ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
DISPENSA DA PENA
CONCORDÂNCIA DO JUIZ
Sumário

I - Constituem pressupostos de arquivamento do inquérito por crime de ofensa à integridade física simples (artigo 143º, nº 1, do Código Penal) à luz do disposto no artigo 280º, nº 1, do Código de Processo Penal, os seguintes:
a) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou
b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor;
e
c) que a ilicitude do facto e a culpa do agente sejam diminutas;
d) que o dano tenha sido reparado; e
e) que à dispensa de pena se não oponham razões de prevenção.
II - Não se verifica o pressuposto da efetiva reparação do ofendido pela circunstância de estar à disposição da pessoa ofendida o mecanismo processual previsto no artigo 72º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Processo nº 50/19.3T9ALB.P1
Data do acórdão: 22 de Setembro de 2021

Juiz-Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Juíza-Desembargadora adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa

Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Instrução Criminal de Aveiro

Sumário:
………………………………
………………………………
………………………………

Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

nos presentes autos, em que figura como recorrente a assistente B….

I – RELATÓRIO
1. Por despacho datado de 9 de Janeiro de 2020, o juiz de instrução criminal manifestou concordância com o arquivamento de um inquérito por parte do Ministério Público, num caso de dispensa de pena, com os seguintes fundamentos:
"Compulsados os autos e atento o requerimento que antecede, constata-se que o mencionado ilícito criminal prevê a dispensa de pena (art. 143º, n.º 3 do Código Penal).
Dos autos flui a existência de ofensas corporais recíprocas entre as arguidas com consequências diminutas.
A ilicitude do facto e a culpa dos agentes são diminutas face às circunstâncias em que ocorreram as lesões perpetradas.
A conduta dos agentes não se reveste de forte gravidade e a reparação dos danos encontra-se acautelada, considerando as lesões provocadas e ainda o disposto no art.º 72º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal.
Quanto às razões de prevenção, verifica-se que as arguidas não possuem antecedentes criminais relativos a crimes de idêntica natureza e não se vislumbra que esta solução de oportunidade crie um sentimento de impunidade ou de não protecção do bem jurídico protegido pela incriminação."

2. Inconformado com tal despacho, a assistente acima identificada interpôs recurso do mesmo, concluindo a sua motivação de recurso nos seguintes termos:
"A. Não pode a Arguida C… ser dispensada da aplicação de urna pena, nos termos e para os efeitos do disposto da norma específica do art° 143°, n° 3 al. a) e b) do Cód. Penal porque não se mostram verificados os requisitos para tanto;
B. Da prova produzida, seja documental, testemunhal e declarações das arguidas foi possível apurar, com necessária segurança, certeza e probabilidade séria, qual a sequência dos factos denunciados e, em concreto, qual dos intervenientes agrediu em primeiro lugar bem como é claro e notório que apenas a recorrente sofreu lesões;
C. Se por um lado a testemunha D… não confirmou as declarações da arguida C…, ou seja, não confirmou que tenha sido a ora recorrente a dar início às agressões já por outro, a testemunha E… prestou depoimento a fls._ dos autos sendo que no depoimento referiu que os factos terão ocorrido conforme consta na queixa apresentada pela recorrente B…, ou seja, terá sido a arguida C… a dar inicio à contenda;
D. O depoimento desta testemunha mostra-se compatível com o relatório do episódio de urgência de fis. 167 e seguintes no qual se descrevem várias lesões ao nível da cabeça da ora recorrente, designadamente: “... hematoma palpebral stiperior esq., escoriações na área malar dta., hematoma na parte distal de nariz..”
E. As lesões sofridas pela recorrente, que determinaram um período de recuperação de 15 dais, encontram-se devidamente discriminadas no relatório do episódio de urgência, no relatório do IML e ilustradas nas fotos juntas aos autos a fls. 177 não são consequência de meros empurrões como alegou a arguida C… e a referida testemunha D… mas sim resultado de graves e fortes agressões ao nível da cabeça da ora recorrente, sendo compatíveis com a versão dos factos carreada para os autos pela recorrente e pela testemunha E…;
F. Existiu assim um erro clamoroso na apreciação e valoração da prova para os autos, existindo prova de que quem deu inicio à contenda foi a arguida C…, pelo que, não pode a Arguida C… ser dispensada da aplicação de uma pena, nos termos e para os efeitos do disposto da norma específica do art° 143°, n° 3 aI. a) e b) do Cód. Penal.
G. Em todo o caso, e mesmo que assim não fosse, é hoje entendimento unânime, seja da doutrina ou jurisprudência, a necessidade, além dos supra mencionados, da verificação dos requisitos, cumulativos, vertidos no artigo 74° do Código Penal, sejam: a ilicitude do facto e a culpa diminuta, o dano ter sido reparado e, por último não se oporem razões de prevenção.
H. O douto despacho do MP e o Douto Despacho do JIC de concordância não atendem aos pressupostos do art. 74 do CP, nem os ponderam fundamentadamente, pelo que, violam o disposto no art. 280º do CPP e devem ser revogados.
I. O grau de ilicitude é elevado e a culpa agravada porquanto foi desproporcionada a ofensa perpetrada pela Arguida C… que recorreu a bofetadas e murros na cabeça da ora recorrente;
J. A arguida C… não demonstrou por qualquer forma arrependimento ou vontade de reparar o dano por si cauisado à Assistente; pelo contrário, antes revelou total insensibilidade face aos valores tutelados pelo direito;
K. Acresce que por imperativo do disposto no artigo 74°, n.° 1, do CP, a reparação do dano é conditio sine qua non da aplicação do instituto da dispensa de pena. Reparação essa que não é potencial, mas efectiva, concretizada.
L. A “compensação de condutas” que, em termos de política criminal, justifica a dispensa de pena em caso de lesões reciprocas não se tendo provado qual dos contendores agrediu primeiro, não significa implicitamente que os danos se tenham por compensados, exigindo-se uma reparação efectiva do dano.
M. Demonstrando-se que não se verificou a condição expressa na al. b) do n° 1 do art° 74°, ou seja, que não se encontra reparado o dano, é de revogar a decisão que aplicou tal medida.
N. Sendo a reparação do dano um dos requisitos para o arquivamento do processo em caso de dispensa de pena (art. 280º do CPP), nada permite, numa situação como a referida, conjecturar que os danos tiveram urna expressão económica idêntica ou equivalente para cada um dos agressores, nem que seja viável qualquer fenómeno de compensação entre ambos.
O. Isto sendo certo que quer o MP no seu Despacho (…) quer o próprio JIC no seu Despacho de concordância se pronunciam quanto à forma como terá ocorrido a reparação dos danos de forma concretizada e devidamente fundamentada:
Donde, é forçoso concluir-se pela inadmissibilidade do arquivamento do processo ao abrigo do disposto no artigo 280.° n.° 1 do Código do Processo Penal, o que não pode deixar de conduzir à procedência do recurso.
Foram assim violados, na sua interpretação e aplicação, os art°s 74°, n° 1 e 3, art° 143° e 186°, n°2 do C.P. e ainda o art° 280°, n° 1 do C.P.P.».
Pelo que, não se mostram verificados os pressupostos que determinam a admissibilidade de arquivamento por dispensa de pena, nos termos e para os efeitos do artigo 143°, n.° 3 aI. a) do Código Penal."

3. Após deferimento de reclamação, o recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, nos termos legais.
4. O Ministério Público respondeu, alegando, em suma, o seguinte:
"(…) Acresce que, da leitura da decisão ora em crise, verifica-se que houve o cuidado de fundamentação e de ponderação de todos os aspetos concretos do caso em apreciação, desde logo os factos fortemente indiciados nos autos, o crime imputado e as exigências cautelares que neste caso se fazem sentir, tendo-se considerado e, bem em nosso entender, que se encontravam verificados os pressupostos para determinar o arquivamento com dispensa de pena."

5. A recorrida C… também apresentou resposta à motivação do recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo, em suma, o seguinte:
"A Recorrente considera que a arguida C… não pode ser dispensada da aplicação de uma pena, por não estarem verificados os requisitos para tanto, mas aceitando a dispensa de pena que lhe foi aplicada a si, na qualidade de arguida e com os mesmos fundamentos, o que não se aceita.
Da prova produzida na fase de inquérito resulta que houveram agressões físicas mútuas entre as arguidas, não se conseguindo descortinar quem iniciou tais agressões e resulta que houveram lesões para ambas as arguidas, logo é possível chamar à colação o art. 143° n°. 3 alínea a) do Código Penal que prevê que o Tribunal pode dispensar de pena quando tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro.
Os requisitos consagrados no art. 74° do Código Penal encontram-se, no presente caso, integralmente verificados porquanto quer a ilicitude dos factos, quer a culpa das arguidas são diminutas, resultando uma imagem global do facto significativamente diminuída, atenta a reduzida gravidade das lesões provocadas e a circunstância da conduta lesiva ser mútua.
A não reparação dos danos não constitui um obstáculo à dispensa de pena, pois numa situação em que há reciprocidade de lesões, em que não se sabe quem iniciou a contenda fisica e em que não existem sequelas para nenhuma das arguidas, e em que a ofendida concorreu para a produção do resultado danoso, por ter provocado tal resultado, é incompreensível a exigência de reparação do dano à arguida para poder beneficiar da dispensa de pena (art. 570° n°. 1 do Código Civil).
Além disso, ambas as arguidas têm ao seu dispor o art. 72° nº 1, al. b) do CPP que prevê a realização de pedido cível em separado, por força do arquivamento do inquérito, com extracção de certidão do inquérito, a fim de a parte cível intentar a competente acção, apesar de o inquérito ter sido arquivado.
Não se verificavam particulares exigências de prevenção geral e especial que imponham a aplicação de uma pena a alguma das arguidas, isto porque as arguidas não possuem antecedentes criminais e a solução de oportunidade (dispensa de pena) não cria um sentimento de impunidade ou de não protecção do bem jurídico protegido pela incriminação.
Tendo os doutos despachos do Ministério Público e do Juiz de Instrução Criminal fundamentado pormenorizadamente a verificação em relação a ambas as arguidas C… e B…, de todos os pressupostos de que depende a dispensa de pena, não se encontram violados os artigos 74° n°1 e 3, 143° n°. 3 al. a); 186° n°. 2, todos do Código Penal e art. 280º n°. 1 do Código de Processo Penal.
NESTES TERMOS, e com o douto suprimento deste Venerando Tribunal, negando provimento ao recurso interposto, e mantendo os despachos proferidos pelo Ministério Público em 16/12/2019, que procedeu ao arquivamento dos autos nos termos do art. 280° n°. 1 do CPP e proferido pelo Sr. Dr. Juiz de Instrução Criminal de 09/01/2020, que deu a concordância ao arquivamento, Vas. Exas. farão, corno sempre, a habitual Justiça.

6. O Ministério Público junto deste Tribunal[1] teve vista dos autos (artigo 416º, nº 1, do Código de Processo Penal), tendo emitido parecer, fundamentado, com o seguinte teor:
"(…)
Em seguida a recorrente pretende demonstrar que não se mostram preenchidos os pressupostos de que depende a dispensa de pena.
Tais pressupostos estão previstos nos artigos 143º, nº3 e 74º, nºs 1 e 3 todos do Código Penal.
Cremos não assistir razão à recorrente. Com efeito, o Ministério Público no seu despacho de 16/12/2019, acima transcrito, elencou os pressupostos de que depende a dispensa de pena e cuidadosamente analisou cada um deles.
Referindo concretamente:
- com a prova colhida no inquérito, não foi possível determinar qual das duas intervenientes deu início às agressões;
- existência de ofensas corporais recíprocas entre as arguidas com consequências diminutas;
- a ilicitude do facto e a culpa dos agentes são diminutas face às circunstâncias em que ocorreram as lesões perpetradas;
- a conduta dos agentes não se reveste de forte gravidade;
- a reparação dos danos encontra-se acautelada pois, não existem sequelas para nenhum deles, não foi possível apurar quem teve a iniciativa da contenda e se a assistente concorreu para a produção do resultado danoso, seria incompreensível a exigência de reparação do dano ao arguido para poder beneficiar do instituto da dispensa de pena;
- as arguidas não possuem antecedentes criminais relativos a crimes de idêntica natureza;
- a dispensa de pena no caso não criará um sentimento de impunidade ou de não protecção do bem jurídico protegido pela incriminação.
O Mmº Juiz recorrido ficou convencido da bondade dos fundamentos apresentados pelo Ministério Público e aderiu à proposta de dispensa de pena.
Por nós, também entendemos que no presente caso se deveria lançar mão do disposto no artigo 143º, nº3 do Código Penal.
Assim, e em conclusão, somos do parecer que o recurso deve ser julgado improcedente e que haverá que manter o decidido."

7. Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta.
8. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].

Questão a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Seguindo o entendimento consolidado em todos os tribunais superiores portugueses [2] e respeitando o disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso é definido pelas conclusões que a recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Por conseguinte, cumpre apurar se estão reunidos os pressupostos de dispensa de pena e, consequentemente do arquivamento do inquérito, nos termos do disposto no artigo 280º do Código de Processo Penal.
II –FUNDAMENTAÇÃO

De jure
Constitui entendimento pacífico nos autos que o arquivamento do inquérito, decidido pelo Ministério Público com a concordância do juiz de instrução criminal, foi concretizado à luz do disposto no artigo 280º do Código de Processo Penal:
"1 - Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontra expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa."
O despacho judicial de concordância é passível de recurso[3].
Resulta também pacífico para todos os sujeitos processuais que o tipo legal de crime que constituiu objeto do inquérito é de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo disposto no artigo 143º do Código Penal, podendo o tribunal dispensar de pena, nos termos do disposto no número 3 do mesmo artigo, quando:
f) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou
g) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.
No entanto, uma dispensa facultativa de pena, como é o caso, também depende, legalmente, da verificação dos requisitos gerais de dispensa de pena previstos no artigo 74º, nº 1, do Cód. Penal[4], excetuado o requisito atinente aos limites da pena aplicável ao crime.
O número 3 do citado artigo 74º do Código Penal é claro ao estatuir que “quando uma outra norma admitir, com carácter facultativo, a dispensa de pena, esta só tem lugar se no caso se verificarem os requisitos contidos nas alíneas do nº 1”, os quais são os seguintes:
- que a ilicitude do facto e a culpa do agente sejam diminutas;
- que o dano tenha sido reparado;
- que à dispensa de pena se não oponham razões de prevenção.
Concretizado o regime legal, importa recordar as razões do dissenso.
Enquanto o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução criminal, entendeu estarem reunidos os pressupostos acima enunciados, a assistente recorrente motiva o seu recurso, discordando de tal posição, por entender:
a) ter sido apurado ter sido a arguida C… a iniciar a contenda física;
b) que o grau de ilicitude da conduta da mesma arguida não é diminuto, considerando as lesões causadas, resultantes de uma grave agressão;
c) não ter havido lugar à reparação dos danos;
Resulta claro do regime legal acima enunciado que a possibilidade de arquivamento do inquérito depende da possibilidade legal de dispensa de pena o que, no caso em apreço, é contestado pela recorrente, que alega não se verificar o requisito previsto no art. 143º, nº 3, alínea a) [apurou-se que foi a arguida C… quem iniciou a contenda física], nem aqueles que vêm concretizados no artigo 74º, nº 3, alíneas a) e b), todos do Código Penal [o grau de ilicitude da conduta da mesma arguida não é diminuto, considerando as lesões causadas, resultantes de uma grave agressão e não houve lugar à reparação dos danos];
Cumpre apreciar e decidir.
Tendo em consideração a prova indiciária recolhida no inquérito, conclui-se o seguinte:
1. No dia 8 de Março de 2019, pelas 10h15m, B… apresentou queixa, por ter sido agredida por E…, mediante uma estalada na face e vários murros, bem como puxões de cabelo, no interior do F…, acabando caída no chão e inconsciente.
2. Mostra-se junto aos autos, igualmente, um relatório de perícia médica, datado de 11 de Março de 2019, tendo sido observada na pessoa de B… uma equimose na região periorbitária esquerda, com discreta hemorragia subconjuntival.
3. Em 12 de Março de 2019, C… apresentou queixa, nomeadamente, contra B… e E…, que consistiu, no essencial, no seguinte:
a) no dia 6 de Março de 2019, cerca das 10h, C… encontrava-se a efetuar compras na loja denominada "G…", no F…, quando foi injuriada pela arguida B…, o que a fez querer sair da loja;
b) nessa altura, B… empurrou-a, fazendo-a desequilibrar e cair em cima de um manequim;
c) a assistente saiu então para o corredor, tendo sido seguida por B… e E… e agarrada pelos cabelos por ambas.
4. Um médico elaborou um documento, que foi junto à queixa, referindo que C… apresentava em 6 de Março de 2019 algumas escoriações e equimoses na zona parietal direita.
3. Prestando de declarações em inquérito, na qualidade de assistente, C… confirmou o teor da sua queixa, acrescentando que conhecia as duas pessoas contra quem dirigiu a queixa e que nada tinha acontecido anteriormente, susceptível de explicar a conduta das mesmas.
4. A testemunha D…, empregada no estabelecimento comercial denominado "G…", depôs em inquérito, confirmando que no dia e hora em causa, C… encontrava-se a efectuar compras nessa loja, quando foi injuriada pela arguida B…. Continuou a trabalhar e quando voltou a olhar, já as duas estavam no corredor, agarradas uma à outra, nunca tendo presenciado qualquer intervenção de E…, também presente.
5. B… também se limita a confirmar o teor da queixa por si apresentada.
6. E… também confirmou o teor da mesma queixa, acrescentando que, mal entrou juntamente com a sua irmã B…, viu C… a agredir com bofetadas e murros na cabeça B…, que já estava a sangrar, tendo a empregada da loja (D…) empurrado essas duas para fora da loja. Chamou os bombeiros e a sua irmã foi para o hospital. A C… ausentou-se do local.
7. Encontram-se duas fotografias nos autos, de um couro cabeludo de uma senhora, supostamente de C…, com vestígios aparentes de equimoses.
8. Um documento referente a um episódio de urgência do hospital …, de 6 de Março de 2021, pelas 11h25m, da utente B…, que apresentava hematoma palpebral superior à esquerda, escoriações na área malar direita e hematoma na parte distal do nariz, tendo a mesma sido encontrada no chão, com hemorragia.
9. Foram juntas mais duas fotografias, alegadamente respeitantes a B…, nas quais se observa um hematoma palpebral superior à esquerda.
Procedendo-se à aferição dos meios de prova indiciários juntos aos autos, acima descritos e tendo presente que objeto processual penal começa por ser inicialmente delimitado, ainda que com grande flexibilidade, pela participação, denúncia ou queixas, conclui-se o seguinte, relativamente aos pressupostos do arquivamento:
a) houve lesões recíprocas e ainda não foi estabelecido qual das contendoras agrediu primeiro – pois houve meios concretos de prova contraditórios produzidos a esse respeito, sendo ainda certo que a única testemunha isenta (D…) depôs em inquérito, referindo não ter presenciado o início das agressões – o que não será credível à luz das declarações de E…, que referiu ter visto essa testemunha até a empurrar as contendoras para fora da loja -;
b) a ilicitude dos factos é reduzida, tendo em conta as lesões que se mostram documentadas nos autos – importa neste domínio ainda salientar não se ter apurado que alguma das vítimas tenha perdido a consciência em resultado de agressão -;
c) os danos não foram reparados – resultaram provados danos corporais, com os inerentes sofrimentos inerentes, sem que tenha existido efetiva reparação dos danos, como exigido pela lei:
a. não se podendo considerar existir reparação pela circunstância de estar à disposição da(s) ofendida(s) o mecanismo processual previsto no artigo 72º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal, contrariamente ao sustentado na decisão recorrida;
b. não se pode considerar inexistirem danos, por não terem ficado sequelas duradouras; e
c. nem se colocando uma questão de compensação, uma vez que não foi sequer concretizado o "quantum" indemnizatório que cabe a cada uma das pessoas lesadas envolvidas na contenda;
d) não se opõem razões de prevenção ao arquivamento, tendo em conta a ausência de antecedentes criminais por crime semelhante e a reciprocidade de agressões documentadas.
Pelo exposto, não se verificando – ainda – o pressuposto exigido pela alínea b) do nº 1 do artigo 74º do Código Penal, conjugado com a parte final do nº 1 do artigo 280º do Código de Processo Penal, impõe-se revogar o despacho recorrido e, em consequência, negar a concordância ao Ministério Público para arquivar o inquérito.
*
Das custas processuais:
Sendo o recurso julgado provido, com a oposição da recorrida C…, esta terá de suportar as custas do decaimento (artigo 513º, nº 1, do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, pela simplicidade do objeto do recurso.
*
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes ora subscritores da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em conferência e por unanimidade, em julgar o recurso provido e, em consequência:
a) revogar o despacho recorrido e, em sua substituição,
b) negar a concordância ao Ministério Público para arquivar o inquérito, por preterição do pressuposto exigido pela alínea b) do nº 1 do artigo 74º do Código Penal, conjugado com a parte final do nº 1 do artigo 280º do Código de Processo Penal
Custas a cargo da recorrida C…, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta.

Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, 22 de Setembro de 2021.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
_______________________
[1] Parecer subscrito pelo Procurador-Geral Adjunto Dr. Fernando Manuel Barbosa Soares de Miranda.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[3] Recorda-se, a propósito, o teor da fundamentação clara e objetiva da decisão da Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto, que deferiu a reclamação da não admissão do recurso:
"No caso, embora o despacho de arquivamento seja do Ministério Público, o mesmo tem como condição necessária "a concordância" do juiz de instrução, que embora não constitua decisão final do caso, tem natureza jurisdicional, sendo impugnável por via de recurso ordinário, quer em caso dc não ter sido concedida — cfr. Código de processo penal Comentado, Almedina, 2014, em anotação ao artigo 280º, Maia Costa - quer em caso de ter sido concedida, pois não vemos razões para tratar diferentemente o assistente — Maia Gonçalves CPP anotado, 17” edição, p. 669 - e o MP, mormente em face do princípio da tutela jurisdicional efectiva.
Portando, não estando fora de hipótese a prolação de despacho de arquivamento ao abrigo do art° 280° do C.P.P. ao arrepio das condições estabelecidas no preceito entendemos que a ordem jurídica vigente não aceitaria o sacrificio da legalidade ao tratamento simples e célere da pequena criminalidade, pelo que, a solução a que chegámos, que encontra na letra da lei correspondência, é a que, sem pôr em causa este tratamento, pois, não arreda a inadmissibilidade do recurso para as decisões de arquivamento que estejam em consonância com o estatuído no preceito (n°s 1 e 2), permite reagir contra aquele tipo de decisões (…)"
[4] Neste sentido, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de Outubro de 2012 (processo nº 1112/10.8PHMTS.P1), relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, publicado na base de dados de jurisprudência da DGSI presente na rede digital global, que cita diversa jurisprudência com o mesmo entendimento ("Ac. Rel. Lisboa de 11.10.2001, in CJ, ano XXVI, tomo 4, pág. 144; Ac. Rel. Lisboa de 22.09.2004, Ac. Rel. Coimbra de 11.05.2011, Acs. Rel. Guimarães de 05.06.2006, 08.06.2009 e 11.07.2011, disponíveis em www.dgsi.pt; Ac. Rel. Évora de 11.07.2006, 08.04.2010 e 14.07.2010 e Acs. desta Relação do Porto de 29.01.2003, de 14.03.2007 e de 22.09.2010").