ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS CONSTANTES DA ACUSAÇÃO
TEMPESTIVIDADE
Sumário

I. A alteração prevista pelo artigo 358.º do C.P.Penal há-de ocorrer em julgamento, e já no cotejo das provas aí disponibilizadas e produzidas.
II. No momento do despacho a que se refere o art.° 311.° do C.P.Penal, não sendo patente um claro erro de subsunção dos factos constantes da acusação, não pode o juiz convolar os factos para outro tipo legal de crime por respeito do princípio acusatório.

Texto Integral

I

1. Nos autos supra identificados, pelo Ministério Público foi deduzida acusação contra os arguidos RC, MS e LF, imputando-lhes a prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelos artigos 21º n.º 1 e 25º alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro.

            2. No despacho judicial proferido ao abrigo do artigo 311º do Código de Processo Penal, procedeu-se à alteração da qualificação jurídica dos factos imputados aos arguidos imputando-se-lhes, por via dessa alteração, a prática, a ada um deles, de um crime de tráfico agravado, previsto e punido pelos artigos 21º n.º 1 e 24º alínea h), do DL 15/93 22 de janeiro.

            Mais se decidiu que, face à alteração da qualificação jurídica operada, sendo a pena aplicável ao crime de tráfico de estupefacientes agravado previsto no artigo 21º n.º1 e 24º alínea h) de 5 a 15 anos, moldura penal que se encontra fora da competência material do Tribunal Singular, conforme termos do disposto no artigo 16º n.º 2 alínea b) do Código de Processo Penal, logo que transitado em julgado o despacho, se abrisse vista ao Ministério Público para informar se pretende fazer uso do disposto no artigo 16º n.º 3 daquele diploma - CPP.

3. Não se conformando com a decisão, da mesma recorre o Ministério Público que formula as seguintes conclusões:

1. A decisão do Tribunal a quo com a rfa. 96047596 datada de 23/02/2021 parece-nos incorrecta, por ser violadora das disposições conjugadas nos arts. art. 21.º, 24.º, 25.º, todos do DL n.º 15/93 de 22/01 e arts. 311.º, 339.º, n.º 4, 358.º, todos do CPP;

2. A factualidade imputada aos arguidos consente a qualificação jurídica concretizada pelo Ministério Público;

3. O tipo matricial ou tipo-base do crime de tráfico é o do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01, o qual corresponde a casos que são já de média e de grande gravidade, os casos excepcionalmente graves estão previstos no art. 24.°, do DL n.º 15/93 de 22/01, os casos de considerável diminuição da ilicitude estão previstos no art. 25.°, do DL n.º 15/93 de 22/01.

4. A descrição dos factos realizada na acusação que contra os arguidos é formulada, descreve o crime como tendo sido praticado no interior de estabelecimento prisional, o que, nos termos da al. h) do art. 24.º do DL n.º 15/93 de 22/01 poderá agravar a conduta;

5. Ponderada a qualidade (canábis) e quantidade (33,494gr) da substância estupefaciente em causa, entende-se desproporcionado punir a conduta em conformidade com o tipo legal consagrado no art. 21.º DL n.º 15/93 de 22/01;

6.  Ainda que os arguidos sejam punidos pelo art. 25.º do DL n.º 15/93 de 22/01, a circunstância de os factos terem sido praticados no interior de estabelecimento prisional pode ser levada em conta na fixação judicial da pena a aplicar aos arguidos;

7. A decisão foi proferida no momento processual a que se refere o art. 311.º do CPP, contudo, não é este o momento oportuno para realizar alteração da qualificação jurídica apresentada pelo Ministério Público na acusação que contra os arguidos foi apresentada;

8. Atenta a inserção sistemática dos arts. 339.º, n.º 4 e 358.º do CPP o mecanismo da alteração da qualificação jurídica previsto nos mesmos apenas tem aplicação após a produção da prova;

9. Ao alterar a qualificação jurídica dos factos nos termos em que o fez o Tribunal a quo, formulou um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação, não o podendo fazer nesta fase processual.

Termos em que, e nos mais de direito, deve ser julgado procedente o recurso interposto e, consequentemente, determinada a revogação do despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que receba a acusação apresentada pelo Ministério Público, sem alteração da qualificação jurídica, e designe dia para a realização de audiência de julgamento, assim se fazendo JUSTIÇA!

4. Os arguidos não responderam ao recurso.

5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu douto parecer que assim sintetiza:

- As aludidas agravantes, como defendem quer Rocha Morães quer Lourenço Martins in “Droga e Direito” não devem ser vistas como de funcionamento automático e, nessa medida, como impeditiva de que os factos previstos no art 24, possam integrar o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade previsto no artº 25, ou outro. Vide ainda Acs do STJ in CJ 2006, Tomo I, pág. 181 e Tomo II pág. 230.

- Por outro lado, acompanhamos igualmente a posição vertida no recurso de acordo com a qual “o mecanismo da alteração da qualificação jurídica prevista no art 358º nº 3 do CPP foi previsto e tem aplicação já após a discussão da causa, após a produção da prova”.

- Face ao exposto, sem necessidade de outros considerandos, acompanhando-se a bem fundamentada motivação do Ministério Público na 1.ª instância, somos de parecer que o recurso merece provimento.

6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.                                                   

II

Questão suscitada e a apreciar:

O poder jurisdicional do juiz proceder à alteração da qualificação jurídica constante da acusação no momento do saneamento do processo a que se refere o artigo 311º do Código de Processo Penal.

III

Cumpre decidir:

1. O despacho recorrido apreciou a questão da alteração da qualificação jurídico-penal constante da acusação na perspetiva dos diferentes e possíveis entendimentos sobre o funcionamento da agravação resultante da prática dos factos em estabelecimento prisional, ou seja, nos termos do artigo 24º alínea h) do DL 15/93 de 22 de janeiro.

Entende-se, todavia, que a questão objeto do recurso e que deve ser apreciada, é prévia a esta, ou seja, sem prejuízo dos ditos entendimentos sobre se aquela agravação é ou não de funcionamento automático – citando-se na decisão recorrida jurisprudência sobre esta mesma questão – o que importa apreciar é se o juiz, ao proferir o despacho do artigo 311º do Código de Processo Penal, pode efetivamente proceder à alteração da qualificação jurídica constante da acusação nos termos em que o fez.

Questão que nos remete desde já para a natureza do nosso processo penal que, segundo o disposto no artigo 32º, nº 5, da CRP/76, tem natureza acusatória.

2. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora1ª edição, vol I, fls. 522, nota XI, a propósito do princípio do acusatório, dizem:

            "O princípio acusatório (n.º 5, 1.ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).

            A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador”.

3. Ora, uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste na designada “vinculação temática do tribunal” significando que o objecto do processo penal é o objeto da acusação, sendo este que delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado[1]. Constitui ainda (a vinculação temática), a “pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido” assegurando os direitos de contraditoriedade e audiência - Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, edição 2004, pág. 145.

            Como se diz no ac. do TRG de 22-06-2015, proc. nº 541/13.0.GBGMR-A.G1, “é indispensável que o arguido saiba com precisão do que se encontra acusado, para que possa apresentar os seus argumentos e os seus meios de contra prova. Como tem sido sublinhado, a indicação da norma incriminadora, obrigatoriamente constante da acusação[2], atribui o desvalor jurídico-penal aos eventos materiais e integra igualmente o objecto do processo”.

            E não se diga que a alteração da qualificação jurídica em nada posterga os direitos de defesa do arguido porque, ocorrendo esta alteração da qualificação jurídica dos factos na fase de designação de data para julgamento ou seja, aquando do saneamento do processo nos termos definidos pelo artigo 311º, do Código de Processo Penal, significa que ficou desde logo o arguido irremediavelmente impedido de requerer a abertura de instrução para, querendo, discutir o respetivo enquadramento jurídico dos factos.

            Pelo que , para além desta óbvia constatação que a diferente qualificação jurídica do tribunal viola, no concreto caso, a posição processual dos arguidos, a quem não  foi conferido, para o efeito, o exercício do direito do contraditório, pegando na natureza ou estrutura acusatória do processo com a diferenciação entre órgão acusador e julgador o mesmo é dizer entre as funções de acusação e de julgamento, o thema decidendi que é fixado pela acusação, entende-se que o mesmo deve vincular, já nesta fase, o julgador.

            É certo que desde há algumas décadas, a possibilidade de o juiz alterar a qualificação jurídica dos factos na fase processual do “recebimento” da acusação deduzida pelo Ministério Público ou saneamento do processo, tem dividido a jurisprudência. Uma tese defende que o juiz não tem esse poder (v. ac. TRL de 28.9.2000, CJ, XXV, 4, 140; ac. TRL de 29.4.2004, CJ, XXIX, 2, 141; ac. TRL de 11.11.2004, CJ, XXIX, 5, 131; ac. TRL de 8.2.2006, XXXI, 1, 135; ac. TRP de 30.05.2012, proc. 130/10.0PEPRT.P1). Outra tese advoga que o juiz tem esse poder (v. ac. TRP19.3.1997, CJ, XXII, 2, 230; ac. TRL de 14.10.1999, CJ, XXIV, 4, 150; ac. TRP de  03-10-2007, proc. 0713707; ac TRP de 20-11-2013, proc. 438/12.0SLPRT.P1).     

            Uma terceira tese, de compromisso, distingue entre um erro “claro” na qualificação, que deve conduzir à rejeição da acusação e um “erro provável” na qualificação, que deve conduzir ao recebimento da acusação (v. ac. do TRC de 5.1.2000, CJ, XXV, 1, 42 e ac. TRL de 28.9. 2000, CJ, XXV, 4, 140) – Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de *Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, em anotação ao respetivo artigo 311º, 797 e 797v.fls.

            2. A fixação da jurisprudência emanada do AUJ do STJ nº 11/2013, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 138, de 19 de Julho de 2013, veio de algum modo dar alento à tese de que não tem o juiz o poder de, no despacho proferido ao abrigo do artigo 311º, do Código de Processo Penal, alterar a qualificação jurídica da acusação.

            Fixa este acórdão a seguinte jurisprudência: «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP».

            No mesmo acórdão, o Supremo Tribunal de Justiça assumiu expressamente o entendimento constante do parecer do Exmo. magistrado do Ministério Público naquele Tribunal, que argumenta:

            “Ora, considerando que a acusação, definidora do objecto do processo, integra, para além dos factos, as disposições legais aplicáveis, ou seja, a qualificação jurídica (um dos requisitos obrigatórios da acusação cuja omissão acarreta rejeição - artigo 283.º, n.º 3, alínea c), do CPP), a alteração da qualificação efectuada pelo juiz de julgamento mais não é do que um proibido controlo substantivo da acusação.

            De resto, se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, certamente que o legislador não teria atribuído à sua omissão uma consequência tão grave como a rejeição. É verdade que o despacho judicial que procedeu à alteração da qualificação, não se fundamentou em diferente apreciação da prova, antes decidindo perante o próprio texto da acusação.

            No entanto, ao enquadrar os factos da acusação numa determinada qualificação jurídica, está a formular um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação.

            Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correcção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos.

            Por último, saliente-se que a tese do acórdão recorrido conduz a uma solução, a nosso ver, inadmissível, pois a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público seria mero exercício anódino. O juiz, previamente ao julgamento do mérito, passaria a poder ingerir-se em competências alheias, estruturando substancialmente a acusação, elegendo e impondo aos sujeitos do processo a qualificação correcta, que nenhum previamente (na fase própria) contestara.

            Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que actuar no momento processual que lhe compete. E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto."

            3. É certo que a jurisprudência fixada visa expressamente a questão da alteração da qualificação jurídica dos factos feita no início da audiência de julgamento. Mas não se vislumbra qualquer razão para que os fundamentos aduzidos não tenham plena aplicação na fase de saneamento do processo quando é proferido o despacho do artigo 311º, do Código de Processo Penal. Por maioria de razão, afirma-se no ac. do TRE de 30-06-2015, proc. nº 1/12.6GCEVR-B.E1, deve aplicar-se logo nesta fase.

            Fundamenta-se no ac. nº 11/2013 chamando à colação Jurisprudência do TC:

            “Conforme já explanava o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 173-92, de 07-05-92[3]: Desde logo, dir-se-á que a possibilidade conferida ao tribunal de enquadrar juridicamente os factos em diferente tipo incriminador, e, portanto, também em diferente moldura penal abstracta, não parece condizer com a obrigatoriedade de indicar na acusação e na pronúncia a lei que proíbe e pune os factos. Porque tal indicação? Por mero preciosismo? Para facilitar o trabalho ao tribunal? Parece que não. Parece que, antes de tudo, a mesma se destina a esclarecer, quer o tribunal, quer principalmente o arguido, sobre a imputação jurídico-penal que sobre este impende, e, portanto, sobre o quadro argumentativo e o peso relativo das provas que a acusação utilizará no decorrer do julgamento - para que o arguido possa preparar convenientemente a sua defesa, mas também para que o tribunal possa ponderar o interesse das provas oferecidas pelos intervenientes processuais.

            É certo que a necessidade desta indicação não decorre de norma constitucional expressa; mas decorre necessariamente do princípio do contraditório, e particularmente do princípio da acusação e da defesa, na medida em que tal defesa não pode ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objecto uma incriminação legal precisa (mesmo que eventualmente se admita a possibilidade de uma rectificação posterior dessa incriminação, que é justamente a matéria que aqui se discute). Aliás, essa menção da incriminação tem sido uma constante em toda a história do nosso direito processual penal moderno, e parece estar intimamente ligada a uma concepção acusatória do mesmo”.

            4. Compulsado o teor do artigo 311º, do Código de Processo Penal[4], não resulta deste, nem expressa nem implicitamente, a possibilidade legal de o juiz poder alterar a qualificação jurídica dos factos da acusação. Sendo outrossim legítimo concluir que, a ocorrer, está o juiz a violar a já abordada estrutura acusatória do processo penal e consequente thema decidendi, delimitado pelo libelo acusatório.

            Como afirma o Conselheiro Oliveira Mendes[5], uma eventual alteração do objecto do processo no despacho a que se reportam os artigos 311.º e 313.º do Código do Processo Penal “só é admissível no circunscrito âmbito do saneamento do processo, isto é, por efeito da existência de qualquer nulidade ou outra questão prévia ou incidental que obste à apreciação, de parte, do objecto do processo. Com esta asserção pretendemos significar que ao juiz está vedada a possibilidade de alterar a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, modificação que só pode ser equacionada na audiência de julgamento de acordo com o disposto nos artigos 358.º e 359º “.

            Pelo que se acompanha a posição do ac. do TRE de 30-06-2015, proc. nº 1/12.6GCEVR-B.E1 quando diz que “a independência dos tribunais e dos juízes não é posta em causa pela posição assumida e mais arriscado se mostra para essa independência, e inerente imparcialidade, a possibilidade de o mesmo juiz controlar a actividade do Ministério Público via controlo do teor substancial da acusação antes de proceder ao julgamento da mesma matéria”.

            Ou seja, não está de todo vedado ao tribunal proceder a uma alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação. Mas, a ocorrer, deve ocorrer nos termos regulados pelo sistema processual penal, nomeadamente através da alteração não substancial dos fatos, conforme prevista no artigo 358º, do Código de Processo Penal[6], assegurando sempre os direitos de defesa do arguido.

            Nesse sentido parece orientar-se o disposto no artigo 339º, nº 4, do Código de Processo Penal, ao preceituar que “Sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º”.

            Conforme se fundamenta ainda no Ac. 11/2013, ao alargar o âmbito de aplicação do instituto à alteração da qualificação jurídica dos factos o legislador visou, também, assegurar as garantias de defesa do arguido, de acordo, aliás, com a Constituição da República, que impõe sejam asseguradas todas as garantias de defesa ao arguido - n.º 1 do artigo 32.º consabido que a defesa do arguido não se basta com o conhecimento dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, sendo necessário àquela o conhecimento das disposições legais com base nas quais o arguido irá ser julgado.

            Pelo que, considerando tudo o que se acaba de expor, entende-se que a jurisprudência do AUJ nº 11/2013, tem igualmente fundamento para ser aplicada na fase de saneamento do processo ao ser proferido o despacho do artigo 311º do Código de Processo Penal[7].

           

            5. Se se perfilha, em tese, a posição exposta, mais se justifica que, no concreto caso, não deveria ter sido alterada a qualificação jurídica constante da acusação, nos termos em que o foi.

            Desde logo, porque o Ministério Público fundamenta, ainda que sucintamente, a qualificação constante da respetiva acusação, quando diz:

            “Considerando os factos ora em causa e a discussão que os mesmos encerram não se fará utilização das formas especiais de processo passando-se a proferir acusação nos termos que abaixo se exara. Mais se consigna que considerando a forma de comissão dos factos e a quantidade e qualidade de produto estupefaciente optou-se por não considerar a conduta dos arguidos como enquadrável no disposto no art. 24.º, al. h) do DL n.º 15/93 de 22/01”.

            Por outro, a decisão recorrida encerra, em nosso entender, um juízo contraditório sobre a apreciação que faz da natureza da agravante de os factos terem ocorrido no interior de estabelecimento prisional na qual encontrou fundamento para a alteração da qualificação jurídica dos factos para a prática de um crime de tráfico agravado previsto e punido pelos artigos 21º n.º 1 e 24º alínea h) do DL 15/93, crime este a que corresponde uma pena de 5 a 15 anos de prisão. Logo, fora do âmbito de competência material do tribunal singular (v. artigo 16º n.º 2 alínea b) do Código de Processo Penal), ao mesmo tempo que manda dar vista ao Ministério Público para informar se pretende fazer uso do disposto no artigo 16º n.º 3 do CPP.

            Decisão que, afinal de contas, admite, logo nesta fase processual e concomitantemente com a referida alteração, a não substancial relevância da agravação resultante da prática dos factos no interior do estabelecimento prisional. Pois não se vislumbra outra interpretação para esta tomada de posição do tribunal ao pretender ouvir o Ministério Público sobre a questão.

            Situação que, a efetivar-se porventura o uso pelo Ministério Público desta disposição legal e tendo por base a qualificação dos factos feita pela Srª Juíza ao abrigo artigo 21º n.º1 e 24º alínea h) do DL 15/93 significaria que, na moldura penal de 5 a 15 anos de prisão, o tribunal de julgamento teria de aplicar, impreterivelmente, a pena de 5 anos de prisão!![8]

            6. Merece aqui referência, ainda, a posição de Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, em anotação ao respetivo artigo 311º, fls 798, nota 12: "A solução da imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento judicial dos autos é a única consentânea com a proibição da sindicância do uso pelo Ministério Público da faculdade do artigo 16.º, n.º 3, por via da sindicância da imputação penal feita na acusação [...] Em síntese, o legislador quis que a qualificação jurídica dos factos feita pela acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia fosse discutida na audiência de julgamento e só nesse momento (acórdão do TC n.º 518798), podendo então os sujeitos processuais proceder a essa discussão jurídica sem quaisquer restrições ou vinculações à qualificação feita em momento anterior. Razão pela qual o juiz, aquando da prolação do despacho do artigo 311.º, não deve rejeitar a acusação e devolvê-la ao MP para corrigir erros "claros" de qualificação jurídica dos factos, sendo certo que a "clareza" do direito não é indiscutível”.

            Finalmente, em abono da posição perfilhada, se tinha também já pronunciado o ac. do TRL de 29-03-2007, proc. nº 2001/07-9:

            1- A alteração prevista pelo artigo 358.º do C.P.Penal há-de ocorrer em julgamento, e já no cotejo das provas aí disponibilizadas e produzidas.

            2- No momento do despacho a que se refere o art.° 311.° do C.P.Penal, não sendo patente um claro erro de subsunção dos factos constantes da acusação, não pode o juiz convolar os factos para outro tipo legal de crime por respeito do princípio acusatório.

IV

Decisão

Por todo o exposto, decide-se julgar procedente o recurso do recorrente Ministério Público e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que designe data para julgamento pelos aos factos e respetiva qualificação jurídica destes nos termos constantes da acusação deduzida.


Sem custas.  

Coimbra, 6 de Outubro de 2021

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários        

Luís Teixeira (relator)

Vasques Osório (adjunto)


[1] V. ac. do STJ de 12.6.2002, proc. nº 1100/02-3ª; SASTJ, nº 62, 60 (citado por Maia Gonçalves a fls 732 do Código de Processo Penal Anotado, 17ª edição, 2009, Almedina):I- É a acusação que define o objeto do processo, determinado pelo problema jurídico-criminal concreto, sendo por ela que se fixa o thema probandi e o thema decidendi, com referência àquele problema. II- como um dos princípios fundamentais do objeto do processo conta-se o princípio da identidade, segundo o qual o objeto se deve manter idêntico desde a acusação até à decisão final.
[2] Com efeito, dispõe o artigo 283º, do Código de Processo Penal:
3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
g) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor;
h) A data e assinatura.
[3] www.tribunalconstitucional.pt/
[4] 1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
[5] V. Código do Processo Penal Comentado, 2014, Gaspar, António Henriques, Almedina, Coimbra, 2014, p. 1037, anotação ao artigo 313.º
[6] Prevendo o nº 3 deste preceito, a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia
[7] Neste sentido v. os citados acórdãos do TRG de 22-06-2015, proc. nº 541/13.0.GBGMR-A.G1 e ac. do TRE de 30-06-2015, proc. nº 1/12.6GCEVR-B.E1.
[8] Único denominador comum para a pena mínima prevista para o crime e pena máxima que o tribunal singular poderia aplicar.