela sua brutalidade ou intensidade ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima” (cfr. Nuno Brandão, “A tutela especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar n.º 12 Especial, Coimbra Editora, pág. 22).
Destarte, o crime pode realizar-se através de uma pluralidade de actos, ou através de um único acto, que atinja a saúde física, psíquica ou moral da vítima e afecte a sua dignidade pessoal que, apreciados à luz da vida em comum, possam de modo relevante colocar em risco a sua saúde, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro daquele espaço de intimidade familiar.
Assim, actualmente basta um único acto para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado, ou seja, basta um qualquer acto de violência que afecte, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade.
Nos casos em que não se verifique uma reiteração da conduta, para que se verifique o crime é necessário que o acto isolado seja caracterizado por uma violência ou gravidade intrínseca que traduza um comportamento susceptível de nele se integrar.
Apenas podem ser vítimas do crime em análise as indicadas nas várias alíneas do nº 1 do art. 152º.
Quando em causa está a al. b) a vítima tem de manter ou ter mantido com o agente uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; no que concerne à al. d) a vítima tem de coabitar com o arguido e ser pessoal particularmente indefesa em razão da idade, doença, deficiência, gravidez ou dependência económica. O juízo sobre se o agente passivo é ou não pessoa particularmente indefesa terá ser efectuado no quadro da sua relação com o agente activo, tomando-se em consideração, se for caso disso, as qualidades deste, que possam reforçar a sua capacidade de se impor ao agente passivo.
Relativamente ao tipo subjectivo o crime de violência doméstica é punido a titulo doloso, em todas as suas modalidades.
Passemos então ao enquadramento jurídico-penal das condutas do arguido, iniciando-se a apreciação pela conduta do arguido relativamente à assistente (...).
Os factos provados demonstram que arguido e assistente mantinham uma relação análoga à dos cônjuges, com coabitação e que durante o período em que tal relação se manteve o arguido insultou e agrediu a assistente, quer no interior do café quer na residência comum, sendo que não se tratou de um acto isolado mas sim de um comportamento que se foi repetindo ao longo da relação que mantinham. Tal conduta demonstra claramente um propósito de menosprezar e humilhar aquela que era, à data, a sua companheira, atingindo-a na sua dignidade enquanto pessoa humana e membro de um casal.
A tal conclusão não obsta a circunstância de não terem ficado demonstrados todos os factos constantes da acusação. Aqueles que se demonstraram são o bastante para integrar a materialidade do crime em causa, sendo que os demais, a provarem-se, teriam apenas a virtualidade de ser considerados para agravamento da medida da pena.
Dúvidas inexistem também que se verifica a agravante prevista no n.º 2 porquanto parte dos factos fora praticados no domicílio comum e na presença da menor (…).
Donde, inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, será o arguido condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º n.º 1, al. b), n.º 2 al. a) do Código Penal.
Iremos agora analisar a conduta do arguido relativamente aos menores.
Em primeiro lugar podemos afirmar desde já que a al. d) do preceito em análise se mostra preenchida já que estamos perante dois menores que, pela sua idade (à data tinham 9 e 8 anos), não podem deixar de se considerar pessoas particularmente indefesas que com o arguido coabitavam, por força da relação deste com a mãe deles.
Importa agora determinar se a actuação do arguido relativamente a cada um deles pode ser integrada no conceito de maus tratos supra, referido.
Relativamente à menor (...) ficou demonstrado que o arguido a agrediu e chamava-lhe “puta” e “porca”.
Tais factos praticados na pessoa de uma criança com 9 anos demonstram claramente um intuito de menosprezo e humilhação, atingindo-a na sua dignidade pessoa. Com a sua conduta o arguido atingiu esta criança na sua honra e integridade física, tratando-a de um modo indigno e inaceitável, preenchendo assim o elemento objectivo do crime de violência doméstica.
Também no que se refere ao elemento subjectivo, dúvidas não há quanto ao seu preenchimento na medida que está provado que o arguido sabia que as condutas supra descritas eram aptas a humilhar, amedrontar e a ofender a saúde física e psíquica de (...), que com ele coabitava, não obstante, agiu com o propósito, concretizado, de lhes causar medo, vergonha, padecimento psicológico e de lhe molestar o corpo, ciente que a mesma era criança e que, por isso, não tinha capacidade, destreza ou discernimento para se conseguir defender.
Preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal do crime, e inexistindo causas de exclusão da ilicitude do acto ou da culpa, concluímos que o arguido cometeu o crime de violência doméstica na forma agravada, na pessoa da menor (...), independentemente dos factos dados por não provados que em nada colidem com esta conclusão.
Já no que concerne ao menor (...) a questão é diferente.
Com efeito, apenas se demonstrou que o arguido, em determinada ocasião, bateu na cabeça do menor com a mão, provocando-lhe dores. Tais factos não integram, a nosso ver, o conceito de maus tratos punidos pelo crime de violência doméstica, uma vez que não se pode concluir terem subjacente um tratamento degradante ou humilhante. Trata-se de um acto isolado, integrador da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º n.º 1 do C. Penal.
Contudo, resulta do disposto do art. 143º n.º 2 do C. Penal, que o procedimento criminal por este crime depende de queixa, salvo quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas (o que não é o caso), a apresentar no prazo de seis meses a contar da data que o titular teve conhecimento dos factos e dos seus autores, revestindo pois natureza semi-pública, donde a legitimidade do Ministério Público para promover o processo depende dessa queixa – cfr. art. 49º do CPP.
Uma vez que se trata de um menor o direito de queixa “pertence ao representante legal (…)”. No caso do menor (...), as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do menor são exercidas por ambos os progenitores – cfr. fls. 76.
Da análise dos autos resulta que não foi apresentada queixa em representação do menor, sendo que os mesmos se iniciaram com um auto de notícia elaborado no ano de 2020 e os factos em causa foram praticados em 2017.
Contudo, de acordo com o disposto no art. 113º n.º 5 al. a) do CPP, “Quando o procedimento criminal depender de queixa, o Ministério Público pode dar início ao procedimento no prazo de seis meses a contar da data em que tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, sempre que o interesse do ofendido o aconselhar e:
a) Este for menor ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa; (…)”
Ora nos presentes autos nunca foi manifestada expressamente pelo Ministério Público esta decisão de iniciar/prosseguir com os autos, salvaguardando a possibilidade de, a final, se considerar estarmos apenas perante um crime semi-público em que a vítima é menor e não foi apresentada a queixa
Essa manifestação expressa – embora não sindicável pelo Juiz – tem de se registar no processo, pelo que temos de concluir pela inexistência do pressuposto processual, constituído por uma queixa validamente formulada (ou suprida por decisão expressa do Ministério Público, nesse sentido).
Não pode, contudo, deixar de se assinalar que “se o direito de queixa não for exercido nos termos do nº 4, nem for dado início ao procedimento criminal, nos termos da al. a)” do nº 5, o ofendido pode exercer aquele direito a partir da data em que perfizer 16 anos” – art. 113º, nº 6, do CP.
Em suma, estando-se perante um crime semi-público, em relação ao qual a titularidade do direito de queixa – por se tratar de menor – pertenceria aos pais, que não a apresentaram, tem de se registar no processo uma manifestação expressa do Ministério Público, no sentido de dar início e continuação ao procedimento, por o interesse do menor o aconselhar – neste sentido cfr. Ac. RE de 28-06-2011 e RP de 02-04-2014, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Donde, não resta senão concluir pela ilegitimidade do Ministério Público relativamente ao crime de ofensa à integridade física praticado na pessoa do menor (...).
(…)


II – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai das respectivas motivações, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código e, as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).

No caso em apreço, atendendo às conclusões, a questão que se suscita é a seguinte:

- Impugnação do Acórdão proferido, por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente à subsunção jurídica dos factos provados no ponto 9., no tipo legal de crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido nos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, e 132º, nº 2, alínea c), do Código Penal.

Nos termos supra, referidos, impõe-se, antes do mais por obediência à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, deixar exarado que o Acórdão recorrido, por si ou com recurso às regras da experiência, não revela qualquer dos vícios prevenidos no nº 2 do artigo 410º, do Código de Processo Penal.
Com efeito, investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos julgados provados ou entre estes e os factos julgados não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário.
Assim, não se verificando qualquer vício de procedimento e, não sendo invocado qualquer erro no julgamento da matéria de facto, cumpre apreciar a impugnação do Ministério Público relativamente à condenação do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido nos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, e 132º, nº 2, alínea c), do Código Penal.

- Da impugnação do Acórdão proferido, por erro de julgamento da matéria de direito, relativamente à subsunção jurídica dos factos provados no ponto 9., no tipo legal de crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido nos artigos 143º, nº 1, 145º, nº 1, alínea a) e nº 2, e 132º, nº 2, alínea c), do Código Penal.
Resulta da decisão recorrida que:
“Com efeito, apenas se demonstrou que o arguido, em determinada ocasião, bateu na cabeça do menor com a mão, provocando-lhe dores. Tais factos não integram, a nosso ver, o conceito de maus tratos punidos pelo crime de violência doméstica, uma vez que não se pode concluir terem subjacente um tratamento degradante ou humilhante. Trata-se de um acto isolado, integrador da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º nº 1 do C. Penal”.
(…)
Assim, resulta expresso no Acórdão recorrido a subsunção dos factos provados relativos ao menor (...), ao tipo legal de crime de ofensa à integridade física simples previsto no artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
Entende o recorrente/Ministério Público que tais factos sejam subsumíveis ao tipo legal de crime de ofensa à integridade física qualificada previsto pelos artigos 143º, nº 1, 145°, nº 1, alínea a) e nº 2, e 132°, nº 2, alínea c), do Código Penal.
Dispõem estes preceitos legais:
Artigo 145º

Ofensa à integridade física qualificada
1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a) - Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143º;
(…)
2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º;
Artigo 132º
Homicídio qualificado
1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, (…)
2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…)
c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa em razão da idade (…);

Adaptando o texto para as ofensas à integridade física, vem sendo entendido pela doutrina e jurisprudência, valendo por todos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-05-2008, proferido no Processo nº 08P827, relatado pelo Exmo. Conselheiro Rodrigues da Costa, acessível em www.dgsi.pt, e que passaremos a seguir de perto, que quando o legislador prevê um tipo simples, acompanhado de um tipo privilegiado e de um tipo agravado, é no crime simples ou no crime-tipo que desenha a conduta proibida enquanto elemento do tipo e que prevê o quadro abstracto de punição dessa mesma conduta; nos tipos privilegiado ou qualificado, define os elementos atenuativos e agravativos que modificam o tipo base conduzindo a outros quadros punitivos (Acs. de 15-03-2007, Proc. nº 340-07 e de 24-05-07, Proc. nº 33/07, ambos da 5ª Secção do STJ).
O crime de ofensa à integridade física qualificada é definido a partir da enunciação de uma cláusula geral – se forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente – contida no nº 1, do artigo 145º, do Código Penal e concretizada ou desenvolvida no nº 2, do artigo 132º, através de exemplos-padrão, por remissão expressa do nº 2 daquele artigo 145º.
Esses dois critérios – um generalizador e outro especializador – são complementares e têm mútua implicação. A partir deles, poder-se-á sintetizar assim a estrutura do tipo agravado: ocorre a ofensa à integridade física qualificada sempre que do facto resulta uma especial censurabilidade ou perversidade que possa ser imputada ao arguido por força da ocorrência de qualquer dos exemplos-padrão enumerados no nº 2 do artigo 132º, ou, tendo estes uma natureza exemplificativa, sem deixarem de ser elementos constitutivos de um tipo de culpa, qualquer outra circunstância substancialmente análoga - cfr. Figueiredo Dias, "Comentário Conimbricense do Código Penal", anotação ao artigo 132º, adaptado para as ofensa à integridade física.
Com esta formulação dual pretende assinalar-se a interacção recíproca que intercede entre o chamado critério generalizador e os exemplos-padrão. É que não é pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos-padrão ou noutras substancialmente análogas que fica preenchido o tipo, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade, é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da atitude do agente ou da personalidade documentada no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude ou aspectos da personalidade mais desvaliosos se concretizem em qualquer dos exemplo-padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga.
Só dessa forma, para além de se respeitar o princípio constitucional da legalidade e da máxima determinação penal possível, como uma garantia fundamental do cidadão, se evitará, por um lado, o arbítrio do juiz, que poderia ser impelido a criar, autenticamente, tipos legais agravados sem ter nenhuma legitimidade para tal, segundo os princípios ínsitos ao Estado de Direito democrático ou a ver-se forçado a subsumir a factualidade ao tipo agravado, sempre que fossem provadas circunstâncias que coubessem nos moldes dos exemplos-padrão, caso estes fossem meros elementos do tipo de ilícito (cfr. acórdão do STJ de 03-10-2002, Proc. nº 2709/02, da 5ª Secção).
O tipo agravado de ofensa à integridade física é um tipo qualificado de culpa: trata-se de punir mais severamente, no quadro de uma moldura penal agravada em relação ao crime de ofensa à integridade física simples (o tipo matricial), condutas que, em razão da verificação de certas circunstâncias com uma estrutura essencialmente típica, traduzam vertentes do facto ou da conduta do agente particularmente desvaliosas em razão da sua personalidade ou da forma como ele imprime à sua actuação uma marca que acentua o desvalor do facto, em relação ao desvalor inerente a qualquer tipo de ofensa à integridade física.
Quer dizer que o agente deve e tem de poder ser merecedor de um especial juízo de culpa ou de censura ético-jurídica em razão desse especial desvalor de que a prática do facto se revestiu.
A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto de este ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica, quando podia e devia ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobre a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor, sendo, por natureza, graduável, dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo, igualmente, um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica, superando as proibições impostas.
A lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na atitude interna do agente, que revela formas de realização do acto especialmente desvaliosas, e à especial perversidade aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades do agente especialmente desvaliosas (Figueiredo Dias, ob. cit., tomo I, pág. 29; Acórdãos do STJ de 21-03-2007, Proc. nº 153/07; de 23-05-2007, Proc. nº 1495/07; de 31-10-2007, Proc. nº 3222/07 e de 05-12-2007, Proc. nº 3879/07, todos da 3ª da Secção).
Ora situando-nos na gravidade relativa do caso dos autos, em que está em causa uma pancada na cabeça com a mão, que provocou no menor (...), dores que se prolongaram até à noite, porque este se esqueceu de ir buscar uns chinelos e uma toalha, e não lhe determinaram qualquer dia de doença, não se vislumbra nesta descrita actuação, qualquer qualidade do agente especialmente desvaliosa que demonstre uma especial perversidade, que permita a subsunção de tal conduta ao disposto nos artigos 145º, nº 1, alínea a) e nº 2 e 132º, nº 2, alínea c), do Código Penal.
Mostra-se, pois, correcta a subsunção da conduta do arguido, que provada resultou nos autos, nos termos do disposto no artigo 143º, nº 1, do Código Penal, não merecendo qualquer reparo o Acórdão recorrido.
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, o recurso do Ministério Público não poderá proceder.

Sem custas atenta a qualidade do recorrente, artigo 522º, do Código de Processo Penal.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se na sua integralidade o Acórdão recorrido.

Sem custas atenta a qualidade do recorrente, artigo 522º, do Código de Processo Penal.

Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.

Évora, 21-09-2021

(Fernando Paiva Gomes M. Pina)
(Beatriz Marques Borges)